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quarta-feira, 2 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1016: Cansissé, terra de mil encantos (Parte III) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)

Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Foi na fonte de Semba Uala, que os nossos corpos se retemperaram de energias abaladas. Também, com exasperados desejos, se buscavam encontros de encantos.

Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Mesmo junto à parte oriental da povoação, situava-se a fonte de Cam - Sissé (Semba Uala), com data de construção de 1959. Era conhecida vulgarmente pela Fonte dos Fulas, como se constata no celebérrimo banho à fula que estas duas bajudas estão a tomar.

Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Um troço do rio Campossa, a nossa fronteira de sul, de águas mansas, fluindo serenamente para o grande Corubal



Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Também em Cansissé se fabricava mel. A sua proveniência resultava de colmeias fixadas na copa das árvores, a fim de que cada enxame, no seu afã continuado, produzisse esse requintado néctar.

Fotos e legendas: © Idálio Reis (2006)




Terceira e última parte do texto do Idálio Reis, ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69)(1)


Caro Luís:

Da narração que me mereceu Cansissé, enquanto o meu grupo esteve lá sediado, e que já tiveste a oportunidade de a inserir no nosso Blogue (2), constato que ficou incompleta, porquanto as fotos da célebre Fonte dos Fulas e de outros recantos não te chegaram.

Assim, para que este postal sobre o povoamento fique completa, seguem mais estas fotos, para que a nossa Tertúlia as possa contemplar. Poderá ser a parte III.
E sobre a nostalgia de Cansissé, é tudo.

Cordiais cumprimentos a toda a enorme caserna.

Idálio Reis

__________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de:
19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)

18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69)

12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P866: De Cansissé e a Fonte dos Fulas ao Baixo Mondego ou como o mundo é pequeno (Idálio Reis)

(2) Vd. posts de:

12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P954: Cansissé, terra de mil encantos (Parte II) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)

12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P953: Cansissé, terra de encantos mil (Parte I) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)

quarta-feira, 12 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P954: Cansissé, terra de mil encantos (Parte II) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)

Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Um posto de vigilância avançado, colocado sob a protecção da larga copa de uma frondosa árvore. Permitia, durante a parte diurna, a observação de quaisquer sinais de elementos 'estranhos' e também a da defesa dos campos de cultivos.



Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Uma palmeira mais nanica, onde os meus «soberbos» dependuravam os seus ninhos tecidos com engenho e arte, assumindo uma grande prodigalidade.

Fotos e legendas: © Idálio Reis (2006)


Textodo Idálio Reis, ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1)


Assunto: Cansissé, terra de encantos mil, como anfitriã do primeiro grupo do Exército que aí se alojou (Julho de 1969) (continuação) (vd. post anterior)


(vi) Também abundavam alguns animais, como a gazela e o porco-bravo, mas o que mais me espantava era a quantidade de lebres, o que me incita a narrar esta estória com um sentimento muito especial.

Ainda em Gandembel, acolhi um soldado em rendição individual, um presidiário com uma pena pesada, já homem trintão, e que tinha sido recambiado para a Guiné com a promessa de a sua condenação ser substancialmente reduzida. Chamava-lhe o periquito velho.

Naturalmente que a sua integração no grupo não foi fácil, por manifesta desconfiança. As contrariedades de uma vida complicada eram claramente significativas, muito perceptíveis, ensimesmava-se demasiado, e este seu comportamento de refúgio não merecia dos seus pares a mais consentânea e cordial atitude (as convulsões da guerra determinavam a tramóias de difícil compreensão), pelo que procurava ter para com ele uma especial atenção, que sempre procurou retribuir com uma dedicação e carinho muito cordiais.

Um certo dia, pediu-me para caçar, pelo que só precisava de uma Mauser e algumas munições; naturalmente que o precavi para alguns perigos suspeitos, mas não impedi aquele homem de procurar alguma libertação de si mesmo, de recuperar a sua auto-estima, de dar azo a ter as suas miragens. E era raro o dia que não me presenteava com uma ou outra peça de caça, porquanto a caça dita maior estava já entregue à perícia e ao faro de 2 milícias.

