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quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24925: Notas de leitura (1645): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte V: O colonialismo republicano, em oposição ao salazarismo, que se assumia sem complexos, e que de certo modo antecipava as tendências reformistas que levaram, em 1951, à revogação do Acto Colonial de 1930

Angola > "A Exma. Esposa  do Coronel Félix montada num búfalo-pacaça, que, minutos antes, ela própria abatera a tiro de rifle"  (Joaquim António da Silva Félix era ofcial do exército, coronel, industrial, agricuktir e publicista, dono da fazenda Glória.)

Fonte: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 8, janeiro e março de 1934, pág. 35.

Ilha da Madeira, vista geral do Funchal e da sua baía... "Fotografia  gentilmente cedida pela Casa da Madeira, Lisboa" (A Madeira também foi lugar de desterro... até aos anos 30.)

Fonte: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 8, janeiro e março de 1934, pág. 46.



Fonte: Boletim da SociedadeLuso-Africana do Rio de Janeiro, nº 10-11, agosto - dezembro de 1934, pág- 1984


1. O investigador brasileiro Marcelo, F. M. Assunção que fez uma tese de doutoramento sobre os 20 boletins da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, publicados ao longo década de 1930 (1931-1939), coincidindo com o triunfo da Ditadura Militar e do Estado Novo em Portugal, faz questão de sublinhar que, apesar do  seu "racismo culturalista", (...) "os republicanos na oposição ao salazarismo detinham uma visão mais progressista das relações entre metrópole e colônias do que a que existia na institucionalidade dos anos 30",  e anteciparam de algum modo  o "reformismo que ganhou força nos 50, com a revogação do Ato Colonial e as reformas estatuarias (mais vocabulares do que práticas) no contexto do pós-guerra e das guerras coloniais".  Recorde-se que com  a revisão constitucional de 1951 as colónias passaram a chamar-ser "províncias ultramarinas"... Mas o trabalho forçado só foi abolido por Adriano Moreira em 1961...

Enfim, um trabalho académico que merece uma leitura mais atenta e demorada, e não apenas a correr e em diagonal:


"(...) CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma tese não pode ser considerada o esgotamento do objeto e de suas múltiplas determinações, pois os problemas e respostas que levantamos são limitados por nossos recortes temporais e teórico-metodológicos. 

Como afirmamos em nossa introdução, o estudo do Boletim constitui apenas uma parte de um projeto maior de análise do colonialismo no seio das relações culturais luso-afro-brasileiras por meio de periódicos. A despeito dos limites dessa pesquisa, que serão adereçados posteriormente em uma pesquisa mais global, podemos destacar algumas especificidades sobre a relação entre o colonialismo e a produção de periódicos. 

O projeto colonial da Sociedade Luso Africana do Rio de Janeiro e de seus sócio correspondentes representa, apesar de suas diversas particularidades, um projeto mais amplo de dominação simbólica e material das colônias que na prática não se distancia tanto do projeto colonial salazarista.

As vertentes mais “humanistas” do colonialismo na prática não abdicavam da coerção e da integração forçada das populações nativas ao sistema colonial. As diferenças, como já reiteramos diversas vezes, não apagaram o projeto global de dominação e expropriação/coerção das diversas etnias. 

Entretanto, a modernização capitalista tão almejada pela intelligentsia republicana da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, em oposição ao modelo de austeridade e centralismo salazarista, diferenciavam-se em alguns termos, inclusive em seus instrumentos de análise do “outro” colonizado.  

A antropologia de viés cultural era muito mais dominante nessa intelligentsia do que uma antropologia mainstream de cunho biológico (a Escola do Porto). Por isso, não era arbitrária a presença de antropólogos e etnólogos brasileiros já críticos aos modelos racialistas de cunho biológico nas publicações do Boletim, invertendo o sinal negativo da presença do negro na cultura brasileira, e afirmando também a importância lusitana para o processo de “democratização racial” no Brasil.

A cultura imperial republicana, salazarista ou monárquica, era unânime na defesa da manutenção da presença do Império no ultramar. Colonizar e civilizar faziam parte de uma suposta essência portuguesa. Portugal, para esses intelectuais, precisava se “alimentar” continuadamente de “gentes exóticas” para realizar a sua essência, a “antropofagia lusitana”, como já disse um arguto antropólogo (THOMAZ, 2002: 144) (...)

Todavia, a suposta assimilação do exótico, tão explícita no ideário panlusitano, dava-se em um sentido “hierárquico” entre um “nós” lusitano da metrópole culturalmente superior e um “outro” que deveria chegar ou foi levado à “civilização”. A valorização do “mestiço”, cabo-verdiano ou brasileiro, no Boletim, não se dava exclusivamente porque a cultura negra começava a ser vista como um contributo para a sociedade lusitana, mas porque, na percepção destes intelectuais, os nativos foram culturalmente “civilizados” segundo os parâmetros europeus.

O racismo culturalista desta intelligentsia era, portanto, hierárquico, e o lusitano, uma espécie de “ser vocacionado” para o “sacrifício” da colonização.

A despeito disso, os republicanos na oposição ao salazarismo detinham uma visão mais progressista das relações entre metrópole e colônias do que a que existia na institucionalidade dos anos 30. Foram de certa forma uma vanguarda 'avant la lettre' do reformismo que ganhou força nos 50, com a revogação do Ato Colonial e as reformas estatuarias (mais vocabulares do que práticas) no contexto do pós-guerra e das guerras coloniais. 

Apesar de toda a sua retórica republicana ser de fato “paradoxal”, foi em decorrência desta onda conservadora que a Sociedade e sua intelligentsia foram perseguidos até a sua completa extinção em 1939, com o último número do Boletim." (#)

(#) Fonte: Considerações finais. In: ASSUNÇÃO, Marcelo, F. M. - A sociedade luso-africana do Rio de Janeiro (1930-1939): uma vertente do colonialismo português em terras brasileiras. 2017. 324 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017, pp. 276/277.


(Seleção, revisão e fixação de texo, negritos: LG) (com a devidfa vénia...)
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Nota do editor:

Postes anteriores da série: 



domingo, 3 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24912: Notas de leitura (1642): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte III: A lenda de Ohbapuma (ilha de Orango, arquipélago dos Bijagós)


Nota de LG: 

Lapso de registo ou transcrição: Mancane deve "Mancanha", e Nolu deve ser "Nalu"...  Unnhocomo é "Unhocomo" (a ilha mais ocidental do arquipélago dos Bijagós)... "Campune" é rapariga antes do casamento, bajuda (termo já grafado nalgum dos nossos dicionáros)."Cabarro"/rapaz" ainda não está grafado com este significado.
 
Armando de Landerset Simões terá nascido em Moçambique, Caconda, em 1909. Além de funcionário da administração colonial, tem livros publicados como Simões Landerset, nomeadamente  "Babel negra: etnografia, arte e cultura dos indígenas da Guiné" (Porto, Oficinas Gráficas de O Comércio do Porto
1935) (prefácio de Norton de Matos).

A ilha de Orango, a mais afastada, do arquipélago dos Bijagós (2,6 mil km2 e  34,2 mil hab.) tem, segundo a "Wikipedia, uma área aproximada de 272,5 km e 1.250 Hab (2009).

