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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9483: As Nossas Tropas - Quem foi quem (8): António Sousa Teles (1922-2006), ten cor art, comandante do BCAÇ 4514/72 (Cadique, 1973/74)

Poste resultante de vários comentários e trocas de mensages entre o Luís Gonçalves Vaz e o Paulo Santiago:

1. Luís Gonçalves Vaz [, foto à esquerda]:

Acabei de ler a confirmação de quem era o comandante de Cadique, pelo Paulo Santiago, como tal peço aos editores para colocar no poste da "estória do meu mano Pedro" a foto deste oficial [, à direita]... Em sua homenagem, pode ser?


Este distinto oficial, pelos vistos, era admirado e muito respeitado pelos seus soldados. Era um oficial "para toda a obra", tanto quanto sei, muito dinâmico e competente. Pelos vistos não era "fora do comum" um BCaç ser comandado por um ten cor de artilharia, segundo o camarigo Paulo Santiago.

Eu já recortei uma fotografia, que identifica o sr. tenente-coronel Sousa Teles, o de Artilharia.  isso não há duvidas, pois está bem nítido nas costas da fotografia, e pelo punho do meu falecido pai.   Pelo Eduardo Campos já tinmha sabido que "com a chegada em 20/06/73 da CSS/BCAÇ 4514, comandada pelo Ten Cor Sousa Teles, ficou o mesmo a partir dessa data, como comandante em Cadique". Tinha dúvidas era sobre a sua arma...

O Batalhão de Caçadores n.º 4514/72 foi obilizado no Regimento de Infantaria n.º 15, de Tomar, embarcou em Lisboa a 3 de Abril de 1973, chegando a Bissau a 9 do mesmo mês. Teve como Comandante o tenente-coronel António Manuel Dias Falagueiro de Sousa Teles e Segundo Comandante o major Eduardo César Franco Bélico Velasco, que viria a ser substituído no cargo pelo capitão de infantaria Jorge Xavier de Vasconcelos Mendes Belo, que era o Oficial de Informações e Operações/Adjunto da unidade.

Infelizmente, também acabei de saber que o tenente-coronel António Manuel Dias Falagueiro de Sousa Teles, que foi comandante de Cadique, já faleceu, em Lisboa, em 14/9/2006. Nascera, também em Lisboa,  em 4/10/1922, era pois do mesmo ano do meu falecido pai, Henrique Gonçalves Vaz. Tem dois filhos, o João, que é da minha idade e uma filha, Maria da Graça, que é professora. Dados da GENEALL.


2. Paulo Santiago [, foto à esquerda]

 Conheci os dois, ambos  ainda majores, e irmãos, um de Infantaria, 2º comandante do BCAÇ de Galomaro,o outro,de Artilharia, 2º comandante do BART de Bambadinca (batalhão a que pertencia o Mexia)[ BART 3873, Bambadinca, 1971/74].


Privei mais com o Sousa Teles,  infante. Com o artilheiro, pouco tempo, mas deu para perceber que eram duas personalidades muito diferentes, acho que já o escrevi tempos atrás. Verifiquei,através de um link do Luís Vaz,que o comandante de Cadique era o artilheiro, e pelo pouco que conheci,deveria ser um bom comandante.
Hoje tive a certeza que o ten-cor Sousa Teles, comandante do batalhão de Cadique,era de facto o artilheiro, António Sousa Teles, sendo que o irmão, de Infantaria, tinha como primeiro nome Arnaldo. 

Pela   foto publicada,tinha quase a certeza, que se tratava do Artilheiro. Os rostos são parecidos, mas o porte militar não engana,o Infante Sousa Teles era um civil mal fardado,se é que me entendes.

Quanto ao facto de um BCaç er comandado por um ten cor de Artilharia, nada de estranho, estive num BArt comandado por um ten cor de Infantaria (*).

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Nota do editor:

Último poste do blogue > 12 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9034: As Nossas Tropas - Quem foi quem (7): João Polidoro Monteiro, Ten-Cor Inf (cmdt do BCAÇ 2861, Bissorã, 1970, e BART 2917, Bambadinca, 1971/72) (Armando Pires / David Guimarães / Paulo Santiago)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9437: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (7): Andava-se de sintex, com motor de 50 cavalos, no Cumbijã, nas barbas do PAIGC... e fazia-se esqui aquático no Cacine...



Carta de Cacine (Escala 1/25000) > Posição relativa de Cadique, Jemberém e Cacine, em pleno Cantanhez




Carta de Bedanda (Escala 1/25000) > Posição relativa de Cufar, Bedanda e Caboxanque


1. A propósito da aventura do Pedro Vaz, irmão do Luís Vaz, que durante as férias do Natal de 1973 acompanhou o pai até Cufar, de avião,  e depois foi até Cadique, de sintex... e que terá dormido, na noite seguinte [ou noutra ocasião, ele não pode garantir], numa LFG no Rio Cacine, onde viu fuzileiros a fazer esqui aquático, tivemos curiosidade em espreitar, de novo, o diário do António Graça de Abreu (AGA) (*)... 

No diário não há vestígios da família Vaz, nem em Cufar nem em Cadique. Também não se fazia esqui, lá em baixo, pelo menos no Cumbijã... Em contrapartida, o sintex era um transporte popular, rápido e relativamente segundo. Tanto servia para o Coronel do CAOP1 ir a Cadique dar apoio moral às NT na véspera de Natal ou para evacuar feridos até a Cufar, como servia para a malta ir a Caboxanque destilar a adrenalina e beber um copo... 

O Pedro Vaz  (nem o irmão Luís) tem a certeza sobre a data exata em que ocorreu a aventura... Pode ter sido antes ou depois do Natal ou até mesmo nos primeiros dias do novo ano. Para o Pedro ("que tem uma memória seletiva", diz o mano mais novo) foi seguramente nas férias de Natal de 1973, não nas férias da Páscoa de 1974 (A Páscoa nesse ano foi a 14 de abril). 

De 13 a 21 de dezembro,  o AGA está em Bissau, onde foi ao dentista. Se o CEM do CTIG, o cor cav Henrique Gonçalves Vaz,  esteve lá pode ter sido nesta altura. E não terá lá ido fazer turismo, que aquilo não era propriamente um destino paradisíaco como Bubaque.  Ao ler o diário do AGA,  sabe-se que se estava a preparar, para a época natalícia,  a grande Op Estrela Telúrica, envolvendo o batalhão de comandos africanos (3 companhias), a 38ª CCmds, os fuzileiros (de Cacine), a tropa de Cadique... Houve grande movimentação de meios aéreos, conforme se pode ler diário do AGA (Vd. Cufar, 26 de dezembro de 1973).


Cufar era a Bissalanca do sul... E as NT lá andavam também de sintex (pequenos barcos de fibra com potentes motores de 50 cavalos)... E lá estava o CAOP1... O António Graça de Abreu esteve lá de Junho de 1973 até Abril de 1974... Ele próprio foi a Cadique de sintex com o comandante dele, coronel, no dia 24 de dezembro... Mais uma razão para se pensar que esta aventura do filho do CEM do CTIG é perfeitamente verosímil...  

Selecionei uma série de excertos do do diário do AGA, com referências ao sintex, usado no Cumbijã, ligando Cufar aos vários aquartelamentos (Cadique, Caboxanque)... Reproduzimos aqui, mais uma vez, com, a devida vénia ao autor e ao editor...(LG).


(...)  Cufar, 26 de Junho de 1973

Adapto-me, moldo-me a um novo quotidiano ingrato. Podia ser pior, pode sempre ser pior.
Estou no sul da Guiné em zona de muita guerra. Os guerrilheiros continuam a dispor de boas hipóteses para vir a Cufar chatear quem cá vive, de resto, eles também não moram longe. De momento creio que têm mais com que se preocupar mas qualquer dia voltam cá, de certeza.


Em Cufar não existe propriamente um quartel, as instalações militares são pouco mais do que uma dezena de pequenas casas separadas umas das outras, vivemos praticamente misturados com a população o que é uma vantagem em caso de flagelação. Os africanos, das etnias balanta, beafada, mandinga, fula coexistem com a tropa, nem muito, nem pouco amigos. São frequentes pequenos sarilhos entre as NT e as gentes da terra mas sem gravidade, cada um trata de si.

Ao contrário do que acontecia em Canchungo e Mansoa, a tropa especial, comandos, pára-quedistas e fuzileiros não vivem aqui connosco. Sinto a sua falta, não estou tão seguro. Até Novembro [de 1973] a guerrilha não deve aumentar, estamos na época das chuvas.