E Cansissé também nos soube ofertar um rancho melhorado, em quantidade e qualidade, e em que até as bebidas eram frescas, pois havia frigoríficos a funcionarem.

(vii) Uma das outras facetas que viemos a encontrar, eram os campos de cultivo. Estes eram, na sua parte maior, pertença do dignitário régulo que, pela sua plenipotência, tinha o direito de, em alguns dias, usufruir de um grande contingente de pessoal que lhe ofertava a mão-de-obra necessária para a sua lavoura. Os nativos também tinham as suas hortas, onde tudo se cultivava para seu auto-sustento, mas em que o trabalho era essencialmente executado por mulheres.

O papel detido pela mulher nesta sociedade era inteiramente secundarizado, onde a prática do trabalho mais penoso lhe estava encarregue. Era uma submissa do seu marido, a sua serva, para além de imposta a uma hostilidade muito restritiva do seu meio. Para além de ter de cumprir todos os labores domésticos, tinha que assumir cuidadosamente o papel de esposa e de mãe prolífica. Mas ademais, cabia-lhe o trabalho de campo, em que todo o amanho era feito a poder de braço, com a utilização de alfaias ainda muito rudimentares, pelo que o mesmo tornava-se árduo, penoso, sacrificado. Somente alcançava alguma dignidade social, quando a condição de mulher-grande lhe era facultada, mas até a atingir, ficava para trás um ror imenso de sujeições e canseiras, uma vida compelida, agreste, de muitos filhos paridos e amamentados, de carinhosa mãe criadeira.

(viii) Era essencial manter activa a parte operacional da tropa, que se fazia essencialmente na parte da manhã. Para além de se ir frequentemente à sede do Batalhão, em Nova Lamego, também era importante tomar conhecimento do que eventualmente se passava no círculo envolvente de Cansissé, em especial as zonas de sul e de leste, já que a oeste nada de novo. (Erich-Maria Remarque já nos havia confidenciado!)

Guiados por milícias, em bicha de pirilau, tivemos o ensejo de pisar uma parte substancial dos regulados de Tumaná. E nessas deambulações, certificavamo-nos que a paz parecia continuar a reinar. E hoje, rememoro com alguma nostalgia duas facetas desta outra estória. Lá mais longe, para sul, havia o rio Campossa a correr mansamente, rumoroso, tão encantador quanto a sonoridade do seu nome deixa intuir, e onde havia duas pirogas de 2 a 3 lugares, feitas por um artesão de Cansissé, que ia desbastando um tronco de árvore, dispondo apenas de uma ferramenta semelhante a uma enxó, e que permitia atravessar o rio para a sua margem esquerda (a canoa que me foi ofertada, por lá ficou, talvez saudosamente à minha espera). As zonas ribeirinhas eram de uma vegetação tropical densa.

E entre a sua margem direita e as imediações de Cansissé, um outro tipo de floresta ressurgia, bastante mais dispersa e com árvores de grande porte, e em quase todas elas, na folhagem das copas, se divisavam umas colmeias cilíndricas feitas à base de uma gramínea parecida com o junco, e onde era perfeitamente audível o zumbido das abelhas, no seu afã constante. E quanto era delicioso o mel de Cansissé!

(ix) Quase todas as tardes eram destinadas ao recreio. O pessoal escolhia os seus sítios costumeiros, para repouso, de divertimento, na distracção. Porém, antes de tudo, como ritual consagrado, havia a preocupação constante e apegada de dar novas às famílias e aos amigos, procurando expressar na esverdeada folha de um aerograma, o aperto afagado dos laços de amor/amizade, o estreitamento das relações mais afectivas e carinhosas, cada vez mais intensos e saudosos, à medida que se começava a antever alguma luz de aproximação no fundo desse infindo túnel que era a distância da separação. O deslizar suave da pena ao longo da folha, reflectida na confidência das palavras contextualizadas e que tantas vezes se ressentiam do ânimo ou desalento do remetente, assumia agora uma outra serenidade, pois que a escolha das palavras transcritas quase não necessitava de ser dissimulada, por forma a não mais iludir todos os que cá tínhamos deixados na incerteza do regresso.

