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domingo, 5 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24824: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (18): a taberna em meio rural (António Eduardo Ferreira, 1950-2023, Moleanos, Alcobaça)



Fado (1910),  quadro a óleo sobre tela, de José Malhoa (1855–1933). Museu de Lisboa. Imagem do domínio público. Cortesia da Wikimedia Commons.


1. Das coisas do passado, do tempo da nossa infància, falta ainda falar de lugares de "socialização" como a igreja e a escola... mas também da "rua" (onde se brincava), sem esquecer a taberna, tanto em meio rural como urbano,  se bem que fosse um lugar "interdito" aos putos: só se lá ia para ir chamar o pai, ou comprar um quartilho de vinho, nomeadamente nos meios rurais ou nas pequenas vilas de província. Eram  em geral espaços públicos esconsos, acanhados, sujos e mal iluminados. 

 Etimologicamente, "taberna" vem do latim "taberna", do grego ταβέρνα (que significa "abrigo" ou "oficina"). Tanto nos meios rurais como citadinos, tinha uma função importante não só para efeitos de consumo (e venda) de bebidas alcoolócias (com destaque para o vinho, a copo) e ainda do  petisco,  bem como local de convívio, troca de informação, notícias, ideias, etc. 

A história do fado (vd. imagem acima), por exemplo,  é indissociável das tabernas que existiam nos bairros populares nas zonas ribeirinhas de Lisboa, ao longo do séc.XIX até aos anos 70 (e também das "hortas", " fora de portas", já na zona saloia, que começava em Benfica,  e onde os alfacinhas (operários, marçanos,  pequeno funcionalismo público, etc. )  iam aos "comes & bebes",  sábado à noite, em geral em família ou em grupo  com direito a "fados e guitarradas".

Ainda frequentei, como estudante e como investigador, no àmbito da licenciatura em sociologia, a "Pérola da Atalaia", uma modesta taberna, para não dfizer "tasca", sita na Rua da Atalaia, Bairro Alto, Lisboa, que hoje já não existe. Tinha meia dúzia de meses (se tanto),   com  tampos de mármore (fáceis de lavar com um pano molhado), e bancos, e um cheiro típico, a fritos, vinho tinto e lexívia...

Fiz parte, no final dos anos 70, de uma vasta equipa de alunos de sociologia, dirigida pelo antropólogo Joaquim Pais de Brito (ex-director do Museu Nacional de Etnologia), que fez a primeira abordagem séria, académica, com rigor científico, do fado enquanto "canção popular urbana de Lisboa"... Eu e a minha equipa interessámo-nos pelo chamado "fado vadio", amador, espontàneo,  que ainda se cantava e tocava, na época, no Bairro Alto.  Procurávamos sobretudo registar letras,  personagens, falas, ambientes, etc.

As "casas de fado" (desdeva II Guerra Mundial  para "turista"...) têm a sua origem na taberna lisboeta... Foi o laboratório da canção popular urbana que, ao longo da sua história de dois séculos, e em termos político-ideológicos, foi tudo, a avaliar pelo conteúdo das suas nas letras, a tal ponto que se pode dizer que há um fado liberal, miguelista, marialva, monárquico, republicano, anarcossindicalista, socialista, comunista, fascista, progressista...  O fado é a "ganga da história"... 

António Ferro e o Secretariado Nacional de Propaganda (SNP), depois SNI, no Estado Novo, quiseram fazer do fado "uma canção nacional"... O mesmo aconteceu ao flamenco (em Espanha), e ao tango (na Argentina). Enfim, houve uma apropriação digamos "societal" de uma forma de expressão musical popular, que na origem não era só "cantada", mas também "dançada" e "batida", e estava ligada, socioantropologicamente falando, a estratos sociais marginalizados.

Muito aprendi, nessa altura, com o meu mestre e amigo Joaquim Pais de Brito, pioneiro na abordagem socioantropológica do fado e hoje talvez injustamente esquecido... Quando fui a um entrevista de admissão como docente à Escola Nacional de Saúde Pública fui aconselhado a omitir, do meu currículo, os muitos fins de tarde passados na "Princesa da Atalaia"... (Ainda havia prostituição de rua nessa altura, e a saúde pública dava-se mal com estes lugares  social e culturalmente estigmatizados e marginalizados, na época).

2. Mas vamos ao que interessa: a taberna, em pequenas terras do interior do nosso querido Portugal, como Molianios (ou Moleanos), Alcobaça (hoje famosa pelo seu calcário, que é énico e se chama justamente Moleanos). 

Nas tabernas de Moleanos  provavelmente nunca se cantou o fado, a não ser muito esporadicamente. (No baixo Alentejo, a taberna, sim,  era o local por excelència do "cante".) 

A evoção da taberna em meio rural (que nada tem a ver com o fado, "canção popular urbana" nem com a iconica pintura do José Malhoa que reproduzimos acima ...) é feita aqui pelo nosso saudoso camarada António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º  cabo condutor auto, CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74).

Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014). No nosso blogue é autor das séries O tempo que ninguém queria e Pedaços de um tempo,



A taberna na minha aldeia de Moleanos nos anos 50

por António Eduardo Ferreira


Recuando no tempo, a conversa, hoje, é sobre as tabernas que existiam na aldeia de Molianos ou Moleanos, segundo o topónimo oficialpor volta do ano de 1950 do século passado, e aquilo que elas representavam na vida das pessoas de então. (*)

Por essa altura, e ainda durante mais alguns ano, foram as tabernas os locais onde os homens se juntavam ao domingo, assim como nos dias santos, ou no inverno quando não era possível trabalhar nas terras.

Durante o tempo que estavam nas tabernas, eles, para além de muita conversa, aproveitavam para beberem uns copos do tinto e também do branco, ainda, que, por aqui, fossem poucos o que trocavam o tinto pelo branco. O bagaço também fazia parte das bebidas que eles consumiam. Outras havia que não faziam parte dos seus hábitos: a cerveja, a gasosa, a laranjada e ainda o pirolito que, entretanto, acabou!... 

Para beberem vinho, algumas vezes, nem necessitavam de copo, bebiam todos pela mesma garrafa, "a olho",  como naquele tempo por aqui se dizia.

As tabernas, para além das bebidas… eram também o local onde se vendia quase tudo que as pessoas necessitavam para o dia a dia: o açúcar, o café (para fazer na cafeteira), a massa, o arroz, o colorau, o petróleo, o bacalhau, o sebo para as botas, entre muitas outras coisas. 
Noutras sítios também se chamava "venda" à taberna onde se ofereciam, para venda, além de vinho e comida,  artigos de mercearia; topónimos como Venda das Raparigas podem ter na sua origem um destes estabelecimentos à beira da estrada; e nas feiras a taberna era a "tenda". ]

Um pouco mais tarde, em algumas, até comprimidos para a constipação... vendiam, eram uma espécie de minimercado da época.