A ilha conjuntamente com as ilhas de Meneque, Orangozinho, Canogo e Imbone, bem como os ilhéus de Adonga, Canuopa e Anhetibe fazem parte do Parque Nacional de Orango.  "No parque existe uma colónia de hipopótamos e de acordo com as crenças religiosas da população local, o hipopótamo é um animal sagrado, pelo que não pode ser morto ou ferido. Outros animais que se podem encontrar são as tartarugas marinhas e manatins africanos."
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Guiné 61/74 - P24910: Notas de leitura (1641): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte II: Lourenço Marques (hoje Maputo): foto galeria dos anos 30


Moçambique > Lourenço Marques > O histórico hotel Polana, debruçado sobre a baía de Lourenço Marques (hoje Maputo). Foto: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 2, maio de 1932, pág.26

(...) "Implanta-se na Avenida António Enes/Julius Nyerere nº 1380 e data do ano 1922; constitui um grandioso edifício, virado panoramicamente ao Índico, com arquitetura de expressão classicizante. Projetado, ao que se sabe, por Walter Reid (1866-1947), "em estilo Palace", terá sido projeto deste arquiteto, ativo em Joanesburgo e irmão do colega Arthur Henry Reid, que também ali trabalhou; pertenceu ao grupo de arquitetos britânicos fixados na África do Sul que incluía o famoso Herbert Baker (1862-1946), autor dos famosos edifícios governamentais em Pretória e Nova Deli, a quem também alguns atribuem o Polana. O hotel foi construído pelo engenheiro Hugo Le May, por iniciativa da Delagoa Bay Lands Syndicate, em 1917-1922." (Fonte: HPIP - Património de Influência Portuguesa) (...)

Moçambique > Lourenço Marques (hoje Maputo)  > O cine-teatro Scala, construído em 1931. Foto: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 2, maio de 1932, pág.27


Moçambique > Lourenço Marques (hoje Maputo) > O pavilhão de chá  na praia da Polana. Foto: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 2, maio de 1932, pág.26 .


(...) " Na transição das décadas de 1920-1930, floresceu a chamada "arquitetura do betão armado" e o sequente Modernismo, dentro da arquitetura art déco. Em Lourenço Marques podem assinalar-se o Palácio Maçónico, depois Escola Industrial 1.º de Maio, o Grémio Náutico (atual Clube Naval), obra de desenho entre art nouveau e art déco; e o Pavilhão de Chá, uma típica arquitetura de betão em varandas e consolas. Podemos associar-lhes o Hotel Polana, de 1922, de influência anglo-saxónica e expressão classicizante. 

"A partir dos anos 1930 a produção arquitetónica em Lourenço Marques caracterizou-se, esquematicamente, pelo surgimento de uma arquitetura moderna, segundo uma produção praticamente anónima que retomava, com um ligeiro atraso, os temas de sucesso em Portugal; e por uma produção mais ousada e experimental que aprofundava, por vezes com mais liberdade do que então era possível no lugar de origem, as tendências inovadoras da arquitetura internacional, experimentando materiais diversos e tomando em conta expressões figurativas estranhas à cultura dominante".(...)  (Fonte: HPIP - Património de Influência Portuguesa)


1. Do nº 2 do Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, maio de 1932, e do artigo "Lourenço Marques", por António Augusto de Miranda (pp. 24/27) retiramos estas três fotos, que pretendem ilustrar o rápido surto de modernização da capital da colónia. 

Lourenço era uma vila em 1876, tendo sido elevada a cidade 11 anos depois, em 1887. No início da década de 1930, era já, na opinião deste magistrado, António Augusto de Miranda, "uma das lindas, mais garridas e modernas cidades do mundo" (pág. 24). E pergunta,  embevecido, o autor: "É qualquer  coisa  que nos desvanece como povo colonizador, não acham?"... Faz um apontamento sobre o crescimento urbanístico da capital da colónia, em termos de números de casas, estradas e arrruamentos contruídos ao longo dos anos de 1920 e princípios de 1930.

O termo "colonalista" neste Boletim, na aceção que tinha na época, era o que (ou quem) defendia, sem complexos,  o colonialismo, a manutenção e o desenvolvimento das colónias.

Todos estes homens (e algumas mulheres), que aqui escreviam, civis e militares,  em geral republicanos e democratas, africanistas e panlusitanistas (sic),  não tinham pejo em assumir-se como "colonialistas" (no "bom sentido" do termo)... Na esteira do gen Norton de Matos, sócio honorário da Sociedade Luso-Africana  do Rio de Janeiro, defendiam o "povoamento branco" das colónias e a "assimilação" dos seus naturais.

Sobre Maputo ver aqui o magnífico portal HPIP - Património de Influência Portuguesa, que poucos dos nossos leitores conhecem...e que merece uma visita demorada. 

(...) "Heritage of Portuguese Influence/ Património de Influência Portuguesa — HPIP — é a evolução natural do projeto Património de Origem Portuguesa no Mundo: arquitetura e urbanismo que, sob a direção de José Mattoso, a Fundação Calouste Gulbenkian desenvolveu entre 2007 e 2012. Teve como objetivo uma publicação em três volumes, mais um de Índices, de uma compilação de informação sobre o tema, composta sob a forma de dicionário de matriz geográfica. (...)

(...) Evolução natural porque a obra impressa tem um preço e uma expressão física que na realidade só a torna acessível ao grande público em bibliotecas, mas também porque face à matéria e ao seu âmbito geográfico tem um enorme potencial de constante atualização. Mesmo com uma vasta e qualificada equipa como a que se reuniu para o efeito, não é possível cobrir a totalidade do planeta em casos e conhecimento já disponível e atualizado. São pois evidentes os dois eixos desejáveis de desenvolvimento do projeto: divulgação mais ampla e reunião integrada de informação dispersa. Uma vez conjugados de forma eficaz, podem gerar um feliz efeito recíproco de bola de neve. Basta que a divulgação estimule a colaboração e vice-versa.

Para atingir tais objetivos o meio ideal é o de um sítio em linha, que se apresente e funcione como portal público interativo da base de dados georeferenciada na qual se concentre e administre toda a informação reunida. Como capital inicial contamos com o conteúdo dos livros, que é, por certo, suficientemente atrativo e estimulante para suscitar a integração do contributo de todos quantos pelo mundo fora tenham algo a acrescentar ou a corrigir, seja através de conteúdos escritos ou gráficos (fotografia, desenhos, iconografia, etc.) (...)

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24893: Notas de leitura (1639): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte I: a voz dos colonialistas republicanos nostálgicos e exilados




Fonte: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 2. maio de 1932,  pág. 71


1. A Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro foi fundada a 22 de Maio de 1930.

Este boletim foi um dos primeiros projectos desta associação. O seu objetivo era   dar a conhecer aos portugueses do continente americano, e em especial do Brasil, as colónias portuguesas espalhadas pelo mundo. Tinha como subtítulo "Pela Raça, Pela Língua". 

(...) "A nossa bandeira cobre umna superfície de mais de dois milhões de quilómetros quadrados, onde gravitam 16.860.000  portugueses", dos quais 8,7 milhões "negros", 7 milhões de "brancos", 550 mil "índios", 450 mil "malaios" e 160 mil "amarelos" (sic).

Na realidade, a Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro era "a única associação dedicada exclusivamente à propaganda colonial portuguesa no Brasil" (Assunção, 2017, pág. 60) (#).  Além disso, " também congregava a especificidade de ser produzido por intelectuais republicanos exilados no Brasil, nostálgicos de um ideário 'republicano' de colonização que detinha como principal modelo as gestões de Norton de Matos em Angola (1912-14 e 1921-1924)." (Assunção, 2017,  pág. 59).(#)

Do Boletim publicaram-se 25 números  (alguns são números duplos),  de maio de 1931  (nº 1) a dezembro de 1939 (nº 25). Diretor: António de Sousa Amorim (um republicano, minhoto de Ponta de Lima, exilado no Brasil).