Em termos de ligações com o resto da Guiné, Cufar está muito isolada. Existe a estrada asfaltada para Catió, nove quilómetros que só se fazem com escolta, e a estrada para o porto grande no rio Cumbijã, dois quilómetros por onde nos deslocamos à vontade. Depois, há umas picadas em péssimo estado que conduzem à terra de ninguém, ou melhor aos lugares habitados pelos guerrilheiros. Quem se mete por aí? Ninguém. De Cufar a Bissau serão uns cento e trinta quilómetros, em linha recta, mas não há estradas. 

É pelo rio e pela ramificação dos seus afluentes que Cufar se liga aos novos aquartelamentos da região. Existem os sintex, pequenos barcos de fibra sintética – em Cafal e Cafine, os fuzileiros têm os zebros -, com motores de 50 cavalos que sobem e descem os rios a boa velocidade com grupos NT, sempre armados, garantindo a comunicação entre todos nós. 

Temos ainda a pista de aviação com os aviões e os hélis. Hoje chegou uma DO, um Nordatlas – o avião é conhecido entre a tropa por Horácio -  e dois helicópteros. Vêm de Bissau e para lá regressam. Trazem víveres, correio, pessoal, pequenas cargas. Os helicópteros redistribuem os géneros pelos aquartelamentos da região, frangos e peixe congelado, carne, batata, farinha, couves frescas.

Se os homens do PAIGC voltam a mandar um avião ou héli abaixo, estamos todos lixados porque suspende-se outra vez o apoio aéreo. Mas agora já não é fácil que tal aconteça. Os pilotos conhecem as características dos mísseis terra-ar, os Strela ou Sa 7 que são eficazes entre os 200 e os 2.000 metros de altitude, e tomam as devidas precauções. As DOs e os hélis voam muito baixo, a rapar, rente às árvores, às bolanhas e aos rios, e os Nordatlas ou os DC 3 voam muito alto, com tectos de mais de 2.500 metros. Descem e sobem sobre a pista de Cufar, onde montamos sempre segurança, voando em círculos ou espirais para evitar sobrevoar as florestas, as zonas IN. Em quarenta minutos de voo, uma pessoa põe-se em Bissau. É seguro? Até hoje tem sido.

As LDG, Lanchas de Desembarque Grandes, são o outro meio para se chegar e partir. As viagens são mais seguras do que de avião, mas incómodas e demoradas. Há uma semana atrás, experimentei o luxo da Alfange, uma das três LDG que navegam nos mares e rios da Guiné. O navio vinha carregado com tudo, víveres, cimento e muitos outros materiais de construção, um obus, munições, três unimogs e dois jipes do CAOP 1 atravancados com os nossos haveres e cerca de 150 pessoas, não apenas soldados, também população negra que aproveita a boleia das NT e se desloca utilizando os meios possíveis. 

Largámos de Bissau às três da tarde em direcção ao mar, chegámos a estar aí a uns quinze quilómetros da costa. Vim com os condutores auto que já enfrentaram a morte, estiveram em Guidage quando morreu o Viegas que também teria viajado connosco para Cufar se não tivesse morrido. Arranjámos o jantar que comemos em cima da minha mesa-secretária, composto por pão, atum, cebola e vinho. Por volta das dez da noite, a LDG ancorou no mar à espera da maré da manhã seguinte para então poder subir os vinte e cinco quilómetros do rio Cumbijã até Cufar, com paragem nos aquartelamentos da margem para descarregar materiais e pessoas. Dormimos na Alfange em condições péssimas, em cima de mercadorias, no chão de ferro do barco, onde calhava e havia espaço. Nós trazíamos as nossas viaturas e colchões e eu lá me safei porque coloquei um colchão dentro da cabina de um Unimog e consegui dormitar. Para azar de toda a gente, às duas da manhã começou a chover em grande, as pessoas não tinham onde se abrigar, foi o encharcanço total. Também me molhei porque os Unimog não têm janelas e a lona grossa que cobre as viaturas não é impermeável. Mas já esqueci. 


De manhã, foi a subida do rio Cumbijã passando por Cafine, Cafal e Cadique, lugares críticos de guerra. Mal se entrou no rio, fomos avisados de que a LDG ia disparar sobre as margens para testar as metralhadoras pesadas. O armamento, colocado a bombordo e estibordo, sossega quem viaja no barco e põe os guerrilheiros em sentido. Eles não possuem armas semelhantes e é raríssimo flagelarem uma LDG. Existe a hipótese de minas aquáticas, já rebentaram algumas, mas não têm feito mossa nos navios maiores, de aço compacto e pesadíssimo.


(...) Cufar, 5 de Julho de 1973

À tarde, evacuámos no Nordatlas para o hospital de Bissau um soldado de Cobumba que pisou uma mina e ficou sem uma perna, esfarrapado, retalhado até aos testículos. O médico diz que ele não se salva. Veio pelo rio Cumbijã de sintex até Cufar e perdeu muito sangue. Fui à pista e todo o seu corpo era ligaduras e sangue. A minha passividade a olhar para o moço, os olhos parados. Não sou o mesmo António que desembarcou na Guiné há um ano atrás.

(...) Cufar, 1 de Setembro de 1973

Sábado tombou mais um Fiat sobre o Morés, ao lado de Mansoa. Fala-se de avaria técnica, o avião entrou em perda e pumba! Também se fala em mísseis do PAIGC. O piloto teve sorte, ejectou-se e na altura passavam por perto dois helicópteros que viram o pára-quedas no ar e o foram buscar ao solo.


Também sábado ao entardecer, tivemos em Cufar as consequências da guerra. Às quatro e meia da tarde, um Unimog pisou uma mina anticarro em Cobumba. Os seis pobres desgraçados que iam na viatura ficaram feridos, três em estado grave. De Cufar, pedimos a evacuação para Bissau, vinham dois hélis a caminho mas voltaram para trás devido ao mau tempo. Um Nordatlas que seguia de Bafatá para Bissau foi desviado para aqui e chegou já de noite. Entretanto, os feridos de Cobumba, a perder muito sangue, vieram para Cufar nos sintex, descendo o rio Cumbijã. A pista de aviação foi iluminada pelo usual processo artesanal, as garrafas de cerveja cheias com petróleo e as mechas acesas distribuídas lateralmente ao longo da pista. Com os feridos seguiu para Bissau o furriel enfermeiro que fez de capelão quando daquela brincadeira no desembarque dos periquitos há quinze dias atrás. Os feridos de Cobumba estiveram na sala de operações do hospital de Bissau até às quatro horas da manhã, não morreu nenhum. Tanto esforço, mas salvaram-se as vidas.


(...) Cufar, 19 de Novembro de 1973

A guerra, os efeitos da guerra. África pobre, quente, medos, suores, sangue e tudo o mais que as palavras não dizem, mas sentimos e vivemos.


Sábado chega a notícia de que na foz do Cumbijã, a uns trinta quilómetros de Cufar, caíra uma DO, ou melhor fizera uma aterragem forçada no tarrafo da margem do rio. Avançaram logo meios para se recuperarem os tripulantes, o piloto, e duas enfermeiras pára-quedistas. Tiveram muita sorte, três horas depois os fuzileiros de Cafine descobriram-nos no lodo do tarrafo.[++] Embora a avioneta tivesse caído numa região libertada, os guerrilheiros não apareceram e os fuzileiros trouxeram o pessoal aqui para Cufar nos zebros, ainda meio assustados e cobertos de lama. Dois helicópteros levaram-nos depois para Bissau. A DO não foi abatida, tratou-se mesmo de acidente.


Ontem foi dia de ataque a Cadique, o aquartelamento a sul mais perto de Cufar. Às seis e meia da tarde, estavam a jantar, mal tiveram tempo para fugir para as valas e levaram com canhão sem recuo, RPG e morteirada. Houve um pobre soldado que corria para um abrigo e foi atingido por um estilhaço de canhão sem recuo que lhe perfurou o crâneo. Contaram-se mais meia dúzia de feridos. Era já noite quando os sintex trouxeram o ferido grave para Cufar e aqui aguardámos duas longas horas por um avião que transportou o rapaz para o Hospital Militar de Bissau. Como de costume, iluminámos a pista com as garrafas acesas e os faróis das viaturas. Quando o avião desceu, já o soldado estava a oxigénio, a caminhar para a morte. Na madrugada de hoje, no hospital, não resistiu. Tinha perdido massa encefálica, o estilhaço apanhara-lhe o cérebro.