Naquele tempo, na aldeia de Molianos, as mulheres não frequentavam as tabernas, a não ser para irem fazer as compras e logo regressavam a casa. Diziam os homens que as tabernas não eram para as mulheres. Mas não se pense que algumas, mesmo sem estarem na taberna, de vez em quando, não apanhavam também a sua piela de tal tamanho... que as fazia ziguezaguear, não conseguindo passar despercebidas junto das pessoas com quem se cruzavam.

Por aquela altura não existiam na aldeia coletividades de desporto, cutura e recreio ou outros espaços públicos onde os homens se pudessem juntar, a não ser nas tabernas, ou no tempo da apanha da azeitona em que também os lagares eram sítios onde muitos se encontravam no fim do dia. Apesar de ser no inverno, os lagares eram locais onde existia um ambiente confortável a que eles não estavam habituados, um espaço aquecido… e com boa iluminação, coisa inexistente nas casas da aldeia.

Naquele tempo, as pessoas não saíam para fora da terra a não ser para trabalhar, algumas vezes para muito longe. Os transportes públicos apenas havia à segunda-feira, para Alcobaça, por ser o dia em que lá tinha lugar o mercado. Os transportes particulares também não haviam. 

Apesar de existirem muitos homens na aldeia, apenas, quatro ou cinco, possuíam uma bicicleta. O transporte mais utilizado pelas pessoas para se deslocarem, não só para o campo, mas também para ir às compras, à sede do concelho, eram os burros, animais esses que havia muitos na aldeia.

Só à segunda-feira, havia a camioneta da carreira como as pessoas lhe chamavam, mas mesmo assim nem todos a utilizavam, eram muitos os que faziam os dez quilómetros para cada lado a pé, para pouparem o valor do bilhete… que era pouco, mas necessário para ajudar nas compras que iam fazer, o pouco dinheiro de que dispunham a isso os obrigava.

Se as tabernas durante algum tempo era o sítio onde os homens se encontravam quando não era possível trabalhar, também havia algumas épocas em que os frequentadores eram poucos. Isso acontecia, quando quase todos os homens e rapazes, alguns com doze ou treze anos, saíam da aldeia para irem trabalhar para as vindimas para a região saloia, assim como para outros serviços, em particular, para a zona de Lisboa.

Quando regressavam à terra voltava a ser grande o ajuntamento nas tabernas aos domingos à tarde, onde a bebida e as conversas à mistura eram sempre muitas. 

Por vezes, apareciam por lá poetas populares com jeito para cantar ao desafio o que era sempre do agrado de todos. 

Quando o álcool já era quem mais ordenava, por dá cá aquela palha, algumas vezes, aconteciam cenas de pancadaria, nada que passado alguns dias os contendores, por iniciativa própria ou com a ajuda de alguém, não resolvessem fazendo as pazes. Chegava a acontecer a alguns ficarem mesmo amigos.

As tabernas, para além do já referido… desempenhavam também uma "função social": não davam nada a ninguém, mas tornavam possível, sem aumento de preço, a algumas pessoas,  adquirir bens essenciais para o dia a dia das famílias, quase sempre numerosas, permitindo-lhe comprar fiado com a promessa de vir pagar quando tivessem dinheiro. Se assim não fosse, as pessoas não podiam comprar e as dificuldades que eram sempre muitas, seriam ainda mais. (...) (*)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negrit0s / parènteses retos: LG)
_________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 3 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24819: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (17): O Barroso que não era(é) só a 'carne barrosã' DOP: o comunitarismo agropastoril, segundo o Padre Fontes (1977) - II (e última) Parte: tudo era de todos quando a necessidade oprimia
 

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24819: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (17): O Barroso que não era(é) só a 'carne barrosã' DOP: o comunitarismo agropastoril, segundo o Padre Fontes (1977) - II (e última) Parte: tudo era de todos quando a necessidade oprimia


Foto nº 4 > Barroso, Montalegre, Pitões > Fiadeiro (dia de boda) (Fonte: Fontes, 1977, op cit, foto 2)


Foto nº 5 > Barroso, Montalegre, Mourela > Vezeira de vacas  (Fonte: Fontes, 1977, op cit, foto 16)


Foto nº 6  > Barroso, s/l > Soqueiros ( (Fonte: Fontes, 1977, op cit, foto 35)


Foto nº 5 :  Barroso, Montalegre, Cambezes >  Caniço de milho  (Fonte: Fontes, 1977, op cit, foto 29)


1. António Lourenço Fontes é
 padre e etnógrafo. É uma figura mediática, o Padre Fontes. Conheci-o no verão de 1980, em Vilar de Perdizes, Montalegre, onde reside, quando fui a Pitões das Júnias  passar uns dias de férias, 

Foi nessa altura que li a sua obra em dois volumes, Etnografia transmonta,volume: Crenças e tradições do Barroso, 1974; 2º volume: O comunitarismo de Barroso, 1977.


Capa do livro "Padre Fontes,
o romance de uma vida".

Âncora Editora,2ª ed., 2001,
216 pp.
 Autor: Eugénio Mendes Pinto
(com a devida vénia...)
Deste segundo volume tomamos a liberdade de reproduzir alguns excertos onde se descreve, resumidamente, traços do comunitarismo agropastoril de montanha (à semelhança de outras aldeias, como Vailarinho das Furnas, Terras do Bouro, submersa pela barragem do mesmo nome, em 1971;  ou Rio de Onor, Bragança), traços esses que chegaram aos anos 70, no Barroso , e que hoje inevitavelmente desapareceram, ou tendem a desaparecer ou a transformar-se com as profundas mudanças económicas, sociais, demográficas, tecnológicas e culturais ocorridas desde então.

O Lourenço Fontes, ele próprio um Barrosão de alma e coração, começou a fazer recolhas etnográficas, desde os primeiros tempos de seminário, nos anos 50, sendo a sua própria mãe  a primeira (e privilegiada) fonte de informação e conhecimento.

Barroso (ou Terras de Barroso) em sentido restrito  é a região tradicionalmente formada pelos concelhos de Montalegre e Boticas. Os dois concelhos  têm vindo a perder população desde 1960 (vejam-se os números, em milhares): 

  • Boticas: 14,5 (1960); 10,9 (1970); 5,0 (2021)
  • Montalegre: 32,7 (1960); 22,9 (1970); 9,3 (2021)

Estes dois concelhos mandaram muitas centenas de jovens 
para a guerra de África.  Ficaram lá 41 (*).