Velhos africanistas como o nosso camarada António Rosinha vão gostar de  o "folhear": está disponivel, em formato pdf e html, na Hemeroteca Digital, sítio da Hemeroteca Municipal de Lisboa (HML).

De entre os  colaboradores do Boletim, descortinámos, um pouco ao acaso, e numa leitura rápida de uma amostra, nomes conhecidos como Norton de Matos, Paiva Couceiro, Henrique Galvão, Manuel Teixeira Gomes, Sarmento Pimentel, Augusto Casimiro (1889-1967) (capitão de infantaria, herói da I Grande Guerra,  braço direito de Norton de Matos em Angola, cofundador da "Seara Nova"...), e outros (quase todos republicanos,  exilados e nostálgicos de um pretenso império que ia "do Minho a Timor", como defenderá mais tarde a propaganda estado-novista )... 

A linha político-ideológica é a do "nacionalismo imperial",  do "panlusitanismo"  e mas também do incipiente "luso-tropicalismo" (teorizado por Gilberto Freire, e rejeitado nos anos 30 e 40 pelo Estado Novo)... 

São termos usados por Marcelo Assunção, na sua tese de doutoramento em história pela Universidade Federal de Goiás, para caracterizar a linha editorial do Boletim e a orientação política da Sociedade,  cada vez mais em rota de colisão com o Estado Novo e a política colonial de Salazar.

A trajetória do Boletim passa por duas grandes fases, a da crítica velada (1931-1934) à repulsa ao salazarismo (1935-1939) (que são analisados no cap. II, da tese de doutoramento abaixo citada).

(...) No segundo momento (capítulo III), analisaremos o fenômeno do pan-nacionalismo (da Sociedade Luso-Africana e outras instituições e personagens do período) no quadro mais amplo dos pan-etnicismos, evidenciando as visões sobre o panlusitanismo/luso-brasilidade nas três primeiras décadas do século XX. 

Em seguida, perscrutaremos o panlusitanismo nos anos 30, sendo o Boletim o principal órgão de reprodução do ideário, seja através da sua visão do panlusitanismo como resposta a ascenção do imperialismo germânico e italiano, seja através da 'Cartilha Colonial', de Augusto Casimiro, a principal expressão da visão de mundo dos republicanos que publicam nesta. 

Em um terceiro momento (capítulo IV), trataremos do “republicanismo nostálgico” no Boletim a partir das distintas críticas ao modelo de gestão colonial do salazarismo (centralismo, trabalho forçado, arcaismo economico, etc.). 

Por fim, no capítulo V, analisaremos os “exotismos” construídos sobre o “outro” colonizado a partir da historiografia e dos estudos africanistas (etnologia e antropologia) publicados no Boletim." (... ) (Assunção, 2017, pág. 59).(#)

Há referências à Guiné, mas as estrelas do império (e as   que ocupam mais espaço no Boletim)  são, sem dúvida, Angola e Moçambique. Talvez valha a pena, numa próxima oportunidade, explorar essas referências, o que implica percorrer com atenção os 20 exemplares disponíveis. Destaque para já para o número especial do Boletim, dedicado à Exposição Colonial do Porto de 1934 (de que foi diretor Henrique Calvão).


Capa do nº especial dedicado à exposição colonial do Porto (1934). Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 9, abril-julho de 1934.
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(#) Vd. ASSUNÇÃO, Marcelo. F. M. - A sociedade luso-africana do Rio de Janeiro (1930-1939): uma vertente do colonialismo português em terras brasileiras. 2017. 324 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017. Disponível em formato pdf em: http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/6960 

Resumo:

Nosso objetivo principal nessa tese é analisar o projeto colonial da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, tendo como fonte primordial de estudo os vinte volumes do seu Boletim (1931-1939), como também os livros, cartilhas e outras produções oriundas dos membros da Sociedade. 

Para realizar esse intento, num primeiro momento (capítulo I) analisamos as condições de emergência do “nacionalismo imperial” do qual o boletim é somente uma das expressões. 

Nos outros quatro capítulos, buscamos entender as diversas especificidades do Boletim. No capítulo II evidenciamos a trajetória da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro em suas duas grandes fases: da crítica velada ao salazarismo e a busca por uma grande “coalização panlusa” (1931-1934) até a repulsa ao Estado Novo dos últimos anos (1935-1939), apreendendo essas transformações a partir de diversas fontes, mas primordialmente através dos editoriais do Boletim. 

No III capítulo buscamos explorar os sentidos políticos do “panlusitanismo” no seio do contexto mais global dos “pan-etnicismos”, abordando também a partir do boletim e da obra “Cartilha Colonial”, de Augusto Casimiro” o discurso panlusitano. A frente, no capítulo IV, fizemos uma análise do projeto colonial dos gestores militares republicanos e sócio-correspondentes da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, dando ênfase as críticas que estes faziam às práticas coloniais do salazarismo e o espelhamento idealizado no “modelo Norton de Matos”. 

Por fim, no capítulo V, perscrutamos as relações entre a historiografia do colonialismo e os estudos africanistas com um ideário de “vocação imperial” tão presente no saber colonial hegemônico nos anos 30. 

Em suma, o exame destes discursos permitem visualizar no seio do Boletim, e das publicações da Sociedade, a particularidade do colonialismo republicano em meio à hegemonia política salazarista nos anos 30. Estes irão ser uma vanguarda do reformismo colonial que só ganha força nos anos 50. A derrota do seu projeto nos anos 30 é uma expressão de que em tempos de Estados Novos a retórica “democrática” (mesmo que restrita ao discurso) não tinha espaço. 

Palavras-chave: Colonialismo, Republicanismo, Salazarismo, Panlusitanismo, Relações Luso-Afro-Brasileiras, Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro.

 https://repositorio.bc.ufg.br/tedeserver/api/core/bitstreams/082dfd1d-ce90-4507-9e4f-cae7720dc11b/content (Com a devida vénia...)

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24608: Notas de leitura (1611): "Cabo Verde, Abolição da Escravatura, Subsídios Para o Estudo", por João Lopes Filho; Spleen Edições, 2006 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
João Lopes Filho é alguém na cultura cabo-verdiana, um antropólogo e professor universitário com vasto currículo. Neste punhado de subsídios para o estudo da abolição da escravatura, vem defender que tendo a sociedade e a cultura cabo-verdiana base essencialmente escravocrata o tema da abolição é incontornável para compreender a vida daquela antiga colónia portuguesa a partir do fim da escravatura. Incentiva os historiadores a ir aos arquivos, ainda há muito para esclarecer. E direi eu que há também muito para esclarecer sobre este comércio negreiro que se estendia a vários pontos influentes do que é hoje a Guiné-Bissau, ainda há muito para esclarecer sobre a proveniência dos escravos que estão na génese do homem cabo-verdiano, o arquipélago fazia parte de um vértice, aqui arribavam escravos vindos do golfo da Guiné (nomeadamente de Angola e S. Tomé), de toda a Senegâmbia (do que é hoje o Senegal, a Gâmbia, a Guiné e a Serra Leoa) e o produto final destas investigações não será pacífico, pode muito bem acontecer que se desmoronem tabus sobre a ligação direta Guiné - Cabo Verde, isto independentemente de ter sido neste arquipélago africano, onde, por metro quadrado, mais se adensou a língua, a religião, a cultura trazidas pelos portugueses, numa miscigenação a que não faltou a presença judaica.

