1. Em mensagem do dia 11 de Outubro de 2018, o nosso camarada Abel Santos, (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), enviou-nos esta memória da sua passagem por terras da Guiné.
Triste Memória da Guerra
O Luís sentiu o impacto do projéctil que lhe rasgou a carne, com o corpo a sangrar, fez um esforço e rastejou até ao sulco da picada; sem se dar conta da gravidade da lesão, fez um sinal ao Vilaça mostrando o ombro ensanguentado. Mas o Vilaça, percebendo que que o não podia safar do sofrimento, faz dois tiros certeiros sobre os três guerrilheiros que tentavam aproximar-se perigosamente, reduzindo o seu potencial de fogo sobre os companheiros que ficaram mais expostos às balas das armas inimigas. O Luís continua resignado à sua sorte, deitado de costas, sentindo o corpo perder a seiva… começa a ver sombras no ar como se fossem grandes pássaros a desafiá-lo para voar.
Ao olhar na sua direcção, vejo o camuflado encharcado com o sangue que brota do ombro esquerdo e da barriga, Uma saliva espumosa sai-lhe pelos cantos da boca. Olha-me com a certeza de que não escapará desta… no meio do capim silencioso, sente a vida a escapulir-se sem que eu nada possa fazer para a segurar.
A secção do Ventura foi no encalço dos inimigos e conseguiu desalojá-los do esconderijo que nos foi fatal. Terminados os disparos, os socorristas apressam-se a estancar as hemorragias e a tapar as feridas com compressas. O Armindo injecta coagulantes e coraminas nos dois corpos perfurados pelas balas. É uma luta tenaz contra a morte… e começa a ser desesperante o nosso desassossego. As compressas já não conseguem segurar o sangue que se esvai irremediavelmente… até à última gota!
Ainda tive tempo de olhar na direcção do Pintinho… mas só vi os restos mortais dum corpo esfrangalhado, ali encostado ao tronco do cajueiro! E balbuciei:
“ Não posso esquecer que foram os teus olhos e a tua destreza que me livraram das balas mortíferas. A tua morte foi trágica, o teu espírito brincalhão já não está entre nós… mas lá, onde te encontres, também poderás apanhar galinhas… até que um dia nos encontremos na eternidade, nem que seja para saborear o churrasco que prometeste. Entre as sombras do cajueiro, já não podes olhar em profundidade para dentro da alma dos que se riam como o teu jeito de palhaço. Olho o teu corpo disforme e vejo um vazio incrível dentro do camuflado! Em breve serás devolvido ao pó da terra e os teus pais já não vão poder dar-te mais rebuçados. Só tenho medo que te promovam a herói e te abandonem em qualquer campa desta terra que não é a tua”.
Com esta maneira de movimentar os neurónios, tento arejar a mente dos combatentes desprezados, para que não definhem com o abandono…
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18897: Estórias avulsas (91): "São dois medronhos como deve ser, que depois arranjo-lhe pra Guarda Fiscal"... Lembranças da praia de Mil Fontes, onde passei as férias de agosto de 1983 a 1999... (Valdemar Queiroz)