O grupo, já há muito, tinha criado o seu espírito de clã, com a formação natural de núcleos cimentados numa maior amizade, que cada um deles mantinha as suas cadências mais consoantes aos seus propósitos. Como era interessante, aperceber-mo-nos dos seus modos de agir, com as suas interactividades codificadas, entender os seus queixumes, exultar com as suas façanhas.

Uma grande parte dessas tardes livres era passada na fonte de Semba-Uala ou dos Fulas, onde não só abastava a água vertida fresca e pura para refrigério dos nossos corpos requestadores. No exotismo daquelas bandas rescendia um misterioso magnetismo, que nos impelia para os seus recônditos, na quimera da ilusão de aí encontrar alguma deidade, que lançasse encantos tamanhos que nos turvasse todos os sentidos até à saciedade. Os ludíbrios de hoje, instigavam-nos para uma procura incessante no amanhã, e incandescentes tacteávamos caminhos condutores para corpos elanguescentes.

A fonte dos Fulas era a nossa predilecção, já que nos propiciava ir perdidamente ao encontro das bajudas, onde despontavam as belas futa-fulas, de formosos corpos de ébano de um talhe gracioso e delicado, de sorrisos cândidos e brandos, de brilhantes olhos gentios, de uma provocante lascívia infrene. Foi a fonte que nos dessedentou, que desobstruiu de vez os resquícios das poeiras de Gandembel que mais se tinham entranhado, mas foi outrossim, e indelevelmente, um exuberante lugar de requintes, de galanteios murmurosos, de encontros regalados, onde suspiros de comprazimento e languidez se vinham a esvanecer em aromas da terra molhada.

Tudo é finito. E chegou o dia da despedida, com regresso a Nova Lamego, onde nos quedámos até meados de Novembro, que marca o fim da comissão, com o Uíge a aportar em Bissau à nossa espera.

E, meus caros Tertulianos, se hoje no nosso blogue nos compungimos das facetas horrendas da guerra subversiva, que tivemos heroicamente de defrontar por esses trágicos locais, se nesses sítios que calcorreámos, houvesse uma fonte similar à de Cansissé, seguramente que os nossos ‘posts’ eram descritos de um modo bem distinto, de um maior encanto por uma outra saudade, tecendo loas à Mãe-Natureza.

Guiné 63/74 - P953: Cansissé, terra de encantos mil (Parte I) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)

Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > Entre as forças militarizadas, agora juntas, foi criado um forte espírito de coesão. Até ao Unimog, lhe coube um papel relevante para esse reforço, pois possibilitou a muitos dos milícias ter a grata sensação de desfrutar de um meio de transporte desconhecido.


Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 > Julho de 1969 > A cultura do amendoim. Em volta do campo chão da povoação, praticava-se uma agricultura com uma relativa extensão, ainda que realizada essencialmente à custa de trabalho braçal.


Fotos e legendas: © Idálio Reis (2006)


1.
Mensagem do Idálio Reis, ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69)(1)

Caro Luís:

À tua notificação para escrever algo sobre Cansissé (2), aqui o faço com incontido prazer. Desta vez até com algumas fotos (região de Gabu > Cansissé), reabilitadas de uns slides pelo profissionalismo do nosso Albano Costa. Tudo segue em forma anexada. Se achares demasiado longa, partilha-a à tua forma.

Quanto às fotos, a minha intenção foi a de exprimir o que o grupo viveu naquele tempo em Cansissé.

E agora, tenho de compulsar os arquivos da minha Companhia, para falar sobre Gandembel/Ponte Balana. Procuro também algumas fotos representativas.

Luís, que gozes umas boas férias em companhia dos teus. Um abraço do Idálio Reis.

___________


Assunto: Cansissé, terra de encantos mil, como anfitriã do primeiro grupo do Exército que aí se alojou (Julho de 1969).

Caro Luís e demais Tertulianos.

Cansissé merece que a releve com um enlevo muito especial, que evoco de uma maneira fortemente impressiva e dedicada, porquanto reconheço hoje ser o meu complacente lugar da saudade, tão suavemente enternecida e meiga.