Um abraço do
Mário



A abolição da escravatura em Cabo Verde, o olhar de um estudioso cabo-verdiano

Mário Beja Santos

"Cabo Verde, Abolição da Escravatura, Subsídios Para o Estudo", por João Lopes Filho, Spleen Edições, 2006, é apresentado pelo autor como uma abreviada síntese de um estudo com maior fôlego, em preparação. A história do país tem uma base essencialmente escravocrata e Cabo Verde serviu como ponto de apoio, primeiro para a expansão marítima e depois como um dos vértices do triângulo de tráfico escravocrata (África/Cabo Verde/Américas). João Lopes Filho dá-nos uma documentação do processo moroso e conflituoso em torno da abolição da escravatura, nunca perdendo de vista o antes do comércio de escravos e as consequências do abolicionismo.

Perde-se na noite dos tempos o comércio de escravos em África, a dimensão e a envergadura deste comércio altera-se com o tráfico atlântico, iniciado a partir do século XVI, com vários destinos americanos, do Brasil às Caraíbas e ao que é hoje os EUA. Os portugueses bem pretenderam o monopólio, mas tratava-se de um mercado tão lucrativo que foi disputado por espanhóis, ingleses, franceses e holandeses. A economia colonial alterou-se profundamente com este tráfico, os escravos iam para as plantações, foram diretos mobilizadores de recursos agropecuários que trouxeram a riqueza da Europa e das Américas. A escravatura conheceu o seu auge na segunda metade do século XVIII, tendo os ingleses na vanguarda.

Chega o momento de o autor contextualizar Cabo Verde no vértice do triângulo do tráfico de escravos. Os intermediários cabo-verdianos eram expeditos, conheciam bem as mercadorias mais apreciadas nas permutas, não foi por acaso que se desenvolveu uma verdadeira indústria de panaria em Cabo Verde destinada a satisfazer a clientela que fornecia escravos. Inicialmente, os navios negreiros paravam em Cabo Verde, precisavam desses panos. A Igreja veio a intervir neste comércio exigindo o batismo e a lanidização dos escravos antes da sua reexportação. Como escreve o autor: “À medida que a classe sacerdotal se consolidava em Cabo Verde, a Igreja passou a ministrar, antes do batismo, uma formação à generalidade dos escravos e aqueles que assimilavam os conhecimentos passavam a ser designados de ladinos e os outros como boçais”.

Com a perda de influência na costa ocidental africana, nos inícios do século XVIII a maioria dos estabelecimentos comerciais portugueses passaram para as mãos de estrangeiros, mas Cabo Verde manteve durante algum tempo a sua posição – o papel do arquipélago só desapareceu quando o comércio foi totalmente abolido.

E entramos agora nas ideias abolicionistas, foram desencadeadas pela Inglaterra a que se juntaram, no início do século XIX, a Suécia, a Holanda, a França e a Espanha. 1863 é uma data decisiva, o presidente Lincoln promulgou a Proclamação da Emancipação e dois anos depois a 13.ª Emenda confirmava a liberdade dos negros nos EUA. Houve reflexos em Cuba e no Brasil- como o autor observa, e é hoje consensual entre os estudiosos, o movimento abolicionista vingou porque se encontrava emergente uma nova sociedade urbanizada e industrializada detentora de outras perspetivas económicas daquelas que tinham modelado e alimentado a escravatura. Na alvorada da industrialização percebeu-se que África estava destinada a ser uma fonte fornecedora de matérias-primas e um excelente mercado para produtos acabados. Isto para relevar que não foram só interesses éticos e humanitários que estiveram por detrás do abolicionismo, foi necessário consolidar o capitalismo industrial. A oposição dos plantadores, armadores e marinheiros dos barcos negreiros foi enorme, como era previsível, e o confronto chegou a tomar dimensões brutais.

Portugal não aderiu prontamente a esta abolição, uma boa parte da economia dependia do comércio negreiro. A primeira posição firme veio do ministro Sá da Bandeira que em 1836 fez aprovar um decreto abolicionista. Estabeleceram-se protocolos e agendas de combate entre Portugal e Inglaterra, mas tudo com lentidão, mesmo sob a pressão britânica, como João Lopes Filho revela no seu trabalho destacando as medidas legislativas tomadas pelas duas potências. Portugal tinha uma presença enfraquecida na costa ocidental africana, a Inglaterra e a França acordaram em anexar territórios que faziam parte dos domínios portugueses na área da Gâmbia através de uma convenção que assinaram em maio de 1845, convenção essa que abriu caminho para a realização da Convenção Luso-Francesa de 1886 que definiu a superfície da Guiné Portuguesa. Isto num contexto em que as grandes potências coloniais faziam a divisão da África em esferas de influência.

O autor revela a dimensão do tráfico clandestino, estavam sobretudo envolvidos mercadores espanhóis, o mercado das Caraíbas ainda era muito atrativo e ficamos com um quadro de referência bastante iluminado das embarcações apreendidas pelo transporte ilícito de escravos, constituiu-se mesmo uma comissão mista luso-britânica que inspecionava o interior dos barcos para detetar a presença de elementos que levassem a concluir ser navios negreiros, todo este enunciado aparece altamente documentado.

A economia cabo-verdiana sofreu um duro golpe a partir de 1815, quando se anunciou a abolição imediata do tráfico em todos os lugares da costa de África sitos ao norte do Equador. Explodiram conflitos sociais, os coronéis do interior perceberam que o seu poder económico estava comprometido, aumentaram as tensões na relação morgado-rendeiro, surgiram levantamentos populares, revoltaram-se os rendeiros, os escravos fugiam, reinava um clima de mal-estar no seio das Forças Armadas, foram abolidas as milícias, ordenanças e comandos militares, e a partir dos finais de 1835 cresceram as contendas entre senhores e escravos.

Portugal criou em 1854 uma instituição denominada Junta de Proteção dos Escravos e Libertos, a quem competia assegurar que todo o escravo tinha o direito de reivindicar a sua natural liberdade, ficava na situação de liberto, no entanto com a obrigação de servir o senhor pelo tempo de dez anos; determinava-se a condição da criança escrava que ficava sob a tutela da junta protetora que tinha vários objetivos, sendo um deles proteger os pecúlios dos escravos legitimamente adquiridos e fiscalizar a sua aplicação. João Lopes Filho dá-nos um quadro detalhado de toda esta legislação.

Em termos de considerações finais, recapitula a pressão britânica, as muitas fugas à repressão escravocrata, à procura das novas soluções na luta contra o tráfico. E o autor espera ter carreado informações que permitam aos historiadores avançar com maiores desenvolvimentos.

Imagem retirada do blogue Cabo Verde Island Tours
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24596: Notas de leitura (1610): "A Guiné-Bissau Hoje", por Patrick Erouart; Éditions du Jaguar, Paris, 1988 (Mário Beja Santos)

domingo, 6 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24536: Recortes de Imprensa (130): "Nós tínhamos um padre, Antonio Grillo, que foi preso acusado de defender os rebeldes e os guerrilheiros que lutavam pela independência (...). Quando Paulo VI se tornou papa, o governo português perguntou o que ele queria de presente: 'Quero a libertação do padre Antonio Grillo'. Dito e feito. Paulo VI era maravilhoso" (...). (Dom Pedro Carlos Zilli, missionário brasileiro do PIME, bispo de Bafatá, em entrevista à Gazeta do Povo, 1/10/2019)


Foto nº 1


Foto nº 2

Guiné-Bissau > Regíão de Tombali > Guileje > 20 de Janeiro de 2010 > Núcleo Museológico Memória de Guiledje (*) > Cerimónia de inauguraçáo da capela > Na 1ª foto, a nossa amiga Júlia Neto, viúva do cap José Neto (1929-2007), ao lado do bispo de Bafatá, Dom Carlos Pedro Zilli.

