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quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3479: Blogoterapia (73): O blogue do nosso contentamento, às vezes descontente (Vitor Junqueira)

Pombal > 2º Encontro Nacional da Tertúlia bloguística Luís Graça & Camaradas da Guiné > O nosso amigo, camarada e anfitrião, Dr. Vitor Junqueiro, servindo de cicerone na parte velha da cidade.



Foto:© Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Pombal > 28 de Abril de 2007 > 2º Encontro Nacional da malta do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > Restaurante O Manjar do Marquês.

Antes do almoço, o Vitor Junqueiro, na sua qualidade de nosso anfitrião e organizador do encontro, fez o discurso de boas vindas. Homem de princípios e de valores, mas também verdadeira caixinha de surpresas, preparou-nos uma cena que nos sensibilizou a todos: rodeado, à sua direita, por uma das suas três filhas e por uma das suas duas netas, e à esquerda, por mim e pelo A. Marques Lopes, fez questão de ser condecorado, com o atraso de... trinta e três anos. A condecoração, que tem a ver com a sua brilhante folha de serviços como oficial miliciano na Guiné, fora-lhe atribuído pelo Chefe do Estado Maior do Exército, estando prevista sua entrega no dia 10 de Junho de 1974, o que não chegou a acontecer por o 25 de Abril de 1974 ter vindo a alterar o curso dos acontecimentos...

Com escrevi na altura, a entrega da condecoração por dois camaradas seus da Guiné foi um gesto muito bonito num dia muito bonito, em que realizámos, mais uma vez, o sentido da palavra camarada... O Xico Allen estava lá para bater o instantâneo. O que ele seguramente não pôde registar foram as palavras do Vitor para mim:
- Eh!, pá, ó Luís, vê-se mesmo que não tens jeito para esta merda!

(L.G.)

Foto: © Xico Allen (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem, com data de 22 de Outubro de 2008, do Vitor Junqueira, médico, residente em Pombal, membro da nossa Tabanca Grande, organizador do nosso 2º Encontro Nacional, de saudosa memória, pai e avô babado, portentoso contador de histórias (com H), ex-garboso oficial da nossa ex-gloriosa marinha mercante, ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá ,1970/72)...

Prezado camarada e amigo Carlos Vinhal,

Há já algum tempo que ando a adiar uma modestíssima e singela troca de impressões contigo a propósito da nossa comunidade virtual, o Blogue. Porque a outra, a dos amigos de carne e osso, está bem, recomenda-se e anda a pedir mais uma almoçarada e uns abraços de quebra-costelas.

Eu já sinto a vossa falta! Tenho andado um pouco mais ocupado do que o costume. Hoje, porém, tive uns minutos para passar uma vista de olhos pelos últimos posts, onde encontrei um comentário teu, aliás, dois, que achei do maior interesse. Num deles expressas a ideia de que devemos congratular-nos por um tão elevado número de visitas que, certamente, se deve à boa qualidade do material "afixado" e à grande categoria dos respectivos autores. Concordo! O outro, transportava nas entrelinhas, pareceu-me, uma subliminar "descasca" ao pessoal por estar a tornar-se preguiçoso. Uma espécie de toque a reunir, com o qual também concordo! Mas, o que está em causa, não é com toda a certeza uma dose exagerada de salutar preguiça. Até porque, os temas que tomaste como exemplo de uma certa hiporreactividade bloguista, são dos mais interessantes, e deveriam ter suscitado uma onda de colaborações.

Entendo por isso que será oportuno fazer uma análise do fenómeno e, partindo de um diagóstico fundamentado, introduzir as alterações que se revelarem mais consistentes com o propósito de manter toda a nossa gente on line. Porque, não reste qualquer dúvida, a escrita é o cimento que nos matém unidos. Para concretizar esse objectivo, nada melhor que cada um de nós assumir claramente as razões da própria desmotivação, chamemos-lhe assim. Se é que ela existe. E como não sou de arcas encouradas, passo a enumerar alguns tópicos de que não sou grande apreciador:

1 - Atrasos na publicação dos textos, algumas vezes por extravio, outras porque se estabeleceram certas prioridades, que não raramente, lhes retiram toda a oportunidade.

Um texto no momento certo pode ser uma pérola, descontextualizado não passará de uma parvoíce ainda que produzido por autor de boa cepa. Tem calma, Carlos, que eu bem vi como te torceste todo na cadeira. Isto nada tem a ver contigo ou com o Briote! Eu conheço muito bem o vosso empenho a favor da causa e o número incontável de horas do vosso lazer que lhe dedicais. O que terá de ser eventualmente alterado é a metodologia. Para issso podemos ter de vir a considerar a postagem directa, com a responsabilização pessoal e jurídica, explícita, dos escribas, e a retirada imediata de um texto, som ou imagem, sempre que se constate existir ofensa à carta de princípios criada pelo Luís. E que tal a criação de um conselho de ética?

2 - Textos fortemente "editados".

Se por um lado podem esconder a alma de quem os concebeu, não terão também o inconveniente desencorajar ou inibir aqueles que se sentem menos à vontade com a escrita?

3 - Transcrições longas e enfadonhas de manuais ou seus excertos.

Aqui incluo a pré-apresentação de livros sob a forma de folhetim que, conjecturo eu, não atrairá o interesse geral. Confesso que nunca tive pachorra para ler nem uns nem outros e não devo ser caso único. A este respeito, o blog apresenta com demasiada frequência muitas parecenças com o site de uma qualquer editora.

4 - O controverso, o contraditório e a polémica são o sal e a pimenta dos nossos cozinhados literários. Ultimamente tem-se notado uma certa falta destes tempêros.

E lá porque um ou outro tem ataques de azia, não será por isso que nos devemos resignar ao desenxabido consensual. Como homens de guerra que somos (fomos), honremos a guerra, agora com a língua e a caneta!

5 - Quase todas as semanas se apresenta mais um camarada, atraído para o nosso convívio. Isso agrada-me. Mas cadê a historiazinha a contar o drama, a peripécia, a barracada de que foi protagonista ou de que teve conhecimento enquanto membro das gloriosas FA de Portugal?

Muitos têm-se esquecido. Mas isto não é o clube dos amigos de Alex, há que apresentar serviço!

Para finalizar, um curto relato. Fui contactado há uns meses por um homem por quem tive sempre muito respeito. E para além do respeito, afeição. O Manuel dos Santos, antes e depois da tropa, dedicou-se sempre à indústria da restauração. Como empregado. Encontrámo-nos pela última vez há-de haver para aí uns cinco anos, em Santa Comba Dão. Sempre muito respeitoso e educado, quase tímido, viu-se que ficou feliz por ter podido reencontrar-se com os seus antigos furriéis e alferes. Prometeu que estaria presente no encontro seguinte, nos Açores, mas não compareceu.

Agora, gravemente doente, abandonado pela mulher, rejeitado pelos amigos da onça, posto de lado por uma filha que formou, estava sem recursos para enganar o estômago e pagar a renda de um barraco que lhe servia de habitação ali para os lados de Leça. Muito envergonhado, pedia-me um pequeníssimo empréstimo que tencionava devolver quando recebesse a prestação seguinte da Segurança Social.

Nunca mais tive notícias suas, nem sequer tive possibilidade de saber se ainda está entre nós.

Durante mais de dois anos, o 1º cabo corneteiro Manuel dos Santos zelou pelo nosso bem-estar. Como responsável pela messe e despenseiro servia-nos, no prato, as melhores refeições que podiam ser cofeccionadas com os parcos meios de que dispunha, procurando sempre que estivessem a nosso contento, tudo fazendo para que estivessem.

Como o do Manuel, haverão imensos casos de camaradas nossos em maus lençois. Dentro ou fora da esfera profissional, será que ainda vamos a tempo de fazer o gesto que se impõe? Em que medida é que através do blog poderíamos chegar a alguns aflitos?

Continuação de um excelente serão.

VJ

2. Mensagem do Carlos Vinhal, com data de 27 de Outubro, remetida aos editores LV e VB:

Caros companheiros:

Para vosso conhecimento e reflexão, já que o Vitor é um excelente crítico. Aguardo as vossas doutas opiniões.
Ab
Carlos

OBS:-Este reenvio tem, como é logico, aprovação do autor, já que não é um mail pessoal.


3. Comentário dos editores LG/CV/VB:

Querido Vitor:

(i) Como há dias escrevia o Luís Graça, tu já tens, no nosso blogue e na nossa Tabanca Grande, o estatuto de senador... Tal significa o direito a algumas prerrogativas (ou, como diziam os romanos, privi + legiu > lei privada);

(ii) Tens, por exemplo, o privilégio de poder falar alto e bom som, enquanto a gente baixa a bolinha (para melhor te poder ouvir);

(iii) Estás isento de horário de trabalho, tens licença ilimitada de entrar e sair a qualquer hora; e de passar, inclusive, longas temporadas fora da nossa Tabanca Grande (temos ciúmes mas não o podemos demonstrar em público...):

(iv) Tens todo o direito de mandar bitaites a estes teus pobres e humildes editores; estás a exercer a tua soberaníssima e inalienável liberdade de expressão;

(v) As cinco críticas que nos fazes, acertaram na mouche: são pertinentes, contundentes, oportunas, etc. ;

(vi) Sem termos a veleidade de te responder nem muito menos contestar, deixamos-nos apenas alegar em nossa defesa o seguinte:

(a) o blogue cresceu demasiado, depois de Pombal, a partir de meados de 2007, e nem sempre, nós, os três, conseguimos dar boa conta do recado; no máximo, podemos publicar 5 postes por dia, com muita coordenação, trabalho, inspiração, transpiração; em média, 2 a 3 por dia; nas férias, 1 a 2 por dia; compare-se, a seguir, a nossa produção bloguística no mês das férias (Agosto) e nos meses de Outubro e Novembro de 2008: no gráfico de barros, pode-se ver a nossa produção semanal (em número de postes), produção essa que depende não só dos textos enviados aos editores como da capacidade de edição destes últimos...