Em homenagem a este homem, o Padre Fontes, e naturalmente aos demais homens e mulheres do Barroso, mal conhecido (e talvez até mal amado) damos a conhecer alguns dos seus escritos, que também falam de "coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços" (*).


Excertos > Coletivismo agropastoril: Manifestações atuais e antigas do comunitarismo em Barroso - II (e última) Parte (pp. 57-61)

Referència: FONTES, António Lourenço - Etnografia transmontana: II - O 
comunitarismo do Barroso. Montalegre, ed. do autor, 1977, il., 299 pp, + 48 inum, (Tipografia Minerva Transmontana, Vila Real).

O regedor e Junta de Freguesia são hoje as autoridades que superintendem e dão ordens ao povo. É digno de se ver e ouvir o povo junto,  aos domingos e dias antes, fora da igreja e ouvir as ordens do regedor ou juntas de freguesia. Nessas ordens:

  • mandam compor caminhos,
  • consertar pontilhões,
  • reparar moinhos, fornos.
  • combinam a venda ou merca de outro boi do povo, resolvem a chega do boi com o de outra aldeia,
  • marcam o dia de segar o feno do boi,
  • ou outros trabalhos comuns,
  • mandam abrir as regras da regra,
  • avisam e dão ordens de interesse público,
  • marca reuniões extraordinárias para fins utilitários.

E também os populares têm vez de dizer as suas opiniões e razões ou queixas de qualquer roubo, coisa partida, ou falta de comparência de algum favorito, nos juramentos ou coutos.

As fontes e lavadouros são para todos. Há pouco, quase  ninguém  tinha água ao domicílio. Todos, especialmente as moças novas,  à noitinha,  hora poética, iam com os canecos de lata, barro ou madeira.  à fonte. Ali vinham os seus namorados conversar, ajudar alevantar o cântaro.  Algumas,  ao acabar de encher, vazavam-no para terem mais tempo de namorar. As mais velhas até das paredes da fonte fazem urinol, ementes ninguém vem.  

Nos lavadores de água corrente e limpa:

As Mulheres quando se juntam, 

Só falam da vida alheia, 

Começam na lua nova,

 Acabam na lua cheia  (grávidas).


A Câmara fez tanques novos, mas o povo em muitos casos prefere o lavadouro antigo, mais escondido e próprio para lavar e esconder a roupa suja ou rota, e para mexericar ou cusculhar à vontade.

Nas ardenas, ou seja, quando arde a casa do vizinho, todos ajudam com caldeiras e panelas a apagar o lume. E na reconstrução, todos se cotizam.

Se prejuízo é grande, assim é a proporção da ajuda. Arde uma casa. Todos entramna sua reconstrução. conforme as posses e generosidade. Ins dão as traves, outros as ripas,  a palha, outros cplmam, outros dão o vinho, etc.

Nas festas familiares ou no luto, todos são solidários. Dia de boda, todos vão a boda. Compram os homens a vitela, as mulheres os doces (Cambezes,  Padroso).

No enterro,  igualmente,  novos e velhos vão velar o morto no dia da morte,  durante a noite, em que se come e bebe. Uns vão chamar os padres,  outros,  pelos montes,  antes de haver telefone, vão dar parte ao cangalheiro, outros vão abrir a cova.  e as mulheres vão cozinhar para o forno, cozer o carolo, ou em casa,  cozinhar para os padres e gente de fora da terra. Diz o povo:  na morte e na boda verás quem te honra.

Se falta de um animal, cabra da vezeira, vaca, burro ou até pessoa da família, todo o povo vai pelos montes ajudar a procurar o perdido, enquanto um vai rezar  o responso a  Santo António para que depare as coisas perdidas e não as deixe correr perigo. Ao aparecer tocam o sino, para avisar os que andam no monte.

Quando um filho vai à inspecção e fica apurado toda a aldeia é convidada a sentir a alegria na borga, que, rua abaixo, rua acima, os apurados fazem. E na véspera de ir assentar praça, todos os vizinhos, familiares e amigos vão despedir-se dele e  dão-lhe coisas ou dinheiro.

Se emigra, na despedida fazem igual, solidarizando-se na alegria e na saudade.

Alguém está doente. Antes todo o povo  acompanhava quando quando ia o Senhor fora. Fazem o trabalho do doente se ele não pode.

Nos serões,ou se vai para o forno,  que está a cozer, ou está ainda quente,  ou para casa dos amigos ou familiares. O petról é pago por todos â vez.

relógios de pedra públicos. Em Pincães (Cabril) há a pedra de água. (…)

canelhos ou recintos públicos ao ar livre, que servem de retrete a  mais de uma família.(Comua).

pedras de amolar e afiar instrumentos de corte, gadanhos, fouces, machadas, facas, onde toda a gente amola. Seja na pedra do tanque. do adro (Solveira). do pé do Cruzeiro (Gralhas).

maçadouros públicos onde todos podem maçar o linho (Tourém).

Em Vilar de Perdizes, há lagares e alambique  onde alguns podem pisar o seu vinho e cozer o bagaço.  

Em Fafião e Pincães há lagares do azeite para todos, assim como alambiques.

Enfim, tudo é de todos, quando a necessidade oprime. Se o vizinho tem uma vaca e precisa de outra, pede uma vaca, ou uma junta se precisa de um carro.  de qualquer utensílio, o vizinho que tem, empresta.

Quando apareceram os escaravelhos da batateira, agrupavam-se  vizinhos para comprar e utilizar em comum o pulverizador. Para limpar o grão, compravam  em conjunto a limpaderia.

Quando o  forno não cozer e  a vizinha precisa do pão, vai pedir emprestado â que cozeu há pouco e depois passa a torná-lo, quando cozer,.

 Se precisa de lume para acender de manhã, porque a cinza do rescaldo se apagou à míngua de lenha, vai-se pedir uma brasa ou.  numa lanterna,  o lume, a casa da vizinha que fumega.

Quando pare a vizinha,  todas a amigas,  especialmente as que foram à boda, vão nos primeiros 8 dias visitar a parturiente e  levar a  cesta. A cesta é a prenda que se dá: açúcar, arroz. massa, trigo, ovos, etc.

O soqueiro, o alfaiate.  o carpinteiro, o  colmador não eram pagos. tornavam lhe os dias em trabalhos agrícolas. 

O cabeleireiro é pago em alqueires de pão por família. 

Até ao médico (boticairo)  se era pago em alqueires ó ano.