Na nº 2, a "foto de família": ao centro o Bispo de Bafatá, ladeado pela Júlia (à sua esquerda) e pelo Pepito (à sua direita).

Ao fundo, o crucifixo levado de Portugal, pela Júla Neto, oferta do Paulo Santiago. Presentes também, entre outras individualides, os embaixadores da União Europeia, da Finlândia, de Cuba e de Portugal, bem como a então presidente da ONG AD - Acçáo para o Desenvolvimento, Isabel Miranda, o Domingos Fonseca /o arqueólogo de Guileje(, bem como a Isabel Levy Ribeiro (hoje viúva do Pepito, 1949-2014).

Fotos (e legenda): © Pepito (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné ]


1. Excertos da entrevista a Dom Pedro Carlos Zilli, missionário do Pontifício Instituto das Missões Exteriores (PIME); não ascido em Santa Cruz do Rio Pardo (São Paulo, Brasil), trabalha na Guiné-Bissau, na África Ocidental, desde 1985; em 2001, foi nomeado Bispo de Bafatá, uma das duas dioceses do país.


Gazeta do Povo, Curitiba, Paraná, Brasil | 01/10/2019 08:28 | Por Felipe Koller

(...) Você acompanha a história da Guiné-Bissau há mais de trinta anos – e me parece que seja uma história bem conflituosa. Como você enxerga a missão da igreja nesse contexto?

É bem conflituosa, sim. Houve a Guerra da Independência entre 1963 e 1974 e a Guerra Civil entre 1998 e 1999. A Igreja sempre esteve presente em meio aos conflitos.

A Igreja é vista como uma autoridade e o povo espera que os bispos transmitam alguma mensagem nesses períodos. Fazemos isso com uma certa frequência – não fazemos mais para não perder o efeito.

Já fizemos duas mensagens conclamando a paz que foram assinadas por católicos, evangélicos e muçulmanos. Em uma ocasião, o então presidente, um muçulmano, nos chamou em meio a um conflito e a audiência durou só cinco minutos: apenas nos pediu para rezarmos pela paz, pelo diálogo e pela reconciliação. É muito bonito esse reconhecimento da Igreja por parte das autoridades.

(...) A missão da Igreja brasileira na Guiné-Bissau tem o nome de Paulo VI, que foi canonizado no ano passado. O que o senhor diria sobre a importância da canonização de Paulo VI?

Foi ele quem levou à frente o Concílio Vaticano II. João XXIII teve a ousadia e a graça de convocar um concílio, mas acho que nem ele pensava que daria nisso tudo.

Paulo VI deu continuidade ao concílio após a sua morte. Foi o papa que deu início ao hábito das visitas papais a diversos lugares do mundo. Em 1969, foi o primeiro papa a ir para a África, conclamando a Igreja do continente para ser missionária.

Também recebeu em audiência Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos, líderes que lutavam pela independência dos países africanos de língua portuguesa. Muita gente morreu pela independência e pela liberdade. Mas a conquista da independência se atribui também, em parte, a Paulo VI, por ter recebido esses líderes.

Nós tínhamos um padre, Antonio Grillo, que foi preso acusado de defender os rebeldes e os guerrilheiros que lutavam pela independência contra o regime português.

Quando Paulo VI se tornou papa, o governo português perguntou o que ele queria de presente: “Quero a libertação do padre Antonio Grillo”. Dito e feito. Paulo VI era maravilhoso. (...)

Leia mais em: https://www.semprefamilia.com.br/blogs/acreditamosnoamor/tive-que-aprender-a-fazer-poesia-a-partir-da-realidade/


2. Comentário do editor LG:

A história do PAIGC está cheia de "lendas & narrativas", como de resto acontece com outros movimentos e partidos revolucionários, à esquerda e â direita, incluindo naturalmente a Igreja Católica enquanto organização e instituição...

Uma dessas "lendas" é o da famosa audiència, em 1 de julho de 1970, do Papa Paulo VI aos très dirigentes nacionalistas das colómias portugugueses que lutavam pela independència dos seus países (MPLA, PAIGC e FRELIMO), e que ao tempo (e ainda hoje) é hoje objeto de leituras divergentes.(**)

Vale a pena ler os seguintes excertos de um artigo mais vasto que o historiador João Miguel Almeida publicou, há 3 anos no jornal digutal 7Margens. 

Vd. 7Margens > A audiência inédita de Paulo VI que abalou o Estado Novo
João Miguel Almeida | 1 Jul 20

(...) Facto inédito até então, que assim permaneceria vários anos: um Papa – Paulo VI – quebrava vários interditos e recebia em audiência os líderes dos movimentos independentistas de três das então colónias portuguesas em África. Foi há 50 anos, 1 de Julho de 1970, e também era quarta-feira.

Um dos momentos de maior tensão entre o regime do Estado Novo e o Vaticano, que o regime ditatorial português tentou esvaziar antes que a censura permitisse que a notícia fosse dada. A convite do 7MARGENS, o historiador João Miguel Almeida reconstitui aqui o acontecimento.



Excertos do artigo de João Miguel Almeida (que é autor de A Oposição Católica ao Estado Novo, ed. Nelson de Matos, 2008) (com a devida vénia ao autor e ao editor):

(...) O acontecimento reabriu feridas nas relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé. A gestão da crise e a minimização dos estragos causados na imagem de um regime político que se afirmava como defensor da Igreja Católica não foram suficientes para apagar a perceção de que a estratégia e a doutrina da Santa Sé em relação a África divergiam da política colonial portuguesa.

(...) Os sinais provenientes do Vaticano durante e logo após o Concílio Vaticano II tinham sido captados com incómodo e crispação pelo governo de Salazar. A encíclica Pacem in Terris, de João XXIII, fora publicada em Portugal com a referência ao direito de autodeterminação dos povos cortado. A ida de Paulo VI à ONU fora considerada um acontecimento “horrível” por Salazar e a deslocação do Papa à Índia, fora qualificada por Franco Nogueira como um “agravo”, por causa da anexação de Goa pelo Estado indiano.

No entanto, a hábil diplomacia portuguesa conseguira varrer as sombras da imagem das relações entre Portugal e o Vaticano, explorando a visita de Paulo VI a Fátima em 1967. A chegada de Marcello Caetano ao poder pareceu anunciar uma melhoria nas relações entre o Estado Novo e a Santa Sé, como fim do exílio de dez anos do bispo do Porto, em 1969. (..:)

(..) Entre 27 e 29 de junho decorreu em Roma a Conferência de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas, organizada formalmente pelas três confederações sindicais italianas, embora na prática ela tenha resultado do empenho de quadros do PCI (Partido Comunista Italiano) e da CGIL, a central de orientação comunista.

Esta iniciativa, em que o PAIGC (...) MPLA (...) e Frelimo (...) marcaram presença, contou com a participação de 171 organizações nacionais e internacionais, de 64 países. (...)

(...) A preparação da audiência

(...) O encontro entre Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos com Paulo VI, foi meticulosa e secretamente preparada, para iludir a vigilância da polícia política portuguesa. A principal organizadora do encontro foi Marcella Glisenti, presidente da Associação Italiana dos Amigos da Présence Africaine, existente desde 1962 e que integrava personalidades como Enrico Berlinguer (futuro secretário-geral do PCI) e Giorgio La Pira (presidente da câmara de Florença e representante da ala esquerda da Democracia Cristã italiana).