Fonte: Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008)


(b) a correspondência recebida (e expedida) é volumosa, a ponto de ficarmos por vezes afogados em mails; estamos, agora, por exemplo, a fazer a limpeza (periódica) à nossa caixa de correio;

(c) há atrasos que, por vezes, podem ser irremediáveis, tirando oportunidade e sentido aos textos que nos são enviados (sobretudo em questões que estão encadeadas, que têm perguntas e respostas, etc.);

(d) procuramos quase sempre manter o espírito da mensagem quando, por mor do português de lei, somos obrigados a corrigir a forma; não queremos o mau exemplo que vai por aí, por essa blogosfera fora; não somos um blogue literário, mas queremos entender-nos... em bom português, entre portugueses e outros lusófonos, incluindo os nossos amigos, camaradas e irmãos da Guiné;

(e) vamos ter em conta o teu reparo sobre o excesso de transcrições (de livros, relatórios, etc.) e de outros sinais exteriores de eventual novo riquismo literário;

(f) não queremos ser um clube dos amigos de Alex (muito menos de poetas mortos...), vamos manter a tarifa 1 homem, 1 história, como preço de ingresso na Tabanca Grande; quem quer entrar, pede licença, apresenta-se e conta história;

(g) e, claro, estamos de acordo: o contraditório, a exposição de pontos de vista contraditórios, a crítica, a discussão de pontos de vista, o debate, a saudável polémica, etc. são o sal da vida bloguística, são o que (também) dá pica à vida e ao blogue; mas, tal como o stress, tem de ser q.b.;

(h) Por fim, e não menos importante, quanto ao conselho de ética... Está prometido há meses, temos que cumprir a promessa... O que tu, no fundo, estás a fazer é o papel de provedor do blogue, uma figura que pode ser individual ou de pequeno grupo de senadores (ou, melhor homens grandes) como tu...

E a solidariedade entre camaradas, sobretudo nas más horas, como no nosso tempo, na Guiné ? Como vamos manifestá-la ? Publicamente, discretamente, efectivamente ? Casos como o António Batista ou do Manuel dos Santos não podem deixar-nos indiferentes...

E pronto. Temos dito. E, com um atraso de quase um mês, publicado. Não cremos que o texto tenha perdido acuidade e actualidade. Mas tu dirás da tua justiça. Aliás, é uma excelente oportunidade para outros camaradas e amigos se pronunciarem também sobre o blogue do nosso contentamento, às vezes descontente, parafraseando o nosso grande lírico, o nosso Luís de Camões, o maior e o melhor de todos nós...

Um Alfa Bravo destes três cavaleiros andantes, nos seus cavalos já velhos, cansados, ronceiros, mas ainda voluntariosos, Luís, Carlos e Virgínio.

PS - Obrigados pelo privilégio de voltarmos a ler as tuas Histórias (com H). Estamos a pensar também em... próximo livro, teu, ou colectivo, de antologia (por exemplo, com as nossas melhores 25 histórias), brochado, de preferência, de capa dura, como deve ser, a um preço razoável, acessível a todos (ou à maior parte de nós)... E, claro, com direito a festa rija, de lançamento, que o texto é também pretexto para a festa da amizade e da camaradagem, festa que o nosso blogue procura celebrar todos os dias... Se nem sempre o consegue, é por culpa dos oficiantes, da comissão de festas, e dos... artistas (que afinal de contas somos todos nós).

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3464: Histórias de Vitor Junqueira (10): Santa Paz


1. Mensagem do nosso camarada Vitor Junqueira, ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá ,1970/72), com data de 13 de Novembro de 2008:

Caros editores,
Fui ao "armazém" e recuperei este naco de prosa que vos envio para análise.
Se acharem que merece honras de Blog... façam favor.

Saudações cordiais,
VJ

Santa Paz!
Por Vitor Junqueira

Apresento-vos o meu amigo Simeão

Existem dentro como fora de fronteiras tantos topónimos de vilas, cidades e aldeias começados por Santa, como por exemplo Santa Maria, Santa Comba, Santa Bárbara; Santa Margarida etc. que, Cutia, bem podia ter-se chamado Santa Paz.

Conheci o Simeão a bordo do NM/TT Carvalho Araújo quando ambos rumávamos à Guiné. Ele, em rendição individual. Eu, com a família toda atrás. Corria o ano de 1970, por alturas de Agosto, o mês das férias e dos cruzeiros. Já naquele tempo, usava uma soberba e reluzente careca que cobria com uma mitra à Che. Com estrelinha na fronte e tudo. De trato afável, não tardou que chegássemos à fala. A princípio, tentámos avaliar-nos mutuamente. Para espantar o tédio e não querendo nenhum de nós perder o pé em temas politicamente quentes, o assunto das nossas conversas girava à volta da kingalhada post prandeal, das banalidades sobre o tempo ou a monotonia da viagem. Depressa me apercebi que do seu ar prazenteiro irradiava uma serenidade e bonomia enganadoras. Por trás do sorriso manso, estava um tipo nervoso, inquieto e, acima de tudo, revoltado. Certo é que, durante os cerca de dez dias que durou a viagem, tivemos tempo para nos tornarmos amigos. Com pontos de vista diametralmente opostos, é verdade, mas com a firmeza e frontalidade que consolida as amizades. Como a nossa, que dura desde esse tempo.

O Simeão estudava medicina em Coimbra quando se deu aquela bronca com o Presidente Américo Tomás. Foi apanhado na lingada da incorporação seguinte e condenado a malhar com os ossos na Guiné.

Como para a maioria dos jovens universitários daquele tempo, a tropa veio deitar por terra planos de vida longamente gizados, tanto pelos próprios como pelas famílias. Filhos de uma pequena burguesia em ascensão e, note-se que Portugal registava um surto de crescimento económico sem precedentes, os futuros milicianos iriam arrostar não apenas com uma longa interrupção dos estudos, porventura o fim das suas carreiras académicas, como expor-se a condições de vida (militar) que nenhuma sociedade acomodada estaria disposta a aceitar. Para já não falar da probabilidade nada desprezível de perder a vida em combate num qualquer sertão africano, em defesa e em nome de causas que se tinham tornado muito difíceis de explicar. E ainda mais difíceis de entender, por estarem nos antípodas das preocupações da maioria dos portugueses de então. Entendamo-nos de uma vez por todas; se este pessoal tinha excelentes perspectivas de futuro, o presente era no mínimo radioso: Namorada (s), tertúlias, noitadas de copos e engate, (em Coimbra, serenatas), boa música, teatro e cinema de qualidade só acessíveis a privilegiados, pândega a dar com um pau. Já não eram raros os que iam para as aulas de automóvel e frequentavam os locais de pouso de uma certa socialite lisboeta.

O Simeão tratava por tu, Marx, Engels e Lenine, que eu suspeitava serem personagens do cinema mudo americano, pois já tinha ouvido falar de um tal Groucho Marx. Para matar o tempo, enquanto eu lia o manual de acção psicológica na guerra subversiva, o gajo atirava-se aos cahiers de socilogie. E se eu me entretinha com as equações das cónicas por causa do tiro parabólico, ele tentava explicar-me detalhadamente o significado contido nas entrelinhas de um manifesto em que se exaltava a justa luta dos povos pela sua autodeterminação. Eu imaginava-me a ganhar a guerra (ah Napoleão!), ele discorria sobre a forma de sair dela vivo. E assim por diante.

O reencontro

Despejados no cais de Pidjiguiti em Agosto de 1970, cada um foi à sua vidinha. Não voltámos a encontrar-nos nem tivemos notícias um do outro até, salvo erro, Novembro desse mesmo ano. Indo eu a caminho não de Viseu, mas de Mansabá, encontro-o a comandar um pelotão de morteiros estacionado em Cutia. Embora a guerra do Simeão se situasse num ponto de passagem obrigatória para todas as colunas que do norte da Província (calma, pessoal!) demandavam Bissau, raras vezes nos encontrámos, até porque, naquele troço, era sempre a abrir. As coisas modificaram-se por volta do princípio do ano de 1971. Nessa altura, reaberta que estava a via Mansabá-Farim, passei a ter o privilégio das visitas do camarada Simeão, dia sim, dia não. Simplesmente porque precisava de água potável e a do K3 era a melhor! Para isso, atrelava um depósito ao burrito do mato, sentava-se ao lado do chauffer seguindo o ajudante atrás, no banco da carroceria, com a G3 bem escondida para não ferir susceptibilidades. Assim, tranquilamente, e nem sequer precisavam de ir na mecha. Para fazer o mesmo trajecto, eu próprio nunca levava menos de dois pelotões reforçados, cerca de oitenta homens, todos com os olhos bem abertos. E mesmo assim apanhava nas lonas. Comecei a desconfiar! Dados os seus antecedentes, seria o Simeão um agente infiltrado? Seria a minha água realmente boa ou seriam as suas intenções pouco líquidas? E se o camarada viesse ao K3 com o intuito de espiolhar o que se passava dentro do arame farpado? Sem melindrar a cordialidade que sempre presidiu ao nosso relacionamento, passei a ser mais cuidadoso quanto à abordagem de pormenores de natureza operacional. Até que um dia…

Fez-se luz

Entre Mansabá e Bafatá, existira em tempos uma boa estrada que, na minha altura, se encontrava totalmente desactivada havia anos, devido às frequentes flagelações da guerrilha. Passava por localidades tão quentes como Manhau, Mantida e outras, onde pude observar as ruínas de antigas instalações ocupadas por guarnições portuguesas. Por outro lado, este itinerário fortemente minado, tornava-se impraticável mesmo para uma força de respeito. A sul, quase paralelamente, corria o trajecto principal Mansoa-Bambadinca-Bafatá. Entre ambos, uma extensa faixa onde o PAIGC tinha uma parte dos seus incontestados domínios. Como sempre fui sortudo (!), calhou-me na rifa uma tarefa muito simples; dar uma saltada a Mantida (vejam no mapa) e correr com uns okupas que lá se encontravam indevidamente. Criteriosamente seleccionados os meus acompanhantes, pois apenas havia lugar para cinquenta, lá embarcámos em dez hélis que nos conduziram ao nosso destino. Viagem rápida e agradável, pior foi o regresso que teve de ser feito à lá patita, a desbravar mato pelas razões expostas. À nossa frente, abrindo caminho, uma parelha de Tigres e outra de T6. Saltar dos helicópteros, já foi difícil dada a oposição dos anfitriões. Fizemo-lo onde foi possível, numa pequena clareira a escassas dezenas de metros do aglomerado de tabancas. Mas entrar lá, ainda por cima sem qualquer espécie de apoio, foi muuuiito complicado. Tomado o objectivo, passou-se a uma inspecção rápida do tabancal antes de o reduzir a cinzas. Para espanto geral, o que é que encontrámos para além dos costumeiros utensílios do quotidiano? Embalagens de tabaco Porto e Português Suave, todo o tipo de mezinhas LM, garrafas (vazias) de cerveja e até pequenos bidões com combustível. Proveniência: Cantina militar, posto médico e depósitos de combustível das viaturas de Cutia! Estava encontrada a explicação para o à-vontade com que o Simeão se movimentava naquelas redondezas. Confrontado com estas evidências, admitiu sem nenhuma dificuldade que tinha perfeito conhecimento do que se passava. Sabia que os elementos do IN, muito activos na região, tinham as mulheres na tabanca de Cutia, onde eles próprios gozavam os seus períodos de férias. E não ignorava que parte dos consumos da cantina iam parar ao mato. Nos dois períodos de licença que gozou na metrópole, abasteceu-se de tudo quanto era ronco para distribuir pela população. Numa ocasião em que nos cruzámos no Biafra, apanhei-o com duas valentes malas carregando quilos e quilos de panos, chinelos, pechisbeque e bugigangas de toda a espécie com que garantiu o seu sossego. Tudo isto com a conivência dos seus próprios soldados africanos e, suponho eu, dos furriéis europeus. Com este procedimento, obteve uma garantia de segurança, tácita, que nem antes nem depois foi outorgada a mais ninguém. E teve razão, fez bem! Dado o isolamento em que se encontravam, qualquer atitude mais belicosa poderia ter provocado um desastre. Para a malta do Morés, apertar-lhes o papo seria como limpar o cu a meninos. Soube-se que algum tempo após a desmobilização, dois alferes que lhe sucederam, teriam sido mortos pelas próprias forças. Sem confirmação. Obteve outras vantagens. Dadas as longas ausências dos militares do PAIGC, sentia-se no direito (e se calhar no dever…) de lhes consolar as mulheres. Confessou-me que tinha uma certa predilecção por grávidas. Seguindo um determinado ritual, sentava-as ou deitava-as por cima, mas antes, aplicava-lhes duas carinhosas palmadinhas na barriga e dizia:

- Minino disculpa e tá quietinho, a mim n’bai fá fudi-fudi co mama di bó.

Mas nem tudo foram rosas na comissão deste nosso camarada. Preguei-lhe duas grandes partidas, uma das quais, involuntária, haveria de levá-lo à baixa.
Hei-de contar-vos.

Até lá, abraços do
VJ

PS: O Simeão Duarte Ferreira, é meu colega, amigo e vizinho. Exerce a sua actividade clínica no Centro de Saúde da Bidoeira-Leiria e reside na localidade de Guia-Pombal

Recorte da Carta da Guiné, onde se podem ver as estradas Mansabá-Bafatá e Mansoa-Bambadinca-Bafatá

Fotografia do Destacamento de Cutia, situado na Estrada Mansoa-Mansabá
Foto: © César Dias (2008). Direitos reservados.


Fotografia aérea de Mansabá, ponto de passagem obrigatório para quem se deslocava de Mansoa para Farim.
Foto: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.


Fotografia do aquartelamento do K3. Por aqui permaneceu a CCAÇ 2753 do Alf Mil Vitor Junqueira durante boa parte da sua comissão.
Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados.


2. Comentário de CV:

Caro Vitor, como te prometemos e para podermos dar a oportunidade aos nossos leitores de (re)lerem as tuas histórias, criamos uma série chamada Histórias de Vitor Junqueira, similar aliás a algumas já criadas para outros camaradas, destinada a agrupar os teus trabalhos não integrados noutras séries, como por exemplo O nosso baptismo de fogo.

Nesta tua 10.ª história fica em roda-pé a lista das anteriores, já publicadas.
_____________

Nota de CV:

(1) Vd. postes da série de:

18 de Setembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

27 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

5 de Janeiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

31 de Janeiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação

6 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1567: Histórias de Vitor Junqueira (8): Operação Larga Agora, na região do Tancroal, com a CCAÇ 2753

11 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3438: Histórias de Vitor Junqueira: (9): O Líbio e o alferes gazeteiro

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3411: O meu baptismo de fogo (22): A minha primeira vez... (Vitor Junqueira)

1. Mensagem do nosso camarada Vitor Junqueira (1), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 - Os Barões - Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, com data de 4 de Novembro de 2008, contando-nos como foi, nas suas palavras, a sua primeira vez e nas nossas o seu baptismo de fogo (2).

Amigo Carlos,
O texto que se segue, vem um pouco fora de tempo. Estive tentado a nem sequer te pedir a sua publicação depois de saber que na caixa do correio existem milhares de e-mails a aguardar escrutínio. No entanto, como eu acho que não devemos coibir-nos de dar a nossa versão dos acontecimentos quando tal nos é pedido, acabei por decidir deixar ao teu critério o destino a dar ao escrito.
Obrigado pela tua atenção,
VJ

A minha primeira vez …

Há algum tempo que venho tentando corresponder ao desafio que nos foi feito para que reportássemos para o blog, aquela experiência que deveria ser inolvidável: A nossa primeira vez! Pois, queridos camaradas, não sei se por culpa do Dr. Alzheimer ou, por o acontecimento não ter deixado marcas, não possuo qualquer recordação de como a coisa se passou. Sei que terá ocorrido algures na mata do Oio, mais precisamente no triângulo Mansabá, Olossato, Farim, por volta de Novembro ou Dezembro de 1970 – eu até podia ir pesquisar alguns dados aos meus papéis, mas acho que não vale a pena –, encontrando-se a minha guerra, empenhada numa segurança afastada aos trabalhos de reabertura da auto-via Mansabá – Farim. Estávamos na altura acampados nuns escafundós de Judas chamado Bironque, de onde partia diariamente uma expedição com o propósito de retribuir gentilezas com que éramos mimados, diariamente, pelo IN. Aqueles contactos decorriam quase sempre da mesma, pelo que, por mais que puxe pelo bestunto, não consigo recordar-me do primeiro.

Mas recordo como se tivesse acontecido ontem, um episódio em que pela primeira vez senti os ditos realmente entalados e, aquela sensação de arrepio gelado a trepar pelo espinhaço acima. Na mesma região, no mesmo contexto e na mesma época. Se me permitem, vou partilhá-lo convosco, estando certo de que alguns camaradas reviverão também situações idênticas, das quais saímos convencidos de que o Senhor Santo Cristo dos (meus camaradas) Açorianos, para outros o Altíssimo, se não fez fogo ao nosso lado, pelo menos orientou os trabalhos.

Província da Guiné, mostra a zona designada pelo Vitor Junqueira como triângulo Mansabá, Olossato, Farim na problemática região do Óio. O rectângulo encarnado assinala o Bironque onde se encontrava o Destacamento provisório de apoio à construção do troço de estrada Bironque-Farim.

Foto 2 > Destacamento do Bironque, inaugurado pela CART 2732, destinada à protecção das máquinas da Engenharia, utilizadas na construção da estrada.

Foto 3 > Troço novo da estrada Mansabá-Farim.

Fotos: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.


Sempre ouvi dizer que na tropa, voluntário, nem para cima da filha do comandante! E que a melhor atitude era não fazer ondas, porque quando o mar fica agitado, quem se lixa – com éfe – é o mexilhão. Pois, com este manancial de sabedoria, caí na esparrela e fiz-me notar através de uns bitates que mandei em frente a uma certa individualidade que os terá registado. A factura surgiu na volta do correio, a liquidar em suaves prestações, geralmente semanais, até ao final da comissão.

Eis a primeira tranche: Um belo dia, fui abordado pelo senhor CMDT do Cop 6, major Moura (?), que me propôs uma diligência no sentido desalojar uma guarnição do In que durante meses insistira em perturbar o bom andamento da obra, atacando a frente de trabalhos. Terminados estes, ou em vias de conclusão, a malta do PAIGC tinha agora o desplante de se passear na nossa estrada, novinha em folha, como se aquilo fosse o da Joana. Inaceitável!

Num mapa, mostrou-me a localização do objectivo, os itinerários possíveis – quanto a isso também não havia grande escolha –, transmitiu-me as informações que possuía acerca da composição daquela força (1 bigrupo + 1 secção de sapadores) e… desejou-me boa sorte! Certamente por lapso ou puro esquecimento, não mencionou o facto de àquela data haverem já sido feitas três tentativas para espatifar a barraca aos homens. Todas sem sucesso e, como vim a saber mais tarde, a nossa malta trouxe o que contar dessas incursões. Numa delas participou o CMDT Jorge Picado que a narra num delicioso relato, publicado há meses no blog.

No dia D, alta madrugada, uma vez apeados das viaturas, lá seguimos aos encontrões e apalpadelas, caminhando pela berma com a discrição possível ao longo de, talvez dois quilómetros, no sentido Farim – Mansabá. Em breve nos embrenhámos na faixa de terreno arroteado pelas caterpillars, que corria paralela à estrada, em cujo limite e sem grande dificuldade encontrámos a boca do carreiro que nos havia de conduzir ao objectivo, uma tabanca com o piedoso nome de Fátima, tal como o da filha do Profeta e da localidade mais milagreira de Portugal, situada aqui bem perto do sítio onde moro. Já no coração da mata, abandonámo-lo com receio de que estivesse minado ou armadilhado.

Progressão penosa, lenta, sem outro meio de orientação que não fosse uma bússola e o tino do pica titular, o Cunha de Santa Cruz da Graciosa que, com a vareta sob o sovaco, nos abria caminho tentando desembaraçar-se das lianas. Certo é que, ao clarear, sentimos o cheiro de presença humana pelo que concluímos estar muito próximo do objectivo e da bernarda. A cabeça da coluna estacou na orla da mata que bordejava uma zona quadrangular, limpa, onde tinham sido poupadas apenas as grandes árvores. Fez-se uma curta pausa para retirar as remelas mais persistentes e, com mil olhos, perscrutar cuidadosamente o extenso campo visual que se apresentava pela frente. Não vislumbrámos indícios de qualquer construção, não se via gente nem se ouvia o canto alegre do galo madrugador ou o tan-tan ritmado do pilão. Nada, apenas aquele silêncio sinistro, prenúncio de coisas más. Até os pássaros pareciam estar feitos com o IN, espiando-nos sem soltar um pio.

De repente, fazem-me sinal apontando na direcção de um combatente armado que, à distância, entra na clareira acompanhado por uma mulher. O par está bastante longe, oitenta metros aproximadamente. Naquela altura já não existiam quaisquer dúvidas de que a nossa presença era conhecida. Perdido por um, perdido por mil… o Francisco de Assis de Angra, vira para lá o canudo do LG de 6cm (eles juram que fui eu, mas não me lembro!) e com um único tiro, o combatente interrompe a caminhada. Com a perna esquerda amputada pelo joelho, o homem cai e a mulher segue o seu destino em passo acelerado. Aproximamo-nos avançando pelo lado direito da clareira, no sentido da progressão, ao longo da linha de separação com a mata, contando com a protecção da floresta, ou assim pensávamos. Uma secção da qual faz parte o maqueiro Leonel Melo, desloca-se rapidamente para o local onde se encontra o ferido. Porém, assim que entra em campo aberto é recebida por uma saraivada de tiros e bazucadas que parecem chover de todos os lados.

