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quarta-feira, 19 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11732: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (16): Aerogramas e insuficiência das mensagens

1. Em mensagem do dia 6 de Junho de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima sexta "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

16. Aerogramas e insuficiência das mensagens

Na imagem > Aerogramas de 1966, com data de 7/4, 25/4 e 1/5 
© Manuel Joaquim 

[O aerograma foi um óptimo meio de comunicação mas sempre o olhei como um substituto menor da tradicional carta usada nas relações afectivas, principalmente no discurso amoroso (ou fizeram-me crer nessa menoridade). Tendo, muitas vezes por preguiça, desleixo, cansaço ou mesmo falta de tempo, recorrido ao aerograma para manter uma periodicidade regular na minha correspondência de guerra, nunca ninguém se me “queixou” do seu uso, exceto a namorada. Receber aerogramas em vez de cartas, era coisa de que ela não gostava nada. Mas lá foi disfarçando … até já não poder mais.]

Vale de Figueira, 9. Março. 66 
Pois, está claro, que gostaria de receber daí cartas volumosas. (…). Eu sei que te é difícil, muitas vezes, fazer o que queres ou o que tens planeado para este ou aquele dia. Vários factores influem agora no teu querer, eu sei. E só por isso me não desalenta muito receber missivas tão lacónicas. 
(…),sobretudo o que me interessa é que semanalmente me dês testemunho de que ainda há vida nesse corpo tão massacrado, (…). O resto, meu querido M., terá muita importância, sem dúvida que terá, pois não é nada agradável estar-se a falar para o “boneco”, para um poço sem fundo, isso é verdade. Mas também não é bem este o caso. 
Isso, na situação actual em que vivemos, é compreensível e desculpável. (…). Podes estar certo, meu amor, que um “estou bem” género telegrama é uma felicidade para mim (…), um fortificante incentivo para continuar a te esperar. 
(… … …). 
Um longo e terno beijo (…) 
D. 

Bissorã, 17MAR66 
Sem dúvida, meu amor, que compreendo inteiramente o teu desgosto por não te escrever como deveria. Deveria? Aqui não há questão de dever ou não dever. Precisamente porque o que desejo é escrever-te, escrever-te muito, (…). Não o faço muitas vezes porque me sinto cansado e sem forças para reagir (…), ao ciclo de desesperança e frustração que persistentemente me quer ocupar o espírito. 
(… … …). 
Eu sei que é preciso reagir a este estado de espírito. Seria preciso reagir para atenuar tudo isto. Mas reagir é-me praticamente impossível. Palavra que às vezes dá-me vontade de esquecer tudo, ficar em estado hibernal [hibernação] e só acordar para a vida daqui a uma dúzia e tal de meses, quando me visse livre de tudo isto. Esquecer. Esquecer tudo. Adormecer. Como se isto fosse possível!!! 
Recebo as tuas cartas, acho-as maravilhosas. (…). Ao ler as tuas palavras passo-me para junto de ti (…). A tua presença faz-me esquecer tudo o resto. Mas são momentos efémeros porque a realidade que me rodeia está bem à vista. E então absorve-me o medo de nunca mais te ver e um chorrilho de ideias tristes, algumas até absurdas, perpassa dolorosamente por mim. 
Eis a razão por que me custa escrever-te. Só em momentos excepcionais, às vezes excepcionais pela sua inautenticidade, é que te poderia escrever cartas que, de todo, te dessem alegria. Sim, porque estou a falar contigo e desde já a aborrecer-me por adivinhar que com as minhas palavras te provoco tristeza, talvez dor. (…) 
(… … …). 
Não falas para o “boneco”. Eu absorvo as tuas palavras e tenho concordado com elas. (…), quando não concordar contigo, a minha réplica surgirá. (…). (…), varre de ti a ideia de que o teu M. querido não está ligando nada (…). (…) até está muito satisfeito com essas palavras, com essas opiniões. 
(… … …) 
Saudosamente, (…). 
M. 

Foto 1 > Bissorã, 1970 > Rio Armada ao pôr-do-sol 
© Carlos Fortunato, CCaç 13 

Bissorã, 3ABRIL66 
(… … …) 
Minha querida, tens de desculpar a minha demora na correspondência. As operações, agora, no final da estação seca são mais fáceis de fazer. Talvez sejam, até, menos perigosas. Por isso andam a apertar bastante com a tropa. Trabalho estafante (…). 
Está claro que isto não é razão para deixar de te escrever. Mas o cansaço ajuda a ficar indolente, a cair no “não te rales”, no “não me maces” Estas frases não se referem a ti. As tuas cartas são sempre bem-vindas e ansiadas. Simplesmente, apetecia-me mais falar-te do que escrever-te. Às vezes esqueço-me de que não estás junto de mim, de que me não podes ouvir. O resultado está à vista, é estar bastante tempo sem te escrever uma carta, limitando-me a uns lacónicos aerogramas. Mas olha para essa espécie de telegramas com a certeza de que neles o teu M. também está presente, bem presente no amor que te dedica, no desejo de que não estejas muito tempo sem notícias. 
(… … …). 
Muitos e muitos beijos (…). Até sempre! 
M. 

Vale de Figueira, 24-4-1966 
“Amo-te”, “Sou teu”; são sem dúvida expressões sempre agradáveis que se escutam com prazer. (…). Mas não bastam, não são o essencial para que se acredite em quem as pronuncia. (…). São expressões efémeras, correntes em toda e qualquer boca, para qualquer fim. 
(… … …). 
Depois de ler cada um dos teus aerogramas que chegam, depois de pensar demoradamente no que se está passando contigo, tentando absorver das tuas poucas palavras algo de doce e de reconfortante, … desânimo! Nelas, parece-me ver esquecimento, um subterfúgio para não revelares a verdade. 
E então o “amo-te”, o “quero-te”, o “sou teu” não me dizem quase nada, meu querido. Soam-me tão longínquos! Quase amargam. 
Mesmo assim, esses aerogramas representam muito. Pelo menos na hora em que os escrevias ainda havia vida nesse corpo embora o espírito talvez estivesse morto, massacrado pela dor. Não queria que isso acontecesse, meu amorzito. Quero que reajas, que converses comigo se ainda me queres para tua companheira, tua amante, tua mulher. (…). Mas, meu amor, estes aerogramas não serão o teu refúgio, não estarás a desligar-te de mim? 
Vivo este dilema, agora. Perdoa-me se te ofendo, dizendo-te isto. Mas eu não posso perder-te! Tu não podes fugir-me, meu amor! 
Que alegria para mim são, nos primeiros instantes, esses aerogramas! Tu ainda estás comigo, é o meu primeiro pensamento. Depois, mastigando o seu conteúdo, que desilusão, que contrariedade! Nada adiantam … são todos iguais! 
Meu M. querido perdoa-me se não sou compreensiva, se estou a ser injusta, mas não estou a recriminar-te, meu amor. Decerto que há muita coisa em mim que te não agrada, podes dizê-lo. 
(…). 
(…) não escrevo mais, hoje. Talvez amanhã ou depois te escreva mais, quando esta neura tiver passado e eu sentir firmemente que continuas me querendo muito. (…) 
Tenho tantas saudades tuas, meu querido! Beijo (…). 
N. 

Foto 2 > Bissorã, 1966 > ao centro, aquartelamento das CCaç 1419 e CArt 1525; ao centro-direita, edifício-sede da Administração Civil; ao fundo, campo de futebol
© A. Silva Pinheiro, CCaç 1419 

Bissorã, 1 MAIO 66 
Cheguei ontem de Mansoa e cá encontrei a tua última carta. Palavra que, antes de a abrir, já pensava no seu possível conteúdo. Acertei (…). 
Eu sei que os meus aerogramas são insuficientes. Inclusivamente, não gosto de te enviar aerogramas. Dá-me a sensação de coisa impessoal, o que com certeza não é, minha querida. 
(…) por coincidência, há uns tempos para cá, quando estou para me dedicar inteiramente a falar contigo, surge um contratempo. 
(…). Ontem tinha intenções de te escrever uma longa carta mas não pude. Pensei muito em ti, em nós, mas foi de arma às costas “passeando” pela selva. Saímos ontem ao princípio da noite. Chegámos há pouco tempo, são 11h 30. Estou cansado, deveras cansado e cheio, cheio de sono. Só a grande vontade de que não fiques sem notícias minhas me leva a pegar na caneta. 
Espero, nota bem, espero que no próximo correio te ocupe um bocado o tempo a ler-me. Estou pronto a escrever muito.(…). 
Depois de umas horas de descanso, ficarei “au point”. 
Sei que vais ficar mais uma vez aborrecida mas tenta compreender. Eu tenho muito que fazer. Muita coisa me preocupa. Tu terás que ser vítima, um pouco, da minha situação. 
Ou não? Mas, forçosamente, tens de ser. Preciso muito das tuas cartas. 
Preciso mais delas do que tu das minhas. Continua escrevendo, sim? Não te zangues, hem? 
Do que tem esperança de ser teu – desculpa o possível cinismo que a tua carta agora me provocou. Vamos lá falar a sério: 
Muitos e muitos beijos, saudosamente, do TEU 
M.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11674: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (15): Analfabetismo, um outro combate

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11674: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (15): Analfabetismo, um outro combate

1. Em mensagem do dia 3 de Junho de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima quinta "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA 

15. Analfabetismo: um outro combate 

Bissorã, 24 fev 1966 
(… … …). 
Minha querida D., desculpa o meu silêncio. Diversas circunstâncias o provocam. Há uns tempos para cá tenho a meu inteiro cargo a instrução primária de 44 soldados, o que me ocupa todas as tardes e princípio das noites, precisamente o tempo mais propício ao descanso. Mas eu trabalho com gosto. Até porque é o meu único trabalho oficial [que acho] válido. E os alunos compreendem e acarinham-me. O que é certo é que o tempo livre voou quase todo. (…). 
Como vês, o tempo que tenho para descansar é diminuto e, além disto, ainda tenho a correspondência e a leitura. Sim, porque todos os dias leio alguma coisa. É pena não poder adquirir os livros que quero. Mas, como daqui em diante começam a ir aí à Metrópole camaradas meus, já tenho um meio de os adquirir. (… … …). 