No Vaticano, a jornalista italiana era também conhecida por ser casada com Giuseppe Glisenti, filiado no Partido Democrata Cristão, antigo resistente antifascista e diretor do Instituto para a Reconstrução Industrial (IRI).

Marcella Glisenti relacionava-se com os movimentos de libertação na África portuguesa, principalmente com Amílcar Cabral, que conhecera em 1968, em Paris, por intermédio do intelectual católico de origem senegalesa Alioune Diop, fundador da revista Présence Africaine e de uma livraria do mesmo nome em Paris (cfr. “A Amiga Italiana de Cabral”, Expresso, 22/02/1997).

Marcella Glisente pediu uma audiência a Paulo VI, em nome dos três líderes dos movimentos de libertação, numa carta dirigida a monsenhor Frana, secretário do cardeal Benelli, o número dois do governo do Vaticano.

A carta traçava um perfil dos três homens indicando não só o seu trajeto político, mas também a sua formação religiosa (dois católicos e um metodista).

O pedido de audiência foi reforçado por uma carta do arcebispo de Conacri, Raymond Marie Tchidimbo, dirigida a Benelli, em que classifica o encontro como uma “ocasião única” para o reconhecimento pela Igreja Católica “dos justos direitos à dignidade e à autodeterminação dos povos africanos”.

A autorização para o encontro chega por escrito, a 30 de junho, avisando os três líderes africanos que serão recebidos no dia seguinte pelo Papa, em audiência privada, na Sala dos Paramentos, onde eram recebidos os embaixadores estrangeiros, pelas 12h15. (...)


(...) A difícil gestão de um incidente diplomático


O embaixador junto da Santa Sé [Eduardo Brazão] fica chocado com a notícia. O Governo português não se limita a apresentar uma nota de protesto ao secretário do Estado do Vaticano – chama a Lisboa o seu embaixador, um gesto diplomático de forte desagrado, que geralmente antecede o corte de relações diplomáticas.

O protesto é também apresentado em pessoa e verbalmente ao equivalente ao cargo de primeiro-ministro no Vaticano, o cardeal Villot, que se mostra surpreendido e consternado. Na interpretação de Eduardo Brazão, o cardeal francês desconhecia as manobras de política internacional “manejada pelos seus subordinados italianos”. (...)

(...) Assim que é informado da chamada do embaixador português a Lisboa, o Vaticano faz publicar no Osservatore Romano uma versão dos acontecimentos que visa esvaziar a crispação com o governo português: a receção teve um carácter exclusivamente religioso, nada teve de especial, e nela o Papa limitou-se a saudar os interlocutores e exortá-los a serem fiéis aos princípios cristãos.

À frente da embaixada no Vaticano fica Quartin Graça, acreditado como encarregado de negócios. Era um diplomata hábil e experiente que, no contexto do conflito, consegue dar ao Governo português uma oportunidade de apresentar ao público uma versão dos acontecimentos em que “salva a face”: obtém da Santa Sé um documento assinado pelo cardeal Villot em que o significado do encontro de Paulo VI com os três líderes dos movimentos de libertação é minimizado, sendo negado que se tenha tratado de uma audiência “no sentido próprio do termo”.

O acontecimento é descrito como um dos muitos encontros que o Papa, na qualidade de pastor universal, tem com muitos grupos de católicos e não católicos. Paulo VI teria recebido os três dirigentes africanos não como políticos, mas apenas como cristãos.

Após três dias de rigorosa censura da audiência de Paulo VI, de 1 a 4 de julho, Marcello Caetano usa a versão da Santa Sé na sua comunicação televisiva ao país numa “conversa em família” a 7 de julho. Interpretando a nota vaticana do modo mais conveniente para o Governo, Marcello cita-a para declarar que a audiência “não teve qualquer significado político”, dando o incidente diplomático como esclarecido.

As versões mais convenientes para a continuidade das boas relações diplomáticas entre Portugal e o Vaticano são, no entanto, desmentidas por Agostinho Neto, numa conferência de imprensa na Dinamarca. O presidente do MPLA garante que os três homens tinham sido recebidos como políticos, que o Papa se mostrara solidário com a causa da independência das colónias portuguesas e que afirmara que rezaria pelos seus interlocutores. (...)

A 28 de julho, Eduardo Brazão regressa a Roma e retoma as suas funções. O incidente diplomático estava encerrado, mas as clivagens que revelara continuariam a marcar a relação da Igreja Católica com a dimensão colonial do Estado Português.

Entre 1960 e 1970 uma onda descolonizadora varrera África. Para os bispos e missionários católicos em África era cada vez mais difícil conciliar a fidelidade a Roma com uma visão providencialista do papel missionário de Portugal em África. (...)


segunda-feira, 19 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24415: Notas de leitura (1591): "História Global de Portugal", com direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva; Temas e Debates, 2020 - Monopólio da Guiné: Exploração económica pluricontinental, 1468 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Neste novo olhar da História Global, entendeu-se que este caso de exploração económica pluricontinental que se encetou com o exclusivo do comércio da costa da Guiné a Fernão Gomes, iria marcar um comportamento do poder régio durante séculos. Mesmo desconhecendo-se o teor do contrato, Fernão Gomes ficou com uma enorme responsabilidade, que terá cumprido, explorou cerca de 3 mil quilómetros de costa, chegou até ao atual Gabão. Contrato que enfatiza para além das iniciativas da Coroa a iniciativa privada nunca foi arredada a participar na exploração económica do Império, era tudo uma questão de oportunidade, a monarquia tanto podia explorá-los diretamente por meio de oficiais régios, como cedê-los a privados por meio de contratos de arrendamento. E o de Fernão Gomes foi o primeiro de uma longa série, expediente jurídico que se revelou essencial não só na captação de rendimentos para a monarquia mas também para que esta se alinhasse, ao longo de séculos com os particulares.

Um abraço do
Mário



Monopólio da Guiné: Exploração económica pluricontinental, 1468

Mário Beja Santos

"História Global de Portugal", com direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva, Temas e Debates, 2020, é seguramente um dos acontecimentos editoriais do ano transato, na medida em que rompe com o velho paradigma da escala local e nacional e tece uma abordagem inovadora do que se pode entender por História Global de Portugal, as permanentes interações que conduziram à identidade que temos e à globalização em que nos inserimos. Como os diretores nos explicam:
“Anteriormente, através dos velhos manuais escolares, que refletiam o que se produzia nas academias, aprendia-se a conhecer a história de um país. Adotava-se uma perspetiva iminentemente nacional, centrada no Estado-nação. Cada nação era o umbigo do mundo, sendo o resto uma paisagem necessariamente secundária e ignorada, ou um campo de projeção das vanglórias nacionais. Além da Pátria, existia um conjunto de países com os quais se estabeleciam relações de cooperação, transação, influência, domínio, conflito, separação, negação ou, nalguns casos, acolhimento. A história era conhecida de forma bipolar, dualista: existíamos nós e os outros (…) À luz das tendências da história global, os países, as regiões, as cidades e as aldeias já não são considerados espaços fechados nas suas fronteiras, antes devem ser perspetivados como plataformas territoriais tomadas na extensíssima duração do processo de humanização”.