Quando a folha está ceibe, isto é, quando se carrou o centeio das terras, as vacas e outro gado podem pastar livremente nas terras, sejam de quem forem. A vezeira alaga paredes,  come espigas que ficaram, e ninguém pode dizer olé. pois é um direito comum. 

Embora a propriedade seja particular, nesta ocasião, cede ao bem de todos. Também é certo que as messes não pode de pé,  a rés das vezeiras não pode pastar nessa folha, até que   as carradas estejam feitas. Esta ordem de pastar, por vezes, é dada no adro da Igreja pelo regedor.

caminhos e passagem comuns

 águas de régua para lameiros de vários herdeiros, onde cada qual rega dias fixos, ou as horas marcadas Há poços e poças de vários vizinhos ou de  toda a povoação. Umas são para rega, outros é proibido abrir-lhe a água com regar. São reservadas, em todo o Verão,  para  acudir a possíveis incêndios.

Enfim, era um rosário de aplicações do sistema comunal. se fossemos a desafiar todos os casos e momentos da vida do Barrosão. 

Não serei eu o mais indicado para fazer uma observação e análise crítica  e rigorosa do comunitarismo na minha terra. Vivo-o, estou impregnado dele,  como quase todo o Barrosão,  que ainda se não deixou dominar pelo individualismo de origem capitalista.

Por isso, é para mim anormal que,  em Barroso,  se não viva e pratique este modo de vida, enquanto que um estranho à terra nota estas divergências,  de povo para povo. 

Apesar disso, procurei abstrair de mim mesmo e da minha terra,  fazendo-me estranho,  para poder chegar e descrever a nossa originalidade de vida, ao nosso sistema de produção e de consumo.

In: Etnografia transmontana: II - O comunitarismo do Barroso. Montalegre(pp. 57/61)

© António Lourenço Fontes (1977).

[Seleção / fixação e revisão de texto / itálicos e negritos, para efeitos de publicação deste poste; LG. (Com a devida vénia ao autor... )]
___________

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24817: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (16): O Barroso que não era(é) só a 'carne barrosã' DOP: o comunitarismo agropastoril, segundo o Padre Fontes (1977) - Parte I: do boi do povo à paulada nas chegas e nas feiras

 

Foto nº 1 > Barroso, Montalegre, Covelo do Gerès >  Carreto da lenha (Fonte: Fontes, 1977, op cit, foto 32)

 
Foto nº 2 > Chaves, Soutelinho da Raia > Segada (Fonte: Fontes, 1977, op cit, foto 24)


Foto nº 3 > Barroso, Montalegre, Paredes do Rio   Antiga esc0ola, com cobertura de colmo (Fonte: Fontes, 1977, op cit, foto 4)

1. O Padre Fontes é uma figura popular na sua região (Barroso, Trás-Os-Montes, concelhos de Montalegre e Boticas). Tornou-se melhor conhecido, e desta vez a nível nacional, quando em 1983 organizou o primeiro Congresso de Medicina Popular para escândalo de alguns, a começar pelo seu bispo,  de Vila Real, que náo gostou da "heresia" de misturar o sagrado e o profano, Deus e o Diabo. 

É padre e etnógrafo. Conheci-o no verão de 1980, na sua casa em Vilar de Perdizes, Montalegre. Fui passar férias em família, mais um grupo de amigos, em Pitões das Júnias, Montalegre (a aldeia mais alta de Portugal, na serra do Gerês, a par da Gralheira, Cinfáes, na serra de Montemuro, ambas a cerca de 1110 metros acima do nível do mar), e onde a maior parte (ou boa parte)  das casas ainda eram de colmo; teria na altura c. de 238 habitantes, hoje menos de 151, contando na emigração, desde o Rio de Janeiro a Paris, pelo menos o triplo da população de 1980).  

E devorei dois dos seus livros, Etnografia transmonta, 1º volume: Crenças e tradições do Barroso, 1974; 2º volume: O comunitarismo de Barroso, 1977.(*).

Deste segundo volume  tomamos a liberdade de reproduzir alguns excertos onde se descreve, resumidamente,  traços do comunitarismo agropastoril de montanha (Rio de Onor e  Vilarinho das Furnas eram até aos anos 50 os exemplos mais típicos e estudados), traços esses que chegaram aos anos 70, no Barroso , e que hoje inevitavelmente desapareceram, ou tendem a desaparecer ou a transformar.se com as profundas mudanças económicas, sociais, demográficas, tecnológicas e culturais ocorridas desde então. 

O Lourenço Fontes, ele próprio um Barrosão de alma e coração,  começou a fazer recolhas etnográficas, desde os primeiros tempos de seminário, nos anos 50, sendo a sua própria mãe  uma primeira (e privilegiadfa) fonte de informação e conhecimento.

Barroso (ou Terras de Barroso) em sentido restrito é a região tradicionalmente formada pelos concelhos de Montalegre e Boticas.

Em homenagem a este homem, e naturalmente aos demais homens e mulheres do Barroso [ região de Trás-os-Montes que todos nós conhecemos mal, ficando pela "carne barrosá" DOP, o "vinho dos mortos" (Boticas) ou o "presunto de Chaves" e pouco mais... ] , damos a conhecer alguns dos seus  escritos, que também falam de "coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços" (*). 

Além disso enriquecem o nosso vocabulário, havendo aqui termos e expressóes que não são  familiares à maior parte dos nossos leitores, nomeadamente citadinos, e alguns dos quais nem sequer ainda vèm dicionarizados:

  • quentar o forno
  • ferrenhas
  • boi do povo
  • chegas
  • pastoria
  • limpaderia
  • tocar gado
  • manteça 
  • carreto da lenha
  • segar
  • mangação
  • colmar / colmador
  • soqueiro 
  • cabaneiro
  • boticairo
  • ceibe
  • pontilhão
  • merca
  • couto
  • ementes o vizinho vai botar um copo / ementes ninguém vem
  • à roda do povo
  • ó ano
  • banços do andor
  • pau de lodo
  • fojo do lobo
  • ardenhas
  • estadulhada, etc.

Excertos > Coletivismo agropastoril:  Manifestações atuais e antigas do omunitarismo em Barroso - Parte I (pp. 55-57)

Referência: FONTES, António Lourenço - Etnografia transmontana: II - O comunitarismo do Barroso. Montalegre, ed. do autor, 1977, il., 299 pp, + 48 inum,  (Tipografia Minerva Transmontana, Vila Real).

(..:) Toda a vida do barrosão está imbuída de sentido comunitário,  familiar.