Fotos 1 e 2 > Bissorã > Edifício da escola missionária. Fotos tiradas com cinco anos de intervalo; a 1ª, em Out./1965, na altura da minha chegada e a 2ª, em 1970 
(© de Carlos Fortunato, fur. mil. CCaç 13). 


Lisboa, 1-Março-1966 
(… … …) 
Meu querido M. peço a tua benevolência para o facto de nem sempre saber controlar-me quando, por qualquer motivo, há um período mais longo sem que me apareçam informações tuas. Também não sabia das tuas novas funções. 
Sei que essa actividade te dá bastante prazer e folgo muito com isso. Sei agora que me roubas mais umas horas (…) de convívio contigo e, a ti, um período de descanso que te seria também favorável. Mas, quando o trabalho nos enche completamente as horas, só faz bem. Por um lado, em momentos livres, não nos deixa lugar a pensamentos menos optimistas; por outro lado, dá-nos a sensação de não sermos imbecis, inúteis, de que afinal produzimos alguma coisa ou que ainda temos vontade em não nos deixarmos mergulhar no charco ou no fosso imundo que se abre aos nossos pés e para onde, (…), querem empurrar-nos. Evidentemente que a tua situação aí é um pouco diferente e, por mais trabalho que tivesses, não conseguirias alhear-te da situação ignóbil para que te atiraram. 
(… … …). 


Mansabá, 2.Jan.1967 
(… … …). 
Na minha última carta parece-me que te falei em férias que iria gozar este mês. Os planos falharam. À última hora cortaram-me as férias! Porquê? 
Precisamente para me enfiarem a ensinar uma classe de militares e uma outra de civis, de garotitas. Julgo que ganhei com a troca. Devido a este meu serviço diário, deixei de ir para o mato. (…). Esta é a primeira alegria que o benjamim [Ano Novo] me trouxe. Entrei com uma “grandecíssima” bebedeira. Não, não te atemorizes, meu amor, que não é para continuar. Não sou alcoólico, longe vá o agoiro! 
(…). Vou ter um trabalho estafante mas “quem trabalha por gosto não cansa”. (…). 
(… … …). 

Fotos 3 e 4 > Mansabá, no início de Jan/1967: “escola” na rua e à sombra de uma mangueira. 
© Manuel Joaquim 

[Aproximava-se o fim da comissão do BCaç 1857 e eu continuava a dar aulas, voluntariamente, aos soldados da minha CCaç 1419. Por directiva superior fui, então, incumbido de dinamizar a inscrição de crianças para a frequência escolar, organizando também o trabalho didáctico e pedagógico necessários ao funcionamento de uma escola já que tinha qualificação profissional para o poder fazer. Iniciou-se, em paralelo, a construção acelerada de um pequeno edifício escolar, de uma só sala, enquanto os seus futuros utentes começaram a frequentar as aulas em espaços improvisados. Para dar estas aulas formou-se uma equipa constituída por mim e pelos furriéis António Correia e Germano Passeiro (CCaç 1421) e distribuímos os alunos pelos três, eu fiquei com as meninas. Quando o edifício escolar ficou pronto, recebeu de imediato as crianças, assumindo eu todo o serviço docente e os meus camaradas as atividades de animação circum-escolar.]

Cacém, 9- Janeiro- 1967 
(… … …). 
Que feliz me sinto, também, pela oportunidade surgida que te pôs a salvo de saídas para o mato. Como é óbvio, essa felicidade é ainda mais completa quando as perspectivas de um regresso antecipado começam a avolumar-se. 
(… … …).


Mansabá, 9-1-1967 
(… … …). 
Estou bem, com saúde e muitas saudades tuas. Já quase me faço compreender pelas miuditas a quem dou aulas todos os dias. É um trabalho que me está a agradar imenso, até porque me ajuda a passar o tempo, agora que ele me parece tão difícil de passar. 
(… … …). 

Foto 5 > Mansabá, Fev/1967: alunas em recreio escolar. 
© Manuel Joaquim 

Mansabá, 23 Jan. 1967 
(… … …) 
Falar-te do meu dia a dia (…). Como já sabes, não ando no mato. Sábados de tarde e Domingos, não trabalho. Nos outros dias dou duas horas de aulas, da parte da manhã, às crianças e outras duas, da parte da tarde, aos soldados. (…). Vistas bem as coisas, comparando a minha situação actual com a anterior, é caso para andar bem satisfeito, e ando.(…). 
Penso que daqui a três meses já devo estar aí agarradinho a ti. 
(… … …). 


Mansabá, 6-Março-1967 
(… … …). 
Às vezes tenho estados de espírito estranhos, tal como o de começar a ter saudades de alguma coisa que por cá existe. Refiro-me, muito em especial, às “minhas” pequenitas que, todos os dias, eu no caminho da escola, disputam em corrida qual delas chega primeiro para me agarrar e dizer “bom dia!”. Então, quando acaba a aula, é uma “chatice”. Elas ainda mal falam o português mas já sabem dizer “adeus, amor di mim”, “adeus, querido di mim” e outras frases similares. Na sua ingenuidade repetem o que ouvem dizer lá por casa às irmãs mais velhas, namoriscando com soldado branco. 

Foto 6 > Mansabá, Março/1967: professor “Amor di mim” com quase todas as suas alunas. 
© Manuel Joaquim 

(…). Enfim, são uns tempos muito bem passados, estes em que lido com as crianças. Cá na terra toda a gente me conhece pelo nome. Passo pelas ruas e às vezes até chateia a frequência com que dizem “M.el Joaquim”. Não dizem muitas vezes mais nada, só esperam que me volte e sorria. (…). 
Alegra-me saber que fiz algo de bom por aqui. E é, sim, com um pouco de saudade que vou deixar esta gente. (… … …) 

Foto 7 > Mansabá, Março/1967: uma aluna apresenta a sua linda maninha. 
© Manuel Joaquim 

Cacém, 14.3.1967 
“Adeus amor de mim” 
Enterneceram-me sobremaneira estas palavras proferidas com pura ingenuidade por essas grandes e dedicadas amigas – almas jovens reconhecidas que, atendendo ao carinho e vontade com que lhes ensinas o ABC, o entusiasmo e compreensão com que as deves escutar, (…), te oferecem essas palavras como única mas valiosa recompensa. 
Oh meu amor, (…), deves orgulhar-te disso e aceitá-las como recompensa por tantos sacrifícios inúteis, como lenitivo para não sentires que a tua estadia aí foi de todo estéril. Mas não foi mesmo, querido. A prova está aí, sai da boca dessas miuditas que te encantam. (…). 
Eu sei, (…), quando regressares à Metrópole não faltarão momentos em que recordarás saudosamente alguma coisa de ti que por aí vai ficar. E, simultaneamente, talvez com saudades serás recordado nessas terras (…). 
Mas vem, (…), vem depressa (…) porque, por aqui, as saudades começam a abrir ferida (…). A espera é dolorosa e eu começo a sofrer os seus efeitos.(…). 
(…) a data do regresso pode ser protelada mas a mesma força e o mesmo entusiasmo abrirão caminho para efusivamente nos abraçarmos (…). 
Não vamos agora desesperar (…) quando estamos quase a transpor a porta do nosso céu. (…) 
Muitos e muitos beijos (…). Adeus, meu amor. N.


Mansabá, 10-Abril-1967 
(… … …). 
Toda esta semana, passei-a a fazer exames [4ª classe do ensino primário]. (…) para que muitos soldados venham a ter o diploma nas mãos. Reconheceram-no e ontem à noite organizaram uma festinha muito simples e comovente, em minha honra. Senti-me confundido com a sua atitude, o seu reconhecimento por tudo o que fiz por eles (…), foi alguma coisa sem outro qualquer intuito que não fosse o de instruí-los. A festinha terminou com razoáveis bebedeiras e por pouco que não apanhei também uma “perua”. Senti-me feliz, deveras satisfeito. 
(… … …). 


Bissau, 25-Abril-1967 
(… … …). 
(…) vai aqui um excerto do Diário da Guiné. (…). Na fotografia, a minha presença vai assinalada com uma seta. (…). Consola-me ver que a minha actividade [docente] não passou despercebida. Até fui abraçado pelo general. A exibição coral foi, na verdade, um sucesso. Palavra que me chegaram as lágrimas aos olhos, eu à frente das crianças, quando a exibição coral passou muito para além do que eu pensava. Dois dias depois ouvi a sua transmissão pela rádio e fiquei visivelmente orgulhoso (…). 
Saí de Mansabá com as lágrimas nos olhos pois não consegui conter-me perante a despedida afectiva daquelas crianças. Ver criancinhas negras com lágrimas na face, abraçadas a mim, foi demais. Nunca pensei que as coisas chegassem a este ponto. Foi qualquer coisa de inolvidável, minha N. 
(… … …) 
Meu amor, calma, muita calma na espera. Eu já quase estou aí. Pouco falta. São só uns dias. 
Adoro-te e é nesta adoração que me despeço. 
Sou o teu, muito teu M.

Foto 8 > Mansabá, Jan/1967 : e à sombra da mangueira se começou a aprender o “ABC”
© Manuel Joaquim 

Foto 9 > Mansabá, Abril/1967: cerimónia da inauguração da escola pelo Governador e Com.Chefe, general A. Schultz. 
Foto da respectiva reportagem publicada no Diário da Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11650: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (14): Ciúmes

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11650: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (14): Ciúmes

1. Em mensagem do dia 27 de Maio de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima quarta "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

14 - Ciúmes

Vale de Figueira, 9-Fevereiro-66 
Meu M. querido, acho um pouco estranho não ter recebido notícias tuas, sábado. Esperava-as com ansiedade tanto mais que havias prometido escrever acerca de um assunto em que eu não tinha nem sequer pensado. (… … …). 
(…). 
Isto foi o prefácio para me pôr à vontade contigo. Tenho um assunto mais delicado a focar-te. 

Previno-te já que não gozes. Está bem, meu querido? 

Fotos: D. em Lisboa (1967) e M. em Bissorã (1966)

Gosto muito, muito de ti. Mas isso não é suficiente para que não sinta certas dúvidas e desconfianças quando posta ao corrente das reacções de tantos perante a vida que levam as moças de quem gostam. Eles não gostam disto ou daquilo, sentem ciúmes, etc. Ora, em todo este tempo de convivência nunca me apercebi de que, contigo, acontecesse tal. Não te rias, meu M., já sabes que detesto ser objecto de troça.

Mas existe ou não existe ciúme, o mínimo que seja, em relação a mim? Nunca me apercebi dessa existência e agora preocupo-me, sinto-me muitas vezes até diminuída, ao ouvir o que as minhas colegas me contam de noivos ciumentos. E ao expor-lhes certos pontos de como decorre o nosso namoro, elas estranham e eu deduzo que não acreditam nas tuas boas intenções a meu respeito.
(…). Mesmo assim, meu querido, acredito na tua sinceridade, na tua lealdade, numa retribuição completa, total, dos meus sentimentos.
Ainda assim, atrevo-me a perguntar-te:
- Sentes ciúmes de mim? Principalmente agora, que estamos tão distanciados, que estou empregada e que mantenho uma correspondência íntima com um grande amigo?
Explica-me, esclarece o que te for possível neste sentido. Está bem? (…).Com todo o meu amor, beijo-te e abraço-te intensamente. (…).


Bissorã, 24FEV66 
Não, minha querida, o teu comportamento nos últimos tempos de maneira nenhuma influenciou os meus silêncios, de vez em quando mais prolongados do que o costume. Tu sabes que estou contigo. Então para quê todos esses receios, por possíveis zangas minhas? 
(… … …). 
E, para a próxima, não andes por aí a atrapalhar-te com os meus aborrecimentos sem primeiro veres, com olhos de ver, o que te escrevo. 
(… … …). 
E vamos lá então falar um bocadito dos ciúmes que queres que tenha. 
Que queres que te diga? Forçosamente que os tenho mas numa quantidade muito relativa. Quero-te para mim, sim senhor. Mas quero-te para mim com a certeza de que és minha, te dás ao teu M. totalmente. O que é que me pode provocar ciúmes? Saber que te escreves com uma espécie de “rival” meu ou saber que acompanhas rapazes por aqui ou por ali? Não. 

Concedo às pessoas a máxima liberdade na máxima responsabilidade. Saber que anda um moço tentando conquistar-te, não me aflige. Fico à espera. E superficialmente advém-me uma certa aversão ao moço ou mesmo a ti (estou a falar num hipotético exemplo). Mas o meu espírito crítico põe-se logo em acção. Porquê tu com o outro? Os resultados não me afligem. Se me deixas e vais para o outro é porque, na verdade, eu te não sirvo, (…). 
Ciúmes duradoiros, não tenho. Ciúmes depois da reflexão, não tenho. Podes ter a certeza de que, se um dia te encontrasse ”fazendo amor” com um rapaz qualquer, estarias sujeita a levar dois estalos ou levarias mesmo [!!!], não pelo que estavas a fazer mas por me teres mentido. Ponho todas as hipóteses: 
Casamos. Se se desse o caso de teres encontrado um homem que te fizesse esquecer-me e mo dissesses, eu ajudar-te-ia inclusivamente a ires ao seu encontro [!]. Se eu entrasse em casa e vos visse aos dois na cama ou soubesse que a esposa se escapulia para ir ao encontro do “amado” então o caso mudaria de figura. A “queridinha” seria aquele bombo de festa [!!!]. Está claro que num ou noutro caso separar-me-ia imediatamente. Se eu confio plenamente em ti, como posso ser ciumento? Se eu confio plenamente na tua capacidade de escolheres o caminho que desejas, como posso ter ciúmes? Não sei como te hei-de explicar mas, o que é certo, é que não sou ciumento, no verdadeiro sentido da palavra. Estou a teu lado enquanto estiver convencido de que és aquela que quero ou até que me queiras. Hoje, amanhã, daqui a anos, a separação existirá se se verificar que fomos uns “patinhos” e que não servimos um para o outro. Resta-me agora acrescentar que não acredito nada em que isto possa acontecer. Amo-te e creio no teu amor, no nosso grande amor. Se o tema ciúme não estiver bem explicado, diz. Para a próxima continuo. 
Abraço-te e beijo-te, meu amor. M.


Lisboa, 1-Março-1966 Querido M. 
(…). Não há um dia em que tu não sejas recordado por mim com extrema saudade. Com a certeza do grande Amor que nos une, a vida ainda vale a pena, apesar de tudo. Conheci-te num período decisivo da minha vida, (…) agora nunca poderás sair dela, aconteça o que acontecer. 
(… … …). 
Agradeço-te, (…), o acolhimento, a compreensão, o estímulo com que aceitas e destrinças os meus problemas. Satisfez-me muito a tua explicação, os teus pontos de vista sobre o problema “ciúme”, (…). Um abraço, meu querido. Não de gratidão mas de certeza e afirmação de que te quero, um testemunho de que me serves. Essa tua explanação de ideias é suficiente, não preciso mais de falar em tal. Continuarei a merecer essa tua confiança como até agora, com a certeza de que posso contar contigo. Meu amor, talvez que quando esta carta te chegar às mãos já terás notícias da tua Mãezinha [hospitalizada]. Mesmo assim, afirmo-te que está excelente. Tenciona ir para casa esta semana. Podes descansar, meu querido, que já não corre perigo. 
(… … …). 
(…). Como anseio o teu regresso! Abraça-me, querido … Aperta-me nos teus braços como só tu sabes. (…). Autoriza que te grite uma vez mais que te amo muito, (…). (…). 
P.S. Diz-me os livros que gostarás de adquirir (…), tenho agora oportunidade de os mandar por um rapaz meu conhecido que embarca para aí a 22 do corrente. Está bem? Pede tudo o mais que quiseres. 
Beijo-te. (…).
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11614: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (13): Religiosidade

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11614: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (13): Religiosidade

1. Em mensagem do dia 19 de Maio de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima terceira "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

13 - RELIGIOSIDADE


Vale de Figueira, 11- Janeiro-1966 
(… … …) 
Eu creio sinceramente no teu regresso. Sou católica, como sabes. E a minha fé na protecção divina é grande. Deus ouvirá a minha prece. Fervorosamente, eu peço-lhe que nos aproxime, que te traga de novo ao seio da tua família. E já muitas preces foram atendidas, mesmo no que a ti respeita. Não permitiu que ficasses a meu lado nesta época mas, mesmo assim, não desespero. 
(… … …) 
Não queria causar-te aborrecimentos tocando-te em assuntos religiosos. Desculpa-me, pois, se te enfado mas tenho de te dizer o que sinto, o que é a minha opinião. 
Não terás tu, rodeado de perigos, no mais acerbo da dor, sentido necessidade de apelar para qualquer auxílio supremo, de te confiares a algum ser sobrenatural? 
Essa tua fé nos bons resultados da tua actuação, a tua confiança na sorte, não serão indícios da tua credulidade em algo de divino mas de que, confuso que se te apresenta, ainda te não apercebeste? 
Pelo estudo avançado de filosofia que fizeste e ao procurar explicar tudo à luz da razão, cais em contradição ao negares a existência de Deus. A meu ver só se pode negar qualquer coisa que sabemos que existe pois, se não existe, é utópico negá-la. Se negas a existência desse Deus, mesmo sem o perceberes afirmas que existe e apenas não queres reconhecê-lo. 
Talvez agora estejas sentindo essa necessidade de te protegeres, de te pores à guarda de um ser divino, dum ser supremo. Talvez que na aproximação do perigo estejas também tu voltando ao caminho de católico ou de cristão que és. 
(… … …) 
Apetecia-me doidamente abraçar-te, beijar-te muito, muito, (…). 
Meu amor querido, seja na Guiné ou em qualquer lugar recôndito da Terra por onde vagueemos, há problemas, há situações angustiantes. A cada um compete resolvê-las. Sorri um poucochito mais, meu querido … 
(… … …) 
Pondo em acção toda a nossa vitalidade, toda a nossa energia de jovens, não deixemos que as derrocadas diárias nos marquem ao desabarem. Deste modo venceremos, decerto. Combinado, minha jóia querida? (… … …). Confiemos então na tal “sorte”, na tão ambicionada sorte que há-de ser a tua mais fiel companheira enquanto a minha presença pessoal junto de ti nos for vedada. 

(…) beijos apaixonados da sempre tua N. 
Adeus meu querido. 


Bissorã, 18 Jan 66 

Muito obrigado pela tua carta, minha querida. Valerá a pena elogiar-te? Com certeza. Tu merece-lo. 
(…… …) 
Nota, no entanto, minha N. Apesar destes meus indicativos de satisfação, não quero que estagnes. Essa tua vontade de progredir que não pare, que não feneça. (…). Muito há ainda para descobrir. 
(… … …) 
E eu confio, tenho a certeza na tua capacidade de ascensão intelectual. Vais no bom caminho. Estás OK, minha querida! 

Quero-te dizer agora uma coisa: - sê coerente contigo própria, (…). Se és católica, se és religiosa, frequenta a Igreja, professa calmamente a sua doutrina mas sem te fanatizares, com o sentido crítico, razoável, que deve ser o de alguém consciente. 
(…). 
Custa-me dizer-te mas, no aspecto religioso, (…), não sinto possibilidades de poder acompanhar-te. Eu não nego a existência de Deus, nota bem. Simplesmente, eu sou agnóstico. Não nego a existência de Deus mas também não há nada que ma possa provar. Nada, percebes? 

Todos os argumentos que me possam indicar são, para mim, sem bases, refutáveis. Podes crer, minha querida, que em todos os momentos de aflição por que tenho passado, nunca, NUNCA, nota bem, um leve chamamento por algo sobrenatural me envolveu o espírito. (… … …). O que sinto, em todos esses momentos críticos, é ódio, um ódio extravasante. Não pelos chamados terroristas que provocam a aflição. Não tenho nada contra eles. Mas sim contra esta orgânica e seus mantenedores. Isto aqui é mesmo um inferno. (…). De um momento para o outro tudo pode acontecer. E a Guiné ficará na história de Portugal como o cadafalso de centenas de jovens, inglória e criminosamente sujeitos a megalomaníacos que não há meio de serem destruídos. Reza, minha querida, se tens fé. Agradeço-te as tuas boas intenções. 

Desculpa, mas ri-me de um período da tua última carta no que respeita à negação da existência de Deus. Aquela parte que se referia à filosofia. Tudo aquilo que expuseste são trocadilhos de ideias que não levam a nada e que muita gente usa para confundir os espíritos. Eu, como já te disse atrás, não nego a existência de Deus mas também nada há que me faça acreditar nele. 
(… … …) 
Acho que só quem tem fé pode acreditar em Deus. Não tenho fé. Já a tive. Mas sinto-me bem assim. Não preciso de pôr à minha frente o mito de um ser superior que nos vigia, vela por nós, castiga ou salva. Se Deus significa o caminho da salvação ou da perfeição, o meu Deus é o bem, o belo, a paz, a alegria, o amor, a liberdade, a vida. É um Deus mais íntimo, que eu mais acarinho pois sou eu também um daqueles que o ajudam a viver. 
(… … … ). 
Sei, para terminar, que posso afirmar convictamente: 
- A existência ou a não existência de Deus não é problema para mim. Sinto-me bem à margem, desinteressado do problema. Já sofri muito por causa disto. Agora sinto-me perfeitamente satisfeito com o meu agnosticismo. (… … …). 
Minha querida, AMO-TE. (…). 
M. 

******

 [Cerca de um mês depois de ter recebido a carta de D. (11.01.1965), onde se lê “Não terás tu, rodeado de perigos, no mais acerbo da dor, sentido necessidade de apelar para qualquer auxílio supremo, de te confiares a algum ser sobrenatural?” passei por um momento único em que me senti totalmente nas mãos do inimigo. Referi-lhe este facto, a tempo, numa das cartas mas não tocando na questão religiosa ou, melhor, indirectamente dizia que, num clima de aflição, não tinha pedido apoio sobrenatural. É que, numa emboscada e durante uns segundos intermináveis, tinha entrado no domínio do despojo absoluto (“acabou, tudo está consumado”) à espera de ser fuzilado. Mais que num grito abafado, saiu-me num murmúrio angustiante um “Ai, minha mãezinha!”. E não era aquela comum e muito vulgar expressão de aflição, era mesmo um pedido inconsciente de socorro de quem estava consciente da sua situação de total fragilidade e em que, qual bebé, “só” a sua Mãe o poderia salvar.]


Bissorã, 17 Março 66
(… … …)
Olha lá, não ouviste aí falar, na rádio ou nos jornais, numa grande operação realizada aqui, em que tivemos um êxito enorme? Foi na noite de 19 para 20 de Fevereiro. O teu M. lá andou. Vi-me tão atrapalhado nesse dia que até gritei pela minha Mãezinha e por ti. Não te rias, é verdade! Um “sacana” estava mesmo a atirar-me para cima. As balas picavam o chão à minha volta e só estava à espera de sentir uma pelo corpo dentro. Mas saí incólume. Éramos perto de 250 homens e só tivemos quatro feridos [ligeiros]. Capturámos muitíssimo material de guerra. (…). As fotografias do material capturado deveriam ter circulado pelos jornais e pela TV. Não viste? [*]
(… … …).

Foto 1

Foto 2
 Fotos 1 e 2 > Referências na imprensa (não identificada) à op. Castor.

Foto 3

Foto 4
 Foto 4: Fotos 3 e 4 > Imagens de material capturado, em espera para ser carregado no heli. 

Foto 5

Foto 6
Fotos 5 e 6 > Imagens de algum do mais importante material de guerra capturado e reunido no Olossato. 

 [*] [ “Vi-me tão atrapalhado nesse dia que até gritei pela minha mãezinha e por ti”:
 Referência à “Operação Castor” (20/02/1966) que consistiu num bem sucedido golpe de mão a um depósito de material de guerra do IN na sua grande base de Morés. Correu tudo de tal modo que o IN só reagiu bastante tempo depois, interrompendo o serviço dos helicópteros que já tinham recolhido e transportado para o Olossato a maior parte do material (cerca de três toneladas), tendo o restante de ser levado às costas pelo pessoal participante na acção (CCaç 816, CCaç 1419 e Pel Milicias). Nesta retirada, no caminho para o Olossato, sofremos uma forte emboscada. Na preocupação de coordenar os “meus” homens, aconteceu ver-me no meio da “estrada” e ter de me deitar aí, ficando a descoberto, de bruços, com a cabeça a tentar “esconder-se” atrás de um saco de carregadores vazios que antes levava aos ombros. Dei por um levantar de poeira provocado por uma rajada com as balas a picar o chão à minha frente, a centímetros da cabeça. Comecei a sentir-me alvo de alguém que tentava acertar-me. Sem hipóteses de me levantar e de mudar de lugar fiquei, imóvel, colado ao chão, à espera de ser “costurado”. Ainda hoje, quando penso nisto, sinto um calafrio a percorrer-me a coluna, desde o “buraco” ao fundo das costas até à nuca. E é verdade, “juro”, que nesta aflição me não ocorreu qualquer ideia e/ou expressão de índole religiosa. Se “gritei” pela namorada, já me não lembro. Mas o “Ai, minha mãezinha!” continua fortemente a ecoar na minha mente quando recordo o acontecimento.

Sobre esta operação militar, “Condor”, ver neste blogue o P3806 de 27/01/2009, do camarada Rui Silva da CCaç 816, de onde foram recolhidas as imagens acima publicadas. Neste “post” do nosso estimado “tabanqueiro” há dois erros a merecer correção:

(i) não foi a CCaç 1418 quem acompanhou a CCaç 816, mas sim a CCaç 1419, a que pertenci, deslocada de Bissorã para Olossato precisamente para esta operação.

(ii) também a CCaç 1481 não foi a outra companhia que atuou “à distância” pois estava em Moçambique (BCaç 1873). Julgo que na identificação houve troca dos algarismos 1 e 8 e, por isso, creio ter sido, aqui sim, a CCaç 1418 a atuar.]
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11413: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (12): A morte se fez visita estrondosa

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11413: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (12): A morte se fez visita estrondosa

1. Em mensagem do dia 14 de Abril de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima segunda "Carta de Amor e Guerra". 


CARTAS DE AMOR E GUERRA

12 - A Morte se fez visita estrondosa

Quantos de nós, na Guiné, não passámos por dias e dias seguidos sem o “cheiro” da Morte, em que esta parecia ter ido de férias, esquecendo-nos da sua ameaça de regressar ao “trabalho” a qualquer momento? Às vezes até a podíamos sentir a pairar sobre nós, qual abutre sereno e vigilante, à espera de atacar a sua refeição mas, com o correr do tempo e à falta de ataque, o “abutre” chegava a convencer alguns que estava em “greve de fome”.

Fora da área de guerra, nada é diferente a não ser haver a consciência de que a morte andará mais ou muito mais arredia. Pensa-se menos nela, alguns vivem como se ela estivesse “em greve” por tempo indeterminado.

Nas cartas abaixo transcritas vêm à tona os “caprichos” da Morte. Num período de 17 dias, ela atacou nos nossos espaços vivenciais, nos meus e nos da minha namorada*, com resultados inesperados. Nos dela, onde se presumia não haver perigo de maior, as vítimas mortais foram 41 e nos meus, a priori considerados locais de residência da morte, esta só agarrou quatro. E quanto a resultados anímicos, não sei quais os mais duros, se foram os meus por ter perdido alguns amigos e camaradas se os dela, no imediato a lidar com as angustiantes emoções dos familiares dos mortos e depois, durante muito tempo e presencialmente, com as dos feridos graves e suas sequelas físicas, psíquicas e económicas.

*Trabalhava na área jurídica e de contencioso da C.P. Todos os processos subsequentes, relativos a vítimas dos acidentes ferroviários, passavam por aqueles serviços.

Detalhe de cartas: Lisboa (22/12/1965) e Bissorã (6/1/66).


Lisboa, 22-Dez. 1965
(… … …)
(…) sinto hoje uma enorme vontade de viver! Uma imperiosa necessidade de mostrar quanto valho! A vida é uma maravilhosa caixinha de surpresas onde os bons e os maus momentos se alteram com espantosa facilidade.
Ontem, ainda, encontrava-me tão desalentada, melancólica e até revoltada. E contra quem? Incógnita, não sei especificamente. Mas revoltada contra tudo e contra todos, até. Porém hoje sinto uma enorme vontade de viver, de acreditar.
(… … …)
Este fim de ano parece estar a ser manipulado por mãos criminosas, diabólicas, entretidas em espalhar a dor e a angústia por tantos lares onde falta um ente querido que já os não acompanhará na noite de consoada. No passado dia 18, em Vilar de los Álamos, localidade próxima de Salamanca, deu-se um violento embate entre o Sud-Expresso que rodava rumo a Lisboa e um comboio-correio. (…)resultou a morte de 13 portugueses e mais 17 feridos, emigrantes que regressavam da Alemanha e da França.
Ontem, (…) outro desastre (…). Este, na linha de Sintra, entre uma composição eléctrica e um comboio de mercadorias que avançou desordenadamente sobre o primeiro. Do sinistro há a lamentar a morte de 23 passageiros e dezenas de feridos com gravidade. O maquinista do comboio responsável pelo acidente é teu conhecido. É o (…) de Pombal (…).
Nesse mesmo dia, na Praia do Ribatejo, um outro comboio (…) destinado a trazer emigrantes de França e Alemanha, chocou com uma automotora. Felizmente não há mortes a registar, apenas alguns feridos.

Detalhe de “O Triunfo da Morte” de Jan Brueghel, o Jovem, uma cópia com o mesmo nome de um quadro de seu pai, Pieter Brueghel, o Velho.
Biblioteca Nacional de Paris

Esperemos que fique por aqui. O público pagante e muitos dos componentes do grupo administrativo da C.P. não se cansam de terçar armas (…) no sentido de haver uma maior segurança no material (…) e que o pessoal tenha tempo suficiente para descanso e uma habilitação prévia para desempenhar cargos de tão graves responsabilidades. Mas … nada feito. (…).
(…) muito grata pelas amáveis cartas que recebi. Foram logo cinco de uma vez. Que alegria, meu querido!… As tuas palavras são um estímulo, um incentivo precioso para o meu sentido de viver. (…)
(… … …).
Sempre tua, N.



Bissorã, 2 Jan 66
(… … …)
Eu, minha querida, palavra que ando um pouco desorientado. Sou uma contínua pilha de nervos. E eu que era tão calmo! (…) tenho o espírito em tal estado de alerta que a mais pequenina coisa me provoca uma tal irritação que dou por mim, muitas vezes, num sofrimento angustiante (…) a tornar-me ainda mais ciente de quanto a juventude portuguesa está a sofrer em África. (…).
E vejo o futuro tão negro, meu amor… Não no que se refere a nós dois mas ao ambiente em que iremos viver, isto se eu chegar a pisar terras da Europa.
No aspecto militar a coisa vai correndo bem para mim. Mas nesta guerra nada se sabe. A calma de hoje não implica a de amanhã. Se, até agora, isto tem corrido de modo a que um indivíduo menos avisado julgue que afinal o papão não existe, de um momento para o outro o desastre pode acontecer. Não menosprezo o poder dos guerrilheiros (…). Olho para 1966 como o ano crítico de toda a minha vida. Conseguirei ultrapassá-lo? (…).


©Manuel Joaquim

Desculpa, (…), se te aflijo. (…). Não julgues também que isto está de corda no pescoço. Não é tanto assim. Mas o perigo é muito grande.
Minha querida, vai escrevendo frequentes vezes, sim? As tuas cartas são o bálsamo para minorar a angústia que me envolve. Custa-me ver-me, por vezes, tão unido a ti. Faço-te sofrer e corres o risco de sofreres inutilmente. (…).
Cubro-te de beijos, (…). E … confiemos na sorte.
Muitas saudades do teu M.


Bissorã, 6 JAN 66
(… … …)
Tivemos cá hoje a visita de algumas senhoras do Movimento Nacional Feminino, entre elas a presidente da delegação da Guiné e a presidente geral, a srª. Cecília Supico Pinto. Muito amáveis e comunicativas; a sua presença veio animar-nos bastante pois ontem, pelas cinco horas da manhã e durante uma operação que fizemos, caímos numa armadilha dos guerrilheiros e tivemos a “linda” soma de quatro mortos e cinco feridos, dois em estado gravíssimo. Foi o primeiro azar da minha companhia. Parece-me que estava a prever isto. Comuniquei-to no último aerograma que te escrevi [2 de janeiro].
(…). Estava a uns três ou quatro metros [do sítio] da explosão. Com o estrondo fiquei com os ouvidos a zunir durante uns tempos mas saí sem a mínima beliscadura. Mais uma vez a sorte me acompanhou. Um cabo, o 2904, ficou desfeito. Só conseguimos encontrar-lhe a cabeça, a alguma distância! [ver, neste blogue, “P10105: Miserere”]

“S/ título”. © Carbar (Carlos A. T. de Barros, pintor guineense)

Coitados dos soldados. Antes do acontecimento pensavam que isto era um divertimento um bocado perigoso, agora exageram com o medo que os enche.
(…), tem calma. Por isto acontecer não é motivo para desesperarmos. (…). Muitos se hão-de safar e eu hei-de ser um deles. Para ser mais verdadeiro, posso ser um deles. Estes azares não acontecem todos os dias.
Às vezes chego a pensar que seria muito melhor não te contar estas coisas. Mas eu quero, embora causando-te alguma dor, que nunca duvides da verdade com que te escrevo.
(…). Fisicamente, estou óptimo. Psiquicamente, não posso dizer o mesmo. (…). Conheces a minha maneira de pensar, os princípios que defendo, (…). Perante o que está acontecendo já sabes quais as minhas reacções.
(…). Pela tua carta vejo que por aí também se morre, e de que maneira! (…). Soube cá do desastre de Sintra e cheguei a temer pelo teu pai [maquinista da CP, naquela altura em serviço na linha de Sintra].
Até sempre, meu amor. Muitos beijos do teu M.


Vale de Figueira, 11 Janeiro 1966
(… … …)
(…), então, o que se passa!? Ânimo, querido! Nenhum esforço será inútil, verás. (…). Será preciso não desanimar mas desanuviar o espírito, olhar sempre mais alto, convencidos de que valemos muitíssimo mais do que aquilo que, no presente, nos é permitido pôr em acção.
Há tanta coisa que nos espera, (…). Tanta coisa a descobrir e que nos pertencerá. (…). Oh meu querido, reage, teima em viver. (…). Na vida nem tudo são rosas mas também, como é natural, nem tudo são espinhos. (…).
Não voltes, (…), a dizer que sofro inutilmente. Nunca se sofre em vão, estou convicta desta verdade. É no sofrimento que se purifica a alma, que se descobrem as virtudes. E, depois de uma grande dor recompensada, a alegria renasce mais espontânea, mais sincera e pura. E a minha possível dor nesta época será sobremaneira recompensada. Depende de ti. Queres dar-me essa alegria? (…). Eu espero-te. Esperam-te a nossa vida em comum e os nossos sonhos, que se hão-de concretizar.
(… … …)
Corações ao alto! Vamos, meu amor. Nunca me lastimes. Isto te peço, encarecidamente. Nunca o esqueças. Amor paga-se com amor. Isso acontece. Estou contente e satisfeita. Estamos, portanto, quites!
Apetecia-me doidamente abraçar-te, beijar-te muito, muito, (…). (… … …)
Sorri um poucochito mais, meu querido … Um sorriso dos que são obra só tua. Ainda guardo nitidamente o teu último sorriso. Essa impressão jamais se apagará na minha memória. Sabes, quanta confiança essa recordação me incute, quantos sonhos ela me leva a idealizar! … Eu quero que não esqueças esse sorriso … Está bem?
(… … …)
Então ainda não recebeste uma encomenda enviada daqui? Deveria ter chegado no dia 31 próximo passado. Hoje segue também a “Seara Nova” do mês corrente.
Adeus, meu amor
N.

Foto de António Silva Pinheiro, sold. Atir. Inf. (CCaç1419) 


Bissorã, 13Jan66
(… … …)
Pelo último aerograma que te enviei adivinhaste com certeza o meu estado de espírito. É claro que tenho de reagir a estes acontecimentos. Olhá-los como acontecimentos normais desta vida, (…), para que os momentos livres que tenho se não transformem em angústia e martírio contínuos.
(…). Sei que é estúpido andar por aqui a vergar-me à ideia de que posso “desaparecer do mapa”. Tento reagir. Mas cá no fundo uma angústia espessa, concentrada, é um peso contínuo.
As tuas cartas têm um condão extraordinário para me aliviarem. (…) são um autêntico esbanjar de ternura, de confiança, de fé, de lucidez apaziguante, de alegria de viver, de calma. (…).
(… … …)
Isto por cá vai indo. Nada mais aconteceu depois da madrugada do dia 5. Esta guerra é assim. Num dia pode acontecer muita coisa. Depois, podem surgir dias e dias sem nada suceder.
Ontem saiu daqui a Companhia 643. (…). Deve regressar à Metrópole lá para o fim do mês. (…). Se tiveres oportunidade de assistir ao desembarque do Batalhão 645 (a que pertence a Comp. 643) poderás certificar-te do bom aspecto que levam, principalmente a malta da 643, aquela que eu conheço.
Já se safaram. (…). Terei a mesma sorte que eles? (…).
Muitos sacrifícios terei ainda de suportar. Mas a esperança, contigo a meu lado, não me abandona.
(…) Até sempre, minha querida.
M.
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Nota do editor:

Último poste da série de 10 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11369: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (11): Poema

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11369: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (11): Poema

1. Em mensagem do dia 23 de Março de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima primeira "Carta de Amor e Guerra". 


CARTAS DE AMOR E GUERRA

11 - POEMA

Não tenho a mínima ideia de ter feito este “NÓS”, a que chamei poema livre, até porque vejo nele alguma qualidade e beleza.
É que a minha expressão poética nunca passou da “cepa torta”. Adoro poesia mas não sou poeta no sentido de a criar.

Na carta para a namorada, ter-me-ia “armado ao pingarelho” escrevendo “Sou eu o autor”?
Não sei, talvez me tivesse expressado mal, talvez quisesse dizer que era o autor, sim, mas daquela compilação de diversas expressões literárias e da sua ordenação em jeito de poema. Vou mais por aqui.

Já naquela altura conhecia bem o método de fazer este tipo de composições “poéticas”, tinha tido formação nesse sentido e já me tinha servido dela, com algum sucesso, na iniciação à expressão poética dos meus alunos. E tenho uma vaga ideia de experimentar fazer o mesmo com os camaradas de quarto, em Bissorã.

É um método simples. Escolhe-se um tema e pede-se a cada aluno da turma que crie, livremente, uma curta frase ou expressão sobre esse tema. Depois analisam-se as diversas frases/expressões, retiram-se palavras supérfluas, escolhem-se e ordenam-se as ideias expressas transformadas em versos e faz-se assim um “poema”. É, neste caso, um trabalho colectivo de composição escrita e do qual não é raro saírem coisas lindas. Creio mesmo que em muitos dos meus alunos se instalou, assim, o bichinho do gosto pela poesia.


Bissorã, 7DEZ65

Um quarto de militares tem uma decoração “sui generis”: [fotos de] mulheres mais ou menos despidas, quadros pictóricos, frases célebres ou com um sentido mais ou menos relacionado com as actividades dos ocupantes. A decoração do meu quarto (meu e de mais três moços) tem um cunho intelectual que o torna um pouco diferente. No desejo de te dar a conhecer o ambiente em que vivo, vou transcrever-te o que, em grande plano, domina a decoração das paredes do quarto. Sou eu o autor. Aqui está, minha querida, o poema livre “NÓS”:

Igual pobreza duma vida limitada
Onde as palavras são o reflexo
E as lágrimas também
Da força perdida
Da força sonhada
O medo e a coragem de viver e de morrer
A morte tão difícil e tão fácil
Homens para quem a vida foi cantada
Homens para quem a vida foi negada
Homens reais para quem o desespero
Alimenta o fogo devorador da esperança.

Saudosamente, o abraço de sempre com todo o Amor do teu
M.

Cipriano Oquiniame: “Caos em Guiné-Bissau” 
Retirado, com a devida vénia, de “Artistas plásticos, pintores e escultores da Guiné-Bissau” em www.didinho.org
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Nota do editor:

Último poste da série de 20 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11282: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (10): À volta de uma fotografia

quarta-feira, 20 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11282: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (10): À volta de uma fotografia

1. Em mensagem do dia 15 de Março de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

10 - À volta de uma fotografia

[Ao início da manhã do dia seguinte à chegada da CCaç 1419 a Bissorã, um grupo ruidoso de jovens mulheres oferecendo os seus serviços de lavagem de roupa “atacava” a “casa dos furriéis” (como era conhecida uma vivenda no centro da vila, “herança” da CCaç 816, segundo julgo).

De entre essas mulheres fixei-me numa que sobressaía pela beleza, pelos cuidados postos na sua apresentação física (magnífica), pela calma e segurança na atitude e pelo brilho do olhar, que me confundiu. E ela percebeu a minha confusão, tenho a certeza!

 “Apanhado”, fiquei à sua espera enquanto ela cirandava na conquista de clientes e me dirigia um olhar furtivo, de vez em quando, como que a dizer “já estás no papo, já tratamos do assunto”. Embevecido, fiquei à espera a apreciar aquele comportamento, típico de alguém que sabia dos efeitos do seu uso. E foi “tiro e queda” quando se me dirigiu. Caí logo, fizemos logo contrato. Com fotógrafo perto, ia lá eu perder uma imagem daquele momento com aquela beleza! E saiu esta foto (foto 1).

Não é a primeira vez que me refiro a esta menina-senhora de há 47 anos. Os seus serviços de lavadeira foram impecáveis, o nosso relacionamento foi magnífico. Passei bons momentos com ela, no seio da sua família. “Honni soit qui mal y pense”, preciso sempre de dizer, pois o nosso relacionamento físico nunca ultrapassou as relações inerentes ao seu trabalho. Mas foi um relacionamento que me deixou boas lembranças.]

Foto 1: Bissorã, 24/10/1965. Linda, a minha lavadeira! 
© Manuel Joaquim 

Lisboa, 9-Dez. 1965

Queridito: 
É muito gira é, a tua lavadeira. Sabes escolher o que te convém e atrevo-me a afirmar que não te envergonharás de a teres a teu lado. Serve-te, não é verdade? Óptimo. 
Como facilmente depreenderás, vi a foto que enviaste à tua Mãe.[foto 1] (…), sem querer, instintivamente, senti um certo mal-estar como se, nesse momento, tudo me fugisse ao olhar-vos. 
Agora (…) reconheço, sem sombra de dúvida, que foi uma reacção descabida, uma reacção sem sentido que valha justificação. Em suma, uma reacção estúpida e indigna de mim. Mesmo assim, não deixo passar a oportunidade de te expor os meus pontos de vista sobre o assunto. 
Por que não enviaste à tua D. um exemplar da foto que enviaste à tua Mãe? Dirás que sou parvinha, que estou com ciúmes e a dar tanta importância ao que não a merece. Sou ciumenta mas posso perfeitamente afirmar que o que senti não foi de modo nenhum ciúme. (…). Senti-me um pouco desgostosa ao ser apanhada de chofre e por atribuir o teu procedimento ao facto de já não confiares em mim, de duvidares sobre qual seria a minha reacção perante a foto. Temias a minha reacção. Foi isso, meu querido?! 
Mas ouve-me, (…). Escuta-me e depois dirás se tenho ou não razão para ficar magoada. 
Ora, se não há nada de anormal, e eu acredito nisso, em contratares uma mulher para te tratar das roupas e do mais que te for necessário, em aproveitares uns momentos de folga para tirares umas fotografias, com que intenção me quiseste ocultar esse facto? (…).
Eu poderia agora, como medida de precaução, ficar de pé atrás, (…). Segundo minha opinião deverias também ter-me confiado essa “pose”. 
Há uma atenuante que ainda formulo para tornar mais branda, menos injusta a tua atitude. Dar-se-ia o caso de teres assim procedido por quereres evitar-me possíveis sofrimentos (…)? 
Mesmo assim, a minha conclusão ao analisar o teu procedimento foi esta: falta de confiança na tua N. Não sabias qual seria a minha reacção e, então, vá de ocultares-me o que poderia induzir-me em erro, levar-me a magicar, a imaginar algo com sentido completamente antagónico ao que a verdade representa. 
Espero e peço-te mesmo que nunca mais assim procedas. Por que não hei-de aceitar com agrado a tua presença junto de uma pretinha? Tanto mais que ela te é indispensável enquanto aí te retiverem! Aceito com certeza, meu amorzito. 
Há sempre uma certa tendência para exagerarmos certos factos, para procurar dar-lhes até um cunho de “maldade” quando se descobre que estão a correr em segredo. Isso desperta a nossa curiosidade e a nossa tendência para uma má interpretação. (…). 
E agora que me justifiquei, vamos pôr uma pedra sobre o assunto exposto. Não é motivo que valha a nossa discussão. 

(… …. ……) 

Para ti, os beijos e abraços que quereria dar-te neste momento. 
Sou a tua N. 


Bissorã, 12dez65 

(…) recebi hoje a tua última carta que, (…), provocou (…) um certo sorriso “malicioso” mas, ao mesmo tempo, também muito carinhoso. 
Com que então ficaste aborrecidita com uma fotografia toda pinocas, (…). 
(…) mandei-a para a minha Mãe, precisamente porque pensei que ela se iria divertir muito mais do que tu. E parece-me que foi isto mesmo que aconteceu. 

Começas por afirmar que não é questão de ciúmes mas, (…), cais em contradição com o que dizes à frente. Se calhar sou capaz de ficar por aqui a criar garotinhos mulatos. É que eu, sabes, gosto tanto da Guiné, adoro a Guiné, vai ser a minha futura pátria! 

Gostava de saber, minha querida, que género de controvérsias o caso poderia vir a provocar entre nós. (…). Julgas então que não te enviei a fotografia por pensar que ias ficar tão magoada que daqui poderia haver um rompimento dos laços que nos unem? 
(…). 
(…) afirmares a hipótese de ficares de pé atrás, como medida de precaução, (…) é “do arco da velha”. Oh D.! Não procures atenuantes para a minha atitude. Não te mandei uma foto igual porque não tinha mais nenhuma. Só isto. Como nem sequer pensei em enviar-ta. A que tinha estava destinada à minha Mãe. Mais nada. 
(… … …) 
Bem, como também afirmas, e eu corroboro essa tua afirmação, não sei onde está a importância do caso. Mas se aquilo que disse te levar a qualquer aflição, (…) peço-te encarecidamente que não te cales e que exponhas o que te aflige, (…). 
(… … ….). 
(…).Os beijos e abraços de sempre do teu M.

Foto 2: Mansoa, 1970, Lavadeiras.
Bela foto do camarada desta Tabanca Grande, César Dias, retirada com a devida vénia de http://bcac2885.com.sapo.pt/index.html
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 13 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11247: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (9): Saída de Bissau para Bissorã

quarta-feira, 13 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11247: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (9): Saída de Bissau para Bissorã

1. Em mensagem do dia 10 de Março de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a nona "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

9. Saída de Bissau para Bissorã

Bissau, 23/Outubro/65 
Escrevo-te hoje porque, precisamente hoje, vou sair de Bissau. Irei para uma zona do interior, a minha nova e com certeza definitiva residência nesta malfadada Guiné. Vamos lá a ver o que me irá acontecer. Sem dúvida que a vida se vai tornar um bocado mais dura. Mas nem tudo são males. Lá também passarei horas descansadas. Brevemente te darei notícias mas é natural que antes do próximo avião isto não seja possível. Por isso te escrevo agora. É lógico que a correspondência se atrase mais um ou dois dias mas isto não é problema.

O facto mais importante aqui está. Ficarei a residir no “mato”. Mais uma grande experiência de vida. O perigo não é nenhum papão e tudo se há-de passar, minha amada N., da maneira mais agradável. Irei fazer por isso. Tem calma, não te exasperes. Tudo correrá bem. Seria ridículo minimizar o perigo mas o que também é certo é que é preciso ter muito azar para morrer. 

A hora do nosso reencontro há-de chegar. Não percas a esperança porque há razões para a sua existência. Uns vêm, outros regressam. Daqui a poucos dias há-de chegar, mais uma vez, uma carga de homens mas quase uma mesma quantidade regressará à metrópole. Lá para os primeiros dias de Novembro aí estarão e, se fores ao cais, verás que o seu aspecto é bom, convidativo à esperança num bom sucesso também do nosso lado.

Vê lá se procuras ocupar o teu tempo de maneira a não pensares muito na nossa situação. Leva a coisa como o acontecimento mais natural do mundo. Ocupa-te na leitura, no passeio, em qualquer actividade que te distraia. Não quero que a minha menina se enfie num canto a limpar as lágrimas e a transformar esta nossa separação num coro de lamentações.

Estas nada valem. E verás os dias passarem, as semanas correrem e, quando menos dermos por isso, estará esta minha comissão no fim. 

Espero ir-te mandando umas fotografias frequentemente para que talvez sintas a minha presença mais real. Estou bem como poderás ir verificando.

O tempo não é muito. Tenho de partir. Na próxima carta espero dar-te informações mais precisas sobre a minha localização. Agora não posso. 
(…). 

Apaixonadamente, sou o teu M. 
(…) 

Foto 1. Mansoa, 23/10/1965, a CCaç 1419 a caminho de Bissorã: uma breve paragem. 
Em primeiro plano, o fur. milº Manuel Joaquim. 
© Manuel Joaquim 


Bissorã, 31/Out./65 
(… … …) 
(…) como te prometi na última carta, eis-me a dar-te algumas impressões sobre a minha nova localização. A localidade onde estou aquartelado chama-se Bissorã. É uma vilazinha razoável. O mal é estar cercada pelos revoltosos. Situada no meio da selva está, como é lógico, cercada pelos “turras” (como se lhes chama cá) já que a selva é o refúgio deles. Na vila está-se razoavelmente [bem]. O pior é quando se sai. Cheguei cá no dia 23 e já apanhei um grande aperto (*). Para te estar aqui a escrever, tenho de me considerar um indivíduo de sorte. O pior é se ela me não acompanha até ao fim. 

Foto 2. Bissorã, vista aérea do centro da vila
Foto do cap. Carlos Oliveira, retirada com a devida vénia do “website” de Carlos Fortunato, leoesnegros.com.sapo.pt/

Outra coisa que me aconteceu, não perigosa mas bastante aborrecida: À vinda para aqui desapareceu-me aquele meu saco azul-escuro. Com ele foi a carteira com todo o recheio: dinheiro, todas as fotografias, as tuas e as minhas, inclusive uma colecção que cá tinha tirado e que tinha intenções de te ir enviando (já tinha começado), bilhete de identidade, o isqueiro que me ofereceste, roupas, livros, caneta, selos, cartas (por acaso nenhuma tua) e mais uma série de artigos de uso pessoal. Nunca mais o vi e quem sabe lá por onde ele já andará. Apesar de tudo, se os meus azares fossem tão grandes como este, oh felicidade, seria um indivíduo cheio de sorte. 

[No dia 23/10/1965, as condições de passagem do rio Braia não permitiam a passagem de viaturas pelo que se teve de fazer a transferência de carga entre elas, do lado de Mansoa para o de Bissorã e vice-versa. Destacado para fazer segurança ao acto desleixei os meus pertences. “Aquele saco azul” foi um chamariz para um fdp qualquer e o seu roubo causou-me alguns problemas, quer emotivos quer funcionais.]

Foto 3. “O local do crime”: estrada Mansoa-Bissorã, “ponte” de Braia, com o tabuleiro reconstruído em 1966. Ao fundo da foto, nota-se a torre de um fortim. 
 © Henrique Cabral: “Rumo a Fulacunda CC1420 Guiné 65/67” 

Foto 4. Fortim de Braia: construído para defesa da ponte

A situação é péssima. A morte é a nossa parceira do lado. É incrível como às vezes se consegue escapar (*). Tão inverosímil que chegamos a mirarmo-nos, a apalparmo-nos, pois não acreditamos na nossa incolumidade. A sensação que nos envolve ao estarmos num lugar, mudarmo-nos e passados segundos rebentar uma granada no sítio onde estávamos anteriormente, não se pode exprimir. Vermos as balas a furar o terreno junto a nós, fazendo saltar a terra para os olhos e não haver uma que nos acerte faz-nos parecer estar a sonhar. Mas não sonhamos porque de vez em quando lá caem alguns. 
Ficaríamos malucos se não sentíssemos uma acentuada indiferença pelo perigo e uma grande esperança em cada um de nós ser do número dos felizardos, dos que conseguem sair daqui inteirinhos. 
(… … …)

(…). Beijo-te. Com todo o meu amor por ti, minha querida, saudades do M. 

(*) [São referências à primeira operação feita, em Bissorã, pela CCaç.1419, três dias depois da sua chegada. Foi apoiada por um grupo de combate dos “velhinhos” (CArt. 643) de que fazia parte um membro ilustre desta Tabanca Grande, o Rogério Cardoso. Foi nesta acção que ele ficou gravemente ferido, atingido por uma granada de RPG que, milagrosamente, não explodiu mas causou-lhe uma grave fractura exposta do fémur esquerdo.]


Lisboa, 1-Nov. 1965

Foto 5. Fur. mil.º Manuel Joaquim: no centro de Mansoa, a caminho de Bissorã (23/10/65). 
© Manuel Joaquim 

Meu M. (…) adorei (…) esta fotografia que não me canso de admirar. És mesmo tu. É o meu M.! Oh querido, não calculas como fiquei contente. Agradeço-te a lembrança pelo prazer que me dá poder olhar-te e sentir, vamos lá, a tua presença mais real, poder fixar-te com a ternura, o Amor que te dedico. Muito e muito obrigada, queridito. (…). Pareces-me com muito bom aspecto pelo que pude avaliar pela foto. 

(…). Não sei se já recebeste a carta que te enviei 3ª feira mas é provável que isso não tenha acontecido porque já não te encontravas em Bissau. Desta vez recebi duas cartas com intervalo de dois dias apenas. Já começava a ficar atrapalhada. Também não é preciso muito para te atrapalhares, dirás tu. Em parte assim é. (…). 
Só a angustiante situação que nos obrigam a suportar me leva a este comportamento, a agir como se já não acreditasse em ti. Não foi isto que pensaste? Que eu não confio em ti, não acredito nas tuas promessas, em tudo o que me dizes? 
Isso já aconteceu. Agora estou muito acima, sou superior a tudo isso. A autoconfiança que já adquiri solucionou o meu problema, já não admito a hipótese, não penso sequer na possibilidade dum afastamento, no afrouxamento dos teus sentimentos e das nossas relações. Esta ideia parece-me mesmo descabida, como se fosse já impossível a separação entre nós. Mas o certo é que isso me dá uma certa comodidade, uma certa tranquilidade até. 
Só o perigo a que diariamente estás exposto me gera algumas preocupações. Só estarei completamente tranquila, calma, enfim a D. em cheio, quando o teu regresso definitivo for transformado em realidade, quando te vir pisar o solo de Lisboa, (…). 
(… … …) 
Olha querido, enviei-te por um sargento que aí chegou no último contingente a bordo do “Niassa”, uma pequena lembrança. Com certeza ainda a não recebeste. Eu disse-lhe que te encontravas em Bissau mas a verdade, pelo que me disseste nas últimas notícias, quando aí chegou já tu tinhas partido. Não sei se será possível descobrir onde te encontras e enviar para a tua nova morada ou então deverá devolvê-la. 
(… … …) 
Para ti vão as minhas carícias, os meus beijos e abraços, todo o meu Amor por ti. Adoro-te, meu querido. (…). 


Bissorã, 9-Nov. -65 
Recebi ontem a tua carta escrita aí em 1/Nov. Por aqui vês o tempo que a correspondência demora. Escrevi-te uma carta um pouco rígida mas, perante esta tua última carta, estou convencido de que ainda devia ter sido mais acutilante. Porquê? Precisamente porque achei uma diferença nítida entre as duas cartas. Recebes correspondência … escreves cartas razoáveis. Não recebes correspondência, atiras-te com frases disparatadas. Achas bem? Vamos lá a ver se daqui para o futuro nos entendemos. 
(… … …) 
Minha querida, tem paciência. A minha vida aqui não está muito segura mas não percamos a esperança. Um azar tanto acontece aqui como em qualquer outro lado. E eu hei-de regressar. Hei-de voltar. Quanto à encomenda que dizes ter-me mandado, ainda não apareceu. Deste o meu SPM ao tal sargento? Este como se chama e qual é o seu SPM? 
Desculpa escrever-te só este simples aerograma mas estou muito e muito cansado. Cheguei há pouco de uma “operaçãozinha” que me arrasou os nervos e o físico. Isto, com uma boa soneca, passa depressa. 
Apaixonadamente, os beijos e abraços do teu M. 
Saudades
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 6 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11199: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (8): A falta de notícias na retaguarda

quarta-feira, 6 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11199: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (8): A falta de notícias na retaguarda

1. Em mensagem do dia 2 de Março de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a oitava colaboração para a sua série "Carta de Amor e Guerra".

Meus queridos editor e co-editores Luís, Carlos e Eduardo:
Uns percalços vivenciais atrasaram o envio de mais um "item" desta série.
Este tema de hoje estava já alinhavado e, assim, foi o que mais depressa pude arranjar.
Vamos lá a ver se recupero aquele atraso que estou a sentir (não tenho mais nada pronto).
Receio que o tema de hoje seja "mixuruca" para muitos. Para mim não é mas, como sempre, respeito totalmente o v/ "criterioso critério".

Para o valioso "trio de ataque" deste blogue
Um grande abraço
Manuel Joaquim


CARTAS DE AMOR E GUERRA

8. A falta de notícias na retaguarda

Quando se fala da guerra colonial é normal referir o sofrimento dos combatentes mas não é comum falar-se, ao mesmo nível, da dor suportada pelos seus entes queridos (pais, avós, irmãos, namoradas, etc.).
Dizer que os combatentes, a maioria, ligavam o seu maior ou menor sofrimento ao nível de perigo que corriam, é excessivo? Acho que não. Até podiam sentir “folgas” no perigo, quer dizer, podiam passar um ou outro período mais ou menos longo em que a situação de periculosidade era como que esquecida. Acrescia ser também natural que as preocupações quanto aos seus entes queridos pudessem ser sublimadas pela ideia de que estes não corriam perigo algum a não ser de doença ou de acidente (em que, normalmente, não se pensa). Ideia esta que os podia levar a menosprezar o valor da sua comunicação. E isto aconteceu muitas vezes.

Na retaguarda a situação era diferente: quem ficou queria notícias frequentes do seu combatente querido, de modo a amenizar a sua insegurança quanto à verdade da situação. Vivia como se ele estivesse constantemente em perigo, isto é, nunca poderia saber se ele estava doente, ferido ou morto quando nele pensava ou quando para ele escrevia.

Ver, como eu vi, um monte de cartas dirigidas a quem tinha falecido umas horas antes, é coisa que não se esquece. Foi uma visão brutal que me ficou marcada para sempre. Hoje me penitencio pelo sofrimento que provoquei junto dos meus entes queridos com as minhas falhas em dar notícia. Tenho a certeza que teria mitigado algum do sofrimento que a minha ausência lhes provocava.
Termos alguém muito querido numa situação perigosa, sem notícias dele em tempo real e sem se poder fazer nada para o proteger, deve ser amargurante: sempre à espera, qual lotaria “a contrario”, ansiando que os números sorteados não nos contemplem com um “prémio” de desastre, qualquer que ele seja, desde a “terminação” à “taluda”.

Segue-se um exemplo, na parte que me diz respeito:

Vale de Figueira, 27. Set. 1965 
(… … …) 
Vou-me contentando com as tuas notícias (embora poucas) (…). Depois, se não dizes mais nada, (…), que hei-de eu fazer? Levar a mal e zangar-me? Não. Não seria razoável. Então que fazer? (…) analisar bem a situação em que te encontras para não me atormentar a imaginar, (…) problemas onde os não há. 
(… … …) 


Vale de Figueira, 5. Out. 1965 
(… … …) 
Temo a distância. E eu, (…) nem sempre sei (…) manter a calma, agir com condescendência e benevolência que sempre me foram peculiares para [com ] o teu procedimento, (…). Por vezes o sofrimento torna-nos duros, incomunicáveis e sobretudo incompreensíveis. Mas (…), continua a dar-me notícias quando e como te for possível. 
(… … …) 


Lisboa, 18 – Outubro – 1965 
( … … … ) 
As saudades são muitas, meu amor. É justamente quando preparo tudo para me dedicar à leitura ou para te escrever que o sossego e o isolamento do meu quarto avivam a lembrança de tudo o que me deixou. Essas recordações surgem mais nítidas, mais agudas, e fico liquidada. 
Ou sonho acordada contigo ou tenho tanta vontade (…) de correr para junto de ti que tudo aqui me parece odioso. Que ninguém me venha falar! Chego a ser cruel, violenta, mal-educada. Acabo sempre por chorar, por ficar abatida e enervada. Não sou tão forte como supunha e como tu imaginas. Sinto-me mesmo mais frágil, mais inútil do que nunca. Ora para que isso não aconteça é preciso que exija de mim mesma um esforço de vontade em grau mais ou menos heróico. (…). 
Mas eu vejo-te tão longe! Tu que és parte da minha vida. Tu que és complemento indispensável à continuidade da minha existência válida (…). 
(… … …). Meu Amor querido, (…), lutei para não deixar, para não te expor o que se estava passando comigo. Mas agora que estou sem notícias tuas é-me impossível resistir por mais tempo. 
(… … …)


Lisboa, 24-Outubro-1965 
Não sei porquê mas continuo sem notícias. Afinal, vives ou não vives meu M.? Há quinze dias que espero umas palavras tuas mas em vão. Já deixo de esperar para não sofrer cada dia mais desilusões. Não podes, ou não queres fazê-lo, é o que deduzo (…). 
(… … …) 
E já lá vão duas semanas, meu querido. (…) não acredito que não escrevas por de algum modo estares ressentido comigo. (…). Se algum problema surgisse, expor-mo-ias para que o discutíssemos e chegássemos a um possível acordo. Disso tenho a certeza. Mas também é certo que não deixo de estar preocupada. Mesmo com as tuas cartas semanais os dias sem ti parecem-me mais longos, sombrios, sem sentido. Agora (…), com falta de notícias, navego em mar largo sem rumo certo, vivo na escuridão.


Assim não. Não pode ser, meu querido. Não suporto esta situação desesperada em que vivo actualmente. (…) sem nada saber de ti, se isto assim continuar eu afirmo-te convictamente que não aguento. (…). 
Gostar – o simples facto de gostar de alguém – desperta poderes estranhos e emocionantes. Quanto mais gosto de ti, com mais confiança posso agir mas também mais te desejo ou, pelo menos, mais desejo algo que me fale de ti. 
Diz-me o que queres, querido! Farei tudo para te agradar. Nenhuma realização me parece impossível, não há derrotas que não possam ser superadas quando desejo, de corpo e alma, ajudar-te e buscar nessa ajuda força para mim, acreditar que a vida vale a pena ser vivida e essa crença ajudará a transformar isso numa realidade. Mas num momento tudo pode ser desfeito e todas as nossas esperanças, quais nuvens de fumo, dispersas pelo vento. 
(… … …) 
P.S. Suplico-te que me expliques o que se está passando. Quero saber a verdade. Sou a tua D.


Vale de Figueira, 8 - Nov. 1965 
(… … …) 
(…) a tua D. não vive o dia a dia alheia, insensível à dor de que são feitos os teus dias (…). É guerra. É sacrifício, incerteza em cada minuto que se segue. É duro como duras são as palavras que me dirigiste. E a guerra torna os homens duros, ásperos, insensíveis. Não era minha intenção criticar-te e parece-me que o não fiz. Aliás não havia razão que o justificasse. Compreendo muito bem que é impossível uma brevidade regular na expedição do correio. Nem tão pouco escreves quando queres mas apenas quando podes. Seria egoísta se não compreendesse isto mas tenho a certeza de que não o sou. (…). E muito menos insinuei afastamento ou esquecimento do teu lado. Só o teu mau humor poderia levar-te a deduzir isso. Não me lembro bem do que te disse mas mostrei-me preocupada apenas pelo facto de pensar que qualquer deficiência física poderia ter sido o motivo dessa falta de notícias. 
(… … …) 


Vale de Figueira, 9-Fevereiro. 1966 
Meu M. querido acho um pouco estranho não ter recebido notícias tuas (…). Esperava-as com ansiedade, (…). 
(… … …) 
Desculpa as minhas palavras de hoje, meu M. Estou descontrolada. Acredito que o atraso do correio não dependa de ti. (…). 


Lisboa, 1-Março-1966 
(… … …) 
(…), peço a tua benevolência para o facto de nem sempre saber controlar-me quando, por qualquer motivo, há um período mais longo sem informações tuas. 
(… … …) 


Vale de Figueira, 9-Março-66 
(… … …) 
Na nossa actual situação o que me interessa sobretudo é que semanalmente me dês testemunho de que ainda há vida nesse corpo tão massacrado, de que vais vivendo na esperança de ver chegar a hora do regresso. (…). (…) um “estou bem”, género telegrama, é uma felicidade para mim. É um lenitivo tão forte e um incentivo (…) para continuar a esperar. 
(… … …) 


Cacém, 4-Novembro-1966 
(… … …) 
(…) a preocupação e a angústia de que estou tomada ao riscar no calendário mais um dia, dias consecutivos, semanas, sem receber a retribuição dos meus contactos contigo. (…). É um período considerável sem receber notícias e não pode deixar de me afectar. 
(… … …) 


Cacém, 25.12.1966 
(…), com medo de uma decepção, rodo a chave na caixa do correio. Expectativa, enervação … mas zás! (…). Oh alegria, oh que felicidade, meu Amor. Que maravilhoso prémio de Natal quando os [dias] precedentes eram a escuridão, o silêncio. 
E o conteúdo será de molde a corroborar a alegria anteriormente manifestada, (…) ao encarar o envelope surpresa? 
Nervosamente (…) rasgo o envelope. Para a frente é que é o caminho (…). Os meus olhos buscam avidamente o final da carta. Talvez porque a maneira como estaria encerrada me daria já uma ideia do seu conteúdo. “Gracias”, meu M. querido. Estive feliz (…) no dia de Natal, na medida em que a felicidade é permitida e se pode viver longe dos que se amam. 
(… … …) 


Cacém, 16-Janeiro-1967
(… … …)
Acredito que nestas folhas de papel que semanalmente cortam a atmosfera transportadas num avião, voe cada um de nós para junto do seu Amor. (…). Eu iria agora mesmo, inteirinha, se pudesse ser transportada com um rótulo [selo?] de 2$50 na fronte.
Ah, meu Amor querido, cada vez com mais ardor te quero meu (…)

Técnica mista, Mario Coopé (pintor guineense). 
Imagem retirada de www.didinho.org, com a devida vénia.

Vê que até em sonhos sinto os teus contactos (…). Reflexo da necessidade insatisfeita que vivo de ti, motivada por esta maldita separação tão prolongada.
Se ainda sofresse de pudicícia exagerada diria que estava a ser tentada pelo Diabo. (…). Eu seria agora, aqui mesmo não tinha importância … (estou na cama), o mais completo diabrete.
Efusivamente, num frenesim de amor e de paixão que tu, agora, (…) me proporcionarias e eu correspondo, beijo-te (…).
(… … …)
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 27 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11163: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (7): E a morte apareceu