E ao longo de largas dezenas de textos vários especialistas ocupam-se de longos períodos da Pré-História e História de Portugal tomando conta desse trânsito de trocas bem anteriores à chamada Era dos Descobrimentos, o povoamento das nossas regiões atlânticas, a passagem do Bojador e o que significou em termos de globalização o monopólio da Guiné. Como escreve a autora do referido trabalho, D. Afonso V concedeu, em novembro de 1469, por um período de cinco anos, o exclusivo do comércio da costa da Guiné a Fernão Gomes. O monopólio excluía o comércio da feitoria de Arguim (em território da atual Mauritânia). O monarca terá exigido a Fernão Gomes que explorasse anualmente cem léguas do litoral africano para lá da Serra Leoa, limite meridional das navegações henriquinas. Conhecemos esses aspetos através do historiador João de Barros, cerca de 80 anos depois, o texto do acordo não chegou aos nossos dias. A data atribuída do contrato será junho de 1468. O arrendamento terminou em 1474, depois de ter sido prorrogado por um ano. Enquanto vigorou, caravelas armadas por Fernão Gomes exploraram cerca de 3000 quilómetros da costa, tendo descoberto todo o litoral setentrional do golfo da Guiné, até ao atual Gabão.

Este contrato de arrendamento do comércio da costa da Guiné obviamente que suscitou debates em torno do papel da monarquia nas navegações do Atlântico Sul. Houve quem o visse como expressão do desinteresse do monarca, seria um contrato monopolista que permitiria à Coroa concentrar recursos financeiros na persecução das conquistas em Marrocos, deixando à iniciativa privada as navegações e a atividade mercantil na costa da Guiné. Mas há outras leituras que lembram o facto de a monarquia não ter voltado a doar o exclusivo da navegação do comércio da Guiné que integrara a casa do Infante D. Henrique. D. Afonso V foi o responsável pela constituição da Casa da Guiné, em Lisboa, no ano de 1463. Para uma certa historiografia, Fernão Gomes seria o exemplo paradigmático de interesses mercantis pela costa ocidental africana, por oposição às conquistas militares de Marrocos. Era como se a atenção da nobreza estivesse polarizada em Marrocos e outros setores da sociedade portuguesa se tivesse mobilizado na abertura de novas rotas e na comercialização de novos produtos. Mas há mais dados que contribuem para um novo olhar. Fernão Gomes exerceu o cargo de recebedor dos escravos da Guiné, para o qual fora nomeado em 1455, ofício que não só lhe deu acesso privilegiado à informação sobre o comércio da região como terá permitido a sua inserção em redes de negócio. Como não se conhece o contrato, ignora-se se a iniciativa se deveu à monarquia ou ao próprio Fernão Gomes. Para além do exclusivo, Fernão Gomes recebeu ainda o privilégio de isenção de pagamento de direitos alfandegários de todos os bens que os seus navios trouxessem da Guiné, com exceção da malagueta, monopólio régio, mas que mais tarde acabaria por ser cedido a Fernão Gomes, por 100 mil reis anuais.

Se se pensar que o Papado, através da bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1455, excluía toda e qualquer navegação na Guiné sem licença expressa do rei de Portugal, pode compreender-se que a Coroa via este regime como o mar que lhe pertencia exclusivamente, fundado na prioridade da descoberta, na evangelização dos gentios e na Guerra Santa movida contra os infiéis. Só que este privilégio foi contestado por outras potências e rapidamente todo o Litoral desta vasta Senegâmbia de então passou a ser percorrido por uma forte concorrência. A despeito desta, manteve-se formalmente o exclusivo da navegação e do comércio nos senhorios ultramarinos – Índia, Brasil, Guiné, Costa da Malagueta, Mina, Angola, Ilhas de Cabo Verde e de São Tomé, a Coroa cedia aos vassalos este exclusivo consoante as áreas geográficas do Império.

Neste exclusivo imperial, como igualmente observa a autora, a monarquia reservou para si a distribuição de certos bens. Foram os casos da malagueta africana, do ouro da Mina e do pau-brasil no Atlântico. Também o comércio dos escravos foi exclusivo da monarquia até 1659. Mas o que fica também esclarecido é que a iniciativa privada nunca esteve arredada da possibilidade de participar na exploração económica do Império, tanto na navegação e no comércio como na distribuição de bens monopolizados. E a autora conclui que o acordo estabelecido com Fernão Gomes foi tão-só o primeiro de uma longa série de arrendamentos contratados com particulares. No quadro da exploração do Império, este expediente jurídico mostrou-se crucial, não só na captação de rendimentos para a monarquia, mas também no alinhamento de interesses com os particulares.

Carta Corográfica da Guiné Portuguesa, 1862, Biblioteca Nacional, com a devida vénia
Retirado do trabalho Tecnologias geoespaciais na demarcação da fronteira da Guiné-Bissau, por Maria do Carmo Nunes, Fernando Lagos Costa, Ana Raquel Melo e Ana Maria Morgado, publicado nas Atas das I Jornadas Lusófonas de Ciências e Tecnologias de Informação Geográfica, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, com a devida vénia
Pormenor do Monumento ao Esforço da Raça, Praça dos Heróis Nacionais, Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24403: Notas de leitura (1590): "O Cântico das Costureiras - Crónicas D'Uma Vida Adiada - Guiné 1964 - 1965", por Gonçalo Inocentes; Modocromia Edições, 2020 - As Peregrinações de Gonçalo Inocentes, zombeteiras e resilientes (Mário Beja Santos)

sábado, 6 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24291: A língua que nos une: alguns dados (segundo o Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. ): (i) quarta mais falada no mundo como língua materna; (ii) a quinta mais utilizada na Internet; (iii) a terceira ou a quarta mais usada no Facebook...


Fonte: CPLP  -Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (2023) (com a devida vénia)

1. Dados sobre a Língua Portuguesa, segundo o Camões, IP:

(i) É uma língua falada por mais de 260 milhões de pessoas nos cinco continentes, em 2050 serão quase 400 milhões e em 2100 serão mais de 500 milhões, segundo estimativas das Nações Unidas;

(ii)  As projeções para o final do século apontam que será no continente africano que se registará o maior aumento do número de falantes. Estima-se que Angola tenha uma população superior a 170 milhões de pessoas e Moçambique uma população superior a 130 milhões de pessoas; 

(iii) É a língua mais falada no hemisfério sul; 

(iv) 3,7% da população mundial fala português; 

(v) É a quarta língua mais falada no mundo como língua materna, a seguir ao mandarim, inglês e espanhol (observatório da língua portuguesa). 

(vi) O português é a língua oficial dos 9 países membros da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – e em Macau. As 9 economias da CPLP, em conjunto, valem cerca de 2,7 biliões de euros, o que faria deste grupo a sexta maior economia do mundo, se se tratasse de um país (FMI); 

(vii) Os países de língua portuguesa representam 3,6% da riqueza total do mundo, 5,48% do global das plataformas marítimas, 16,3% de disponibilidade global de reservas de água doce, 10,8 milhões de km2; 

(viii)  A Língua Portuguesa é língua oficial e/ou de trabalho em 32 organizações internacionais (...):

(ix) Há 56 universidades na República Popular da China que ensinam o português como língua estrangeira e aproximadamente 5000 alunos que frequentam esses cursos; 

(x) O português é a quinta língua mais utilizada na internet, teve uma taxa de crescimento de quase 2000 % entre 2000 e 2017, é a terceira ou a quarta mais utilizada no Facebook

(xi) Na área da ciência, embora o inglês seja a língua dominante, a língua portuguesa tem conseguido criar os seus espaços próprios de comunicação e publicação científica.

 O Brasil criou a Scientific Eletronic Library Online, amplamente participada por países de língua portuguesa e espanhola. 

As revistas e cientistas de língua portuguesa também vão tendo presença crescente em outras bases de revistas científicas de alcance global, como a SCOPUS e a Web of Science. 

Há também vários repositórios académicos e portais de conhecimento de acesso aberto online, designadamente no Brasil, Cabo Verde e Portugal...