Vamos tentando dar alguma cobertura à equipe sanitária, fazendo tiro de morteiro para a orla oposta, poupando ao máximo as preciosas munições. Ao abrigo de enormes baga-baga e dos troncos de imponentes árvores, o cabo Melo lá consegue pôr um soro a correr e administrar alguma morfina, enquanto o transmita Osvaldo, por alcunha o Fafe, tentava contactar Bissalanca a fim de evacuar o soldado do PAIGC. Se até então, nunca tínhamos deixado um ferido abandonado não era altura para abrir excepções e por isso, a decisão rápida embora discutível foi, aguentar até à chegada do meio de salvamento.

Decisão errada! Em breve percebemos que a tropa com quem estamos metidos, se movimentara de forma a encurralar-nos. Ouvíamo-los nas nossas costas, na tal mancha de floresta que supostamente nos poderia proporcionar alguma protecção, estavam do outro lado da clareira, da rectaguarda chegava a informação de que a cauda da coluna tinha a retirada cortada enquanto da frente rebentava nos entrementes um fogachal que só visto. Sim senhor, lindo serviço, pensámos todos. Pois bem, como se costuma dizer, a gente dança conforme a música!

Dado que intuí que esta operação ia cheirar ao esturro, preparei na véspera com os elementos de que dispunha, um cuidadoso plano de fogo de apoio. Numa saltada a Farim, fui entregá-lo ao camarada Moreira, senhor de três magníficas peças de 14cm, pedindo-lhe que se mantivesse por perto para o caso de.

Agora era altura de colher alguns frutos da diligência efectuada. Foi dada ordem geral para abrigar, e ao Moreira foram solicitados os tiros, tal e tal e tal. Daí por uns segundos que pareceram minutos, ouvíamos as saídas e uma onda de conforto envolveu-nos a alma. Não tardou, primeiro o silvo das brutas por cima das nossas cabeças e logo a seguir, um estrondo tão grande capaz de acagaçar o mais afoito. Devido aos clarões, o céu ficou cor de laranja e pelo ar voaram chispas de aço incandescente, toneladas de pó, folhagem, ramos arrancados às árvores e o intenso odor característico da combustão de explosivos, criaram um cenário próprio do reino de Lucífer. Aquilo, sim, parecia a guerra. Mas os sacanas já deviam estar habituados à fruta, e não se deixaram intimidar. Ó Moreira, manda lá mais três ameixas para os pontos X, Y e Z. Despachadas as bojardas, vemo-las aterrar ainda mais próximo de nós, na margem oposta da clareira. O camarada artilheiro apanhou-lhe o gosto e continuámos naquilo até limpar esse lado da arena.

Para lá deslocámos metade da nossa força, assumindo o controle de uma zona anteriormente ocupada pelos malandros. A situação melhorou bastante em termos de segurança, o que vinha mesmo a calhar dado que, pelo transmita ficámos a saber que os Helis haviam descolado e deviam estar a chegar. Por precaução suspendeu-se a guerra, e de novo um silêncio pesado se abateu sobre nós acompanhando aquele falso sentimento de paz que se segue a cada escaramuça. Estava no papo! Santa ingenuidade, mais um engano!

Mal chega e helicanhão, faz duas passagens à nossa vertical e logo se ouve o matraquear lento de uma metralhadora pesada tentando derrubá-lo. Só então percebemos que ali mesmo na nossa frente, a escassas dezenas de metros e encoberto por um pequeno declive do terreno, estava o verdadeiro ninho da cobra. O In tinha estado a jogar apenas com reservas, a sua milícia. O heli-maca mal contacta o solo e já os enfermeiros pára-quedistas se despacham a recolher o sinistrado. Partem levando consigo o lobo mau que nos informa … estou a ser batido, tenho de retirar.

E adeus, boa tarde! Ficámos novamente no mato sem cão. Com as precauções habituais e muitas outras motivadas pelo aperto do buraco ao fundo das costas onde certamente não caberia um chícharo, retomámos a progressão, agora a duas colunas e com flancos limpos pela artilharia(*). Percorridos meia dúzia de passos, estaríamos a menos de cinquenta metros do objectivo ou seja, do grupo de moranças ocupadas pelos militares, pois as outras habitadas pela população civil ficavam um pouco mais afastadas, quando uma violenta tempestade de chumbo e aço nos fez amochar. Amochar, aguentar, levantar, mais uns passos e nova cambalhota forçada. Foram os cinquenta metros mais duros que tive de percorrer em África. A cena repetiu-se várias vezes até que, passo a passo, nos fomos aproximando, valendo-nos os seis morteiretes que nos acompanhavam sempre e a perícia dos apontadores dessa arma que não me canso de encomiar, o precioso dilagrama.

Confrontando-se mais com uma inesperada teimosia da nossa parte do que com arte guerreira que certamente não possuíamos, o tal bi-grupo e mais as suas milícias retiraram quando acharam que era oportuno, com prováveis perdas, bastantes, atrevo-me a dizer fazendo fé nos vestígios, deixando para trás algum material, sobretudo muitas munições que foram destruídas in loco, dado não possuirmos meios de evacuação. Foi abatido gado, fizeram-se estragos numa plantação de milho e as construções reduzidas a cinzas como recomendavam as NEPS. Espaldões de morteiro, ninhos de metralhadora e uma trincheira que circundava todo o perímetro da tabanca-quartel lá ficaram à espera de ser reocupados. A população civil não foi incomodada e também não nos causou qualquer problema.

E foi assim, até à semana seguinte …

(*) O êxito alcançado com esta operação só foi possível graças à excelente e nem sempre devidamente valorizada colaboração dos nossos camaradas artilheiros. Em outras que se seguiram e até onde o seu braço chegou, nunca a minha companhia deixou algo por fazer. A todos eles, um serôdio abraço de gratidão.

E para todos os Tertulianos, abraços também.
VJ
____________

Notas de CV

(1) Vd. último poste de Vitor Junqueira de 23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2979: Exercício do meu direito à indignação (1): Simplesmente obnóxio, senhor anónimo (Vitor Junqueira)

(2) Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3381: O meu baptismo de fogo (21): 6 de Outubro de 1970, o primeiro contacto com a realidade das minas (Carlos Vinhal)

domingo, 28 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3248: Eu, capitão miliciano, me confesso (1): Engenheiro agrónomo, ilhavense, 32 anos, casado, pai de 4 filhos... (Jorge Picado)


Ílhavo > Costa Nova > 25 de Agosto de 2008 > Eu e o nosso ex-Cap Mil Jorge Picado (*), numa esplanada local. Falando naturalmente da nossa Guiné e das nossas desvairadas vidas. O Jorge, que já está reformado, há uns largos anos, da função pública (foi engenheiro agronómo dos Serviços Regionais do Ministério da Agricultura), sofreu há meses, em Novembro passado, um duro golpe com a morte, aos 69 anos, da sua companheira, esposa e mãe dos seus quatro filhos (Ana Constança, Jorge Manuel, João e José Senos da Fonseca Picado). Maria José de Senos da Fonseca Picado, carinhosamente conhecida na Costa Nova como D. Zeca, foi uma das fundadoras e a grande líder da mais importante instituição privada de solidariedade social da região, o CASCI - Centro de Acção Social do Concelho de Ílhavo, fundado em 1980. Figura ilhavense muito conhecida e respeitada, era "uma força da natureza" - dizem os seus amigos e admiradores. 

 O Jorge é uma figura afável e um grande conversador, um verdadeiro tertuliano. Neste texto, que dá início a uma nova série ("Eu, capitão miliciano, me confesso"), conta aqui as suas peripécias como capitão à força no TO da Guiné... Ilhavense, é um talvez dos raros da terra que não fez a "tropa do bacalhau"... 

Nesta esplanada, havia vários amigos dele e do meu amigo, Zé António, ligados ao mar e às marinhas (mercante e de guerra), incluindo o comandante na reforma e antigo professor da Escola Naval, José Armando Leite, por sinal compadre de outro amigo meu, ilhavense, o Dr. João Sena Vizinho, especialista em medicina do trabalho... Na Costa Nova, que pertence ao concelho de Ílhavo, o mar faz parte, de resto, do ADN de (quase) todo o mundo (**)... 

Leia-se, a propósito, o blogue de Ana Maria Lopes, Marintimidades. A Ana Maria Lopes é a antiga directora do notável Museu Marítimo de Ilhavo, que é de visita obrigatória, para quem passar por aquelas bandas... (Tive o privilégio de ter, este ano, um guia excepcional, na pessoa do Arq José António Paradela, que é um ilhavense de razão e coração, e que aos 16 anos passou pela duríssima experiência da pesca do bacalhau na Terra Nova).


Costa Nova > Ria de Aveiro > 25 de Agosto de 2008 > Um amigo comum, meu e do Jorge Picado, o Arquitecto José António Boia Paradela (pseudónimo literário, Ábio de Lápara).

Costa Nova > Ria de Aveiro > 25 de Agosto de 2008 > A Alice e o Zé António atolados no "tarrafo" da ria... De repente, vi-me transplantado para as margens do Geba Estreito, nas proximidades de Mato Cão, quarenta anos atrás...

Costa Nova > 26 de Agosto de 2008 > c. 8h50 > Caminho pedonal entre as dunas, que vem da Praia da Barra... Um magnífico passeio. Parabéns aos ilhavenses e à Câmara Municipal de Ílhavo pelo seu contributo para a defesa e preservação das dunas desta costa fabulosa, líndíssima...

Aveiro > 25 de Agosto de 2008 > Um tradicional barco moliceiro, hoje transformado em meio de transporte de turistas... Tradicionalmente, os moliceiro têm (ou tinham...) dois paineis de proa e dois de popa, de pintura naïve... Cada painel consta de um desenho policromado, com uma cena mais ou menos pícara, relacionada com o quotidiano dos pescadores ou dos camponeses da ria, enquadrada por cercaduras de flores ou figuras geométricas. Há sempre, na base, uma legenda-comentário, escrita às vezes em mau português, e com um segundo sentido (como no caso da imagem acima: "Mete as batatas no rego"...).

Costa Nova > Ria de Aveiro > Agosto de 2006 > A embarcação tradicional que fazia, até há pouco tempo, a travessia entre as duas margens, a Costa Nova e Ílhavo, cidade e sede do concelho... Parece que a carreira foi extinta... 