Todos os trabalhos pesados ou leves são motivos de entreajuda e colaboração:

  • a segada do centeio, do feno, 
  • a recolha dos mesmos, 
  • o arranque ou plantação da batata, 
  • a malhada, 
  • a desfolhada do milho, onde ele predomina, 
  • o carreto da lenha, 
  • a cavada do centeio, 
  • o arranjo dos caminhos, 
  • a abertura dos regos ou presas de rega,
  • os próprios moinhos comunitários, 
  • o forno e a sua obrigatoriedade de quentar
  • a  utilização dos baldios, seja para pasto, carvão, lenha,  roçar mato ou fazer a cavada

são manifestações evidentes e  r
eminisiscências de uma unidade familiar de cada aldeamento.

O boi do povo, um dos maiores  proprietários da aldeia, é  de todos os que têm vacas. Todos colaboram na sua manutenção e pastoria. Todos têm de lhe ir:

  • segar e recolher o feno, 
  • semear as batatas do boi, 
  • recolhê-las, 
  • pedir pão ou milho ou mesmo roubá-lo, quando os mais velhos os não querem dar às boas. 


Em Cambezes, quando é o tempo das ferrenhas tenras,  o boi anda à roda pelos vizinhos, cada um tem de dar ferrenha ao boi ou bois,  tantos dias como de vacas têm para cobrir. Todos pagam ao pastor do boi, conforme o número de vacas.  

Em Pitões pagam em alqueires de centeio  ao que guarda o rego da rega, no tempo da respetiva. O tratador é gratuito, trata do  boi para vender ou chegar com outro.

Nas chegas,  o desporto usual das aldeias do Barroso, todos vão acompanhar o seu boi, de pau na mão,  e rogar aos santos da igreja que ele seja campeão.

Se não for campeão,  ou o vendem,  ou o tratam para vir a sê-lo. Por isso, nem sempre o ser bom reprodutor é o motivo de conservar um boi, mas o ser o melhor lutador. Está aqui uma das razões da degenerescência da raça Barrosã, além de outras.

Nas festas religiosas, mistas de superstição e de cristianismo,  também o sentido de responsabilidade se reparte por todos à roda. Cada comissão nomeia, para o ano seguinte, a comissão respetiva. Um juiz e os mordomos necessários para angariar fundos pedindo pelas aldeias, de saco e alforge, esmola para o santinho. Há devotos que fazem, então promessa de ir pelas aldeias, fazer uma penitência. 

No dia da festa, todos têm de colaborar na manteça dos músicos,  do armador, do fogueteiro, dos padres,  gratuitamente e as horas que fizerem falta.

Nas procissões, os rapazes novos têm até brio de serem eles a pagar, para pegarem nos banços dos andores. Arrematam o banço do andor e todo o percurso, arrotam com o peso de enormes andaimes, em que vai o santo ou santos enfeitados com sedas, balões, fitas, luzideiras estrelas, anjos de papel, dinheiro, etc.

Nas feiras e festas a rapaziada junta-se em determinado local, mais ou menos central, ou a saída do povo, cada qual com o seu pau de lodo, antes, hoje com a sua pistola no bolso. [ A GNR acabou com os paus, diz o autor em nota de rodapé, pág. 56] 

Se tocam gado para a feira, cria, vaca, porco ou burro, esperam uns pelos outros, ou tocam uns o gado dos familiares e vizinhos. Para as crias irem melhor, há um que toca as vacas,  para apoio das crias ou  vitelos de todos. 

Na feira, guardam o gado, ementes o  vizinho vai botar um copo,  à tenda e,  se calhar, até lha vende, pois já sabe quanto vale e quanto tem de pedir aos mercadores,  que passam, fazendo mangação dos possíveis exorbitâncias do lavrador acanhado,  envergonhado no pedir.

Nos barulhos ou contendas,  entre  pessoas da aldeia diferentes,  também a coesão e unidade se manifesta. Um por todos e todos por um,  gritam logo. E toca de desgalhar paulada ou estadulhada nos inimigos do nosso vizinho. 

Há aldeias que não se ligam bem, apesar de serem da mesma freguesia ou muito próximas, que não se gramam por uma pequena questão particular. O Jogo do Pau era espectáculos nestas marés. (Salto).

Até no estrangeiro, o emigrante barrosão  vive e pratica o mesmo modo de vida comunitária. Mal tem trabalho, logo chamam a família e amigos que podem para ali fazer uma segunda aldeia familiar comunal. 

Que o digam todos as comunidades de  Barrosões em várias cidades do mundo. Ludlow, Milford, New Bedford, Mass e  Bridgeport Conn, New Jersey, N.W, nos Estados Unidos da América do Norte. Em Montreal, Ontário,  no Canadá. Em São Paulo, Rio,  no Brasil. Em Paris, Londres, S. Sebastião, Orense, África, Angola ou Moçambique, eram notadas as comunidades de Transmontanos, especialmente os Barrosões, pelo seu sentido de união e colaboração como sendo de uma família só. 

Na manutenção do padre e da conservação de monumentos de interesse público, todos contribuem, por derrama com a sua quota parte,  ou com dias de trabalho. ao padre Todos pagam em alqueires de pão ou milho, vinho, segundo tabela antiga,  e segunda as posses das famílias. 

Ao padre dão além disso,  a lenha para todo o ano, na matança, dão-lhe o melhor do porco, a assadura,  a rodela do pescoço e a língua,  para que fale bem na igreja; vão.lhe fazer os trabalhos agrícolas,  dão-lhe feno para o cavalo etc. 

Os altares das capelas têm zeladoras,  à roda do povo ou por promessa. As capelas são conservadas por comissões,  nomeadas autonomamente,  pelos vizinhos.

In: Etnografia transmontana: II - O comunitarismo do Barroso. Montalegre(pp. 55/57)


© António Lourenço Fontes (1977).


(Continua)


[ Seleção / fixação e revisão de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste; LG. (Com a devida vénia ao autor... ]

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Notas doo editor;

(*) Ver aqui um resumo biobliográfico;:

António Lourenço Fontes, mais conhecido por Padre Fontes, nasceu em Cambezes do Rio, Montalegre, Barroso, em 1940. É um padre católico português "com ampla ação cívica, social, cultural e literária", diz a Wipédia.

É o principal impulsionador do Congresso de Medicina Popular, em Vilar de Perdizes, Montalegre, e das "Sextas-Feiras 13", em Montalegre.  O Congresso de Medicina Popular realiza-se desde 1983 atrai curandeiros, bruxos, videntes,  cartomantes, etc,. além de psiquiatras, antropólogos e... turistas de todo o lado (Em 2023, foi a 37ª edição). Outro evento, que se realiza desde 2002, sob a organizaçáo da Câmara de Montalegre,  é a "Noites das Bruxas"  que decorrem em todas as "Sextas-feiras 13").
 