Lá longe, no sortilégio daquele chão da região de Gabú, foi possibilitado ao meu grupo fruir de certos encantamentos que julgávamos desapegados e esconsos, pois que os tempos passados até então tinham sido endemoinhados, por um qualquer espírito pérfido, malévolo, cruel.

Estava-se em Julho de 1969, com três partes da comissão vencida (1), e o que buscávamos com uma sôfrega avidez era um qualquer ameno recanto que nos portasse a um estado de tranquilidade repousante, penhor de paz. De tão requestada, ansiávamos uma serenidade confiante para corpos descoroçoados e ofegantes poderem revigorar, de tão insidiosamente assolados por uma guerra sem tréguas.

Estávamos convictos que a poderíamos almejar, e ante aquele sinal-símbolo que sempre norteou a nossa conduta, do «pare, escute e olhe», lenta e conscientemente fomos avançando, e julgo que o soubemos fazer da melhor forma, com a dignidade que nos competia e que era nosso dever, primando na excelência das nossas acções com a população autóctone. E o primeiro grupo da tropa colonial a demandar Cansissé, orgulha-se desse facto.

(i) Cansissé era uma grande tabanca, localizada num vasto perímetro de terra plana e de elevada potencialidade agrícola. Típico aldeamento rural, onde conviviam dois grupos étnicos islamizados, embora de diferenciadas características comportamentais, que determinava com que a tabanca fosse atravessada longitudinalmente por uma larga passagem divisória. A parte ocidental, mais populosa, pertencia aos fulas, enquanto a poente se sediavam os mandingas.

À entrada do povoamento, deparava-se um extenso terreiro. Aí havia um pavilhão-armazém, suficientemente amplo, já construído há alguns anos, porventura quando a Lei do Indigenato se interessou na construção de algumas infra-estruturas destinadas ao forçado armazenamento e comercialização dos produtos agrícolas, e em que preponderavam o milho e o amendoim. Também neste vasto espaço, sobressaía uma árvore de grande porte, de um espesso tronco e de uma copa de abundantes frondes, ponto de encontro para convívio com os anciãos e de remanso ameno e refrescado para o contento solitário das leituras.

E logo surtiam as moranças, mais aprimoradas que nos povoamentos que havia no Sul da Província. Todavia, havia uma certa distinção para as do régulo, mais espaçosas, de uma construção mais estruturada e ostentosa, onde cabia todo o seu harém e quiçá alguns convidados, sendo todas elas envolvidas por um tapume em função de resguardo. E o aldeamento prolongava-se até aos lhanos campos de cultivo.

(ii) Chegámos a 14 de Julho, num dia benfazejo por uma chuva quase incessante, tendo calcorreado os cerca de trinta quilómetros que distavam de Nova Lamego, em menos de uma hora, o que desde logo era uma missão inatingível nas zonas por onde tínhamos deambulado, e portanto de difícil compreensão para todos nós.

Apesar de encharcados, Cansissé aí estava, e ante a surpresa ora deparada parecia estarmos satisfeitos, pois que os antecedentes que este novo destacamento nos propunha, de acordo com informações obtidas, animávamo-nos a acalentar uma esperança desejada e a garantir um maior grau de confiança, para os dias que iríamos aqui permanecer.

A entrada em Cansissé mereceu honrarias especiais, pois o régulo e os homens-grandes, e um grupo local de milícias, para além da população, nos esperavam com cordiais cumprimentos de boas-vindas. Prestado o reconhecido e público agradecimento, alojou-se o pessoal no arrumado pavilhão existente, exceptuando a minha pessoa e o Vasco Ferreira (ex-furriel, um dos muitos feridos de Gandembel, e em missão de voluntariado para esta missão), a quem foram ofertados guarida de maior requinte numa apresentável morança do régulo.

E por lá nos quedámos por um período de quase sete semanas, em desfrute de um tempo de contentamento e encanto, que ia conseguindo suavizar a nossa velada ansiedade do regresso definitivo, até porque nos parecia, com grata satisfação, que o delongar do tempo parecia agora querer escoar normalmente.