 Fotos (e legendas): © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

 1. Mensagem do nosso amigo e camarada Jorge Picado (*) com data de 26 de Setembro último: 

 Assunto - CPC/QC 

 Caríssimos Luís e restantes editores: 

 Acordei depois de regressar da belíssima Praia da Costa Nova, onde voltarei hoje para passar o fim de semana da tradicional Festa da Sra da Saúde, apesar de já não se assemelhar ao que era antigamente, mas que por tradição encerrava a época [balnear] e lembrei-me de escrever umas coisas que, se julgarem de interesse e oportunas publiquem. Se as meterem no cesto de papeis, não fico ofendido, podem crer, porque ás vezes dá-me a maluqueira e sou um pouco inconveniente. Abraços do Jorge Picado 

2. Na última década (?) de Agosto, na maravilhosa praia da Costa Nova do Prado onde passava o período estival, tive o grato prazer de rever, infelizmente por pouco tempo, o nosso Chefe da Tabanca Luís Graça, acompanhado de sua Esposa. Só não foi uma surpresa, porque o meu conterrâneo e amigo comum – Arq Paradela – que ele iria visitar, na véspera à noite, tinha-me avisado da sua passagem, a caminho da sua “Quinta” no Douro para uns dias de férias. 

 Foi com grande satisfação que (falámos abordámos) troquei [impressões com ele], Conversámos talvez durante uma hora, se tanto, sobre várias coisas vários assuntos…a minha terra… a profissão - até porque a mulher também era do Ministério da Agricultura … E, como não podia deixar de ser, veio também à baila a temática da Guiné e a minha “repescagem” para o serviço militar. 

Ao contar-lhe, muito superficialmente como e quando as coisas se passaram, fiquei com a ideia que manifestava um certo espanto. Não sei se foi impressão minha ou se na verdade o Luís ainda não se tinha inteirado bem da situação de como “apareceram” certos Cap Mil já um tanto “entradotes” na idade. Isto levou-me a pensar se não seria de deixar o meu testemunho sobre tal facto, até para que muitos possam compreender e ajuizar de certas situações vividas nos TO por quem conviveu com alguns desses “militares”. 

 Evidentemente que sobre esse assunto falo apenas por mim, mas tenho a certeza que das muitas dezenas de camaradas que como eu foram “obrigados” a ser Capitães, não teriam sido poucos os que apenas queriam era ver o tempo passar rapidamente e tudo fazer para preservar as suas vidas se possível de boa saúde, sem carrearem problemas de consciência pela vida dos jovens (que não tinham culpa alguma) obrigados a servir sob as suas ordens. 

OS CURSOS DE PROMOÇÃO A CAPITÃO DO QUADRO COMPLEMENTAR 

 Não sei se antes (do início da Guerra Colonial) já existiam destes cursos, mas quero apenas referir-me àqueles que passaram a existir quando a falta de Oficiais Subalternos para comandarem Companhias (sim, porque a verdade nua e crua sobre muitas vocações militares evaporou-se quando esta profissão teve de enfrentar armas a sério!!!), colocou o Governo de então na situação de lançar mão do expediente de repescarem os Oficiais Milicianos dos anos anteriores ao início da Guerra Colonial e antes de atingirem os 35 anos de idade, interrompendo-lhes as suas actividades profissionais e “subtraindo-os” até aos seus compromissos familiares, independentemente da sua vocação… 

 Faço aqui um parênteses para dizer que houve igualmente o caso dos Médicos que, até com mais idade pois alguns foram como Majores, mas estes iam exercer a sua profissão-especialidade e não comandar jovens em operações militares. Por isso não iam para CPCs ou afins. Começaram por conseguinte a convocar pelos COM que englobavam “os mancebos” no limite daquela idade e foram prosseguindo… até que este “filão” esgotou… e tiveram que “inventar” aqueles que o muito prezado Tertuliano Cor Rui Alexandrino denomina de “Capitães Proveta”, ainda que eu, apesar da idade com que fui chamado, também me considere como “um proveta”, dada a nula vocação militar (se a tivesse, após o 7.º ano liceal teria ido para a Academia Militar, pois que até era bom desportista e a prova disso é que fui o 2.º classificado do meu COM de AAA, graças claro às boas notas dos testes e da parte física que nunca pelo chamado “brio militar” que deixava muito a desejar…) e os fracos conhecimentos militares entretanto adquiridos… 

 Aproveito esta oportunidade, não para me desculpar que nada me pesa na consciência para que o tenha de fazer. Cumpri sempre as ordens que me foram dadas militarmente – em tempo de paz e na guerra – seguindo no entanto sempre aquela velha máxima de caserna mais ou menos assim: “na tropa, voluntário nem para descascar batatas”. Mas faço-o um tanto ou quanto espicaçado pelas duras, e porque não dizê-lo oportunas “críticas”, que o citado Rui faz no seu Rumo a Fulacunda, que aqui aproveito para elogiar e dizer que li (e hei-de reler) com enorme satisfação, não só por relembrar terrenos que pisei (e alguns também calcorreei), mas sobretudo por terem ficado tão “seguros” para mim, graças ao seu (ainda que outros também tivessem colaborado) profícuo labor e enorme capacidade e competência militar. Para o Rui e todos os outros, o meu agradecimento. 

 Depois destas divagações, que considero úteis para que possam compreender e então ajuizar certas situações vividas nos TO por quem conviveu com alguns desses “militares”, acrescento mais alguns pressupostos. Argumentariam talvez os defensores daquela época: “O País estava em guerra…era um dever Nacional que todos tinham por obrigação cumprir…”. Mas a verdade é que nem todos os dos COM eram chamados para estes Cursos. Apenas os que permaneceram nas Armas de Artilharia, Cavalaria e Infantaria, o foram. Ou seja, uns tinham mais obrigações do que outros! “Os de Engenharia não eram precisos, porque as necessidades desta Arma não existiam. Afinal só precisavam de Caçadores”, dir-se-ia. Mas se os Artilheiros (de AA e Costa) foram transformados em Caçadores, porque não transformaram também os Engenheiros? E porque é que alguns que tinham feito os COM naquelas Armas, foram depois, uma vez obtido um Curso de Engenharia, reclassificados (a seu pedido?) precisamente para não serem “apanhados”? E porque nem todos os Cursos de Engenharia permitiam tal reclassificação? 

Enfim, questões que naquela época não podiam ser afloradas, mas que nunca digeri, dado o meu ressaiboamento com a instituição militar (ou talvez fosse mais correcto com o Governo de então) que se foi gerando a partir da passagem a Aspirante Miliciano. Mas antes de prosseguir, como agora é corrente dizer-se quando se apresentam certas ideias, vou fazer a minha declaração de interesses. 

 Não tenho nada contra: (i) a Instituição Militar em si; (ii) todos aqueles que optaram pela carreira militar por convicção; (iii) todos os combatentes que se bateram nos diversos TO e o tenham feito por convicção ou sem ela (como no meu caso). Sou um pacifista, não daqueles folclóricos que empunhavam os cartazes Make love, not war, pois não sou tão ingénuo que julgue possível a resolução de todos os conflitos pelo diálogo, daí admitir a existência de Forças Armadas, é bom que se entenda. Mas ir para a guerra, quando não se optou por essa carreira, é preciso ter razões para tal…para bom entendedor… 

 Por isso após esta declaração de interesses, vou prosseguir com o assunto que me propus expor, mas as minhas queixas contra “o meu serviço militar” não são só as já afloradas. Cheguemos então ao CPC/QC que me transformou em Capitão, não de qualquer navio como as dezenas de conterrâneos meus, mas do Exército. Aquilo porque esperava há mais de um ano, aconteceu nos finais de Junho de 1969, quando recebi a convocatória para “frequentar o CPC/QC-2.º T.º/69, com início em 25/8/69, na EPI, nos termos da nota n.º18211-P.ºHC, de 27/6/69, da 2.ªSec. da RO/DSP/ME”. 

 Tinha: (i) 32 anos; (ii) cumprido o serviço militar obrigatório há 9; (iii) feito o 5.º ano do ISA [ Instituto Superior de Agromomia] há 10; (iv) sido convocado para prestar novamente serviço militar de 30/8/61 a 6/2/62 e de 18/8/62 a 17/10/62 duas situações que me inutilizaram 2 anos de ensaios de campo necessários para o meu trabalho de final de curso tendo como consequência apenas ter defendido a minha Tese do Final de Curso em Julho de 1963 (então já sem arriscar mais ensaios de campo), quando todos os meus colegas de curso já tinham 1 ou 2 anos de exercício profissional; (v) casado (até este acto esteve quase para ser impedido pela Instituição Militar) há 8; (vi) 4 filhos e (vii) trabalhava na Direcção Geral dos Serviços Agrícolas [DGSA] , mais exactamente com sede em Aveiro.

 No meio desta “desgraça”, felizmente que, no início de 1968, quando duma deslocação a Lisboa para reuniões de trabalho nos serviços da especialidade, fui alertado que o Covas Lima – de que já falei em história anterior – tinha sido convocado (ou estaria já?) para o CPC, pois era de COM anterior e, que se aproximava a vez doutro e também a minha - que era de COM posterior - de sofrermos a mesma sorte, pelo que tínhamos de tratar da nossa vida profissional visto que ambos estávamos ligados aos Serviços Agrícolas por contrato que, uma vez interrompido, nos fazia perder o vínculo à Função Pública, mesmo que a interrupção fosse motivada por convocatória militar. 

 Devo confessar que na “parvónia”, i. e. fora de Lisboa, estava completamente a leste destes conhecimentos e só por esta coincidência é que não fui apanhado desprevenido tendo, conjuntamente com essoutro colega, dado os passos necessários para que os Responsáveis da então DGSA salvaguardassem a nossa situação de forma a assegurarem-nos os postos de trabalho no caso de sobrevivermos. 

 Desculpem mais este à parte (ainda poderia acrescentar pelo menos outro), mas esta era a forma como nos tratavam então. Apresentámo-nos na EPI em Mafra no dia 25 de Agosto pelas 8H(?), devidamente fardados como constava das normas e de imediato, num dos corredores do Claustro bem perto da Porta de Armas(?), procedeu-se à formatura onde foi feita a chamada – para conhecimento dos possíveis desertores, que creio não ter havido – tendo sido dada a voz – pelo Ten do QP que nos comandava – de “apresentação a doentes(?)”, com a respectivamente formatura uns passos em frente. Para meu espanto – não sei qual foi a reacção dos restantes – logo se adiantaram alguns que, creio, seguiram quase de imediato para a consulta externa em Lisboa. 

Não sei quantos se safaram ou quantos regressaram, mas sempre guardei a imagem dum, que deve ter sido um bom actor – pelo menos amador no teatro da Academia de Coimbra – cuja face mais parecia ter sido revestida por “uma máscara de desvairado”. Uma coisa é certa, obteve os resultados que queria na Psiquiatria, pois livrou-se de tais sacrifícios pela Pátria. Estou a falar dum tal… oriundo da Figueira da Foz e mais não digo… Não posso precisar se fui o único – logo o 1.º – do meu COM de ART, mas creio que sim e apenas citarei os nomes daqueles de que me lembro. 

 Começarei logicamente pelos 3 colegas Agrónomos, que tivemos o mesmo TO por destino:

- O Ilídio Moreira, do curso de agronomia anterior ao meu, foi Cmdt duma CCaç (Geba) dum BCaç sedeado em Babadinca de 1970-72; 

 - O José Maria Queiroga (o tal que estava nas mesmas condições quanto ao emprego), do meu curso, foi chefiar a EAFB (Serviços Agrícolas) de 1970-72;

 - O António Clemente da Costa Santos, igualmente do meu curso, na REPACAP do COMCHEFE de 1970-72; 

 - O João Cupido, de Mira, e que passou a ser meu colega nas viagens a casa aos fins-de-semana, deixando-o à sua porta e apanhando-o lá ao Domingo à noite no regresso a Mafra, cujo destino também foi a Guiné como Cmdt da CCaç 2753 , onde teve um brilhante Alf Mil que conheci nas margens do RCacheu e não mais me esqueci (mesmo desconhecendo o seu nome, até ao encontro de Monte Real. Gratas recordações, podes crer, Victor Junqueiro); 

 - Tenho uma vaga ideia de que havia um Morais, assim para o gordinho e ar e espírito bonacheirão que teria desertado já em Moçambique (?). 

 - Um Ten MIL que tinha continuado na vida militar e vinha do Quartel da GNR que existia perto das Janelas Verdes, cujo destino desconheci; 

 - Os 3 jovens Alf Mil (ou graduados em Ten?) já com uma comissão e voluntários para seguir a carreira, respectivamente Fernandes (o Cap da famosa expressão do “Verão Quente”, “as armas estão em boas mãos”), Caimoto que também foi para a Guiné e um 3º de que não sei o nome; - Havia ainda um Nascimento que, creio, usava óculos. 

 Pronto, são estas as minhas recordações concretizáveis dos camaradas do CPC. A esta distância, sem qualquer elemento de referência, nem sei quantos éramos, mas o sentimento que guardo sobre a disposição, o (des)interesse, a resistência manifestada à execução da preparação militar que nos era ministrada (analisado agora até me parece que era ou foi um contra-senso) e a quezilência para com os instrutores, posso afirmar que era maioritária. 

Quanto aos instrutores: 

 - Havia um Major, mais para o baixo do que alto, talvez o Cmdt do curso e que nos ministrava uma das disciplinas teóricas, mas já nem sem qual. 

 - Um Cap ou ainda Ten do QC, com uma comissão pelo menos em Angola, que nos ministrava assuntos de Manutenção Militar, de que recordo conscientemente as vezes com que nos chamava a atenção para o cuidado e atenção que devíamos dispensar ao controlo administrativo da Companhia, para que no final da comissão não sofrêssemos qualquer dissabor. Repetiu-nos estes conselhos vezes sem conta, dando-nos exemplos concretos de camaradas “apanhados”, no final das comissões, nas malhas “de outras guerras” que a maioria das pessoas, e com certeza até muitos dos camaradas, desconhecem. 

 Devo confessar que na altura achava toda aquela conversa um tanto ou quanto estranha. Afinal estavam-nos a preparar para comandar soldados numa guerra ou para chefiar uma qualquer repartição administrativa (até uns mapas impressos numas folhas muito compridas me faziam lembrar os existentes nas Repartições de Finanças, que conhecia fruto do meu contacto por ter pertencido à Comissão de Avaliação dos Prédios Rústicos de Ilhavo)? A verdade é que também ia sendo “tramado” nessa outra guerra da MM. Se tiver disposição ainda contarei esse episódio. 

 Não sei quantos Ten do QP nos ministravam outras matérias incluindo as propriamente militares, desde a ordem unida, passando pela aplicação militar, tácticas, provas de campo, etc. Os últimos dias foram considerados como estágio complementar que constou dumas visitas a outras Forças com quem poderíamos ter de actuar, tais como: Fuzileiros; Força Aérea em Tancos e Operações Especiais em Lamego, onde terminámos no CIOE o estágio complementar do CPC no dia 20DEZ, data em que garbosamente fomos promovidos automaticamente a Capitães! E era assim que em 118 dias (não úteis), se transformavam simples paisanos (a maioria, pelo menos, sem motivação e naqueles anos já não apoiantes de tal guerra) de 32-33 anos em “brilhantes” Capitães, que eram dados como aptos para comandar tropas numa guerra daquela natureza? Por isso caros camaradas pergunto. Ainda se admiram de situações menos correctas de certos Cmdt de Companhia? Era assim que queriam ganhar a Guerra? 

 Desculpem, mas tenho por mim que muito fizeram eles. E com estas condições até me admiro como não houve mais mortos devido à sua inexperiência militar. No dia 21 de Dezembro passámos à situação de licença registada, ficando a aguardar (mesmo que tivessem perdido o emprego) o resultado, não do totoloto ou do euro milhões que ainda não existiam, mas do “bilhete premiado” na lotaria dos TO e Unidades. 

 _________ 

 Nota de L.G.: 







terça-feira, 2 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3163: O Nosso Livro de Visitas (25): Francisco Passeiro, ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857 (Mansabá, 1965/67)

Vista aérea de Mansabá
Foto: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem recebida no nosso Blogue no dia 1 de Setembro de 2008, endereçada pelo nosso camarada Francisco Passeiro, ex-Fur Mil de Trms da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857 (Mansabá, 1965/67)

Os meus cumprimentos.
Não sei porque carga de água fui parar ao blogue da Guiné onde também residi como Fur Mil de Transmissões até Maio de 1967, na CCAÇ 1421/BCAÇ 1857 numa terra chamada Mansabá.

O blogue tem de facto informação que nos absorve por horas e horas e pelo que já cheirei, vou voltar a ele, mas para já achei o nome muito complicado, embora original.

Para mais fácil ser encontrado não será possivel ser um Guiné... qualquer coisa... sendo rebaptizado? Não sei se possivel... mas seria mais fácil dar com ele nesse monstruoso Mundo da Internet.

Fui lá parar por mero acaso e tenho pena de só agora o descobrir... parabéns pelo trabalho efectuado. Estou certo que é desconhecido de muita e muita gente que certamente poderia ajudar a manter para os futuros umas páginas de História...

Na pesquisa que fiz, curiosamente reparei nos memoriais que aparecem incritos em Mansabá que o BART 645 esteve lá até 1966. Irei ver se de facto estou errado pois lembro-me que a minha Companhia foi render os Águias Negras em Mansabá em 1966 ou 1965 (?). Depois direi alguma coisa.

Com tristeza não encontrei nada sobre o destacamento K3 que à data, tanta tinta e pólvora fez correr, e que foi instalado pela CCAÇ 1421 e outros, a 3km de Farim, para interromper um trilho de cambança da Zona donde se destacava a muito importante base de Morés, no centro do muito célebre, na altura, triangulo da morte (povoações do Olossato, Bissorã, Mansabá)

Divulgarei o blogue quando possível, nomeadamente nos almoços anuais que se realizam. É muito gira a ideia.

Embora não tendo sido um operacional, contrbuirei com o que me lembrar.

Parabéns
Francisco Passeiro


2. Comentário de CV

Caro Passeiro
Obrigado pelo contacto.

Estou a responder-te em nome do nosso camarada Luís Graça, fundador e principal animador do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, conhecido entre os Tetulianos por Tabanca Grande, onde acolhemos todos os camaradas que combateram na Guiné e que queiram colaborar na feitura de um trabalho que queremos seja um espólio para, no futuro, dar a conhecer aos nossos vindouros o que foi a guerra colonial, neste caso, naquela pequena parcela da Guiné.

Aceitamos a tua opinião sobre o nome do Blogue, mas primamos pela originalidade e diferença, pelo que para já sentimo-nos muito bem assim.

Com respeito ao fim em si, deste Blogue, acertaste quando disseste que seria um legado para os futuros. É isso mesmo. No primeiro contacto connosco, adivinhaste o nosso propósito.

Como todos seremos poucos, ficas convidado, desde já, a aderiri à nossa Tabanca Grande. Manda uma foto do teu tempo de tropa e outra actualizada, tipo passe preferencialmente, começa a preparar as tuas estórias e as tuas fotografias e manda para nós. Assim serás mais um, nesta tarefa de dar a conhecer aos mais novos o que foi a maior preocupação da nossa geração (a guerra colonial) e como soubemos aguentar aquele duro sacrifício, com enormes cutos de vidas e saúde, com incapacidades temporárias e permanentes.

Na nossa Tabanca tratamo-nos todos por tu, independentemente dos postos que tivemos (e alguns ainda têm) e da posição que cada um ocupa na sociedade. Somos verdadeiros camaradas e amigos, unidos pelas recordações das nossas vivências naquela pequena terra da Guiné, que nos marcou, para o bem e para o mal, para sempre.

Falando do K3, se procurares, encontras alguma coisa, uma vez que até temos entre nós pelo menos um tertuliano que passou lá bons tempos, no dizer dele. Trata-se do ex-Alf Mil Vitor Junqueira da CCAÇ 2753, Companhia esta que nos foi render a Mansabá, ainda antes de acabar a sua Comissão.

Falando de Mansabá, onde também estive entre Abril de 1970 e Fevereiro de 1972, se tiveres fotos de lá, podemos trocar, como fazíamos com os cromos quando éramos putos.

Ficamos à espera de notícias tuas. Até lá pesquisa o nosso Blogue para te sentires também responsável pela sua continuidade.

Recebe um abraço de boas vindas, em nome de todos os tertulianos
Carlos Vinhal

sábado, 16 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3135: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (11): Partida de Có para Mansabá


1. Mensagem de 5 de Agosto de 2008 do nosso camarada Raul Albino, ex-Alf Mil, CCAÇ 2402/BCAÇ 2851 (, Mansabá e Olossato, 1968/70).

Caros amigos editores,
Faz cerca de um ano que vos enviei o último texto das memórias da CCaç 2402. Lembro-me bem porque os últimos relatos foram enviados no período morto das férias, um optimo periodo para voltar ao vosso convívio.

Se ainda estiverem recordados, informei-os que a razão desta ausência se relacionava com o esforço que estava a desenvolver para concluir o Volume II destas memórias, que neste momento já está editado. Não se trata de um volume de continuação de memórias como o do nosso amigo comum Beja Santos, mas sim o permitir registar em livro as memórias e opiniões de outros protagonistas da Companhia, entre elas as do nosso comandante Vargas Cardoso (Coronel na reforma) e do nosso vagomestre João Bonifácio (Ex-Fur Mil e pertencente ao nosso blogue), além de muitos outros. O meu contributo como narrador neste volume foi diminuto para dar a oportunidade a outros de se exprimirem. Na verdade, se eles tivessem participado a tempo e horas, o livro seria só um e não dois volumes. Tenho contribuido para o blogue com alguns excertos dos acontecimentos principais, mas os livros foram concebidos unicamente para os militares desta Companhia e seus familiares e é dessa maneira que os textos devem ser encarados em toda a sua organização e estrutura. Se eu tivesse de definir a obra, diria que se trata duma espécie de blogue/livro de sentido único onde todos puderam participar com os seus próprios pontos de vista. Sem a preciosa ferramenta informática que é a internete e a sua insubstituível interactividade, podem imaginar a carga de trabalho em que me meti, do qual não estou arrependido e muito prazer me proporcionou. Mas, convenhamos, é como tentar fazer uma omoleta sem ovos...

O último texto que enviei no ano passado foi também o útimo seleccionado da permanência da CCaç 2402 em Có. Hoje envio anexo um pequeno texto com fotos da nossa deslocação para Mansabá. Este foi um período curto em relação aos outros locais de permanência, mas bastante intenso em termos de acontecimentos militares.

Um abraço a todos e um pedido de desculpas por esta indesculpável ausência.
Raul Albino

2. Partida de Có para Mansabá
Por Raul Albino

A 19 de Março de 1969, a CCaç 2402 (-) a dois GCOMB (1.º e 4.º), iniciou o deslocamento para Mansabá, ficando em Có os restantes dois GCOMB (2.º e 3.º) a acompanhar a CCaç 2312 que assumiu o comando deste sub-sector, em termos de reforço operacional até à sua plena integração.

A 1 de Abril de 1969, os 2.º e 3.º GCOMB chegaram a Mansabá para se juntarem à restante Companhia.

As fotografias que se seguem, referem-se à deslocação para Mansabá da primeira metade da Companhia.


Foto 1 > Partida das viaturas de Có para Mansabá

Foto 2 > Passagem da coluna por João Landim

Foto 3 > Passagem da coluna por Safim-Mansoa

Fotos e legendas: © Raul Albino (2008). Direitos reservados.


3. Comentário de CV

Caro Raúl Albino
Já estávamos com saudades de receber os episódios da História da CCAÇ 2402. Ainda bem que voltas a ter disponibilidade para colaborar no Blogue.

Como julgo que sabes, Mansabá toca-me de muito perto, pois permaneci ali com a minha Companhia 22 meses.
Fomos render a CCAÇ 2403 em Fevereiro de 1970 e fomos rendidos pela CCAÇ 2753, do camarada Vitor Junqueira, em Fevereiro de 1972.

Fico à espera dos teus relatos e fotos referentes a Mansabá, embora julgue que a tua Companhia permanecesse lá pouco tempo.

Um abraço
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2085: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (10): Enfermeiro em apuros

sábado, 31 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2906: Estórias de Jorge Picado (3): Cutia, II Parte (Jorge Picado)



Jorge Picado,
ex-Cap Mil,
CCAÇ 2589 e CART 2732,
Guiné 1970/72




1. No dia 24 de Maio de 2008, recebemos esta mensagem do camarada Jorge Picado, com algumas palavras ainda sobre o nosso Encontro Nacional e com a segunda parte do trabalho que ele intitulou como Cutia.

Caro Carlos
Antes de mais quero felicitar-te - e ao Mexia Alves também - pelo excelente trabalho que desenvolveram para que o III Encontro tivesse aquele explendor. Passei um dia magnifico na companhia de tantos camaradas, quase todos desconhecidos para mim, mas que fazem parte da Grande Família Guineense.

Obrigado igualmente por destacares a foto do nosso convívio, que também já tinha arquivado à parte.

Assim que tiver disponibilidade podes crer que darei um salto até Matosinhos.

Seguem então umas palavras sobre a emboscada, que o destino determinou que não ocorresse, pois caso contrário que de certeza não se podia realizar agora esta troca de mensagens.

Jorge Picado
ex-Cap Mil


Guiné> Região do Oio> Destacamento de Cutia, situado na estrada Mansoa/Mansabá.
Foto: © César Dias (2008). Direitos reservados.


Guiné> Região do Oio> Vista aérea do Aquartelamento e Tabanca de Mansabá
Foto: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.

2. Destacamento de Cutia (Parte II)
Por Jorge Picado

Tal como prometi, vou tentar alinhavar algumas palavras sobre certos factos que se passaram após o Natal de 1970.
No entanto, antes de prosseguir, quero aqui deixar um esclarecimento.

No III Encontro realizado no passado dia 17 de Maio na Quinta do Paul – gostei muito de ter abraçado ao fim de quase 37 anos três camaradas (*) com quem partilhei 52 dias de estadia nas Terras do Oio entre Mansabá e o Rio Cacheu, bem como conhecer todos os restantes – comentava-se, num dos muitos grupos que se iam formando e entre outras coisas, que era preciso ter cuidado com a precisão com que por vezes se escrevia no blogue, talvez com recurso a meras recordações, o que a esta distância temporal podia ser ficção.

Concordo plenamente. Por isso quero desde já afirmar que ao citar por exemplo, números concretos quanto a horários, faço-o, porque são aqueles que constam das parcas anotações existentes na pequena agenda de bolso que mantenho e foram lá colocados, quando me encontrava no terreno. Estes, dos horários das colunas, tem apenas a precisão de quartos de hora, mas estão lá. Por isso devo citá-los. Aliás, já nas minhas notas sobre a emboscada do Infandre (1), transcrevi precisamente aquilo a que chamei hieróglifos e procurei depois traduzir.

Quando não tenho a certeza, mas apenas uma ideia, deixo sempre expressa a dúvida ou assinalo com (?). Nesses casos, ficarei muito contente que outros confirmem ou corrijam.

Por julgar que de facto só se deve transmitir algo de que se tenha uma relativa certeza, para quem não se documentou enquanto lá esteve, é que, apesar de ter passado por tantas localidades como referi na minha apresentação ao blogue, tenho muito pouco para contar.

Passemos então aos factos sobre Cutia.

Em virtude das decisões tomadas pelo COMCHEFE de prosseguir com a melhoria (alargamento e asfaltamento) do itinerário para Farim, que à data, creio chegava ao Bironque, foi activado o COP 6, reforçados os meios estacionados em Mansabá (com a colocação de Paras, CAV – viaturas Panhard(?) e não sei se mais), além de 1 CCAÇ colocada no K-3 comandada pelo Cap Mil Cupido (natural e ainda residente em Mira, meu conhecido e do mesmo curso do CPC) e ao mesmo tempo reorganizadas as Forças estacionadas em Cutia, razão pela qual eu aí fui colocado.

A missão de que fui incumbido foi a de proteger as colunas de viaturas civis que transportavam o pessoal, maquinaria e todo o tipo de material necessário à execução de tal empreitada, entre Mansoa e Mansabá.

Assentei arraiais neste Destacamento no dia 27 de Novembro de 1970 - uma sexta-feira, mas não 13 – e iniciei a nova actividade sobre rodas logo pelas 7 horas de domingo, 29, indo a Mansabá para a partir daí efectuar a primeira das 24 escoltas a colunas que realizei levando-a a Mansoa. Aqui formei nova coluna com as máquinas e viaturas vindas de Bissau, escoltando-as até ao seu destino em Mansabá, para depois regressar a penates ao princípio da tarde.

Apesar de durante o período que decorreu até 3 de Fevereiro de 1971 (quando a CCAÇ 2589 realizou a última coluna escolta Mansabá-Mansoa 15H) ter deixado algumas vezes o comando do Destacamento ao Alferes mais graduado durante ausências que nunca excederam 2 dias seguidos, apenas falhei uma escolta no dia em que fui ao dentista ao HM de Bissau, tendo regressado a Mansoa já depois da coluna ter saído para Mansabá.

Confesso que ao efectuar esta última coluna foi com grande satisfação que, comungando com a alegria do pessoal da CCAÇ ao despedir-se daquelas paragens – já que iam aguardar em Mansoa a sua retirada para Bissau a fim de serem recambiados para as suas terras de origem –, também eu me despedi de Cutia e Mansabá onde acreditava não mais colocar os pés. Puro engano e ingenuidade deste vosso camarada de Tabanca, que julgava ser possível, só lá porque tinha 1 ano de mato, arranjar uma colocaçãozita em qualquer secretária das muitas existentes em Bissau, mas que pelos vistos se destinavam aos predestinados… Porém isso já são outras estórias…

Nestas colunas muitas vezes também se incorporavam forças da CART 2753 e, excluindo as dores de cabeça – pelo menos para mim – que os condutores civis me davam por não cumprirem as normas de manterem uma certa distância entre eles e nunca perderem a ligação com a viatura que vinha na sua retaguarda, decorreram sem que houvesse qualquer facto digno de nota, com excepção da realizada no dia 28 de Dezembro que era para se realizar em 27.

Quando a 21 de Dezembro realizei a escolta Mansabá-Mansoa 07H – 12H, para levar a coluna onde viajava todo o pessoal das obras que ia passar o Natal a Bissau, logo me foi determinado que no domingo, 27, estaria pela manhã em Mansoa para pegar na coluna de regresso. Devia trazer forças condicentes com o número de viaturas que seria maior que o normal. Assim, quando às 7 horas de 27 já nos encontrávamos sobre rodas prontos a arrancar, fomos surpreendidos pelo operador de serviço às transmissões que aos berros, dada a distância, nos avisa de que o movimento estava cancelado, por ordem de Mansoa. Confirmando via rádio tal facto, sou informado que por nova ordem de Bissau a coluna seria no dia seguinte, devendo apresentar-me em Mansoa às 15 horas.

Cumprindo ordens – para mim e para todo o pessoal foi um domingo de desfrute e ataque às bazucas de cerveja – a 28 lá estava em Mansoa a enquadrar a coluna. Na realidade maior do que o habitual – seriam perto de 20(?), quando o normal rondaria a dúzia – e com viaturas ainda mais velhas, para arrastar mais a progressão.

Desta vez não dispúnhamos de protecção das Panhard, como por vezes acontecia. Na frente coloquei três Unimog, os dois primeiros com pessoal do Pel Caç Nat e o terceiro, onde me colocava com 1 Secção da CCAÇ. Parámos em Cutia para deixar elementos da população e reordenar o combóio.

Seguindo, passámos o carreiro, a zona de estrada desmatada (tinha-o sido logo após 12 de Outubro) e entrámos no concelho de Mansabá, cujas bermas se mantinham com a vegetação natural, isto é, com o capim no auge do seu desenvolvimento, quase na berma.

Por norma fazia estes percursos a maior parte do tempo de pé e costas para a frente de modo a vigiar o atraso das viaturas da retaguarda, dando indicações ao condutor, para afrouxar ou acelerar conforme o comportamento das mesmas.

Eis se não quando sinto a viatura a parar, sem que ordenasse. Viro-me e vejo as outras duas viaturas, lá à frente, paradas e vazias. O pessoal deitado nas bermas ou melhor, numas pequenas valetas. Secou-se-me a boca. O pessoal africano sempre tão descontraído… fora das viaturas? Não tinha havido tiros aos macacos – como noutra ocasião tinham feito e depois saltaram em andamento e tudo para apanhar os feridos e mortos – então porquê?

Salto também para a estrada. Dou ordem para efectuarem a segurança e avisar o resto da coluna para manter o afastamento entre as viaturas (talvez das poucas artes guerreiras que tinha fixado nas aulas de Mafra, além evidentemente das respeitantes à Manutenção Militar). Corro pela berma esquerda para contactar com o furriel da frente. Nem sequer me passava pela cabeça qual a causa por não ouvir tiros, tal o nervosismo que de mim se apoderou!

Chegado à frente e à fala com o furriel fico estupefacto com o que vejo. Uma cratera com o diâmetro da faixa alcatroada impedia-nos o avanço. Uns bons metros mais à frente, outra. Depois, outra (**).

Começo a ficar cada vez mais apreensivo, para não dizer outra coisa. Os camaradas compreendem naturalmente como me quero expressar aos momentos vividos naquela altura. Nem sequer tive a frieza de raciocinar que durante os longos minutos que se passaram, ainda não tinha sido disparado qualquer tiro!!! Só pensava no que estaria para vir… e, afinal, não vinha nem veio nada.

Entro imediatamente em contacto com Mansabá. Transmito-lhe o que se passava. Peço reforços…e até o helicanhão e mantenho-me em contacto permanente com eles.

Entretanto mantinha tudo em guarda e à defesa… não fosse o diabo tecê-las, sem compreender ainda bem o que se passava e com toda a coluna civil nervosa.

Conferenciando com o furriel e um alferes que entretanto se chegou à frente, começámos a serenar, uma vez que o IN não aparecia e decidimos que o Sapador fosse pesquisando o capinzal, para saber da sua viabilidade de passagem apeada de modo a poder-se observar o que estava para a frente, relatando tudo para Mansabá, que já satisfizera os meus pedidos e enviava Panhard e Páras, entre outros.

A estrada mais para a frente descrevia uma ligeira curva para a direita e então, com a progressão apeada, ao mesmo tempo que se fazia avançar as viaturas meio por fora da estrada, contabilizaram-se 5 crateras no total, num percurso de 2 a 3 centenas de metros ou talvez mais…

Verdadeiramente só respirámos de alívio com a chegada dos camaradas de Mansabá e do helicanhão que, depois de bater toda zona envolvente, nos comunicou não ver sinal de presença de IN e regressou a Bissau.

Deixámos então a coluna aos cuidados do pessoal de Mansabá e regressámos a Cutia, eram 18h45m, mas como já tinha aí ordem do meu Comandante para me apresentar em Mansoa, o pessoal teve de fazer mais umas horas extras para lá me colocar.

Tendo relatado verbalmente a ocorrência, dei então conhecimento ao Comandante de que no final da tarde do dia anterior tínhamos escutado – em Cutia –, fortes rebentações relativamente perto, vindas do Norte, que nos alertaram porque julgámos serem de ataque a Mansabá, mas como via rádio nos responderam negativamente e mais ninguém referia qualquer dificuldade, esquecemos o sucedido.

Concluíram que teria estado montada uma emboscada para apanhar a coluna que deveria ter sido efectuada na manhã do dia 27, mas chegado ao fim da tarde sem que tal ocorresse, tiveram de fazer rebentar as minas colocadas na estrada e abortar a emboscada.

Não sei se isto foi comunicado ao COMCHEFE, mas naturalmente que teria sido, só sei que no dia seguinte, 30 de Dezembro, arranquei de madrugada para Cutia às 5h30m indo de seguida efectuar a segurança (próxima?) aos trabalhos de capinação e restauro da estrada até às 15h30m, actividade repetida (segurança à capinação), no dia 2 de Janeiro de 1971 (depois de ter deixado uma coluna em Mansabá) e no dia 3 das 6h30m até às 15 horas.

Uma vez explicados os 5 enormes buracos com cerca de 2 a 2,5m de diâmetro e 60 a 80cm de profundidade, ao longo de 200 a 250m a que o tertuliano Carlos Vinhal se me referiu, não posso terminar sem acrescentar o seguinte:

i) – nos dias que se seguiram à ocorrência, inclusive enquanto se fez a capinação, não me lembro de qualquer reconhecimento efectuado no terreno para verificar rastos da emboscada;

ii) – quando mais tarde, já no CAOP 1 em []Teixeira Pinto, depois de ter contado o sucedido ao meu camarada de quarto, o Cap Art do QP Borges, certo dia aparece-me com um Perintrep ou seria Supintrep(?) acabado de chegar onde vinha esquematizada a emboscada, tal como constava de documentos apreendidos numa posterior operação de assalto ao Morés, efectuada por diversas forças entre as quais a CCMDS e CCPáras, fiquei atordoado. O poder de fogo dessa emboscada era fortíssimo, incluindo posições de Canhão s/r, várias metralhadoras pesadas, além dos vulgares RPG 7 e Kalash. Ainda gostaria de saber onde existirão esses documentos, para alguém confirmar;

iii) – por outro lado e tendo-se realizado 15 escoltas até ao Natal, sem qualquer anormalidade, como é que sabiam que a 16.ª se realizava no dia 27, ainda por cima ao domingo? Como uma emboscada daquela natureza não podia ser montada dum momento para o outro, i.e. a partir por exemplo do momento em que tivessem conhecimento da nossa saída de Cutia – até porque saíamos muitas vezes para ir somente a Mansoa abastecermo-nos – ou do arranque da coluna de Mansoa, como adivinharam que era naquele dia que havia coluna e daquela importância? Não podia ser por mero acaso. Tinham obviamente de ter bons informadores… e certamente em Bissau.

iv) – pela terceira vez – na Guiné – a sorte tinha-me acompanhado, reforçando a crença que se tinha apoderado de mim, de que ao nascer já trazemos todo o percurso de vida inscrito no BI, como se fora uma fita de tempo com todos os passos marcados, ainda que a desconheçamos. Passei a acreditar que a vida está predeterminada e o que tiver e quando acontecer, acontecerá. Para mim, não há volta a dar-lhe, como se costuma dizer;


Parte de Carta Militar com a estrada Cutia-Mansabá, com os pontos A e B assinalados como locais prováveis de montagem da emboscada abortada.

v) – finalmente e à distância de 36 anos procuro localizar no mapa (que anexo) a zona da emboscada, partindo apenas de 3 pressupostos: a designação de Mamboncò e a recordação de que a estrada plana descrevia, do lado Norte das primeiras crateras, uma curva ligeira para a direita. Assim na quadrícula superior esquerda da folha 1/50.000 MANBONCÒ, está traçada a estrada que ia para Mansabá e, depois do limite dos concelhos começava a zona não capinada. Aí deparo-me com duas possíveis localizações, antes da antiga povoação de Mamboncò e que considero como mais prováveis. São essas as posições A e B. Praticamente equidistantes de Cutia e Mansabá (a 6 ou 7 quilómetros) e entre 2 pontões (1 a Sul e outro a Norte logo depois de Mamboncò) onde seria fácil criarem dificuldades aos reforços enviados de ambos os aquartelamentos e muito perto dos locais de refúgio, quer a Oeste (Santambato/Morés) quer a Este (Sara/Canjambari). Inclino-me mais para o ponto B, por ser aquele da zona mais plana, já que o A se encontra entre duas curvas de nível (dos 20 e 30 metros) muito próximas.

Um abraço
Jorge Picado
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Anotações de Carlos Vinhal:

(*) - Jorge Picado refere-se a Vitor Junqueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 2753, Inácio Silva, ex-1.º Cabo da CART 2732 que também esteve destacado no COP 6 em funções administrativas e a mim próprio que com o Jorge participei numa perigosa peregrinação a
Fátima, como ele ironicamente sita.

(**) - Da História da Unidade CART 2732, Capítulo II, Fascículo VI Período de 01DEZ70 a 31DEZ70, página 16:
Dia 28 - Encontrados 5 buracos na estrada alcatroada em MAMBONCÓ 3E6.74, feitos por explosivos, com cerca de 2 a 2,5m de diâmetro e 60 a 80cm de profundidade, ao longo de 200 a 250 metros.

Ainda da História da Unidade CART 2732, Capítulo II, Fascículo XVIII Período de 01DEZ71 a 31DEZ71, página 34:
(um ano depois, sensivelmente no mesmo local)

Dia 06 - Pelas 11h15m 1 GCOMB REF 1 SEC+1 SEC/PEL MIL 253, efectuou coluna auto a MANSOA a fim de transportar militares.
No regresso, em MAMBONCÓ 3F2.56, foi emboscado por GR IN estimado em 50 elementos, armados de RPG, granadas de mão, armas automáticas ligeiras e morteiro 82, durante 20 minutos.
O IN instalado a 2 metros da estrada; alguns elementos armados de RPG saltaram à estrada a fim de alvejarem as viaturas.
1 GCOMB do Destacamento de Cutia saiu em socorro imediato. De Mansabá saiu igualmente 1 GCOMB em socorro. NT reagiram pelo fogo de todas as armas pondo o IN em fuga. A Artilharia da MANSABÁ e a FAP apoiaram as tropas emboscadas a pedido das mesmas.
As NT sofreram 1 morto, 11 feridos graves evacuados para Bissau, 9 feridos também evacuados, 8 feridos ligeiros.
1 Unimog 404 destruído e 1 Unimog 411 parcialmente destruído
OBS:-1 dos feridos graves acabou por falecer no HM 241.
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Notas de CV:

(1) - Vd. poste de 3 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2807: Estórias de Jorge Picado (1): A emboscada do Infandre vivida pelo CMDT da CCAÇ 2589 (Jorge Picado)

(2) - Vd primeiro poste da série Cutia, de 24 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2881: Estórias de Jorge Picado (2): Cutia, I Parte (Jorge Picado)