 Oriundo de um família pobre, de 12 irmãos (o pai esteve emigrado na Américva, em 1927), Lourenço Fontes fomou-se no seminário em Vila Real (1950-1962). Em 1980, concluiu a licenciatura em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Já desde o seminário era uma figura rebelde e contestatária ("com um terço na mão e o diabo no coração", escreveu ele no seu diário secreto da adolescència). Como jpvem padre, desterrado em Tourém e depois colocado em Vilar de Perdizes, lutou contra a situação política em vigor até ao 25 de Abril de 1974 bem como contra a guerra colonial. No Barroso morreram 41 jovens na guerra de ÁfriCA: 12 em Boticas 12 ( sendo 3 no TO da Guiné); e 29 em Montalegre (9 no TO da TO da Guiné).

Um dos mortos foi o Manuel Lourenço Fontes, que pode ser irmão ou parente do Padre Fontes: tem o mesmo apelido, é natural da mesma terra, Cambezes do Rio, Montalegre, era sold at inf, CCAÇ 2321 / BCAÇ 2837, morreu em combate em 5 de janeiro de 1969, na serra do Mapé, no TO de Moçambique, juntamente com mais 6 camaradas.

 O António Lourenço Fontes editou e colaborou em várias obras: Etnografia Transmontana (2 volumes), Usos e Costumes de Barroso, Milenário de S. Rosendo, Antropologia da Medicina Popular Barrosã, Chegas de bois, Raça Barrosã, Las fronteiras invisibles, Contos da raia, Crenzas e mitos da raia seca ourensana, Ponte da Mizarela, ponte do diabo, Roteiro dos castros de Montalegre, Roteiro dolménico de Montalegre.

Tem ampla colaboração em vários jornais e revistas regionais. Colaborador permanente da RTP, TVE, TVG. Participou em filmes da região: Terra de Abril, Terra Fria, 5 dias e 5 noites, Não cortes o cabelo que meu pai me penteou, Os demónios, documentários para a BBC, TV da Holanda e França, UNESCO, Odisseia...

Fez centenas de conferências por todo o país e no estrangeiro, em universidades, grupos culturais, escolas, autarquias, etc. Organizou diversos congressos, nacionais e internacionais. 

Fundou e dirigiu o mensário Notícias de Barroso (d1971 a 2006). Exerceu as funções de empregado, chefe de pessoal nos Serviços Médico Sociais de Vila Real (Montalegre), de 1973 até 1990. Exerceu as funções de secretário do gabinete da Presidência na Câmara Municipal de Montalegre desde 1990 a 2000 e reformou-se.

É considerado o maior etnógrafo de Trás-os-Montes depois do Abade de Baçal. O Ecomuseu de Barroso tem o seu nome. Em 2012, por iniciativa dos deputados eleitos pelo distrito de Vila Real foi solicitado ao Presidente da República Portuguesa que o Padre Fontes fosse distinguido com a Ordem do Mérito.

Apesar dos seus 83 anos e da doença de Parkinsom, ele continua a ser um trabalhador incansável e um Barrosáo apaixonado pela sua terra.

sábado, 28 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24801: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (15): Profissões e os seus mestres: sapateiros, abegões, carpinteiros, latoeiros, ferreiros, albardeiros, alfaiates e costureiras (José Saúde)


Abegão aplicando o saber no seu ofício 


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços


Camaradas,

Gosto de desafios! Sim, o desafio propõe-nos outros desafios, mas estes mais esmerados. Ousamos desafiar as dificuldades motoras, sendo este o meu caso, pois escrevo apenas com a minha mão esquerda, aquela que outrora fora “ceguinha”, a outra, a direita, resolveu partir para o caminho da infinidade, desde o dia (27/7/2006) em que o AVC me visitou, já lá vão 17 anos, mas que jamais abandonarei a verdadeira noção de escrever e deixar para a posterioridade uma visitação, esta morosa, que me levou a escrever mais um livro, sendo este sobre a terra que me viu nascer: Aldeia Nova de São Bento. 

OUma obra trazida aos escaparates pelas Edições Colibri, Lisboa, onde faço uma viagem no tempo e trago à estampa algumas das profissões, embora resumidamente, que outrora marcaram a vida na minha aldeia.

Profissões e os seus mestres



Mestre Pote, sapateiro e músico 

Escrevi, atrás, um tema sobre a antiga Banda Filarmónica de Aldeia Nova de São Bento em 1930, com a respetiva fotografia, sendo o seu maestro o mestre Pote. Ficou, certamente, a dúvida quem foi, afinal, o mestre Pote?

Pois bem, o mestre Pote nasceu em Aldeia Nova de São Bento, teve como profissão a de sapateiro e foi sobretudo um homem que muito se interessou pela escrita. 

Sabe-se, também, que foi um sublime contestatário do Estado Novo. Homem hirto com as suas convicções políticas, o mestre Pote debatia, clandestinamente, as suas teorias assumidas como revolucionárias.

As barbearias, à época, eram antros onde se concentravam os chamados revolucionários de um regime que ditava despotismo numa sociedade marcada, na altura, literalmente por extratos sociais. Nessas recuadas eras, as barbarias, locais de ajuntamentos, eram propícias para um debitar de ideias, tanto assim que os caixeiros-viajantes eram habituais “fregueses”. Levavam e traziam notícias tidas como proibitivas para uma sociedade que se via sistematicamente vigiada pela então polícia do Estado, a PIDE.

Mestre Pote, homem então da escrita, lá debitava crenças políticas que a sua alma encarecidamente lhe pedia. Chegou, inclusive, a trabalhar para o jornal “Avante”. 

Virtudes de um tempo onde as pessoas que sabiam ler e escrever eram raras. Atendendo à época vivida, quase se contavam pelos “dedos de uma mão” os jovens que frequentavam a escola primária. O trabalho no campo, como pastores, porqueiros, vaqueiros os almocreves era o destino da juventude, ou como aprendizes de sapateiro, abegões, ferreiros, caixeiros, carpinteiros, de entre outras profissões que evitavam o árduo trabalho nos campos.

Hoje, os tempos são naturalmente antíteses de um passado que deixou profundas raízes.

Sapateiro, uma nobre profissão


A profissão de sapateiro assumia-se, em tempos, como nobre! Sou de um tempo em que as sapatarias proliferam na aldeia. Lembram-se? De um lado, estavam os mestres, senhores já conhecedores da arte, e do outro, os aprendizes. 

