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segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20053: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte II: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 17-26)


Encosta sudeste da serra de Montejunto, que subi desde o sopé até ao cume nas circunstâncias descritas no texto.


Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

 (iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;

(v) vive no Porto;

(vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vii) tem página no Facebook.

(viii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974. Esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes. Pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu).




Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)(*)

por Fernando de Sousa Ribeiro

(Continuação, pp. 17-26)


A semana de campo teve lugar na região envolvente da serra de Montejunto e incluía uma subida ao alto da serra no último dia. A cada dia da semana de campo, o alferes nomeava um soldado-cadete diferente para "comandar" o pelotão, isto é, para treinar o comando de um pelotão sob a supervisão dele. 

No primeiro dia, o alferes disse: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Fulano» (não era eu). No segundo dia: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Sicrano» (também
não era eu). No terceiro dia: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Beltrano» (continuava a não ser eu). E assim sucessivamente, até que chegou o sétimo e último dia e o alferes disse: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Ribeiro». Tinha chegado a minha vez. Esperei o pior.

Anunciava-se um dia extraordinariamente quente, como se veio a confrmar. «Até o S. Pedro está contra mim», pensei. Mas a manhã passou-se sem novidades de maior. Eu, pelo menos, não me lembro de ter acontecido algo de especial. À tarde, pelo contrário, o caso mudou completamente de fgura.

Depois de termos almoçado (ração de combate, é claro), dirigimo-nos para a encosta sudeste da serra de Montejunto, a fim de subi-la a corta-mato até ao cimo. Tínhamos que vencer um desnível de 600 metros na vertical, às duas horas da tarde, quando o calor era mais forte e o sol, bem alto no céu, era mais escaldante. Encharcados de suor, a ponto de termos as fardas molhadas e coladas ao corpo difcultando os movimentos, e bebendo sofregamente a água que levávamos nos cantis até ela se
esgotar, subimos penosamente a serra, passo a passo, quase fazendo alpinismo. 

A meio da subida, ouviu-se uma voz:
— Meu alferes, não aguento mais! Não sou capaz de subir mais. Estou completamente esgotado!

Era um soldado-cadete açoriano que pesava mais de 90 quilos que tinha falado, quase a desfalecer. Depois de ter incitado o soldado-cadete a continuar a subida, sem resultado, o Lourenço virou-se para mim e ordenou-me:
— Sr. Ribeiro, ajude o seu camarada! O sr. Ribeiro é que é o "comandante" do pelotão e um comandante não pode deixar nenhum homem para trás. Vamos! Do que é que está à espera?! Não podemos ficar aqui parados!

Tirei a arma e a mochila ao açoriano e, quando me preparava para entregá-las a outros soldados-cadetes para as levarem, o alferes interveio:
— Não, não! O sr. Ribeiro é que vai levar a arma e a mochila e vai ajudar o seu camarada a subir!

Fiz então um dos maiores esforços de toda a minha vida. Só em Angola, durante as operações em Zemba, é que fiz esforços equivalentes. Com duas armas ao ombro e duas mochilas às costas, reboquei literalmente o gordo açoriano pela encosta acima, debaixo do sol implacável daquele dia escaldante de verão. Eu, que não tinha sequer cinquenta quilos de peso, transportei pelo Montejunto acima um peso que era duplo do meu próprio. Eu via tudo vermelho e sentia tudo a andar à roda. O ar escaldante que eu inspirava às golfadas pela boca aberta parecia não ser suficiente para me encher os pulmões. O meu coração batia a um ritmo alucinante. A boca, completamente seca por já ter bebido a água toda que havia no cantil, sabia-me a papel de música. Pensei: «Se eu não morrer agora, nunca mais morro; sou eterno». 

E continuava a subir, mecanicamente, pondo um pé à frente do outro, sem ver nada, a não ser vermelho, e sem sentir nada, a não ser o peso do camarada açoriano e das mochilas e das armas que eu trazia. No preciso momento em que esgotei todas as minhas forças e me senti desfalecer, com os joelhos a dobrar-se, alguém me disse:
— Já chegamos ao cimo. Não precisas de puxar mais.

Foi então que reparei que já não sentia o peso do açoriano, que me tinha largado a mão. Parei. Voltei a ver. Recuperei a consciência de onde estava e do que fazia, isto é, recuperei totalmente os sentidos. Eu tinha acabado de atingir o limite mais extremo das minhas forças. Mas tinha conseguido! Estava no alto da serra, onde uma brisa fresca me reanimava. Se o Lourenço esperava vergar-me e obrigar-me a pedir-lhe perdão, enganou-se. Não cedi, não dobrei, não fraquejei. Mantive o meu orgulho
intacto.

Entreguei a arma e a mochila ao açoriano, que já podia deslocar-se pelos seus próprios meios, pois agora iríamos seguir por um caminho horizontal, e o Lourenço conduziu o pelotão para o interior de um pinhal, que havia um pouco mais para diante e para baixo. Mal chegámos ao pinhal, atirámo-nos logo todos para o chão, ompletamente esbaforidos. Gritou-me o alferes:
— O sr. Ribeiro não pode descansar! O sr. Ribeiro tem muito que fazer! O sr. Ribeiro vai encher os cantis dos seus camaradas numa fonte que há lá adiante, ao pé dos radares da Força Aérea. E vai a pé! Vai e vem as vezes que forem necessárias até que todos os seus camaradas tenham os cantis cheios.

A fonte fcava a cerca de 500 metros do local em que nos encontrávamos. Estava eu a recolher os primeiros cantis dos meus camaradas, para os levar à fonte, quando chegou a minha salvação, sob a forma de um major ao volante de um jipe.

Era o comandante do batalhão de instrução que chegava. Depois de ter trocado algumas palavras em voz baixa com o alferes, o major perguntou a este o que é que eu estava a fazer. O alferes disse-lhe que eu estava a recolher os cantis do pelotão para ir enchê-los à fonte.
— E vai a pé?! — perguntou o major.
— Claro — respondeu o alferes. — Vai as vezes que forem necessárias.
— Não vai nada a pé — retorquiu o major. — Vai comigo no jipe.

Virando-se para mim, disse o major:
— Nosso cadete, recolha os cantis todos e ponha-os aqui no jipe. Vamos à fonte num instante encher isso tudo.

Depois de eu ter colocado os cantis no jipe, o major mandou-me subir para a viatura e fui com ele encher os cantis na fonte. Finalmente pude descansar um bocadinho, sentado no jipe! E que bem me soube a água da fonte, tão fresca e tão saborosa!

Quando acabamos de encher os cantis, o major disse-me:
— Esta madrugada, o pessoal todo vai fazer um "golpe-de-mão", para concluir a semana de campo, e você é que vai comandá-lo.
— Eu?!!! — exclamei, espantado.
— Sim, você — confrmou o major. — O nosso alferes Lourenço propôs-me o seu nome e eu aceitei. Para mim, é completamente indiferente. Tanto me faz que seja você ou outro qualquer.

E acrescentou:
— Mas primeiro vamos levar os cantis. Depois tratamos do "golpe-de-mão".

Entregues os cantis aos seus donos, o major e eu fomos no jipe até ao local previsto para o "golpe-de-mão". À chegada, estavam à nossa espera os comandantes das duas companhias de instrução do 2.º ciclo do COM (a 2.ª e a 4.ª companhias), mais um ou dois oficiais que me eram desconhecidos e de cujos postos já não me lembro.

Diante de nós estava uma aldeia abandonada, situada num recôncavo da serra que era muito grosseiramente circular. Disse-me o major:
— Esta madrugada vamos fazer um "golpe-de-mão" a esta aldeia. Dentro dela vão estar alguns soldados da EPI [Escola Prática de Infantaria], que irão fazer de inimigo. Você vai ter à sua disposição oito pelotões, quatro de cada companhia, que irão desencadear o "golpe-de-mão". Você vai ter que reservar um pelotão para fazer o "assalto" ao objetivo, mais um pelotão que deverá fazer a "proteção" à retaguarda. Os outros seis pelotões farão o que você melhor entender. Você é que vai determinar que papel é que eles irão desempenhar. Fica ao seu critério.

Apontando para a aldeia e zona envolvente, o major acrescentou:
— O cenário em que tudo se vai desenrolar é este. Agora você vai decidir que dispositivo é que quer montar para a "operação".

Armado em Napoleão seguido pelos seus ajudantes de campo, avancei para o alto de um monte, dos vários que envolviam a aldeia, a fm de observar melhor o terreno. Como eu disse, a aldeia fcava num recôncavo vagamente circular, o qual estava rodeado por algumas cristas de montes pouco elevados. Os montes eram pouco elevados mas, mesmo assim, dominavam o recôncavo e cercavam-no. Entre dois desses montes havia uma espécie de vale, por onde passava a estrada que conduzia à aldeia.

Disse eu ao major:
— Eu proponho que se faça um cerco à aldeia.
— Porquê? — perguntou o major.
— Porque o terreno é favorável a um cerco e assim apanhamos o inimigo todo dentro do objetivo, sem lhe dar hipótese de escapar — respondi.
— Muito bem. — disse o major — Faz-se então um cerco.

E perguntou:
— Concretamente, onde é que vão ser colocadas as nossas forças e a partir de onde é que vai ser desencadeado o "assalto"?

Eu pensei em voz alta:
— O "assalto" deverá ser tão rápido quanto possível, para apanhar o inimigo de surpresa.

E decidi:
— Acho que vou lançá-lo a partir daquele vale, por onde passa a estrada. Ali, praticamente não há obstáculos à progressão das nossas tropas, que assim poderão entrar no objetivo e "apoderar-se" dele rapidamente, sem dar tempo ao "inimigo" para reagir.
— Muito bem, sim senhor! É isso mesmo. — comentou o major com evidente satisfação. — Então é ali que o grupo de "assalto" vai fcar. E quem é que vai desencadear o "assalto"?

Respondi:
— Proponho que seja o pelotão do CCC.

O pelotão do CCC  (Curso de Comandantes de Companhia) era o pelotão dos futuros capitães milicianos, onde estava o Antunes [, futuro cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes, o último comandante da CCAÇ 3535].
— Há alguma razão especial para ser esse pelotão a fazer o "assalto" e não outro? — perguntou-me o major.

 Respondi:
— Há, sim, senhor. Como eles vão ser comandantes de companhia, e nessa qualidade vão ter responsabilidades acrescidas no futuro, precisam de ter uma preparação mais cuidada e, portanto, deverão desempenhar o papel mais importante nesta "operação".
— Muito bem, sim, senhor! É isso mesmo! — exclamou o major. — E quem é que vai
fazer a "proteção" à retaguarda?
— A "proteção" à retaguarda poderá ser feita pelo pelotão menos operacional, pois em princípio não deverá intervir no "golpe-de-mão". Proponho que seja o quarto pelotão da 4.ª Companhia.

O quarto pelotão da 4.ª Companhia era composto por soldados-cadetes que estavam destinados a ter diversas especialidades não operacionais ou pouco operacionais.
— Sim, senhor. Muito bem. E onde é que os vai colocar?

Aqui eu hesitei. Pensei em espalhar o pelotão pelas cristas dos montes, mas virado para fora. Reparei no entanto que não fazia muito sentido fazê-lo pois, se eventuais "reforços" "inimigos" vindos do exterior "atacassem" algum dos montes pela retaguarda, estariam em desvantagem logo à partida, pois estariam a "atacar" de baixo para cima. Certamente não fariam tal. O que fariam com certeza, seria "atacar" pelo ponto mais vulnerável, que era o vale por onde passava a estrada de acesso à aldeia e onde eu tinha colocado o pelotão de "assalto".

Disse isto mesmo ao major, acrescentando que colocaria o pelotão de "proteção" virado para fora e protegendo as costas do pelotão de "assalto". Assim este poderia concentrar-se na sua tarefa sem se preocupar com o que lhe viesse por trás.
— Exatamente! — exclamou o major com entusiasmo. — É isso mesmo! Muito bem! Sim, senhor!

A seguir, o major mandou-me indicar-lhe o que eu faria com os restantes pelotões. Respondi que faria com eles um cerco ao "objetivo", colocando «um pelotão neste monte, outro naquele, outro naquele monte acolá», etc.
— Há alguma razão específica para você colocar os pelotões nessas posições e não noutras? — perguntou-me o major.

Respondi:
— Eu tenho que ter o cuidado de evitar que fquem dois pelotões frente a frente, em posições diametralmente opostas relativamente ao "objetivo", para que não se alvejem mutuamente. Tenho que os distribuir de forma desencontrada. Cada pelotão não pode ter outro do lado de lá. Por isso os coloco nestas posições.

O major, ainda mais entusiasmado, repetiu:
— Muito bem! É isso mesmo! É preciso minimizar as baixas causadas pelo fogo "amigo"! Muito bem! Agora diga-me que pelotões é que vai colocar nessas posições.

Respondi-lhe que podia colocar «o pelotão de minas e armadilhas aqui, o das transmissões ali, o primeiro pelotão da 2.ª Companhia acolá, o segundo pelotão mais para o outro lado», etc.
— Está bem. Fica então assim — concordou o major. — Está definido o dispositivo para o "golpe de mão". Agora vou mandar chamar os cadetes que vão "comandar" cada um dos pelotões, para você lhes dar as instruções correspondentes aos lugares e tarefas que irão desempenhar. Eles precisam de saber onde é que vão estar e o que é que vão fazer.

Ao fim de algum tempo, os "comandantes" dos vários pelotões juntaram-se-nos e eu indiquei a cada um deles a posição que iria ocupar e o papel que teria que desempenhar no "golpe de mão". Quando acabei de dar as instruções, o major disse-nos:
— Agora vamos tratar das transmissões.

Mandou que nos entregassem rádios AVP-1, a cada um dos "comandantes" de pelotão e a mim próprio, e no fim disse-me:
— Agora você vai escolher os canais de rádio que vai utilizar. Vai escolher um canal principal e um de reserva. Pode escolher como quiser. Cada canal é tão bom como qualquer outro; isso é completamente indiferente. A seguir, vai escolher os nomes de código que vai corresponder a cada pelotão, para quando os chamar pelo rádio. Isso fica também ao seu critério. Quaisquer nomes são bons.

Eu lá indiquei uns canais escolhidos à sorte e também os nomes, do género Águia 1, Águia 2, Águia 3, etc.
— Pronto — concluiu o major. — Já está tudo decidido. Mas antes de se irem embora, quero dizer-lhes que o "golpe de mão" vai ter lugar às cinco horas da madrugada em ponto. À meia-noite, quero que comecem a ocupar já os seus lugares. Aqui o nosso cadete [eu próprio] vai estar aqui à espera, para orientar os pelotões no que for preciso. De hora a hora, o nosso cadete [outra vez eu] vai entrar em contacto com cada um dos pelotões pelo rádio, para saber se está tudo bem e pronto a entrar em
ação. Às cinco horas em ponto, ele dará a ordem de fogo e o "golpe de mão" será executado.

Procedeu-se tudo como o major determinou. Estava uma noite fantástica. Depois de um dia escaldante, a noite estava morna, mesmo apetecível para se estar ao ar livre. Uma maravilha. Nem quero imaginar como seria estar parado durante umas horas no meio daquela serra, numa noite fria de inverno e com chuva ainda por cima…

Às cinco horas em ponto, assim que dei a ordem de fogo pelo rádio, desencadeou-se um estrondo tão grande, com perto de duas centenas de G3 a disparar todas ao mesmo tempo no meio do silêncio da noite, que apanhei um valentíssimo susto. Mesmo estando à espera dos disparos, não imaginava que o barulho pudesse ser tão grande. Devemos ter acordado toda a gente num raio de 100 km ou mais… Parecia que a serra vinha abaixo.

Terminado todo aquele estardalhaço, o major veio ter comigo dar-me os parabéns, porque, disse ele, «a operação foi um êxito completo. Apanhamos o inimigo todo dentro do objetivo e capturamos x espingardas, y metralhadoras e z morteiros». E disse isto com tanta convicção, que quem o ouvisse julgaria que tinha sido a sério! Os oficiais de carreira muito gostam de manobras militares! Eles pelam-se por estas coboiadas.

E assim acabou o 2.º ciclo do Curso de Ofciais Milicianos atiradores de Infantaria da minha incorporação. Regressamos a Mafra para dormirmos e a seguir fomos para nossas casas, não sem antes nos terem dito que no dia tal deveríamos estar de volta, para sabermos as nossas notas finais, qual o teatro de guerra para onde iríamos ser mobilizados, qual a unidade em que seríamos colocados e para nos serem impostas as novas divisas de aspirantes.

Quando regressei a Mafra no dia marcado e olhei para a pauta onde as notas estavam afixadas, nem queria acreditar na nota que me tinha sido atribuída: treze valores vírgula zero zero. Era a nota máxima! A nota 13 era o limite que separava os simples oficiais atiradores, como eu, dos oficiais de Operações Especiais.

Os oficiais de Operações Especiais não podiam ter menos de 13 valores; os oficiais atiradores, em princípio, não podiam ter mais de 13, a menos que fossem verdadeiramente extraordinários, caso em que rebentariam a escala. Na minha incorporação houve mais dois ou três atiradores que tiraram 13 valores como eu e houve um que rebentou a escala, tendo recebido à volta de 15. Chamava-se Poças, era uma jóia de moço e como "prémio" foi mobilizado para a Guiné em rendição individual.

E foi assim que um (futuro) alferes comandou o seu próprio (futuro) comandante de companhia, mais uma data de outros (futuros) capitães!

[Foto à esquerda: 

Capitão miliciano José António Pouille Nobre Antunes, que comandei no fim da semana de campo do 2.º ciclo do COM, quando ambos éramos soldados-cadetes. Posteriormente, já com o posto de capitão miliciano, foi ele que me comandou, assim como toda a CCaç 3535, a partir da segunda quinzena de abril de 1973]


_______

Nota do editor:

domingo, 11 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20050: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro. CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte I: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 5-16)





(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74); (ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780];  (iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto; (iv) está reformado; (v) vive no Porto; (vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou; (vii) tem página no Facebook.

A CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974. Esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes. 

Pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu).

Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de 14 de julho dr 2019, do nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro

Caro Luís Graça,

1) Junto te envio o meu "livro" de memórias completo sobre a minha guerra. Como podes ver, não fui nenhum herói. Se alguma coisa poderei dizer em minha defesa, é que dei o máximo de mim mesmo pelos meus homens. Dei mesmo. Se não dei mais, foi porque não pude. Se leres o que está escrito, poderás dizer que tive uma tropa um bocado fora do comum. Vivi situações muito estranhas, sobretudo em Mafra, Santa Margarida e nos primeiros seis meses de comissão, em parte por culpa minha, em parte por culpa de quem me comandou, mas nunca por culpa de quem eu comandei. Em relação a estes, só posso fazer os maiores elogios. Estou a ser absolutamente sincero.

2) Quando acabei a minha comissão e antes de regressar a Portugal, destruí quase tudo o que me pudesse recordar os dois anos e três meses que passei em Angola. Rasguei fotografias, queimei documentos, deitei tudo para o lixo, porque queria começar uma vida nova quando regressasse, sem os fantasmas da guerra. Como se tal fosse possível, vê lá tu! É claro que agora estou arrependidíssimo. Só escaparam à minha fúria destruidora três ou quatro fotografias e duas cassetes com gravações que fiz. Uma das cassetes está completamente estragada e irrecuperável, mas da outra consegui recuperar três canções e espero recuperar mais uma ou duas. A fita da cassete parte-se quase sempre que a ponho a tocar e, por isso, tenho que ter o máximo cuidado para poder digitalizar o que falta dela. Há alguns anos, digitalizei duas canções e há alguns meses tentei digitalizar uma terceira, mas com resultados desastrosos, porque a fita voltou a partir-se. A pedido de um camarada, abri uma conta no Youtube e publiquei as canções lá, ilustradas com algumas imagens roubadas à página do meu batalhão no Facebook.

3) Uma palavra devo dizer-te em relação ao intérprete da primeira canção [ver aqui no You Tube].  Chamava-se Gabriel António e era filho de um casal de trabalhadores de uma fazenda de café, naturais da região do Bailundo, no centro de Angola. Quando começou a guerra em 1961 e o Gabriel ainda era pequeno, a UPA assassinou o pai e a mãe dele, à semelhança do que fez à maioria dos trabalhadores bailundos das fazendas no norte de Angola, numa clara manifestação de ódio tribal. O Gabriel cresceu na mata, no seio de uma família adotiva, e quando atingiu a idade adulta apresentou-se às NT, em Zemba. Dois ou três meses depois da sua apresentação, ofereceu-se para nos servir de guia nas operações, porque queria ajudar-nos a combater o movimento que lhe matou o pai e a mãe. Foi um guia extraordinariamente leal e dedicado e deixou imensas saudades em quem o conheceu. Não era um indivíduo rancoroso nem amargo. Bem pelo contrário, o Gabriel António era afável e caloroso como poucos. 

Quando se deu a descolonização, o Gabriel foi para Luanda, juntamente com o último batalhão que esteve em Zemba, o BCaç. 5017/74 . Constou aos militares deste batalhão que o Gabriel foi morto em Luanda. Ninguém o viu morto, é verdade que não, mas também nunca mais ninguém o viu vivo. A situação em Luanda era caótica em 1975, ano em que os três movimentos independentistas lutavam entre si pelo domínio da cidade. O Gabriel poderá ter sido apanhado no meio de uma qualquer troca de tiros. Nesse tempo, bastava sair à rua em Luanda ou em qualquer outra cidade de Angola para se correr o risco de levar um tiro. O Gabriel António é a pessoa que se vê logo no princípio do meu "vídeo". Fardado e armado com uma G3, para se parecer com os nossos soldados, o Gabriel traz também, na fotografia, uma arma a tiracolo que foi capturada ao IN.

4) Depois de ter gravado uma canção com o Gabriel António a solo, apareceu um outro habitante local, chamado Gonçalo, que se prontificou a gravar uma outra canção juntamente com o Gabriel. Arranjou-se uma segunda viola, para o Gonçalo tocar, e a gravação fez-se. Esta outra canção está em disponível aqui, também no You Tube.

5) Há poucos meses, tentei passar para o computador uma outra canção pelo Gabriel e o Gonçalo que está na mesma cassete, mas tão desastradamente o fiz que a fita partiu-se e enrolou-se toda no mecanismo do gravador. Esta parte da fita ficou irremediavelmente estragada. Mesmo assim, coloquei a canção no Youtube, assim mesmo estragada e tudo, no endereço. Se eu quiser digitalizar o resto da cassete, vou ter que tomar as maiores precauções, para que a fita não se volte a partir. Não sei quando é que poderei fazê-lo, mas acredito que vou conseguir.

6) Eu ando nisto da internet desde há cerca de vinte e cinco anos, quando intervinha frequentemente nos "newsgroups", que eram as redes sociais dos anos 90. Depois disso, passei a publicar um blog pessoal, que continuo a atualizar com bastante regularidade, mas no qual a guerra só muito esporadicamente é abordada. Quem for à procura de guerra, perde o seu tempo, porque muito pouco encontrará.

Um grande abraço
Fernando de Sousa Ribeiro,
ex-alferes miliciano da CCaç 3535 / BCaç 3880, 
Angola, 1972-74


Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)
 por Fernando de Sousa Ribeiro

INTRODUÇÃO

Este é um conjunto de textos escritos por Fernando de Sousa Ribeiro, antigo alferes miliciano da Companhia de Caçadores 3535, do Batalhão de Caçadores 3880. O autor esteve no norte de Angola entre 1972 e 1974, concretamente em Zemba, na região dos Dembos, a noroeste de Luanda, e em Ponte do Zádi, Banza Sosso e Malele, na região de Maquela do Zombo, junto à fronteira norte de Angola.

Quase todos estes textos foram originalmente publicados pelo autor na página do seu batalhão no Facebook, tendo sofrido posteriormente algumas alterações com vista a torná-los mais compreensíveis a pessoas estranhas ao batalhão.

Os factos relatados nos textos aqui reunidos são rigorosamente verdadeiros, tanto quanto a memória do seu autor lhe permitiu. Nada do que aqui está foi inventado. Ficaram por escrever alguns episódios, porque:
— são demasiado pessoais;
— são de interesse (ainda mais) reduzido;
— são de tal modo fragmentários, que com eles o autor não consegue elaborar uma narrativa que tenha princípio, meio e fim;
— o autor não consegue escrever sobre eles, por mais que o deseje, por causa da rofunda marca que lhe deixaram no espírito; foi o caso da queda de um avião em Zemba, em que morreram três pessoas, que tiveram uma agonia lenta e atroz nos seus corpos destroçados, perante a mais desesperada impotência do autor.

Uma homenagem especial deve o autor prestar ao primeiro-cabo Domingos Amado Neto, que foi um moço extraordinário. Até na cor da pele Neto era extraordinário, pois contava-se entre os negros mais negros de todos os negros que existem. Neto devia ter a maior concentração de melanina na pele que é possível haver. Quando Neto chegava, parecia que ficava de noite. Ele era tão negro que dava a ideia de que absorvia toda a luz que o rodeava. Mas a cor da pele de Neto era um pormenor sem importância, uma simples curiosidade, pois ele era dotado de uma inteligência, de um sentido de justiça, de um bom-senso e de um espírito crítico que foram verdadeiramente preciosos para o autor.

Ao contrário de todos os outros subordinados, tanto portugueses como angolanos, que sempre colocaram as suas vidas nas mãos do autor, obedecendo-lhe cegamente, Neto nunca confiou inteiramente em quem o comandava. Desde o primeiro até ao último dia, manteve sempre uma atitude crítica em relação às decisões tomadas pelo autor, mesmo que só se manifestasse através do olhar. Fê-lo, não de um ponto de vista militar, mas sim de um ponto de vista ético e humano, desempenhando um papel de consciência moral do autor destas linhas. O autor ficou com uma dívida por pagar a Domingos Amado Neto.

ÍNDICE

O meu Curso de Oficiais Milicianos_____5
O respeito pelos homens que comandei____27
O que nos fizeram foi criminoso____43
Crimes de guerra____51
À noite, em Zemba____63
Máquinas de costura____65
Discriminação racial____67
Natal de 1972____73
O guerrilheiro Didi____79
A vida nas matas____83
A operação que me fez tremer____93
Abandonados___107
Os trabalhadores ditos bailundos___119
Uma lição___125
Uma emboscada cobarde___133
Batuque___135
A bebedeira do sargento Madeira___137
A revolta do capitão Jardim___141
Ida à Psiquiatria___147
O Afonso___151
O destacamento de Malele e os refugiados angolanos___153
A seca___159
Despedida___161


O MEU CURSO DE OFICIAIS MILICIANOS 
(pp. 5-16)


Convento de Mafra, que era na sua quase totalidade ocupado pela Escola Prática de Infantaria, atual Escola das Armas. Naquele tempo, só não estava sob tutela militar a frente do convento, com exceção do torreão mais à esquerda, em cujo 3.º piso se encontrava a minha caserna do 2.º ciclo do Curso de Oficiais Milicianos. Entre o referido torreão e a Basílica, que está ao centro, ficava (e fica) o Palácio Nacional de Mafra. Entre a Basílica e o torreão da direita ficava, no rés-do-chão e no primeiro andar, a Câmara Municipal de Mafra, enquanto o segundo andar também pertencia ao Palácio Nacional. No torreão da direita estava instalado o Tribunal da comarca. O convento é tão grande que cabia lá tudo: quartel militar, museu, Câmara, Tribunal e, se fosse preciso, também se arranjaria espaço para os Bombeiros… Atualmente, o Tribunal e a Câmara Municipal ocupam edifícios próprios na vila de Mafra. De toda esta gigantesca edificação, só merecem ser visitadas a Basílica e a fabulosa Biblioteca do convento, à qual se acede pelo Palácio Nacional. O resto não passa de uma monstruosidade que não tem ponta por onde se lhe pegue.

Nas traseiras do edifício fcava a parada principal da Escola Prática de Infantaria. Mais para trás estende-se a tapada de Mafra. 


A minha companhia, CCaç 3535, teve dois capitães. O segundo capitão foi José António Pouille Nobre Antunes que, por coincidência, tinha feito parte do mesmo pelotão de instrução que eu, no 1.º ciclo do Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra,juntamente com o ex alferes Peixoto. Mal sabíamos nós que, mais tarde, os três nos iríamos encontrar na mesma companhia de caçadores em Angola, o Antunes como capitão e o Peixoto e eu como alferes. Estivemos, portanto, os três no mesmo pelotão de instrução, sob o comando de um alferes do quadro permanente chamado Carvalhão. Este alferes, que era de uma enorme ingenuidade, sofreu uma grande evolução e veio mais tarde a ser um ativo "capitão" de Abril (embora ainda só fosse tenente à data da Revolução dos Cravos), estando agora reformado no posto de tenente-coronel. 


Tenente-coronel Carlos Manuel Gonçalves Abreu Carvalhão

Durante o meu serviço militar, houve um tempo em que o Antunes me comandou (a mim e à CCaç 3535 toda), em Angola. Houve um tempo, também, em que o Antunes e eu (e o Peixoto) estivemos em pé de igualdade, na qualidade de soldados-cadetes em Mafra. E houve um tempo em que fui eu que comandei o Antunes.

É verdade, comandei o Antunes! Isto aconteceu na última noite da semana de campo do 2.º ciclo do COM, a qual decorreu na serra de Montejunto. Para ser mais rigoroso, eu não só comandei o Antunes, como comandei mais quase 30 futuros capitães e cerca de 150 futuros alferes, todos ao mesmo tempo!

Aposto em como eles não souberam nunca que eu alguma vez os comandei. Devem ter pensado que as decisões tomadas e as ordens dadas naquela noite no Montejunto tinham provindo dos instrutores, mas não, elas provieram de mim.

Como foi isto possível? Aviso desde já que esta história é muito comprida e muito chata. O meu 1.º ciclo do COM foi traumático, sobretudo para os soldados-cadetes da 6.ª companhia de instrução, a que pertencemos o Peixoto, o Antunes e eu. Foi uma companhia que, só na instrução, sofreu, em três meses, três mortos e dois feridos, um dos quais ficou cego de uma vista. Os mortos foram vítimas de afogamento numa lagoa que havia na tapada de Mafra.

No momento em que eles se afogaram, eu mesmo estava metido numa outra lagoa até ao pescoço, mas mesmo até ao pescoço, com a água a tocar-me na base do queixo. Tinham-nos ordenado que entrássemos na lagoa em fila indiana e eu era o segundo da fila, atrás de um soldado-cadete que era mais alto do que eu. Eu estava fardado, de botas de cabedal e com uma G3 nas mãos, que transportava com os braços levantados para não a molhar. O peso da espingarda, acima da cabeça, agravava ainda mais o meu precário equilíbrio. Avançávamos cautelosamente pelo fundo escorregadio e irregular da lagoa, mas sempre que abrandávamos a marcha éramos logo alvo de berros por parte do instrutor, que exigia que avançássemos sempre mais e mais. Assim, mesmo quando os da frente da fila abrandavam, os de trás continuavam a avançar e empurravam os que estavam à frente. Eu mesmo me sentia empurrado pelo soldado-cadete que estava atrás de mim.

À medida que avançávamos, o movimento dos nossos pés no fundo da lagoa ia levantando lodo, o qual ia tornando a água cada vez mais turva. Toda a água ficou turva de lodo. Se eu caísse, nunca mais me conseguiria levantar e dificilmente me encontrariam a tempo de me salvar, porque não se via um palmo abaixo da superfície da água.

O afogamento dos três camaradas provocou uma onda de revolta de todos os soldados-cadetes que estavam então em Mafra, os quais fizeram um levantamento de rancho, tal como foi noticiado pelo clandestino jornal Avante!


Recorte do jornal Avante!,  Ano 41, Série VI, n.º 431, de julho de 1971, pag. 4, em que é referida a morte de 4 cadetes. Na verdade morreram 3. Quanto ao resto, a notícia aqui relatada é verdadeira, independentemente do tom revolucionário em que está escrita. Nenhum outro jornal noticiou este facto, porque a censura não permitiu.


O modo como decorreu o levantamento de rancho está muito bem descrito no livro "Capitães do Fim… do Quarto Império", de António Inácio Nogueira. Passo a reproduzir a seguinte passagem, que está na pág. 323, de um depoimento de Vasco Augusto Rodrigues da Gama, que veio a ser capitão miliciano e comandante da Companhia de Cavalaria 8351/72, na Guiné, e que também viveu o acontecimento. [É membro da nossa Tabanca Grande.]

" (…) Nós, simples soldados-cadetes, homens arrancados aos estudos, outros com os cursos já feitos, que de um momento para o outro passaram a ser números de uma máquina sem coração, não fomos soldados-cadetes, fomos Homens.

Com o refeitório cheio de algumas centenas de nós preparados para o almoço, na posição de sentido obrigatório como era da praxe, recebemos a ordem, talvez do oficial de dia:

SENTAR!

Como fez barulho o silêncio que se seguiu!

Ninguém, ninguém se mexeu! Impávidos, serenos, comovidos, com os olhos brilhantes, ninguém, ninguém obedeceu! Músculos retesados, firmes no nosso querer e na nossa razão, pêlos eriçados, ninguém, ninguém, nem os 'engraxadores' hesitaram.

Foi chamado o comandante maior:

SENTAR!

Trovejou uma voz ainda mais potente, como se a estridência do grito fosse directamente proporcional ao número de riscos amarelos que o ombro suportava.

Ninguém, ninguém cumpriu a ordem.

DESTROÇAR!

E lá foram os soldados-cadetes, olhando-se com respeito, olhos nos olhos. Não me apercebi de medo em nenhum rosto.

O meu íntimo regozijava. Fomos para a sala número dez, todos, sem excepção, para uma reunião espontânea que foi interrompida quando recebemos ordem para irmos de fim-de-semana.

Seria quarta ou quinta-feira, não me recordo, sei apenas que o rigor, muitas vezes despropositado, da revista às armas, foi substituído pelo deixa andar.

Era preciso mandar estes gajos para fim-de-semana em passo de corrida. Como foi isto possível?

Afinal… era possível."


Capa do livro "Capitães do Fim… do Quarto Império", de António Inácio Correia Nogueira, onde se encontra o relato, feito por Vasco Augusto Rodrigues da Gama, do levantamento de rancho ocorrido em Mafra


A reação do comandante da Escola Prática de Infantaria, coronel Hilário Marques da Gama [, 1921-2012], foi miserável. O homem entrou em pânico quando verificou que não era obedecido, gaguejou umas palavras em que disse que não tinha culpa de nada e fugiu apavorado. O comandante da minha companhia, que era o então tenente Aguda — o qual participou no 25 de Abril como capitão, é agora major-general (o mesmo que brigadeiro), é vice-presidente da Liga dos Combatentes — assumiu perante nós, de olhos nos olhos, a responsabilidade pelo sucedido.

Esta atitude do Aguda caiu muito bem na nossa consideração. «Finalmente aparece alguém que não tem medo de assumir s suas responsabilidades», pensei. Porém, apesar da admiração que o Aguda passou a merecer da nossa parte, ele manteve os métodos de instrução completamente inalteráveis, tal e qual, como se não tivesse acontecido absolutamente nada. Como resultado, um novo incidente grave veio ensombrar a companhia.




Com efeito, algum tempo mais tarde, a minha companhia de instrução sofreu mais dois feridos, atingidos por estilhaços na cara que provocaram a cegueira num olho a um deles. Um alferes instrutor mandou os seus homens rastejar, enquanto ele fazia disparos de G3 com bala real, fazendo-lhes tangentes. Uma bala bateu numa pedra e estilhaçou-a. Os estilhaços atingiram dois soldados-cadetes na cara. Como desta vez não houve mortos, aconteceu numa sexta-feira (quando a malta já estava a pensar no fm de semana) e nos foi dito que os ferimentos não tinham gravidade, o caso acabou por passar despercebido à generalidade do pessoal. Só mais tarde, já depois do fm do 1.º ciclo do COM, é que se soube que um dos feridos tinha ficado cego de um olho.

Ainda antes da conclusão do 1.º ciclo, fui convocado para ser submetido a um exame médico e para prestar provas físicas e outras, com vista a uma possível admissão minha no curso de Operações Especiais, a decorrer em Lamego no 2.º ciclo. Fiquei logo a saber, portanto, que a participação ativa na guerra colonial iria ser o meu destino, qualquer que fosse a especialidade que me viesse a ser atribuída. Só faltava saber para que teatro de guerra é que eu iria ser encaminhado: Angola, Moçambique ou Guiné. Para começar, fui ao exame médico.
— O que é que você está aqui a fazer? — perguntou-me o médico, assim que me viu entrar no consultório. — Não me diga que estes gajos querem que você vá para os Comandos! Com esse físico?! Está tudo doido! Vá-se embora, vá-se embora!

Assim que virei as costas para me retirar, o médico chamou-me:
— Espere aí! Vamos só ver quanto é que você pesa. Ora suba para aquela balança 

Subi.
— Eu logo vi! — exclamou o médico. — Você só pesa 48 quilos! E estes gajos querem que você vá para os Comandos?! Está tudo doido! Estes gajos não sabem o que é que andam a fazer! Vá-se embora, vá-se embora.

Desta vez fui-me mesmo embora, enquanto o médico comentava com os seus botões:
— Com 48 quilos nos Comandos! Estes gajos não sabem o que é que andam a fazer! Está tudo doido!

E não fui para Operações Especiais. Para o médico, que devia ser miliciano, Comandos ou Operações Especiais era tudo a mesma coisa.

O nosso juramento de bandeira foi muito tenso. Como tínhamos feito um levantamento de rancho, éramos tidos como subversivos. Para evitar que nos revoltássemos ou tomássemos alguma outra atitude que saísse fora do estipulado numa tal cerimónia, a nossa formatura esteve enquadrada por soldados da própria guarnição da Escola Prática de Infantaria, armados de G3 e municiados com balas reais. Alguma atitude da nossa parte que fosse considerada como uma revolta seria imediatamente reprimida a tiro. Mas não aconteceu nada, a não ser o silêncio que imperou durante o pronunciamento da fórmula de juramento, o que em Mafra não era inédito. Já tinha acontecido antes e voltou a acontecer depois. Assim, dos cerca de 500 soldados-cadetes que estavam presentes para prestar juramento, só meia-dúzia é que disse «Juro» e o resto da fórmula que desconheço. A esmagadora maioria, eu incluído, manteve-se totalmente silenciosa.

Terminado o 1.º ciclo do COM., fiquei a saber, sem surpresa, que iria ser atirador de Infantaria e que, por isso, continuaria em Mafra, para frequentar o 2.º ciclo. Queria isto dizer que eu permaneceria mais três meses naquele tenebroso convento e continuaria a receber instrução naquela sinistra tapada. Continuaria no local do crime, portanto. Ainda por cima, o meu instrutor era outra vez um alferes do quadro permanente. Chamava-se Lourenço, já tinha o tirocínio feito e estava à espera de ser promovido a tenente a qualquer momento.

Posteriormente, já com o posto de capitão, o Lourenço veio a ser comandante da 112.ª Companhia de Comandos, que foi a principal protagonista da última operação efetuada pelas Forças Armadas Portuguesas em Angola: o assalto ao Comando Militar das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola, o braço armado do MPLA), no bairro da Vila Alice, em Luanda, no dia 27 de julho de 1975, de que resultaram 15 mortos e 22 feridos, entre os militares das FAPLA, e 5 feridos, entre os militares portugueses. O Lourenço terminou a sua carreira por volta de 2005 com a patente de major-general, quando desempenhava as funções de comandante da Brigada de Trânsito da GNR.  

Quando iniciei o 2.º ciclo do COM, o meu estado de espírito não podia ser pior. Eu encontrava-me profundamente desmoralizado, em consequência dos acontecimentos ocorridos no 1.º ciclo. Ainda por cima, estava outra vez entregue a um alferes do quadro permanente, isto é, estava entregue a alguém por quem eu não sentia qualquer espécie de respeito, depois de ter assistido, no 1.º ciclo, aos vergonhosos comportamentos de cobardia e de desprezo pela vida humana da parte de militares de carreira como ele. Para mim, naquele momento, todos os oficiais do quadro permanente eram desprezíveis cobardes ou cruéis psicopatas, que não mereciam que eu me esforçasse, e muito menos que me deixasse matar, só para lhes satisfazer a vontade.

A instrução que tive no 2.º ciclo do COM foi muito mais branda do que a estúpida instrução recebida no 1.º ciclo. Mas dado o estado de espírito com que eu estava, quase não fz nada durante o 2.º ciclo. Profundamente desmotivado, eu não me esforçava durante a instrução, não estudava para os testes, baldava-me nos exercícios físicos e por aí adiante.

Nos testes, por exemplo, eu tirava negativas atrás de negativas. Pura e simplesmente eu não estudava, nem sequer me sentia em condições mentais de estudar. Havia matérias, de resto, pelas quais eu não tinha o menor interesse. Leis, normas E regulamentos, por exemplo, com a linguagem árida e burocrática que lhes era própria, eram matérias deste tipo, que me davam vontade de vomitar. Outras matérias eram tão fáceis e tão primárias, que eu pensava: «Estes gajos só podem estar a gozar connosco. Julgarão eles que nós somos burros?» Outras matérias, ainda, estavam ultrapassadíssimas; estudá-las era a mais completa perda de tempo.

Por exemplo, tínhamos que estudar o rádio de campanha AN/GRC-9, um antepassado do rádio AN/PRC-10, que por si só já era uma peça de museu. Ambos ainda funcionavam a válvulas. Na guerra colonial já estava generalizado o uso do TR-28, que era um rádio de campanha transistorizado. Enfim, que nós estudássemos o AN/PRC-10, ainda se poderia compreender, agora o outro…


Um dos manuais utilizados no Curso de Oficiais Milicianos em Mafra. A maior parte destes manuais parecia ter sido escrita para semianalfabetos e não para universitários, que os soldados-cadetes de facto eram.

Decididamente, eu não tinha motivação nenhuma para estudar e as matérias não me interessavam absolutamente para nada. Em resultado, eu ia colecionando notas negativas, o que me levava a passar os fins de semana em Mafra, de castigo. Isto não me incomodou muito porque, como era verão, eu ia até à praia da Ericeira espairecer e esquecia aquela merda toda.

O meu instrutor, o tal alferes Lourenço, começou a multiplicar os avisos dirigidos à minha pessoa, à medida que o tempo ia passando, dizendo-me: «O sr. Ribeiro não estuda nada. O sr. Ribeiro anda a brincar com isto e ainda vai acabar mal. Ou passa a estudar e tira positivas nos testes, ou eu vou ser obrigado a chumbá-lo e o sr. Ribeiro vai para sargento. Ai vai, vai! Ou eu não me chame Lourenço!» E eu continuava sem estudar.

Foi só quase no fim da instrução que eu me dei verdadeiramente conta da situação em que me encontrava. Nos testes, eu quase só tinha negativas e agora era tarde demais para corrigir a situação. A avaliação da minha pessoa por parte do instrutor, no que respeitava a motivação e força de vontade, devia ser negativíssima também.

A única disciplina em que eu tinha uma boa nota, e que era mesmo muito boa, era o tiro. Apesar da minha falta de visão estereoscópica, por causa de um estrabismo de origem traumática adquirido na primeira infância, eu conseguia acertar quase sempre no centro dos alvos. Não me lembro da nota final que tive no tiro; só sei que ela foi muito alta e correspondeu à classificação de "atirador especial".

Em face deste balanço predominantemente negativo, só me restava a possibilidade de fazer um esforço suplementar nas provas físicas finais, dando tudo por tudo para ter uma nota tão positiva quanto possível, de modo a que eu pudesse vir a ser ofIcial e não sargento.

Como já disse atrás, ao longo do 2º ciclo eu não tinha feito esforço nenhum nos exercícios físicos. Valendo-me do meu aspeto franzino e magricelas, eu fingia que não aguentava o esforço exigido nos exercícios e punha-me de fora. Por exemplo, em vez de fazer todas as flexões de braços que o alferes queria, eu só fazia meia dúzia e fingia-me muito cansado, caindo para o lado. Nos crosses, eu chegava a meio e desistia, fingindo estar estourado; durante aqueles três meses, nunca corri um cross até ao fim. Resultado: eu encontrava-me num estado físico pouco consentâneo com o esforço que  teria que fazer nas provas físicas finais para ter positiva.

Custou-me muito, mesmo muito, conseguir boas notas nos exercícios físicos. Mas obtive alguns êxitos notáveis. Nas flexões abdominais, sobretudo, tive vinte valores; fiz as sessenta ou oitenta flexões abdominais (já não me lembro ao certo de quantas eram) necessárias para conseguir a nota máxima. Na pista de obstáculos tive uma nota um bocado mais fraca, mas mesmo assim muito positiva também. E nas outras provas fui sempre tendo notas igualmente positivas, umas mais altas, outras mais baixas. Até que chegou a última prova, que era o cross, que por si só valia tanto como
as outras provas físicas todas juntas. Esta eu não podia deixar de fazer até ao fim, nem que chegasse à meta de gatas!

O cross final consistia em correr de Mafra até  Sobreiro e voltar. Sobreiro é uma povoação situada a meio caminho entre Mafra e a Ericeira. É no Sobreiro que fica a Casa-Museu de José Franco, onde existe um modelo de aldeia saloia em miniatura, todo feito de barro, que o falecido oleiro criou com as suas próprias mãos e que atrai inúmeros visitantes. Naquele tempo, José Franco ainda era um ilustre desconhecido, que ainda não tinha criado a sua aldeia de barro, e o Sobreiro era uma povoação igual a muitas outras existentes na região saloia.

Eu tive uma enorme dificuldade em fazer o cross, por causa da falta de treino. Por mais do que uma vez, senti as pernas fraquejar. Mas com grande esforço consegui manter o ritmo da passada, sempre igual do princípio ao fim, de tal maneira que cheguei a Mafra em segundo lugar!
— O quê?! O sr. Ribeiro fez o cross todo?! E chegou em segundo lugar?! — exclamou
o Lourenço, que estava junto à meta, quando me viu chegar. — Então eu estava cheio de pena do sr. Ribeiro, porque julgava que era tão fraco que não conseguia completar um cross, e agora completa um e chega em segundo  lugar?! Nem sequer veio no meio do pelotão; chegou logo em segundo ?! Quer dizer que o sr. Ribeiro andou a fingir este tempo todo?! Andou a gozar comigo, foi?! O sr. Ribeiro vai pagá-las! Se há coisa que eu não tolero é que façam pouco de mim! O sr. Ribeiro não vai esperar pela demora! Na semana de campo vamos ajustar contas! Vai ver como
elas lhe mordem! O sr. Ribeiro vai arrepender-se de ter nascido!

Ao longo dos dias seguintes, o Lourenço repetia-me:
— O sr. Ribeiro não pense que eu me esqueço do que se passou no cross! Eu nunca esqueço uma ofensa! E o sr. Ribeiro ofendeu-me! Eu estava cheio de pena de si e afinal o sr. Ribeiro andava a gozar-me.  Na semana de campo o sr. Ribeiro vai pagá-las todas juntas, vai, vai! Não admito que me gozem! Vai pagar com língua de palmo!

 (Continua: O meu curso de oficiais milicianos, pp. 17-26)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG]

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19483: Histórias com mu(o)ral ao fundo (1): "Não vamos incomodar o senhor Lino por causa de um preto" (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535, Zemba e Ponte do Zádi, 1972/74)






Angola, província do Uíge.Era quase duas meses o tamanho da Guiné. 




Cortesia de Wikipédia.


Histórias com mu(o)ral ao fundo (1) > "Não vamos incomodar o senhor Lino por causa de um preto"


por Fernando de Sousa Ribeiro 
 

[Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Esta história é verdadeira, os nomes é que são fictícios. Não nos compete julgar ninguém, muito menos os nossos camaradas de armas, aqui cabe-nos apenas o papel de contar histórias, de preferência com mu(o)ral ao fundo. A revisão e fixação de texto, bem como o título da história e a escolha do nome da série é da responsabilidade do editor LG. Esta é, aiás, a primeira história da série. Esperemos que outros autores apareçam.

O Fernando de Sousa Ribeiro foi alf mil da CCAÇ 3535 (Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74; é licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto; vive no Porto; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande desde 11/11/2018, sentando à nossa sombra do nosso poilão nº lugar nº 780.]



Muitos dos camaradas do meu batalhão, talvez não soubessem ao certo onde é que ficavam a Ponte do Zádi e o Béu [, em Angola, na província do Uíge, no extremo norte, fazendo fronteira com a norte e a leste com  República Democrática do Congo]. É natural, pois nunca lá devem ter ido. Pois bem. O Béu ficava a algumas dezenas de quilómetros a leste de Maquela e era onde estava a sede da CCAÇ 3537. A estrada (de terra, claro) que ligava Maquela do Zombo ao Béu passava pela Ponte do Zádi, que era a sede da minha CCAÇ 3535. A Ponte do Zádi, portanto, ficava entre Maquela e o Béu.


O alf mil Fernando de Sousa Ribeiro
O comandante da minha companhia gostava de ir todos os sábados à noite a Maquela [, sede da CCAÇ 3536, da CCS e do comando do batalhão] divertir-se um pouco. Quem ficava a "tomar conta" do quartel era, por isso, um alferes. Várias vezes fui eu mesmo. 

E vem a propósito contar aqui um episódio ocorrido num desses sábados à noite no Zádi...

Num dos tais sábados à noite, parou à porta da messe de oficiais do Zádi um jipe, onde vinha sozinho o capitão Alvim, que também tinha ido a Maquela. Achei estranho que ele viesse sozinho, sem escolta. Mais estranho achei o estado em que ele se encontrava quando saiu do jipe. Completamente alterado e embriagado, como eu nunca o tinha visto antes, o Alvim avançou cambaleante e dirigiu-se-me, atropelando as palavras umas nas outras:

- Ó Ribeiro, deixe-me entrar para descansar um bocado... Filhos da puta! Estou completamente fora de mim... Que grandes filhos da puta! Não estou em condições de continuar a viagem até ao Béu... Eu devia mas era desertar! Preciso urgentemente de descansar... Mas que filhos da puta!

Fiquei completamente parvo com o estado em que o capitão Alvim se encontrava e com as palavras aparentemente desconchavadas que dizia. O Alvim, que era um homem sempre tão sereno, tão imperturbável, naquele estado... O que teria acontecido? 


Convidei-o a entrar na messe e a sentar-se. Servi-lhe já não sei o quê, disse-lhe para se descontrair e, quando ele ficou um pouco mais calmo, perguntei-lhe o que foi que aconteceu. O Alvim contou-me então o que tinha presenciado em Maquela.

Vou tentar reproduzir de forma clara e ordenada o que ele  me contou de forma confusa.

Já era de noite, quando alguém entrou na messe de oficiais de Maquela para chamar o médico. Disse que tinha dado entrada no hospital da vila um homem muito ferido, que precisava de ser visto urgentemente. O alf mil médico  Branco levantou-se e seguiu para o hospital. Quando entrou e viu o ferido, disse em voz baixa:

- Chicotadas...

O homem tinha as costas todas retalhadas, em carne viva! O Branco perguntou em seguida, em voz mais alta, o que tinha acontecido. Responderam-lhe que o homem era um trabalhador de uma fazenda do Lino, que estava a cortar uma árvore lá na fazenda e que a árvore lhe caiu em cima. Comentou o Branco:

- A cortar uma árvore à noite?... Ainda por cima num sábado?! Além do mais, uma árvore não faz ferimentos assim, como estes! O que este homem foi, foi chicoteado!

E acrescentou:

- Este homem precisa de ser evacuado imediatamente para Luanda. Eu não tenho meios aqui para tratar feridos com esta gravidade. Ele tem de ser evacuado imediatamente, senão morre-me nas mãos. Assim como está, ele não chega vivo até amanhã de manhã!

O comandante do nosso batalhão, quando foi informado da necessidade de evacuar para Luanda um ferido civil muito grave, porque tinha sido chicoteado quase até à morte, ficou muito preocupado. Comentou:

- Como é que vamos conseguir a evacuação de um homem para Luanda a esta hora? Aqui em Maquela não há aviões e, mesmo se houvesse, o piloto recusar-se-ia a voar de noite até Luanda. E com razão. Um voo noturno é muito arriscado.

Como era imperioso evacuar o homem, o comandante resolveu entrar em contacto com uma companhia de táxis aéreos que havia em São Salvador, a qual tinha pelo menos um avião permanentemente na pista. Esperava levar uma nega, como de facto levou.

- Ó senhor coronel - disseram-lhe de São Salvador. - Nós não temos condições para fazer voos noturnos até Luanda. Os nossos aviões não têm meios para fazer esses voos. O senhor coronel não leve a mal, mas não é por falta de vontade nossa. É mesmo impossível voar de noite até Luanda. Acredite. Só a Força Aérea é que pode fazer voos desses. Mais ninguém.

O coronel Figueiredo agradeceu, desligou e comentou:

- Ora, ora, a Força Aérea... A Força Aérea só evacua militares, não evacua civis! E agora, o que vamos fazer?

Como não havia mais nenhuma alternativa, o comandante resolveu entrar em contacto com o Aeródromo Base do Negage, da Força Aérea, esperando receber uma firme resposta negativa.

- Daqui fala o coronel Figueiredo,  do Exército, comandante do Batalhão de Caçadores que está em Maquela do Zombo - identificou-se através do rádio. - Preciso de falar pessoalmente com o comandante da base ou quem o substitua, com a máxima urgência.

Responderam-lhe do Negage:

- O comandante da base não está. Como é sábado à noite, ele encontra-se ausente...
- Não interessa! Chame o oficial mais graduado que estiver aí a comandar a base neste momento! É muito urgente! - insistiu o Figueiredo.

Quando o substituto do comandante da base chegou ao rádio, o coronel contou-lhe que havia em Maquela um civil gravemente ferido, que precisava de ser evacuado com a máxima urgência para Luanda. A resposta foi a que ele esperava:


- O senhor sabe muito bem que nós não evacuamos civis, só militares - disse o aviador. - Além disso, não temos aviões capazes de fazer um tal voo até Luanda, a não ser aviões grandes, como os Nord-Atlas, que são aviões de transporte de tropas. Ora nós não vamos mobilizar um Nord-Atlas de propósito, só para transportar uma pessoa!
- Mas é um caso excecional, urgentíssimo! - insistiu o comandante do batalhão.

- Lamento muito, mas não podemos. O senhor sabe muito bem isso.

O coronel Figueiredo teve então uma ideia.

- Ouça lá! - chamou, antes que o outro desligasse o rádio. - Não está nas funções da Força Aérea a prestação de assistência às populações?

- Está, claro que está - respondeu o aviador. - Isso cai no âmbito da "psico"...

- Então pronto! - exclamou o coronel. - O homem é negro, é da população local... Pode ser evacuado!

- O senhor é terrível! Não desiste!

- Não desisto, não - respondeu o Figueiredo. 


- Está um homem a morrer e eu não vou desistir enquanto ele não for evacuado.

- Está bem, pronto, a gente evacua o homem e não se fala mais nisso, acabou! - cedeu finalmente o outro. - Mas é a primeira e última vez! Que não se volte a repetir!

- Espero que não, espero que não...

- Então fica assim: nós vamos entrar imediatamente em contacto com o nosso pessoal que está no aeródromo de manobra aí em Maquela, para que faça a iluminação da pista, e vamos já mandar um Nord-Atlas para aí.

O trabalhador ferido acabou finalmente por ser evacuado para Luanda, num avião Nord-Atlas.

De volta ao centro da vila, o comandante afirmou que o incidente ocorrido com o trabalhador tinha sido tão grave, que ia participar o caso à polícia, para que investigasse o que aconteceu. Um civil branco, que estava presente e que o ouviu, opôs-se firmemente à ideia, dizendo:

- Não vamos agora incomodar o senhor Lino por causa de um preto...

Perante a oposição manifestada pelo civil, o comandante desistiu da participação à polícia. O capitão Alvim disse-me que provavelmente tinha sido porque o Figueiredo temia ser prejudicado na sua carreira militar. O Lino era o homem mais rico de Maquela e podia ter conhecimentos suficientemente influentes, que pudessem prejudicá-lo junto das altas chefias militares em Luanda.

O capitão Alvim, por seu lado, que tinha asssistido a todos estes acontecimentos pessoalmente, sentiu-se profundamente revoltado com o sucedido e começou a emborcar whiskies atrás de whiskies. A dado momento levantou-se desvairado, entrou no seu jipe e arrancou sozinho a caminho do Béu, sem esperar pela escolta que o tinha acompanhado. Durante todo o tempo, dizia sem parar:

- Filhos da puta! Grandes filhos da puta! Quase mataram um homem à chicotada! E é para defender estes filhos da puta que eu estou aqui! Eu devia mas era desertar! "Não vamos incomodar o senhor Lino por causa de um preto", diz o gajo... Um preto é um homem, porra! Mas que grandes filhos da puta!

Era isto mesmo o que ele dizia quando chegou à Ponte do Zádi e foi isto mesmo o que ele repetiu, inúmeras vezes, enquanto me contou o sucedido.


Fernando de Sousa Ribeiro

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19478: (In)citações (126): o facto de ter havido alguém, como o Ramiro Elias da Silva, a ter a ideia de um convívio do batalhão em Angola, por volta de 1980, à semelhança dos que fazemos em Portugal, é altamente significativo do espírito que animou os seus militares, o que muito me orgulha (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Zemba e Ponte de Zadi, 1972/74)




Angola > Dembos > Zemba > CCAÇ 3535 / BCAÇ 3830 (1972/74 ) > O aquartelamento de Zemba


Angola > Maquela do Zombo  > Ponte de Zádi > CCAÇ 3535 / BCAÇ 3830 (1972/74 ) > O aquartelamento de Ponte de Zádi


Fotos (e legendas): © Jorge Madureira (2014) [,ex-fur mil mec, CCAÇ 3535, Zemba e Ponte de Zádi, 1972/74]. Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] (com a devida vénia...)


Comentário do nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74), com data de 2 do corrente (*):




1. Quem ler isto poderá perguntar-se como é que eu sei o que se passou com os angolanos da companhia (pelo menos com os que eram do Huambo) depois do fim da comissão. 

Eu explico. Aí por volta de 1986 ou 1987, apareceu num convívio do meu batalhão, cá em Portugal, um angolano que tinha sido do meu pelotão: o Ramiro Elias da Silva. Embora fosse natural de Benguela, o Ramiro casou-se com uma rapariga do Huambo (antiga Nova Lisboa) e foi viver para lá. 

Em 1984, a situação militar no Huambo estava a tornar-se insuportável. A cidade estava em poder da UNITA, mas sofria cada vez mais com os bombardeamentos da artilharia do MPLA, até que toda a população da cidade fugiu. O Ramiro fugiu também. A cidade do Huambo tornou-se uma cidade-fantasma, à mercê dos encarniçados combates entre a UNITA e o MPLA, com sul-africanos e cubanos à mistura. Em 1986, o Ramiro veio para Portugal, e logo a seguir compareceu a alguns convívios do batalhão.

Tudo o que eu sei sobre o que aconteceu aos meus antigos companheiros angolanos depois do fim da comissão, portanto, devo-o ao Ramiro. Foi ele que me contou o que se passou entre o Domingos Jonas e o Mário Sessendje. Contou-me ainda que, por volta de 1980, houve uma tentativa de organizar em Luanda um convívio entre os angolanos do batalhão. Este convívio não se pôde realizar, porque a guerra estava no seu apogeu, o paradeiro de muitos camaradas tinha-se perdido, as comunicações por terra estavam completamente cortadas (as deslocações entre as cidades apenas se faziam por avião, o que era caríssimo), em Luanda praticamente não havia restaurantes e os géneros alimentícios estavam fortemente racionados. 

Mas o facto de ter havido alguém que tenha tido a ideia de um convívio do batalhão em Angola, à semelhança dos que fazemos em Portugal, é altamente significativo do espírito que animou os seus militares, o que muito me orgulha.

Após ter participado em alguns convívios do batalhão cá em Portugal, o Ramiro Elias da Silva deixou de comparecer. Provavelmente terá regressado a Angola. Se ainda estiver vivo (espero que esteja), desejo-lhe as maiores felicidades, que bem merece.


2. A minha companhia, CCAÇ 3535, esteve em Zemba, na região dos Dembos (um ano), e em Ponte do Rio Zádi, muito perto da fronteira norte de Angola (o outro ano). 

Na dependência da companhia do Zádi havia dois destacamentos, ambos situados a cerca de duzentos metros da linha de fronteira, chamados Banza Sosso e Malele. A palavra Zádi (em quicongo Nzadi) significa "rio" e não faz muito sentido, por isso, falar em Ponte do Rio Zádi, porque isso significaria falar em "Ponte do Rio Rio"... Nós chamávamos ao quartel "Ponte do Zádi" ou apenas "Zádi". O Zádi era único rio digno desse nome existente em toda a região de Maquela do Zombo, com crocodilos e tudo.

O comandante do meu batalhão, BCAÇ 3880, era Armando Duarte de Azevedo (**), que teve o posto de tenente-coronel durante o primeiro ano de comissão (em Zemba, portanto), mas foi promovido a coronel no início do segundo ano. Mesmo quando já tinha a patente de coronel, ele manteve-se no comando do batalhão até ao fim.

Um abraço,

Fernando de Sousa Ribeiro

__________


(**)  Passou pela Guiné, esteve a comandar o BCAÇ 2845:

(...) "O BCAÇ 2845 foi mobilizado pelo GACA 2. Partiu para a Guiné em 1/5/1868 e regressou a 3/4/1970. Esteve em Teixeira Pinto e teve três comandantes: Ten Cor Inf José Martiniano Moreno Gonçalves; Ten Cor Inf Aristides Américo de Araújo Pinheiro (...) ; e Ten Cor Inf Armando Duarte de Azevedo." (...) 

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19462: (In)citações (125): Por histórias de amizade e camaradagem como as do Jonas (que combateu depois pelo MPLA e morreu no Huambo em 1982) e do Sessendje (que se alistou na UNITA), eu posso orgulhar-me de ter pertencido à CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 (Zemba, Angola, 1972/74), que promoveu a amizade e não o ódio (Fernando de Sousa Ribeiro)


Foto nº 1 A > À frente do pelotão o furriel miliciano Luís Macedo; o sexto militar que se vê à direita do Macedo, e que é o mais pequeno de todos, era  o Domingos Jonas, que tinha como alcunha "Miúdo", um soldado natural do Huambo [Nova Lisboa]


Foto nº 1 B > O resto do pelotão, em formatura


Angola > Zemba > CCAÇ 3535 (1972/74) > O meu  grupo de combate que comandei, quase todo, em Zemba.


Foto (e legenda): © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do nosso editor Luís Graça , enviada em 12/1/2019 ao Fernando de Sousa Ribeiro [, foto à esquerda]


Fernando: vejo que tens montes de recordações boas de Angola e dos teus/nossos camaradas angolanos... E mais: tens um livro inédito... À espera de quê ?

Podes partilhá-lo no todo ou em parte no nosso blogue...Pelo menos, chegas a um público mais vasto... E há cada cada vez mais gente interessada em conhecer a história, a geografia e a cultura de Angola... e nomeadamente a segunda metade do sec. XX, terrível para o povo angolano...Quando fui lá pela primeira vez, em 2003, havia dezenas e dezenas, talvez centenas, de mutilados de guerra nas ruas... 400 mil deficientes diziam-me, terá sido o balanço da chamada 2ª guerra da independência...

Pediram-me para lá voltar em 2019, não sei se já terei forças... Angola, hoje, não é para todos!

Gostava de poder publicar o texto que escreveste, com as nevessárias adaptações, não vou exibir o vídeo, até porque não falamos da "atualidade política" dos nossos países... Por uma questão de coerência, autenticidade, economia de meios, etc. Seria uma "caixinha de Pandora"... E eu só me interessa o "material vivido", as experiências, as emoções, as recordações do tempo da guerra colonial...

2. Resposta do Fernando de Sousa Ribeiro, com data de  13/01/2019, 17:56



 Caro Luís,

Tenho a maior relutância em publicar o meu livro por várias razões. 


Uma prende-se com o facto de eu fazer nele acusações claras e diretas a diversas pessoas e organismos, com nomes, descrições, fotografias, etc. Eu quis que as minhas memórias fossem tão factuais quanto possível, mas não pretendo atingir ninguém em concreto, apesar dos pormenores que dou. O que pretendo é mostrar como aconteceram certos factos que não deviam ter acontecido, independentemente de quem os protagonizou. Assim, só no futuro é que o meu livro poderá interessar (ou não) a alguém, mas não enquanto eu estiver vivo.

Por outro lado, publicar um livro de memórias da guerra colonial é o mesmo que deitar dinheiro fora, a menos que eu me chame António Lobo Antunes ou Carlos Vale Ferraz. Já existem dezenas e dezenas de livros publicados sobre a guerra, com os mais diversos pontos de vista, mas cada um deles só tem vendido meia-dúzia de exemplares. 


O meu seria mais um livro a acrescentar ao monte. Lembro o caso do primeiro capitão que a minha companhia teve e que também publicou um livro. Dois ou três anos depois de o livro ter sido lançado no mercado, o autor foi contactado pela editora (a D. Quixote), informando-o que os exemplares não vendidos estavam a ocupar um espaço precioso nos armazéns e perguntando-lhe se pretendia ficar com eles ou se preferia que fossem destruídos. Ele quis ficar com eles e agora tem a casa atulhada de livros!

A guerra colonial em Angola foi uma coisa terrível, é verdade que sim, mas ela foi uma brincadeira de crianças comparada com a guerra civil que se seguiu, a qual atingiu um número incomparavelmente maior de pessoas, durou muitíssimo mais tempo e teve consequências infinitamente mais devastadoras. Ainda agora há pessoas que são mortas ou ficam mutiladas por acionarem minas terrestres, apesar dos milhões e milhões de minas que já foram levantados.

A propósito, refiro-te um facto que talvez desconheças e que se prende com o destino que foi dado aos angolanos que combateram nas fileiras das Forças Armadas Portuguesas. Muito ao contrário do que se terá passado na Guiné, em Angola todos os movimentos procuraram atrair para si os ex-militares que os tinham combatido na guerra colonial, para aproveitarem a sua experiência de combate na guerra civil. 


Os meus maravilhosos camaradas angolanos também foram aliciados para aderirem a este ou àquele movimento, depois de terem passado à disponibilidade. Uns aderiram ao MPLA, outros à UNITA, nenhum aderiu à FNLA e a maior parte deles preferiu manter-se na condição civil, sem que fossem molestados por esse facto.

Mando-te em anexo uma fotografia que mostra o grupo de combate que comandei, quase todo, em Zemba. À frente da "formatura" vê-se o heróico furriel Luís Macedo, que é português (Foto nº 1A]. O sexto militar que se vê à direita do Macedo, e que é o mais pequeno de todos, era um soldado natural do Huambo chamado Domingos Jonas, que tinha como alcunha "Miúdo". A valentia deste soldado era inversamente proporcional à sua estatura. Ele e o furriel Macedo foram precisamente os dois militares mais valentes do grupo. 


Depois de ter concluído o serviço militar no Exército Português, no fim de agosto de 1974, o soldado Jonas alistou-se nas FAPLA, o braço armado do MPLA, pelas quais combateu até que morreu perto do Huambo em 1982. A notícia da morte do soldado Jonas foi dada por um outro antigo soldado da minha companhia, mas não do meu grupo, chamado Mário Sessendje, que aderiu à UNITA. 

Agora repara: o Jonas e o Mário conheceram-se na minha companhia, tornaram-se amigos e a sua amizade prevaleceu sobre o ódio que opôs os movimentos a que aderiram, o MPLA e a UNITA. Mesmo combatendo em campos opostos, o Jonas e o Mário mantiveram-se em contacto e conservaram a sua amizade intacta, até que a morte de um deles os separou. 

Só por isso, acho que me posso orgulhar de ter pertencido à Companhia de Caçadores 3535, que promoveu a amizade e não o ódio.


Um abraço


Fernando de Sousa Ribeiro
membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780]

2. Nota do editor:

A CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974. Esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes. Pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado  pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu).

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Nota do editor:

Último poste da série >  1 de fevereiro de  2019 > Guiné 61/74 - P19458: (In)citações (124): A Angola e os angolanos que eu conheci e que ficaram no meu coração: os nossos camaradas angolanos eram filhos do povo, do admirável e sofrido povo de Angola; (...) para a esmagadora maioria deles, foi só quando passaram a fazer parte da nossa companhia que eles puderam, pela primeira vez nas suas vidas, relacionar-se com brancos de igual para igual, olhos nos olhos, ombro com ombro, de homem para homem ... (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535, 1972/74)