Fonte: Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. (Camões, I.P), Dia Mundial da Língua Portuguesa, 5 de Maio de 2023

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24263: Notas de leitura (1576): Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (2): "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Em nova incursão sobre essa área tão sensível que são as conexões entre o Império Português, o ideário imperial e as relações raciais, optaram-se por dois estudiosos com créditos firmados, e a verdade fica dita de que relações raciais sempre as houve, com diferentes cambiantes entre o Oriente, África e o Brasil. E não se pode responder ou iludir uma escrita ao longo de séculos, invocando a inferioridade da raça negra, a indispensabilidade da tutela da raça branca, por um lado, e a tese de superioridade da civilização ocidental, muito utilizada no decorrer da guerra, não só por Salazar, toda a política externa estava para aí virada, com o seu rol de alianças que iam de Israel à África do Sul. Com a distância do fim do Império, há que meditar no legado, e ele é muito válido, temos a língua e a disponibilidade para cooperar sem tentações neo-colonialistas, são argumentos de grande peso.

Um abraço do
Mário



Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (2)

Mário Beja Santos

É nítido o constrangimento que se verifica nos estudos sobre o Império Colonial Português quando se aflora à matéria das relações raciais. É inviável, ninguém o ignora, querer estudar a essência do Império Colonial Português sem abordar pontos sensíveis: a verdadeira ideologia do projeto henriquino, o ideal imperial instituído por D. Manuel I, como era percecionado o tráfico de escravos até na ótica religiosa, como evoluíram as relações raciais em mundos tão distintos como o Oriente, África e o Brasil. Dada a vastidão do questionamento, cingimo-nos a esta escolha de dois autores, Charles Ralph Boxer e Valentim Alexandre, historiadores credenciados. Em "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967, aquele que terá sido o mais influente historiador estrangeiro do Império Marítimo Português abordou as relações raciais num conjunto de conferências que proferiu em Virgínia. O professor Boxer estendeu o seu olhar a três áreas distintas: o início do Império em África e como se desenrolou a sua presença na costa ocidental africana: em Moçambique e na Índia; e no Brasil e Maranhão. Obviamente que nos cingimos à natureza das relações raciais na costa ocidental africana, demonstradamente elas existiram e manifestaram-se em muitíssimos preconceitos, até à independência das colónias.

O trabalho de Valentim Alexandre, "Velho Brasil, Novas Áfricas", Edições Afrontamento, 2000, é um volume onde se coligem textos de estudos sobre a História Colonial Portuguesa dos séculos XIX e XX, desde a desagregação do sistema luso-brasileiro à formação e desenvolvimento do último império em África, que desapareceu em 1975. São estudos do maior interesse que vão desde o nacionalismo vintista, a independência do Brasil, passando pelo Império Colonial do século XX até uma visão geral de Portugal em África entre 1825 e 1974. Atenda-se ao que ele escreve sobre o Estado Novo e o mito do Império e algumas conclusões que extrai no final dos seus trabalhos.

Recorde-se o artigo segundo o Ato Colonial de 1930: “É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendem”. O conceito não era original, vinha na tradição imperial, a expansão ultramarina era encarada como a sobrevivência da nação. Apetite para apanhar tais territórios coloniais não faltava sobretudo à Alemanha e à Itália, mas o Império sobreviveu, montou-se uma mística, incentivou-se o amor quase incondicional dos domínios coloniais e tentou-se educar as elites para que se pudesse viver indiferentemente na Metrópole e no Ultramar. Momento alto desta mística foi aquele esforço mobilizador que desaguou em 1940 na Exposição do Mundo Português.

Atenda-se ao que Valentim Alexandre escreve mais adiante: “Iniciada logo nos começos da Ditadura Militar, em 1926, e completada depois com o Ato Colonial, a política de centralização traduz-se no cerceamento das autonomias dos territórios coloniais no domínio financeiro (…) A política de reforço do regime de pacto colonial tinha em vista relançar o velho projeto de fazer das colónias um mercado reservado para a produção da metrópole e um fornecedor de matérias-primas para a indústria portuguesa. Como mecanismos de proteção aos artigos nacionais, utilizam-se agora não apenas os diferenciais nas pautas alfandegárias, mas também o controlo de divisas e os contingentamentos. Embora o leque de produtos remetidos para os territórios de África se alargue (incluindo nomeadamente os cimentos), o núcleo fundamental das exportações continua a ser constituído pelos tecidos de algodão e pelo vinho”. E o historiador observa que em meados do século a intensidade das relações entre a metrópole e os territórios da África negra atingiram um nível até então inigualado.

Mas havia muito grão de areia que impedia que o projeto imperial do Estado Novo granjeasse uma força integradora – a própria população africana. E aqui vem uma observação sobre as relações raciais que é importante não descurar:
“Pode dizer-se que durante o regime salazarista coexistem duas correntes principais na forma de ver os ‘nativos’ das colónias de África, ambas com raízes no século XIX. Uma delas tributária das teses do ‘darwinismo social’, parte do postulado da inferioridade da raça negra, a qual, insuscetível de civilização, estaria condenada a viver sob a tutela da raça branca. É esta teoria dominante até meados da década de 40: estava-se na época da afirmação dos valores de raça a impor às etnias bantas; repudiava-se a mestiçagem e falava-se muito de colonização étnica, ou seja, do povoamento das colónias africanas por uma população branca numerosa, de ambos os sexos, de modo a evitar as misturas raciais.
A segunda corrente é mais etnocêntrica do que propriamente racista: proclama-se a superioridade, não da raça branca, mas da civilização ocidental, imbuída de valores cristãos, de validade universal, a que os povos negros podem aceder, quando devidamente educados – cabendo a Portugal essa tarefa missionária. Marginal até ao conflito de 1939-1945, esta doutrina assume depois foros de teoria oficial, em resposta às tendências descolonizadoras no concerto das nações. Mas, para além das justificações ideológicas, a realidade mantinha-se inalterada, no essencial, traduzindo-se pelo que foi referido como ‘assimilação seletiva’. Poucos preenchiam os requisitos exigidos: em 1961 (data da abolição do estatuto dos indígenas), menos de 1% do total da população africana de Angola e Moçambique. Manifestamente, o regime via-se incapaz de formar e captar as novas elites; quanto às tradicionais, procurava minar-lhes o poder, reduzindo-as, na melhor das hipóteses, a meros auxiliares da administração. Nestas condições, é muito estreita a margem de manobra do Estado Português, quando o movimento de descolonização de África se acelera. Prisioneiro dos seus próprios mitos, cego em relação aos nacionalismos africanos, cuja autenticidade nega, resta ao regime a via da resistência militar por tempo indefinido, via que conduz ao colapso de 1974”
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Em jeito de conclusão, Valentim Alexandre é explícito quanto às relações com as populações africanas, marcadas por um etnocentrismo rígido, quando não por formas mais extremas de racismo. E conclui: “A análise histórica mostra que o modo de estar do português em África varia também com o tempo e o lugar, dependendo sobretudo da específica relação de forças existente entre as duas comunidades: com o aumento da emigração para Angola e Moçambique cresce igualmente o racismo nos dois territórios, em formas mais ou menos abertas”. Resta-nos a confiança de que há uma força histórica, uma parte significativa da população portuguesa passou pelas antigas colónias, conhecem-se gente de todas as cores, como muito próximos, ligados por um património comum, e o desmembramento do Império deixou a comunidade da língua, para Valentim Alexandre temos bem vincadas as bases para o relançamento do ‘africanismo’ em Portugal.

Historiador Valentim Alexandre
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24248: Notas de leitura (1575): Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (1): "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967 (Mário Beja Santos)