Tenho uma vaga ideia que a entrada para a oficina de um novato, obedecia a um pedido feito ao mestre supremo, normalmente o dono do espaço, que aceitava ou não o rapaz. Nessa altura os aprendizes não tinham uma jorna fixa, o mestre dava alguns escudos, poucos, para o rapazola se sentir satisfeito e na próxima semana jogar-se com um maior empenho ao trabalho.

A entrada do candidato passava por uma eventual conversa com o rapazito, sendo que o mestre, já conhecedor da matéria, colocava-o à prova, questionando-o acerca do trabalho que por ali se fazia, a qualidade das peles para o manusear perfeito de um bom par de botas, ou de butes, das formas utilizadas para o trabalho cuidado do calçado, das meias solas que constantemente eram solicitadas, dos remendos que amiúde os homens procuravam no seu calçado, de entre muitos afazeres que os sapateiros se predispunham efetuar.

Neste já longo percurso de vida, revejo imagens que me enchem hoje de saudade, tendo como princípio básico o que foi, na verdade, o primoroso trabalho dos sapateiros. 

De facto, a labuta com os materiais era minuciosa e carecia de mestria. Lembro as opiniões positivas que o homem do campo lançava numa das suas idas às tabernas. “Estão muito bem-feitos esses butes e assentam nos pés como luvas”. E, num desabafo, assegurava: “O mestre sabe da poda”.

Recorro, com a devida vénia, a uma foto do amigo Zé Bica, cuja imagem estava em casa de seu sogro, o mestre Lico, que retrata, no fundo, a azáfama dos mestres e quiçá aprendizes na hora do trabalho. A imagem reporta-se à sapataria do mestre Estevão que se situava na Rua de Fora.

O mestre Estevão é o homem que está à máquina, sendo o mestre Lico o que se encontra em baixo, à sua frente. Aliás, o nome do mestre Lico era o seguinte: Manuel Afonso Arrocho. Um outro nome apurado de entre os sapateiros e aprendizes é do Chico Paulos, de pé, à esquerda.

Abegões (vd. foto acima)

Os abegões eram indivíduos que possuíam bastos conhecimentos de carpintaria e de ferraria. O abegão era conhecedor profundo de uma arte literalmente enquadrada na construção completa dos carros em madeira, sabendo-se que o resto da sua estrutura assentava nos eixos, molas e aros das rodas feitas em ferro.

Os abegões utilizavam como armas de trabalho as serras, um instrumento de corte utilizado para o cortar da madeira, uma forja de ferreiro, o fole, macetas para bater o metal e as tenazes. Numa perspetiva global o abegão possuía uma aptidão natural para a construção de um carro de bestas.

A pintura dos carros era sobretudo original e tinha, normalmente, o cunho pessoal do abegão, ou da oficina que o tinha construído. O artesão, chamemos-lhes assim, era exímio na sua arte e a construção final do carro enchia-o de orgulho.

Recuando no tempo, décadas de 1940 e de 1950, damos conta que em Aldeia Nova existiam vários abegões. Tanto mais que os carros de mulas eram, de facto, muitos. Manuel Palma, pai do Zé Calatróia, cuja oficina se situava na Rua do Sobral, os irmãos Afonso, Chico e Zé, Rua das Flores, Manel Graça, nas proximidades do depósito da água, lá para os lados do Largo dos Madalenos, e o Valadinhas, na Rua Herói Pedro Rodrigues, foram alguns dos protagonistas que se dedicaram inteiramente à profissão de abegões.

Presentemente, a profissão de abegão já fora chã que deu uva. Fica a certeza que os tratores, como é o caso, deram uma nova vida aos nossos campos, sendo que as utilizações dos carros com bestas continuarão perpetuados, apenas, nas nossas memórias.

Carpinteiros



Domingos Barradas, carpinteiro


Profissões que marcaram indeclináveis gerações, os carpinteiros foram mestres numa arte que passava de geração para geração. Em Aldeia Nova o velho ofício perdurou no tempo e ainda hoje se revêm gentes, cujos nomes muito dizem a pessoas que conheceram as origens dos seus antepassados.

A carpintaria era, e é, uma oficina de trabalho onde o carpinteiro trabalha a madeira, em bruto, dando-lhe, naturalmente, o efeito desejado. As peças em madeira eram, e são, trabalhadas com ferramentas próprias, tipo serra, formão, serrote e prumo, de entre outras, pois atualmente existem máquinas próprias que o carpinteiro amiúde utiliza.

No campo da matéria-prima a trabalhar, supõem-se que a cerejeira, o cedro, o eucalipto, o mogno, ou outros troncos de árvores africanas e asiáticas, serão, talvez, as mais utilizadas pelos carpinteiros.

O trabalho numa carpintaria obedece a esforços humanos e, por outro lado, a cuidados redobrados, tendo em conta que o manipular da nova maquinaria é guarnecido de uma proteção, pois um mínimo descuido é causador de danos físicos irreparáveis.

Puxando pela memória. recordo as oficinas dos irmãos Barradas, Zé e o Domingos, junto à Igreja de São Francisco, e a António Mora Barradas e o irmão Zé Barradas, sendo que em ambas se fizeram excelentes mestres, e deixaram a arte para os descendentes.

Latoeiros



Francisco Valente, o latoeiro

A latoaria é uma arte onde latoeiro assume um ofício e se afirma como um verdadeiro artesão. Prepara e repara artefactos, essencialmente em metal, ou lata, ou chapa zincada, que copiosamente as suas mãos, e saber, trabalham com mestria dando-lhes a forma que o cliente previamente solicitou.

Na aldeia existiu em tempos um latoeiro que dava pelo nome de Francisco Valente, sendo que um dos seus filhos, o Arsénio, com ele ainda trabalhou. O Chico Valente, como o povo habitualmente lhe chamava, mexia com um assunto que lhes era peculiar. Lembro, em particular os pequenos cântaros que proliferavam pelos lares aldeões. Ou, de cântaros maiores onde se guardava o azeite.

É verdade que várias peças saíam da sua oficina. Comedouros e bebedouros para o gado se alimentar no campo; alguidares em zinco; os já mencionados cântaros; candeias para iluminar as noites de escuridão; os regadores, enfim, uma panóplia de manufactos que a população por sistema recorria.

Atualmente, esses velhos ofícios desapareceram. Tudo se compra já feito e quase já não há compradores que encomendem essas antigas relíquias.

Fica a presença do nosso conterrâneo Chico Valente para perpetuar essas antigas memórias.