Podia ter acontecido a qualquer um de nós, um destes dias posso ser eu.

(...) Cufar, 24 de Dezembro de 1973

Tempo de Natal. Paz na terra aos homens de boa vontade, na Guiné em guerra.


Fui a Cadique com o meu coronel, de sintex, dez quilómetros descendo o rio Cumbijã. Os pobres de Cadique, que tiveram dois mortos na terça-feira passada, estão a entrar na engrenagem da loucura. Já houve soldados que se recusaram a sair para o mato. Outros, ou os mesmos, na confusão de uma flagelação, atiraram com uma granada de mão ao tenente-coronel comandante do batalhão que não o atingiu por pura sorte. O tenente-coronel não tem culpa do sofrimento e da morte dos seus homens, limita-se a cumprir ordens, não pode pegar no batalhão e marchar sobre Bissau, ou sobre Lisboa. De resto, entre os muitos oficiais do QP que tenho conhecido, este tenente-coronel é um dos homens mais humanos e sensíveis ao sofrimento dos seus subordinados.

A zona de Cadique é terrível, os guerrilheiros deixaram construir a estrada para Jemberém e agora passam o tempo a dinamitá-la e a emboscar as NT. Sabotaram os sete pontões do trajecto, abriram enormes brechas no asfalto, em vários sítios. Para arranjar a estrada, a tropa de Cadique avança com camionetas carregadas de terra e troncos de árvore. Depois dos primeiros dois quilómetros, começam a ser flagelados. Quem quer caminhar para a morte?

Os dias estão tão bonitos! Frescos, serenos, com pouca humidade, manhãs de sol que abrem os braços para os homens, o fumo a sair das tabancas e a espalhar-se sobre os campos, como em Portugal. A natureza não tem culpa da insensatez, do desvairo da espécie humana.


(...) Cufar, 26 de Dezembro de 1973

Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estomagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente e presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.

 Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressámos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz. Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de Estrela Telúrica. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a Estrela Telúrica prolongar-se-á por mais uma semana.

Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38ª., fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade. Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a embrulhar, seis feridos graves entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata, com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros… No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.

Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DO, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os helis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato. Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um heli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.

Sem a aviação, este tipo de operações era impossível. Durante estes dias os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.

Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos embrulhanços, das flagelações. É impressionante o potencial de fogo, de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.

Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação Estrela Telúrica. Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.

(...) Cufar, 4 de Janeiro de 1974

Ontem de manhã acordei com mais um tremendo embrulhanço, os rebentamentos uns atrás dos outros. Era a estrada Cadique-Jemberém. Ainda na cama pensei: “Lá estão mais pobres desgraçados a morrer!” Era verdade, dois soldados mortos do batalhão de Cadique, os corpos destroçados. Vieram para Cufar e, como de costume, aqui foram metidos nas urnas junto com um fuzileiro que esperava por caixão há dois dias e já cheirava mal. O cangalheiro vestiu o fato de madeira e chumbo aos três. Já ninguém estranha muito, estamos habituados, a vida continua. Mas porque diabo é que o rodopio dos mortos e feridos passa sempre por Cufar?...

Tenho constatado que em muitos de nós existe um prazer sádico, mórbido em ver mortos e feridos. Faço parte do grupo. Há qualquer coisa de macabro no ser humano, talvez uma silenciosa nostalgia da morte que nos aguarda a todos. Ontem, ao fim da tarde, quando o cangalheiro metia os três rapazes nos caixões, ao ar livre, no largo no centro de Cufar, juntaram-se à volta umas dezenas de mirones, brancos e negros. Um furriel pegou numa G 3 e ameaçou disparar sobre os curiosos se não desaparecessem imediatamente. Assisti a tudo, parado, insensível como um boneco de gesso, a cinquenta metros de distância.
(...) Cufar, 13 de Janeiro de 1974

No domingo fui a Caboxanque com o Dias da Silva, o capitão da 4740, outro alferes e mais cinco soldados em dois sintex, os botes com que se viaja por estes rios. Íamos bem armados, eu levei uma espingarda Kalashnikov (um dos soldados que nos acompanhou chama-lhe Calaxmicose!) emprestada pelo capitão e senti-me um verdadeiro guerrilheiro. É fácil atacar os nossos botes que sobem e descem o rio Cumbijã. O tarrafo das margens é alto e basta os combatentes do PAIGC esconderem-se na vegetação e dispararem umas dezenas de carregadores das espingardas ou uns RPG para provocarem baixas nas NT. Raramente tal acontece. Não sei porquê, não entendo porque é que o inimigo, às vezes, é tão nosso amigo. Em paz, fomos a Caboxanque, em paz regressámos.



O objectivo da curta viagem até ao aquartelamento nosso vizinho foi simplesmente sair de Cufar, a ideia do passeio foi ver outras pessoas, beber uns copos com o pessoal amigo de Caboxanque. Dei uma volta pela povoação, que até é maior do que Cufar, e tudo tão pobre! Comprovei como são miseráveis as tabancas, deploráveis as instalações dos nossos militares.

(...) Cufar, 7 de Fevereiro de 1974

Em alguns aquartelamentos aqui do sul também existem carências de todo o tipo, mas de natureza diferente das deste pobre povo guineense. No Relatório Mensal Janeiro 1974 do nosso CAOP 1, no ponto 4. b. Logística, os meus chefes referem, em diferentes destacamentos da nossa zona operacional, falta de medicamentos, falta de mesas e bancos para os refeitórios, falta de víveres frescos e de arroz para distribuir pela população, falta de armamento, falta de peças de substituição para muitas das viaturas auto-metralhadoras Fox e White que têm dezenas de anos e estão na sua maioria avariadas, falta de geradores eléctricos, de moto-serras, de electro-bombas, de motores para os barcos sintex.


(...) Cufar, 5 de Março de 1974

Guerra, só guerra. O PAIGC não pára, desencadeou mais uma ofensiva. Flagelaram uma série de aquartelamentos e lançaram-se em força sobre Jemberém. Com o abandono do aquartelamento de Guileje em meados do ano passado, foi-lhes possível abrir uma estrada desde a Guiné-Conacri até às florestas situadas entre Bedanda e Jemberém. Vêm com as viaturas até bem dentro do território carregados com toneladas de material de guerra. Jemberém tem estado dias e dias debaixo de fogo. Encontram-se lá duas companhias, mais de trezentos homens, ainda há soldados a viver em tendas e tudo aquilo está muito destruído. 


Por incrível que pareça, com tanta flagelação não registaram ainda nenhum morto, só bastantes feridos. Cavaram valas profundas e praticamente vivem nesses buracos. A tropa portuguesa já pensou em abandonar Jemberém por várias vezes, mas a situação é tão má, tão má que não têm por onde sair. Jemberém fica encravada na região do Cantanhez, voltada para sul, para o rio Cacine e agora só se chega lá com os barcos pequenos, os zebros e os sintex, em viagens pelo rio nada seguras a partir de Cacine. Foi construída uma boa estrada asfaltada entre Cadique e Jemberém mas os guerrilheiros tornaram-na intransitável ao dinamitarem vários troços. Quando as NT avançam a pé, o IN monta emboscadas e é cada vez mais extenso o rol de mortos e feridos.

Jemberém encontra-se numa situação crítica mas nestas últimas semanas não registaram nenhum morto. Nós,  em Cufar, estamos bem melhor mas há dias, com o inferno das minas, dos incêndios nos batelões carregados de gasolina contámos dezanove mortos, em meia dúzia de horas.

(...) Cufar, 7 de Março de 1974

Neste exacto momento em Portugal, há milhões de pessoas especadas diante do televisor à espera do Festival da Canção. Aqui na guerra do sul da Guiné, acabou de morrer um homem, outro está moribundo. Oiço o roncar dos motores do Nordatlas que, com a pista iluminada acabou de aterrar e vai levar gente ferida para Bissau.

Lá longe, satisfeitos, os portugueses deliciam-se com melodias, músicas capazes de enternecer uma mula ou um burro. Neste pequeno lugar do mundo, em África, um homem retalhado tem o corpo a arfar nos estertores da morte. Vim há pouco da enfermaria, vi tudo, continuo a ver demais.

Foi em Caboxanque, os nossos vizinhos do outro lado do rio Cumbijã. O aquartelamento não costumava ser muito flagelado embora se situe numa zona praticamente controlada pelos guerrilheiros. Neste momento Caboxanque tem duas companhias, a velhinha que terminou a comissão e está de partida no merecido regresso a Portugal, e a de periquitos acabados de chegar. Por isso, para assustar os piras, foram atacados quatro vezes em doze dias. 


As flagelações sucessivas também se integram na ofensiva geral sobre os nossos aquartelamentos desencadeada pelo IN. Hoje acertaram na tropa de Caboxanque e nem sequer foi um grande ataque, dez minutos apenas com vinte disparos de canhão sem recuo. Estou farto de ouvir, e até de sofrer, ataques piores. Mas a tropa de Caboxanque teve azar, uma granada de canhão caiu numa vala e rebentou lá dentro. Resultado, um morto, um soldado cozinheiro da companhia velhinha cortado ao meio, a cabeça voou para um lado, o tronco e as pernas caíram para outro, mais um ferido gravíssimo com os intestinos de fora e vários feridos ligeiros.

Na noite de luar, os barcos sintex trouxeram os feridos para Cufar. Neste momento o Nordatlas levanta de voo levando os homens de Caboxanque para o hospital de Bissau. No rádio, no Festival da Canção, o Artur Garcia canta a “Senhora Dona da Boina”. (...)


Fotos: © António Graça de Abreu (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Nota do editor:


Último poste da série > 27 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9406: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (6): Bissau, 23 de Junho de 1972, e 25 de Março de 1974: dois estados de espírito diferentes...

Guiné 63/74 - P9432: Estórias avulsas (59): Uma aventura, nas férias de Natal de 1973, aos 17 anos... em Cufar, Rio Cumbijã e Cadique (Pedro Gonçalves Vaz)

1. Mensagem do Luís Gonçalves Vaz, com data de 31 de janeiro último:



Assunto - Estória de mais um filho do último CEM do CTIG  Coronel Henrique Gonçalves Vaz

(...) Consegui autorização para publicar a 'estória' do meu irmão José Pedro, que se encontra no Brasil como Administrador de uma Empresa Portuguesa (é engenheiro mecânico de formação), sobre um dos diversos episódios que viveu na Guiné, nos anos de 1973/74, aquando das visitas que fazia à família, já que se encontrava na Escola Naval, em Lisboa a estudar. Enviou-ma hoje do Brasil. Podem Publicar. (...)



2. História no Ultramar com José Pedro Gonçalves Vaz [, na foto acima, aos 17 anos, na ilha de Bubaque, Bijagós]

Bissau-Cufar-Cadique
Data: Dezembro de 1973
 

Sempre tive algum receio de voar, para não dizer medo (que fica muito mal para quem hoje viaja tanto de avião como eu), mas nos meus 17 anos eu queria muito era experimentar o helicóptero.


Estava eu na Guiné a passar umas férias de Natal, em 1973, com os meus pais, quando soube que o meu pai, que era na altura, o Chefe do Estado-Maior do CTIG, coronel Henrique Gonçalves Vaz, ia visitar uns aquartelamentos no Sul da Guiné. Julgo que era Cufar e Cadique ! O plano de visitas dessa semana ao “mato” do meu pai, era esse. O que me lembro melhor é que soube que iria de helicóptero, oh que maravilha!… 


Passei essa semana a pedir ao meu pai que me levasse nessa saída. Para que se perceba, eu apesar de ter apenas 17 anos, era já um jovem cadete da Escola Naval, como tal seria “normal” ir-me habituando ao Teatro de Operações da Guiné, no entanto não era esse o meu pensamento, o que eu queria era “ter acção” de helicóptero!


Depois de muito insistir, ele lá concordou em me levar. No dia D, pelo mês de Dezembro de 1973 (nas minhas férias de Natal), entregou-me, logo ao início da manhã, um camuflado (e uma G3) e disse: 
- Veste-o, e prepara-te bem já que vais ver o que te espera logo que saíres da Escola Naval! 


Eu, todo contente, lá o vesti. O tamanho, era de um tipo muito mais pequeno do que eu! Ficava com metade das pernas e dos braços “descamuflados”! Tenho pena de não ter fotografias dessa minha experiência marcial. Depois das habituais recomendações, que incluíam o uso da G3 em caso de ataque e a responsabilidade do grupo, lá nos dirigimos para o local de embarque. 




Último CEM do CTIG, nesta fotografia ainda major Henrique Gonçalves Vaz, não no rio Cumbijã na Guiné, mas no rio Chiloango,  em Cabinda (1964 ) com apoio dos Fuzileiros. Como era de sua “tradição”, visitava todos os aquartelamentos, para onde realizava operações como oficial do Estado-Maior. Cadique não foi esquecido, como muitos outros aquartelamentos no Teatro de operações da Guiné, nos anos de 1973 e de 1974.


Oh… grande desilusão! Afinal, por qualquer razão logística de que não me lembro (talvez a necessidade do helicóptero nesse dia para evacuar feridos nalguma zona do TO), a viagem não ia ser realizada de helicóptero mas sim por outros meios de transporte. Não me lembro bem até chegar ao rio Cumbijã, mas o que era costume (informações de ex-combatentes) era ter ido de avião até Cufar (que fica entre Catió e Bedanda) e depois, e disso lembro-me muito bem, fomos de sintex até Cadique, na outra margem do Cumbijã. 


Chegados ao rio tivemos direito a um pequeno briefing para iniciarmos a parte mais crítica, visitar Cadique pelo rio Cumbijã. O medo e a adrenalina estavam em níveis crescentes, e finalmente recebi instruções e lá me instalei com o restante pessoal, deitado no fundo da embarcação com a G3 apoiada na borda a apontar para a minha margem. Saímos do porto grande no rio Cumbijã em direcção ao aquartelamento de Cadique seguindo rio abaixo até que chegámos ao nosso destino, no lado oposto do rio relativamente ao ponto de partida. 


Nesse percurso lembro-me muito bem da tensão na viagem, sempre à espera de sentir uma saraivada de balas disparadas de alguma das margens com o tarrafo bastante alto, mas eu estava bem “mentalizado” para uma reacção imediata da nossa parte. Hoje penso que tivemos muita sorte em não termos sido atacados. Naquela altura, terei ficado um pouco desiludido já que, nessa idade, somos todos um pouco loucos. 


Do que lembro hoje, a viagem decorreu sem qualquer incidente, com uma duração que me pareceu um eternidade, mas não foi, já que cada barco sintex tinha um valente motor de 50 cavalos, com uma velocidade de cerca de 18 nós e o percurso não teria mais que meia dúzia de km. A “escolta” do CEM/CTIG, não ultrapassaria dois sintex com uma dúzia de militares bem equipados e com sentido de missão. 


Chegámos, finalmente, a Cadique e tive mais uma desilusão, o nosso destino não passava de um aquartelamento cercado de arame farpado com meia dúzia de “tabancas” em redor. O Comandante, o Tenente-coronel Sousa Teles (1) teve um meeting com o meu pai, do qual recordo apenas a discussão sobre o número de rádios e outros equipamentos que o Comando do CTIG poderia disponibilizar para esse aquartelamento. A minha impressão actual é que a visita do meu pai, o CEM/CTIG, coronel Henrique Vaz, teria também o objetivo de expressar um apoio aos militares que ali combatiam em condições adversas já que, pelo que sei hoje, Cadique era frequentemente fustigada por ataques do PAIGC. Depois de tratarem dos “negócios” militares, convidou-nos então a dar uma volta de jeep pelo exterior do quartel.




Recorte de uma imagem do mapa da Guiné (escala 1/ 500 mil), onde é possível ver a localização do campo de aviação em Cufar, bem como o itinerário entre o porto novo de Cufar e Cadique.


Mais uma surpresa, naquele fim de mundo havia uma estrada asfaltada [, Cadique-Jemberém], no meio de uma selva cerrada, que, não acredito, levasse a lugar algum!


Ao fim de algum tempo (pouco…), encontrámos duas mulheres negras que caminhavam na nossa direcção. O Comandante parou o jeep e iniciou uma conversa com as mulheres numa linguagem para mim completamente estranha. Subiu uns pontos na minha consideração, pois falava perfeitamente o dialecto local… Impressionante! Depois de se despedir das mulheres, virou-se para o meu pai e disse:
- Meu coronel os “turras” estão aqui perto pelo que, sem escolta (só íamos os três, mas eu levava a minha G3…), não é aconselhável ir mais além. O meu pai concordou com o oficial conhecedor da “realidade” local e voltámos para trás.





Cadique, em 2008, integrado na área do Parque Nacional de Cantanhez. (Fotografia gentilmente cedida para este artigo pelo ex-combatente Eduardo Campos, membro da nossa Tabanca Grande, ex-)





Do regresso, nada me lembro, não me impressionou comparado com o que tinha acabado de viver naquele local recôndito, bonito mas perigoso.

Nunca me esqueci de duas coisas desta estória, e que foram importantes na minha vida: (i) o dilema que o meu falecido pai, coronel Henrique Gonçalves Vaz, deve ter tido para me autorizar a ir com ele; (ii) e o profissionalismo daquele Comandante do mato. 


Um ano após este episódio cheguei à conclusão que a minha vocação não era a carreira militar e mudei de ramo.


Curitiba [, Brasil,] 30 de Janeiro de 2012

José Pedro Beleza Gonçalves Vaz
(filho do último CEM do CTIG na Guiné)


Fotos: © Luís Gonçalves Vaz (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Nota do irmão do autor, LGV:(1) Informação gentilmente dada pelo camarigo Eduardo Campos (ex-1.º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74)

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Nota do editor:


Último poste da série > 6 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9004: Estórias avulsas (117): Posto avançado ou vala comum? (Carlos Filipe) 

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9287: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (2): As duas passagens de ano: Canchungo, 1972/73, e Cufar, 1973/74

1.  Do nosso camarada e amigo, António Graça de Abreu (AGA), publica-se mais dois excertos do seu Diário da Guiné, 1972/74, a partir do ficheiro em word que serviu de base à publicação do livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp). 

Trata-se de duas "passagens" de fim de ano/ano novo: a de 1972/73 (em Teixeira Pinto ou Canchungo, na região do Cacheu, a noroeste) e a de 1973/74 (em Cufar, na região de Tombali, no sul). O estado de espírito de um homem, ao entrar no ano da peluda, já não era o mesmo do periquito, desembarcado em Bissau, 18 meses antes, em 24/6/1972 (*)... O AGA era Alf Mil, Secretariado, Serviço de Pessoal, do CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74).

Ao AGA e e à sua família lusochinesa só posso desejar os melhores votos para 2012: saúde, paz, sabedoria, esperança... Aqui, do sossego do antigo do Convento de Nossa Sra. do Carmo, do Séc. XVII, hoje hotel rural, Freixinho, Sernancelhe, em pleno coração das Terras do Demo, com um Alfa Bravo do amigo e camarada LG.

(...) Canchungo, 27 de Dezembro de 1972

Ontem vi um filme de Claude Chabrol, A mulher infiel. Deve ser obra menor dentro da cinematografia do francês, mas que diferença das habituais pepineiras que costumam colorir o écran do Cine-Canchungo!

Estou a ler Os Maias, a velocidade de cruzeiro. Grande Eça! Que prosa, o encadeamento dos personagens e que gente, o Carlos, o Ega, a Maria Eduarda, o velho Afonso da Maia! Foi preciso vir para a Guiné para ler Os Maias! Já está aqui ao lado A Ilustre Casa de Ramires, à minha espera. Depois de Eça de Queirós quem será capaz de escrever melhor, de cinzelar tão bem a língua portuguesa e de lhe misturar diamantes e pérolas? 



Canchungo, 28 de Dezembro de 1972 

Ainda os livros. Os Maias já estão, que delícia!

Leio também Textes et Chansons de Jacques Prévert e Boris Vian, uma antologia emprestada pelo Cravinho, o meu novo companheiro de quarto. De Prévert:

La vie est une cerise, 

La mort est un noyau,
L’amour un cerisier.


Leio ainda os Contos do Autómato, outra vez Moravia. Ler, pensar, questionar, aprender. Livros não me faltam. Agora veio a oferta do Movimento Nacional Feminino aos soldados de Portugal, oito obras para cada um. Havia gente que não estava interessada em ler, então, por vias travessas, acabei por arrepanhar dezasseis livros. Alguns não têm interesse, outros vão-me ajudar a fluir melhor por dentro do tempo da Guiné. Tenho a Eugénia Grandet, do Balzac, A Queda do Albert Camus, a Aparição do Virgílio Ferreira, Fernão Lopes, Régio, uma Antologia de Poesia Brasileira, até tenho Cervantes.

Refugio-me nos livros. O padre António Vieira dizia que os livros são como os cães, os melhores amigos do homem. 


Canchungo, 1 de Janeiro de 1973

Ontem à noite houve corrida de São Silvestre organizada pela Acção Psicológica do CAOP 1. Às nove e meia da noite, tínhamos noventa figurões equipados, com postura de grandes atletas, a dar três voltas à avenida principal. Fui assistir na companhia do alferes Paiva, da 38ª de Comandos [1]. 


Mas ele tinha outra ideia, sub-reptícia, fixa. Quase em segredo, queria-me mostrar a sua namorada (?) libanesa, uma mulher assustadora, solteira, com quase cinquenta anos convencida que tem vinte e dois, e que atrai os homens. Vive no centro da vila, na praça Dr. Oliveira Salazar com a família de comerciantes vindos do Líbano. Como é que esta gente veio parar à Guiné? A senhora pinta o cabelo  - uma tenebrosa cabeleira loira,  -  pinta os olhos, pinta os lábios, pinta as unhas, pinta tudo. Usa uns brincos de folheta vindos de Salamanca, Espanha – diz ela, – tem a cara envelhecida coberta de cremes e pós. É um mamarracho digno de exposição. O Paiva, pouco mais de vinte anos garbosos e valentes, conduziu-me até casa dela, queria que eu a conhecesse. A mulher recebeu-nos como se tivessem chegado dois príncipes da Pérsia. Cumprimentei-a e vim educadamente embora. O alferes Paiva, Comando, capaz de todos os gestos heróicos, ficou lá a desmaquilhar suavemente a dama libanesa. 

À meia-noite, em casa do capitão Pancada abriram-se umas garrafinhas de Magos e de champanhe. O Pancada e o alferes Gamelas têm consigo as esposas, simpáticas, bonitas, ambas de nome Helena. Estavam felizes, dançavam enlaçados, beijavam-se. Na sala havia mais quatro homens casados com as mulheres em Portugal. Olhávamos uns para os outros, mastigávamos em seco, sorumbáticos, tristes. Éramos o alferes Teixeira, um excelente rapaz do Batalhão 3863, o alferes Tomé, meu companheiro de quarto, o furriel Rodrigues também do Batalhão, e eu. 

Depois do “réveillon chez Pancada”, o Tomé foi ainda beber com os alferes Comandos – não sei se o Paiva já voltara do seu sortilégio libanês, – e regressou às tantas ao quarto, a gatinhar, a gritar a frase do costume “Tirem-me daqui, tirem-me daqui!” 

Canchungo, 3 de Janeiro de 1973

A 3 de Janeiro de 1974, ainda nesta guerra. Mais trezentos e sessenta e cinco dias a preencher sei lá com quê. Haverá dias pavorosos, outros mais lassos e pacatos, enfim o tempo manda, temos de passar por dentro dele. 


De hoje a um ano, eu pequeno, ignorado, na Guiné mascarada, massacrada, quero continuar lúcido, a lutar por mim e contra mim - contra os meus defeitos, - a não combater ninguém. Mais velho, mais gasto, mais cansado. (...)

[1] Para a história da 38º. Companhia de Comandos, ver Resenha Histórico Militar das Campanhas de África (1961-1974), Lisboa, Estado Maior do Exército, 1988 a 2002, 7º vol., tomo II, pag. 536.

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(...) Cufar, 28 de Dezembro de 1973 

Retratos dos dias, sementes em chão calcinado, rios cinzentos e sangue vermelho a escorrer pelas margens.

Eram sete da manhã quando os Fiats picaram sobre Cufar e foram largar as bombas aqui ao lado, a uns quinze quilómetros, sobre a aldeia de Santa Susana, controlada pelos guerrilheiros. Depois, durante quase todo o dia foram chegando a Cufar homens, mulheres e crianças estilhaçadas pela guerra, os muitos feridos do bombardeamento sobre Santa Susana. 

Ao alvorecer, bombardeámos aquela pobre gente, depois, a partir do fim da manhã, tudo fizemos para os tratar, para lhes salvar as vidas. 

Os portugueses têm bom coração. 

Cufar, 30 de Dezembro de 1973 

Inevitável, a guerra actua sobre mim. Tenho dormido horrivelmente mal, mas quem é que consegue dormir bem com quase vinte e quatro horas de rebentamentos constantes, de todo o tipo, à sua volta? Ando mais nervoso, descontrolo-me e grito com mais facilidade, eu que por norma sou uma pessoa tão calma! Pois, o coração bate mais perto da boca, mexe-me com a sensibilidade. Faço um esforço, procuro o auto-domínio e a serenidade. Tem de ser, não me posso deixar destruir. 

Cufar, 31 de Dezembro de 1973 

Aquela história da irmã pequenina da Maria, a minha lavadeira, fez com que eu arranjasse uma grande amiga. A miúda, em língua mandinga, chama-se Nandi Camará e adoptou o nome português de Mariana. Afinal tem só sete anos, se eu tivesse oito ou nove anos queria-a para minha namorada. É uma menina bonita, tem uns olhos grandes de veludo, redondos como a lua cheia. Quando fui a Bissau tratar dos dentes, a Nandi pediu-me para eu lhe trazer uma camisa. Comprei-lhe um vestidinho, um brinquedo e dois pratinhos de esmalte colorido com os respectivos talheres que lhe ofereci no dia de Natal. Reagiu com uma alegria que eu desconhecia numa criança, cantava modinhas que não entendi, dava saltos à roda de si própria. Nunca ninguém lhe oferecera um brinquedo. Trouxe também um saco cheio de balões e uns ursinhos de peluche para os outros miúdos da tabanca da Nandi. É fácil fazer felizes estas crianças de Cufar que vivem tanta guerra e nem uma escola têm para aprender a ler. 

Cufar, 1 de Janeiro de 1974 

Chegou o ano da “peluda”!

Entrei pelo réveillon dentro ao som de milhares de tiros e rajadas de G 3. 


O meu coronel [, comandante do CAOP1,] havia dado ordens ao capitão da companhia dos açoreanos e a toda a tropa de Cufar para que, ao chegar da meia-noite, ninguém disparasse um único tiro. Falou em dez dias de prisão para o energúmeno que tivesse a ousadia de pegar na espingarda e fizesse fogo. 

À meia-noite menos dez começou o fogachal. Os açoreanos [, da CCAÇ 4740,] saíram das suas tabancas às dezenas, armados, com as G 3 apontadas para o céu e vá de despejar carregadores após carregadores. Ao soar das doze badaladas – que ninguém ouviu até porque não soaram badaladas nenhumas, - tínhamos apenas o matraquear constante das armas ligeiras que quase levantavam Cufar do chão. Uma festa! Por todo o lado, havia tiros à solta. Os rapazes, bêbados, tontos de desvairo, não disparavam apenas para o ar. 1974 também é para eles o ano da “peluda” e quase se podiam ver balas cruzadas a rasar as nossas cabeças. Felizmente ninguém foi atingido. O meu coronel manteve-se quietinho no seu quarto, ninguém deu por ele. 

Se as bebedeiras são o pão nosso de cada dia, neste fim do ano foi demais. Eu também ando a beber mais do que devo, é fácil uma pessoa enfrascar-se e vou explicar como é, basta contabilizar a rotina do dia. Ao almoço, ao meio-dia, o pobre repasto é acompanhado com vinho, às quatro da tarde, por causa do calor, bebe-se uma cerveja, às sete, ao jantar, marcha mais meio litro de vinho, depois enfia-se um café e uma aguardente, às nove ou dez, há petisco, por exemplo umas chouriças assadas, bebem-se mais umas cervejas e no fim, para atestar, sorvem-se lentamente uns copos de whisky.

Chegou 1974. É a sequência irreversível dos dias. Em breve partirei, estes açoreanos regressarão igualmente a casa, outros rapazes oriundos dos quatro cantos de Portugal virão para a Guiné. Até quando?

Cufar, 4 de Janeiro de 1974 

Ontem de manhã acordei com mais um tremendo “embrulhanço”, os rebentamentos uns atrás dos outros. Era a estrada Cadique-Jemberém. Ainda na cama pensei: “Lá estão mais pobres desgraçados a morrer!” Era verdade, dois soldados mortos do batalhão de Cadique, os corpos destroçados (**). Vieram para Cufar e, como de costume, aqui foram metidos nas urnas junto com um fuzileiro que esperava por caixão há dois dias e já cheirava mal. O cangalheiro vestiu o fato de madeira e chumbo aos três. Já ninguém estranha muito, estamos habituados, a vida continua. Mas porque diabo é que o rodopio dos mortos e feridos passa sempre por Cufar?... 

Tenho constatado que em muitos de nós existe um prazer sádico, mórbido em ver mortos e feridos. Faço parte do grupo. Há qualquer coisa de macabro no ser humano, talvez uma silenciosa nostalgia da morte que nos aguarda a todos. 

Ontem, ao fim da tarde, quando o cangalheiro metia os três rapazes nos caixões, ao ar livre, no largo no centro de Cufar, juntaram-se à volta umas dezenas de mirones, brancos e negros. Um furriel pegou numa G 3 e ameaçou disparar sobre os curiosos se não desaparecessem imediatamente. Assisti a tudo, parado, insensível como um boneco de gesso, a cinquenta metros de distância. (...)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 24 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9262: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (1): O Natal de 1973, em Cufar, na véspera da Op Estrela Telúrica...

(**) Julgo que nesta altura (e até Fevereiro de 1974) estava em Cadique a madeirense CCAÇ 4942/72

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7836: (In)citações (26): A morte de Salifo Camará, rei dos nalus, e pai espiritual adoptivo do nosso amigo Pepito (Luís Graça)



Guiné-Bissau > Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana >  Título da foto: Morreu Salifo Camará, Rei dos Nalus; Data de Publicação: 30 de Janeiro de 2011; Data da foto: 22 de Janeiro de 2011; Legenda:

"Salifo Camará, rei dos Nalus, sábio, filósofo e combatente da independência da Guiné-Bissau, despediu-se desta vida no dia 21 de Janeiro de 2011, em Cadique, onde sempre viveu.


"Entrou para a História do povo de Cantanhez e fará parte para sempre da sua Memória e das Lendas que os djidius cantarão para os mais novos saberem da grandeza de um Homem por quem todos, nalus, balantas, tandas, fulas, djacancas e sossos tinham um profundo respeito e admiração.

"Antes da partida, pediu ao filho que se encontrava junto dele para telefonar para Bissau, para o filho que adoptara 30 anos antes e por quem se prendera por amizade, o qual lhe vinha regularmente pedir conselhos e ouvir as suas sábias palavras, a quem acompanhou na procura dos caminhos para o melhor desenvolvimento do reino que era seu.

"Pediu então para o deitarem na sua cama, despediu-se da família próxima e poucos minutos depois descansava tranquila e eternamente".

Foto (e legenda): AD - Acção para o Desenvolvimento (2011) (com a devida vénia...)


2. Comentário de L.G.: 

Esse filho adoptivo de Salifo Camará era(é), nem mais nem menos, o nosso amigo... Pepito. Quando esteve recentemente entre nós, em Lisboa, por ocasião do 96º aniversário da sua mãe, Clara Schwarz, o Pepito falou-me, com a discrição e distanciamento que são típicos nele (quando se trata falar da sua vida pesaoal ou de exteriorizar os seus sentimentos pessoais), da morte do Rei dos Nalus, a quem o ligavam laços de profunda amizade e mútua admiração... 

Não tive na altura a percepção da profundidade dessa amizade (e portanto, da dor pela perda que se sente, quando desaparece um grande amigo). Nem muito menos da sabedoria humana deste Rei dos Nalus que, pressentindo a chegada da sua hora, "liquida as suas contas com a vida e com o mundo", dando-nos assim um extraordinário exemplo da "arte de bem morrer"... Que dignidade, que humanidade!!!

Pepito, não te dei na devida altura os sentidos pêsames por esta perda. Faço-o agora, publicamente, depois de ver a "foto da semana" no sítio da tua ONG... Que os nalus, do Cantanhez, saibam continuar a trilhar os caminhos da sabedoria, da paz e do desenvolvimento sustentado, no seio da tua/nossa querida Guiné-Bissau, sem perda da sua memória colectiva e da sua rica identidade cultural. E que tu continues a ser amado e estimado por esses teus patrícios que tanto precisam de ti e da tua AD, os povos do Cantanhez, os nalus, mas também os balantas, os tandas, os fulas, os djacancas e os sossos.
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Nota de L.G.:

Último poste da série > 22 de Janeiro de 2011 Guiné 63/74 - P7652: (In)citações (28): Bemba di vida [O celeiro da vida], documentário sobre a biodiversidade e as áreas protegidas da Guiné-Bissau, produzido pelo IBAP (2009) (com a colaboração da AD - Acção para o Desenvolvimento)


segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7110: Parabéns a você (163): Eduardo Campos, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 4540 (Editores e Miguel & Giselda Pessoa)

Postal ilustrado:  Miguel Pessoa (2010).

Com direito a um lindíssmo e alusivo postal ilustrado que lhe foi dedicado pelos nossos Camaradas Miguel e Giselda Pessoa, completa hoje, dia 11 de Outubro de 2010, 60 anos o nosso camarada Eduardo Campos, que foi 1.º Cabo Trms da CCAÇ 4540, e andou pelo Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, entre 1972 e 1974.

Assim, ao Eduardo, que está connosco nesta Tabanca Grande desde 19 de Abril de 2008 e já nos demonstrou, em várias oportunidades, que é um bom e amigável Camarada, vimos apresentar neste blogue, os maiores e melhores votos de felicidades, alegria e muita saúde num dia que vai ser com certeza diferente e muito especial, junto da sua querida família e amigos.

Mais desejamos que esta data se repita por muitos e bons anos.

Eduardo Campos e o seu cunhado José Casimiro Carvalho (CCAV 8350,  “Piratas de Guileje”)
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Nota de M.R.:

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6896: Tabanca Grande (238): Joaquim Sabido, ex-Alf Mil da 3.ª CART/BART 6520/73 e CCAÇ 4641/72 (Guiné, 1974)

1. Mensagem de Joaquim Sabido (ex-Alf Mil Art, 3.ª Cart/Bart 6520/73 e CCaç 4641/72, Jemberém, Mansoa e Bissau, 1974), com data de 11 de Agosto de 2010:

Meus Caros Camaradas:

Aproximando-se o decurso de 36 anos após o meu regresso da Guiné, que se completará no próximo dia 25 ou 26 de Setembro, senti como que uma necessidade em ver, ler e saber mais alguma coisa relativamente aos ex-combatentes, designadamente, no que respeita a camaradas que comigo estiveram no CTIG, entre os dias 3 de Abril e 25 ou 26 de Setembro de 1974 e foi quando tomei conhecimento da existência e posterior contacto com este belo sítio, que em boa hora tiveram a ideia de fazer nascer e criar, com muito muito trabalho, estou certo. "Salta,,  Periquito" já estarão a dizer alguns Camaradas que tenham a paciência para ler esta minha mensagem.

Na verdade, assim aconteceu, contava então 21 anos de idade, pois completei os 22 anos lá na Guiné, concretamente no dia 3 de Agosto de 1974, quando me encontrava estacionado em Ilondé, suponho ser esta a grafia correcta, pois só agora, no decurso da leitura de quanto se relaciona com Jemberém, tive a oportunidade de constatar que, presentemente, se denominará Iemberém (?), para aqueles de nós que tivemos a (in)felicidade de por lá passar, será sempre, seguramente, Jemberém, sendo este o tema que, por ora, me impeliu - para além da imensa saudade desses tempos, a vir à presença dos distintos Camaradas desta Tabanca Grande.

Já agora, entendo ser de bom tom e minimamente exigível proceder à minha apresentação:

Sou o Camarada Joaquim Sabido, que já em 74 residia em Évora e assim ainda acontece, completei há poucos dias os 58 anos de idade. Contra a minha vontade e seguramente que contra a vontade da maioria, fizeram-nos embarcar e levaram-nos (no meu caso) num avião dos TAM [, Transportes Aéreos Militares, ] no dia 3 de Abril de 1974, com destino ao então administrativamente denominado Território Ultramarino da Guiné, tendo chegado ao aeroporto de Bissau cerca das 12 horas desse mesmo dia e aí, ao sair pela porta do avião, tendo sido logo acometido de um enorme sufoco, até me faltou a respiração ainda agora me recordo dessa sensação (no regresso foi pior, pois mandaram-me de barco, no Uíge, o que demorou muito mais tempo) e, de imediato, embarcámos para o quartel do Cumeré, como ocorreu com quase todos os que integraram o Exército, ou seja, os da "tropa macaca".

Do Cumeré, com o BART 6520/73, que formou em Penafiel, partimos para Bolama numa ou em duas Lanchas de Desembarque Grandes (LDG), não me recordo, sendo certo que, até há bem pouco tempo, sempre me recusei a pensar nisso, isto é, nesse período de tempo. Todavia, agora, vejam para o que me está a dar, isto só pode ser da idade.

Após completarmos a tal IAO, em Bolama, cidade de segui em directo a noite de 24 para 25 de Abril, pela radiotelefonia, naturalmente, as notícias que nos iam chegando através da BBC, já que, quando partimos, tínhamos perfeito conhecimento do que iria ocorrer, só desconhecíamos quando e a que horas, em Penafiel, à época, estava o Sr. Capitão de Artilharia Dinis de Almeida e, por outro lado, havíamos estado uns 6 meses na Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, onde tivemos oportunidade de contactar com muitos Srs. Capitães e Tenentes do Q.P., e, por isso, de algum modo fomos tendo conhecimento do estado da Nação, no que às Forças Armadas e também em matéria de Guerra Ultramarina dizia respeito.

De Bolama, seguiu o Batalhão 6520/73, para Cadique e, a 3.ª CArt desse Bart, à qual eu pertencia, comandando o 2.º pelotão, enquanto Alferes Miliciano de Artilharia, foi colocada em Jemberém, local onde, assim que lá chegámos, o PAIGC nos recebeu, dando-nos as boas vindas com um bombardeamento. Não sei nem queria saber de que armamento se tratou, sei que apenas queria era sair dali, durante os 2 meses em que lá permanecemos, ainda embrulhámos mais umas 7 ou 8 vezes, sendo que, nos ataques posteriores, já conseguíamos ir para a vala e responder com os 3 obuses 10,5 que lá se encontravam. Valeu-nos, aquando dos festejos de boas-vindas, a disponibilidade e o conhecimento do pessoal de uma CCaç (não sei quantos) composta por Camaradas Madeirenses que lá se encontravam há cerca de 6 meses (*).

Chegamos então à partida de Jemberém, que como já acima referi, é o motivo pelo qual venho à vossa presença.

Foi superiormente determinado que Jemberém seria o primeiro "buraco", digo, aquartelamento, a ser evacuado, então, aqui este vosso Camarada, que se encontrava a comandá-lo, com a concordância de outros Camaradas, resolvemos, com as cerca de 150 granadas de obus 10,5 que restavam, dispô-las pelo perímetro junto ao arame farpado, bem como os restantes explosivos que restavam e fizemos, então, a nossa despedida, rebentando com aquilo tudo, certamente que lá terá ficado uma cratera bem visível através dos satélites.

Nesta parte, não posso deixar de referir que tivemos a ajuda do Sr. (então 1.º Tenente Fuzileiro Naval) Benjamim [ Lopes de Abreu], um Senhor que teve a gentileza de me "adoptar" como seu amigo, mas que, infelizmente, devido a acidente de viação ocorrido há alguns anos, quando era o Comandante dos Fuzileiros, já não está entre nós, já que prematuramente nos deixou. (**)

Fomos os dois últimos militares das Forças Armadas Portuguesas a pisar o local onde se encontrava instalado o aquartelamento de Jemberém, e fomos ambos a carregar no detonador ao mesmo tempo, cada um de seu lado na caixa do "interruptor" que era em "tê". Em Gadamael Porto estremeceu tudo, e em Cacine parece que tinha ocorrido um sismo de grau bastante elevado, conforme me foi relatado por Camaradas que ali se encontravam. Em Cadique então, parece que foi uma coisa tremenda.

Por isso que, os Camaradas que por lá têm ido estranham ou não reconhecem o local e outros que têm vindo dizer que aquilo não era assim, etc..., estou certo de que não têm sido levados ao local onde se encontrava o aquartelamento e as seis ou sete habitações dos nativos que por lá estavam. Reparem, o memorial dos Galos do Cantanhez que por lá haviam estado, teve que ser reconstruído e colocado num outro local, vê-se nitidamente pelas fotografias publicadas que ali não se encontra há muito tempo. Tivemos o cuidado em não dispor explosivos junto aos memoriais, isso é certo, aquilo que pretendemos foi, no essencial, não deixar lá nada que se aproveitasse, não andámos a trocar galhardetes com o pessoal do PAIGC.

Isto não é uma crítica a ninguém, apenas refiro isto porque na minha perspectiva e no meu modo de ser e de estar, à época não dava para tal, pelo menos em razão da memória de quantos por lá tombaram, era impensável constituir qualquer relação de amizade com o pessoal do PAIGC. Se assim for entendido pelos Camaradas editores, dando-me luz verde para escrever mais alguma coisa, explanarei, quanto a esta matéria, como foi a minha relação que se pautou apenas sob o ponto de vista institucional, com o pessoal do PAIGC, com quem passei a contactar dia sim, dia não, em Bissau, isto porque era quando me encontrava a comandar a guarda ao Palácio do também já falecido Sr. Brigadeiro Carlos Fabião (igualmente, um grande Homem, na minha modesta opinião), e que por inerência de funções, quando o PAIGC, se instalou em Bissau, numa vivenda numa rua lateral ao Palácio com eles tinha uma reunião matinal, agora parece que é um briefing.

Anexo uma fotografia tirada no Jardim do Palácio, em dia de folga, pois estava o Camarada Alf Mil Brás, da 4641, de serviço nesse dia.

Assisti e vivi por dentro o complicado processo para desarmamento do Batalhão de Comandos Africanos, um grande abraço para o (então) Sr. Capitão da Força Aérea Faria Paulino, Ajudante de Campo do Sr. Brigadeiro, se ele ler este sítio. Ao que sei, encontra-se a residir e a trabalhar na Ilha da Madeira. Porque no sítio não consigo encontrar qualquer referência a outros Senhores que então lá conheci, aproveitava para, daqui enviar as minhas saudações e respeitosos cumprimentos aos seguintes Grandes Militares e Homens que, fizeram o favor de ser meus amigos, pelo menos nesse período de tempo e tanto quanto vou sabendo, pois vou sempre perguntando, encontram-se com saúde e recomendam-se:

(Com as patentes de então)

Sr. Comodoro Almeida Brandão, Comandante Naval da Guiné, Senhor que sempre que eu tinha fome e ia à messe da Marinha, tinha a gentileza de me convidar para a sua mesa, já que eu era uma visita, e me perguntou na primeira vez que lá me viu o porquê da minha presença naquela Messe, tendo desde logo compreendido que a fominha era mais que muita e desde então passámos a ter conversas interessantíssimas versando diversos temas, que ora eram da ordem do dia, ora eram de ordem cultural, pois atendento aos vastos conhecimentos do Sr. Comodoro, actualmente Almirante, com ele muito aprendi; (***)

Sr. Comandante Patrício (capitão-tenente FZ), à época comandante do COP 5, sediado em Gadamel Porto, onde me levou a passar 5 dias com ele e com os seus acompanhantes, que eram os cabos FZ:

Srs. Edgar, Pedras, Guiné, que ao que sei se reformaram no posto de sargentos e, ainda, o já falecido Moscavide, que afinal era alentejano de Mértola;

Sr. Capitão Pára-quedista, Valente dos Santos, ou deverei dizer Astérix, que era o seu nome de código quando se encontrava em operações, na mata, por intermédio de quem tive o gosto de conhecer o Sr. Capitão Marcelino da Mata, bem como outros elementos que pertenciam ao seu grupo de combate e que, por lá abandonámos...;

Sr. Capitão Miliciano de Infantaria Amândio Fernandes, que reside na bela cidade da Guarda, local onde, em Setembro de 2009, me recebeu e a outros Camaradas da 4641 (que esteve em Mansoa), para um bom almoço de cumbíbio; a outros Camaradas da 4641, espero vir a reencontrá-los no segundo fim-de-semana de Setembro, para mais um almocinho e então abraçá-los-ei; não posso deixar de referir e agradecer a forma como todos quantos integravam a CCaç 4641 me receberam e trataram em Mansoa, por tudo isso, o grande Bem-Hajam, do periquito;

Sr. Capitão Imaginário, que tive o grato prazer de conhecer em Gadamael Porto, aquando da minnha visita ao local;

Sr. Capitão de Cavalaria Bicho, também alentejano, que eu já conhecia de Estremoz e que, talvez por isso, não acatou a ordem do então Sr. Coronel Afonso Henriques, chefe do Estado Maior, que para ele telefonara directamente no sentido de que me prendesse no COMBIS, numa noite em que ali fui detido por sua ordem para esse efeito;

A todos os Camaradas do Bart 6520/73, que apareçam e digam alguma coisa, designadamente:

(i) Os Alf Mil Brito, de Lisboa, Av.ª de Roma; o Celestino, o Frade, de Lavacolhos; o Milheiro, do Alto do Pina, o Ramos, o Pereira,

(ii) os Fur Mil Marcelino, de Coimbra, o Ferraz e o Pereira, do Porto, e não me recordo de mais nomes, nem do nome do Capitão Mil da minha Cart já me recordo.

Aceitem todos os Camaradas as cordiais saudações do Camarada

Joaquim Sabido


2. Comentário de CV:

Caro Sabido, as nossas desculpas por só agora a tua mensagem, de 11 de Agosto, estar a receber o tratamento devido. De todo o modo estás já apresentado à Tabanca Grande (****), logo poderás começar a trabalhar quando quiseres.

O período, que viveste, logo a seguir ao 25 de Abril,  até à independência da Guiné, foi um tanto conturbado e complicado para os militares portugueses. Pelo que tenho lido, aqui e ali procedeu-se a cerimónias mais ou menos oficiais de entrega de quartéis ao PAIGC, enquanto os políticos assobiavam para o ar, esquecendo-se do que o que estava em causa era a solução política da guerra, há muito desejada por ambos os contendores.

Como muito bem fizeste, os militares portugueses não tinham que entregar nada a ninguém, apenas retirar em segurança, deixando aos políticos a sua missão de assinar os papéis e conceder aos novos países a soberania por que há muito lutavam.

Esperamos que nos contes como viste e sentiste essa época e o modo como agimos em relação ao PAIGC.

Tens já alguns temas para desenvolver, mas antes que me esqueça, se algum dia resolveres deixar-nos, por favor não te enerves nem armadilhes o Blogue. Calma, homem que temos arquivos muito, mas muito valiosos. É que não gostámos da tua despedida de Jemberém, só violência...

Caro Joaquim, com esta brincadeira passo às despedidas, endereçando-te o habitual abraço de boas-vindas da tertúlia. Instala-te e fica à vontade.
__________

Notas de CV / LG:

(*) Até Fevereiro de 1974, esteve em Jemberém a CCAÇ 4942/72, madeirense, os Galos do Cantanhez. Foi substituída, no subsector de Jemberém,  pela CCAÇ 4946/73, tamnbém madeirense.

(**) "O Comandante Benjamim Lopes de Abreu, natural da Freguesia de Chãos, Ferreira do Zêzere, Santarém, nasceu em 11 de Março de 1945, tendo sido incorporado a 24 de Fevereiro de 1967 na Reserva Naval na Classe de Fuzileiros.

"Frequentou os Cursos de Formação de Oficiais de Reserva Naval (CFORN), obtendo a classificação final de 'Cota de Mérito', Curso de Fuzileiro Especial da Escola de Fuzileiros em 1967. Fez parte do Destacamento de Fuzileiros Especiais Nº 12 na Guiné de 1967 a 1969, como 4º Oficial. Fez também parte do Destacamento de Fuzileiros Especiais Nº 22 de Novembro de 1970 a Dezembro de 1971 tendo participado na Operação Mar Verde, de resgate de prisioneiros na República da Guiné - Conacri e tendo sido colocado posteriormente no Centro de Operações Especiais de Bolama.


"Da sua Folha de Serviços constam numerosos Louvores e Condecorações atribuídas pelas mais altas entidades do Estado, nomeadamente, a Cruz de Guerra de 2ª Classe, a Cruz de Guerra de 3ª Classe, a Militar de Serviços Distintos com Palma e as Medalhas Militares Comemorativas das Campanhas das Forças Armadas Portuguesas com as Legendas 'Guiné 1967-71' e 'Guiné 1972-73'.


"O Capitão-de-mar-e-guerra FZE Benjamim Lopes de Abreu foi casado Com a Sr.ª D. Maria Odete Spencer Salomão de Abreu.


"Faleceu a 08 de Janeiro de 1997, na estrada nacional do Algarve – Lisboa".

Fonte: Corpo de Fuzileiros > 10 de Julho de 2010 > Homenagem ao CMG FZE Benjamim Lopes de Abreu   (com a devida vénia...)

(***) Contra-almirante reformado, faleceu em 2009.

(*****) Vd. poste de 22 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6884: O Nosso Livro de Visitas (98): Joaquim Sabido, ex-Alf Mil da 3.ª CART/BART 6520 (Jemberem e Mansoa, 1973/74)

Vd. último poste da série de 23 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6890: Tabanca Grande (237): Jorge Silva, ex-Fur Mil At Art, CART 2716 (Xitole, 1971/72), e BENG 447 (Bissau, 1972/73)