(iii) Os primeiros dias serviram para reconhecer a zona, como a verificação das condições de segurança do povoamento, a análise da capacidade do grupo de milícias, a auscultação dos nativos com enfoque especial para o seu estado sanitário, mormente dos mais idosos.

O grupo de milícias, com cerca de 30 unidades, era composto por homens de uma faixa etária dos 25 a 40 anos, que ali viviam com as suas famílias. Era um reduzido contingente com funções essencialmente de defesa local, e ainda armados com espingardas Mauser. Desde logo, procurou-se fazer o seu entrosamento, tendo-se criado uma empatia forte, cimentada por uma cumplicidade mútua de grande generosidade.

No que respeita ao grau de segurança da tabanca, em princípio era de molde a não ofertar perigos de maior, já que se dispunha de um largo raio de visão exterior, pois que era circundada por extensas plantações de amendoim, e a vegetação arbórea era rala. Porque não havia iluminação, estabeleceram-se postos de vigilância nos cantos da povoação, com uma integração equitativa e feita de forma rotativa. Durante a parte de dia, havia 2 postos avançados, que também desempenhavam funções de guardiãs das culturas.

Quanto à vertente dos cuidados de saúde, foi efectivamente o maior benefício que comprovadamente se lhes trouxe. Numa enfermaria improvisada, atendia-se a população que acorria cada vez em maior número, afluídos de outros aldeamentos. Sobre este apoio, recordo com agrado, que o medicamento preferido era o administrado por acção injectável, o tal pico, como gostavam de referir. Pequenos aconchegos de ontem, que muito provavelmente hoje não existem.

(iv) Logo aos primeiros dias, começámos a ter a grata sensação que estávamos a viver, porventura não no país da Alice, mas num outro qualquer rincão reencontrado, esquisito, singular, também com as suas maravilhas. À despedida de cada dia, recordo que se divisava em Cansissé um inebriante pôr-do-sol, de uma luminosidade reverberante que esbugalhavam os nossos olhos de espanto e pasmo, até que o céu se estrelasse em toda a sua amplidão, para podermos ler as estrelas, numa angustiada procura do nosso futuro mais imediato.

Sentíamos com uma incrédula e incontida emoção, que a situação sofredora da guerra ostensível e impenitente, aparentemente estava ausente, ainda que cada um de nós continuava a ter como fiel companheira a G-3. Contudo, a espaços, esta começava a perder parte das suas prerrogativas, pois de quando em vez a sua mudez de descanso trancado era suplantada pelo sussurro ciciante de uma bela nativa, num concupiscente ardimento de furtivos encontros. Esta busca delico-doce era também um generoso contributo que Cansissé nos primava em ofertar, já que teve a primazia da primeira vez, a de um grupo forjado em têmpera de ferro e fogo, vir conviver com as suas gentes.

(v) O meio natural onde Cansissé se inseria, era de uma rara e contagiante beleza, onde tudo parecia decorrer a um ronceiro e tardo ritmo, em acorde com infindas harmonias, qual anelo esperançoso e embriagador, que só se desentoavam surdamente muito para além do intemporal e infindo horizonte. Todo esse meio envolvente, era modelado em tranquilidade e acalmia, onde serenamente os dias se repetiam num compassado ciclo de uma movimentação recortada, pausada e vagarosa.

Por lá perambulavam um número infindo de aves, num constante e mavioso chilreio, trinando os seus gorjeios que nos especava em atencioso e surdo recatamento, para audição de sonatas do paraíso. Entre elas, estavam os periquitos na sua policromia esverdeada, as mansas rolas que nos circundavam emitindo os seus gemidos de agradecimento por algum bago de arroz. Também, com um carinho muito especial, havia um pequeno passeriforme de uma plumagem de um colorido brilhante e de grande beleza, que o rebaptizei de soberbo, com um sentido gregário notável, em que o (re)vejo numa imensidade de ninhos numa atarracada palmeira, feitos pelo entrelaçamento de fios de um fino trabalho de arte de tecelagem.


(Continua)
_____________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts anteriores:


19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)


18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69)

12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P866: De Cansissé e a Fonte dos Fulas ao Baixo Mondego ou como o mundo é pequeno (Idálio Reis)

(2) Não foi uma ordem, apenas um desejo, pronta e plenamente satisfeito pelo nosso camarada Idálio Reis: "... aguardo com curiosidade o teu relato das mil e uma noites que passaste em Cansissé, bebendo a água da sabedoria (e quiçá dos amores) da Fonte dos Fulas" (...)

sábado, 8 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P946: Destacado no Gabu, em Cansissé, de Julho de 1973 a Setembro de 1974 (Américo Marques)

1. Mensagem do A. Santos (ex-soldado de transmissões, Pel Mort 4574/72, Nova Lamego, 1972/74), para o Américo Marques:

Boa tarde:
Estou a transmitir para o teu posto, depois de o Luís Graça e o Sousa de Castro me falarem de ti. Por eles sei que estiveste em Cansissé mas dizem que estiveste lá em 72/74. Gostaria de saber se possível mais pormenores, pois, pelo que sei, Cansissé só tinha um grupo de combate e pertencia à CCAV 3405/BCAV 3854 de Nova Lamego (1971/73)... Aqui está qualquer coisa que não se encaixa.

Por meu lado, tirei a especialidade em Campolide - Lisboa, no BCAÇ 5, de 2 de Janeiro a 10 de Março de 1972 e marchei para Bissau em 15 de Julho de 1972.

Fico aguardar as tuas noticias um grande alfa bravo [abraço]


2. Resposta do Américo Marques, ex-soldado de transmissões da 3ª CART do BART 6523, com sede em Nova Lamego (Gabu), destacado em Cansissé (Julho de 1973 / Setembro de 1974):

A. Santos:
Não bate certo e com razão! Eu fui formando de transmissões no primeiro trimestre de 1973 no BC5, em Campolide. E embarquei para a Guiné no verão desse ano. Ou já se esqueceram dos meus dados? No texto último (A Estibordo do Niassa) estão referências a datas (1).

Américo
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Nota de L.G.

(1) Vd. posts referentes ao Américo Marques e a Cansissé:

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P901: De Viana do Castelo a Cansissé (Américo Marques)

21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P891: Recordando o Xime do Sousa de Castro (A.Santos)

12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVI: Américo Marques, o último soldado do Império (Cansissé, 1974)

segunda-feira, 15 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P758: Eles apenas queriam uma pátria (Américo Marques)

Texto do Américo Marques (Ex-soldado de transmissões, 3ª CART / BART 6523, Nova Lamego e Cansissé, Junho de 1973-Setembro de 1974) (1):

Boa tarde Luis!

Aqui envio uns desabafos em jeito de solidariedade para com os nossos Camaradas Combatentes, nascidos na Guiné. Que a reportagem televisiva mostrou, e ficamos a saber que existem; o que não sabemos, é se vivem! E esse pensamento mexeu comigo como eu não pensava. Porque os nossos governantes estão sempre atentos aos problemas dos Países que falam português; porque nunca imaginei que se esquecessem destas Pessoas que também falam português e são portuguesas.

Américo Marques

Gatilhos de Aluguer

Gatilhos de aluguer... É o que me apetece dizer! Depois de ouvir com a alma e ver com emoção cabisbaixa a reportagem televisiva, sobre os Competentes e Leais Combatentes da então Província Ultramarina da Guiné. E por conseguinte, irmãos de sortes e desventuras, servidores da Bandeira das Quinas.

Por estas e por outras, no meu ponto de vista, poderemos descobrir o porquê da nossa falta de autoestima; o determinismo redutor das capacidades individual e colectiva. Assim como se cultiva roendo unhas uma grande fragilidade patriótica.

E sobre a Pátria vou escrever e vou citando. Neste caso, Zeca Afonso que cantava “não sejas tão Castelhana” . E eu, como não sei cantar, apupo: não sejas tão Madrasta! Porque Aqueles esforçados Combatentes não eram mercenários. Eram, sim, pedaços de grande Gente que recebia uns poucos pesos e uns quilos de bianda.

Porque País não é o mesmo que Nação; então só lhe terá direito e direitos quem a defendeu quando necessário, e todo o outro que a dignificou. Logicamente, e óbvio não se pode tratar nunca semelhantes pessoas como números duma estatística comum da sociedade. Universalmente têm direito ao aplauso e ao respeito. Ao fim e ao cabo, oferecer-lhes uma existência digna.

Concluindo com prosa de escuteiro: "Honraram a Pátria para Serem Contemplados mas a Pátria não Os Contemplou”. E eles apenas queriam uma pátria que fosse: Protectora; Optimista; Respeitadora;Tolerante; Uniforme; Generosa; Altruísta; Leal

Américo Marques
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Nota de L.G.

(1)Vd post de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVI: Américo Marques, o último soldado do Império (Cansissé, 1974)

sábado, 12 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P266: Américo Marques, o último soldado do Império (Cansissé, 1974)

Igreja de Nova Lamego (Gabu). Postal da época (pormenor). Edição: Foto Serra - Bissau (s/d). Por gentileza de Américo Marques (2005)

Telefonou-me o Américo Marques (que trabalha no gabinete de segurança de uma grande empresa de construção e reparação naval, no norte do país, sendo colega do Sousa de Castro), a contar-me a sua participação na cerimónia de homenagem, prestada pelo município de Fafe, aos ex-combatentes da guerra do ultramar, mortos em combate. Trinta e sete ao todo. Uma ceroimónia bonita e cheia de emoções. Lá encontrou o meu amigo paraquedista, o tal da Lourinhã (2), que botou discurso, emocionado, e que parecia ser um dos elementos da comissão organizadora.

Por lapso, o Américo não fixou o número dos que morreram na Guiné. Mas não faz mal: vai perguntar ao irmão, que esteve na Guiné e que depois foi imigrante em França durante muitos anos. "Foi um dos primeiros a partir para a Guiné, em 1961, ainda se usava a farda amarela. Esteve na região do Cacheu". Pedi-lhe para entrar em contacto connosco. Não temos ninguém desse tempo, ainda a guerra não tinha começado. Esse, sim, esse é que poderá ser o pai ou até o avô da velhice...

É irónica a história: dois irmãos, separados pela geração, acabam por ser mobilizados para o mesmo território ultramarino, para a mesma guerra: o mais velho em 1961, o mais novo em 1973, doze anos depois…

O Américo (1) teve a sorte, o azar ou o privilégio (conforme o ponto de vista de cada de um nós) de ter uma missão mais curta. A sua companhia estava colocada em Nova Lamego (Gabu), enquanto ele foi destacado com um grupo de combate (25!) para Cansissé, a sul de Nova Lamego, a uma hora de caminho do Rio Corubal. Nunca tiveram problemas nem com a população nem com o PAIGC, contrariamente aos camaradas da companhia anterior. Nunca se armaram em “bons”, nunca provocaram o IN, trataram sempre bem a população local, distribuindo comprimidos pelas mulheres, ouvindo os homens grandes, ajudando a transportar os produtos agrícolas... Davam-se bem com os fulas. O régulo era futa-fula. Com os mandingas, a coisa piava mais fino.

Ele era soldado de transmissões e, na noite de 24 para 25 de Abril de 1974, estava no seu posto, a sintonizar a rádio em Lisboa. Costumava fazer isso com muita frequência. Estava em contacto com todo o mundo. Os dias eram sempre iguais e custavam a passar. E as noites ainda pior. Mas "nessa noite ficou confundido e baralhado: havia movimento de tropas em Lisboa, alguma coisa se passava de anormal"…

Foi assim que teve conhecimento do golpe de estado do Movimento das Forças Armadas que depôs o Governo de Marcelo Caetano. Informou os seus camaradas. Foi um alvoroço. A vida em Nova Lamego e em Cansissé não voltou mais a ser como dantes. Apareceram logo uns “esquerdistas”, até então caladinhos, a organizar o pessoal, a dar ordem, a fazer reuniões… A hierarquia e a disciplina militares começaram a ser postas em causas. Eram os “comités de soldados” (sic) que tomavam iniciativas. Às tantas já se falava tu-cá-tu-lá com os gajos do PAIGC, beijinhos e abraços, troca de roncos, como se não tivesse havido uma longa guerra…

Esta foi a parte mais dura de engolir para o nosso amigo Américo que viu, com tristeza, a nossa bandeira ser substituída pela do PAIGC no seu destacamento… Em Setembro de 1974, ele voltava para casa, com o sentimento (amargo) de ter sido o último soldado do império… Há coisas, na tropa e na vida, para as quais um homem nunca está preparado.

Hoje ele escreve nos jornais da região. E promete voltar a escrever-nos, com tempo e vagar, quando vier o frio e o fogo começar a crepitar na lareira. É aí, à volta de um madeiro a arder, que ele gosta de recordar os seus tempos na Guiné e passar para o papel os sentimentos contraditórios que tem sobre esses menos de dois anos que passou lá no Gabu… Ele promete contar alguns das suas histórias de azarado soldado de transmissões que, um belo dia, ouvia uma conversa em “português acreoulado”: suspeitando tratar-se do IN, lançou um alerta geral e pôs o Gabu em pé de guerra… Afinal, tinha interceptado comunicações entre a NT…
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(1) Ex-soldado de transmissões, 3ª CART / BART 6523 (Nova Lamego) (Junho de 1973/ Setembro de 1974)

(2) Vd. post de 24 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXV: Homenagem aos mortos da minha terra (Lourinhã, 2005)

domingo, 19 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P65: Os momentos do fim (Junho de 1974)...

O Américo Marques, de Viana do Castelo, mandou-nos uma mensagem, tocante, sobre os "momentos do fim", quando a partir de Junho de 1974 os guerrilheiros do PAIGC começaram a aparecer no destacamento de Cansissé, oferecendo a paz... Não foi fácil para a população local (fulas e mandingas) e para alguns soldados como o Américo Marques. De repente, os inimigos de ontem, os turras, passavam a ser os amigos e até os irmãos de hoje.

Imagino que deve ter sido um momento muito difícil, daqueles em que a gente fica com um nó apertado na garganta… Vou publicar esta nota, no nosso blogue, mais as fotos, na esperança de que o Américo um dia destes arranje fôlego, coragem e inspiração para dar um testemunho mais extenso e profundo sobre o momento do hastear da bandeira da nova Guiné-Bissau a que ele assistiu… Enfim, se ele achar que vale a pena… Eu pessoalmente acho que vale a pena. O Américo, que regressou a Portugal em Stemebro de 1974, estava no sítio certo, no momento certo, para a nos dar conta do fim do império...

"Eu sou dos últimos guerreiros do Império. Meio guerreiro, pois não acabei a Comissão e ainda participei na troca de bandeiras. A minha ignorância e o meu patriotismo fizeram-me sentir uma tristeza... ainda mais triste.

"Era Transmissões de Infantaria, Formado no BC 5, Campolide [ Lisboa ]. Formei Batalhão em RAL 5, Penafiel. Embarquei no N/M Niassa em Junho de 1973, na companhia de um BCAÇ de Tomar, mais duas Companhias recebidas no Funchal. Pertenci à 3ª CART do BART 6523, aquartelado em Nova Lamego.

"Estive os 17 meses em Cansissé: um destacamento (com 25 soldados) que estava à distância de 1 hora, a pé (claro), da margem direita do Rio Corubal. Quem fosse de Bafatá para Nova Lamego, virava à direita por uma picada, situada mais ou menos a meio do trajecto.

"Sou de Viana do Castelo e amigão do Sousa Castro e do Luis Carvalhido que me recebeu no Xime, em trânsito para Nova Lamego [Gabu]. Era eu um coitado dum periquito; e o Luís não me ofereceu uma bazuca, levou-me a ver um buracão feito por uma. Perdi logo a sede. Espero que as fotos sejam mais um tijolo... para construir a historia das Dores e Agonias que estão aqui e agora. Sendo ao mesmos tempo Pedaços de Vida, que se me ofereceu (como se fossem mais uns Castelos) aquela Bandeira; muito amada e que aquece mais que mil vulcões. Um Alfa Bravo".