Ferreiros

O mestre Manuel Guerreiro 



O mestre Manuel Guerreiro


Trabalhar o ferro é uma profissão conhecida como milenar. O ferreiro, assim se designava a denominação do homem que utilizando o forno a carvão de pedra moldava o ferro, era mestre num ofício que por vezes passava de geração para geração. Ou seja, uma profissão, digamos hereditária, que passava dos pais para os filhos, indo até aos netos e bisnetos.

A profissão de ferreiro era um misto de artesão com artífice metalúrgico. Aliás, vamos à nossa história e reparamos que já nos tempos dos reis existiam homens, donos de um talento invejável, que trabalhavam o ferro eficazmente. As espadas, exemplificando, eram armas cruciais em tempo de guerras. Mas, todo o trabalho dos ferreiros tinha a sua arte.

Nas oficinas ouviam-se sons barulhentos e o apupar da matéria-prima trabalhada. Na bigorna, com uma ajuda de uma pequena marreta, dava-se o molde a um ferro, em brasa, que, entretanto, havia sido retirado da chama, uma chama que se mantinha acesa por via de um fole puxado por um fio que a mão do homem atempadamente se encarregava de executar o serviço.

Olhemos, com a devida cortesia, para os ferreiros existentes na nossa aldeia em tempos idos: António Paulos, pai do Zé Guerreiro, cuja oficina se localizava na Rua do Sobral, mesmo defronte à moagem (antiga fábrica), o Manel Guerreiro, pai do Chico Guerreiro e do Emiliano Guerreiro, Rua Bento Costa, e o Manel do Facho, pai do Veríssimo e do Zé do Carmo, oficina que se situava na Rua do Rossio, quase em frente da antiga loja do Chico Mendes, foram alguns dos homens que se entregaram à faina de trabalhar o ferro.

Dessas eras recordo-me, por exemplo, do Honório “Coxinho”, um homem que tinha um defeito no pé e que sempre o vimos de pé descalço. Trabalhava, se a memória não falha, na oficina do Manel Facho.

Albardeiros


Albardeiro era um ofício cuja finalidade era fabricar albardas, cabrestos e molins, de entre outros apetrechos para animais de carga, quer estes fossem para transportar mercadorias e pessoas em carros de bestas, quer na labuta dos campos, sobretudo nas lavouras.

Estes apetrechos compravam-se normalmente nas feiras, sendo o caso  da nossa terra na feira anual de setembro que se realizava entre os dias 1, 2 3 de setembro. Ou, quando existia no povoado um albardeiro que fazia a preceito destes utensílios. 

Naquele tempo todos estes apetrechos obedeciam a princípios básicos que se prendiam com as medidas do animal, isto é, com a sua cilha. Mediam os lombos dos animais e lá faziam uma albarda enquadrada com a sua cinta. O método era extensivo aos cabrestos e aos molins. O animal tinha que se sentir confortável com as “peças” que o seu dono havia comprado. Tanto mais que o objetivo prioritário era não ferir o animal. Tudo, no fundo, era analisado ao pormenor e até as próprias arreatas tinham um tamanho que se encaixava com o manejar dos animais.

Em Aldeia Nova temos conhecimento que no antigamente houve um profissional na arte de nome Miguel Albardeiro. Aqui, a meu entender, o apelido de Albardeiro ter-se-á ficado a dever à profissão que ao longo da vida desempenhou.

Alfaiates



Sebastião Barradas, o alfaiate


Eram os tempos em que tudo o que se pretendia com a feitura dos fatos, calças ou uma outra indumentária para homens, o pessoal dirigia-se ao Sebastião Barradas, sendo que a sua casa se situava na Rua do Outeiro, quase defronte à antiga Casa do Povo, hoje sede do Atlético.

O Sebastião Barradas tinha uma oficina de trabalho, sendo coadjuvado no seu serviço de alfaiate pelos filhos e era ali que recebia as encomendas, alinhava a sua labuta diária, cosia, trabalhava carinhosamente as fazendas, alinhava as peças, tirava medidas, recebia os fregueses, fazia as provas, quantas fossem necessárias, por fim surgia a peça de vestuário ajustada ao corpo do cliente.

Sebastião Barradas era um homem muito caseiro. Não frequentava as tabernas e não se lhe reconheceu qualquer filiação a uma das coletividades lúdicas da aldeia. Deixou a sua marca num tempo em que a função de alfaiate era algo rara.

Ele, porém, conseguiu fazer a sua vida a trabalhar peças de roupa, cujo evoluir estava resignado à sua mestria, a uma mesa sobre o comprido, a um giz branco para fazer os talhes das fazendas à medida do corpo de cada um dos seus clientes, a uma máquina de costurar e, sobretudo, a uma dedicação a uma profissão agora condicionada, e adaptada, aos estilistas que hoje existem nas principais metrópoles portuguesas e não só.

Menina Bia, a costureira de vestidos de noiva

Um pouco mais adiante do alfaiate Sebastião Barradas, quase em frente à casa do Zezinho Chora, Rua do Carril, morava a menina Bia. A menina Bia era a costureira perfeccionista dos vestidos para as noivas.

A sua casa era muito frequentada pelas jovens que sonhavam com o dia do seu divinal enlace matrimonial. A menina Bia, uma conterrânea que, infelizmente, tinha um defeito físico num dos seus órgãos inferiores, ou seja, numa das pernas o que motivava que a sua deslocação fosse feita através de duas muletas, foi uma pessoa muito especial para as noivas se sentirem adoradas na hora do seu ambicioso enlace.

Das suas mãos saíam autênticas obras de arte. As jovens noivas acorriam literalmente à menina Bia. Ela, com a sua velha e conhecida calma, lá ia paulatinamente dando corpo, e imagem, a um vestido antes sonhado pela noiva. Provas e mais provas, tirar daqui e repor ali, alfinetes na peça que ditavam o óbvio acerto, arranjos de última hora e eis o sonhado vestido de noiva, em cor branca, que faziam as delícias do encantado rapaz que se via envolvido no traje do seu amor.

O branco significava, e ainda hoje significa, pureza. A jovem, então virgem, embrulhava-se no seu vestido e encantava não o seu amado, assim como os convidados. Fora, então, as mãos da menina Bia que deram fulgor à festança.

Aliás, nessas épocas existiam também outros casamentos, só que esses vínculos tinham um outro requinte, pois a noiva já não era virgem, logo o ir de vestido branco à igreja estava-lhe puramente restrito.


No capítulo das costureiras, recuamos ao ano de 1927 e deixamos uma foto de um grupo de senhoras da nossa terra que marcaram presença num curso de bordados, onde os “professores” eram funcionários da Singer, uma marca de máquinas para costurar que, à época, fazia furor em Portugal.       

Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Texto e fotos: © José Saúde (2023).
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Nota de M.R.: