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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7065: Contraponto (Alberto Branquinho) (15): Chegada à Guiné (Planeta África)

1. Mensagem de Alberto Branquihno (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 28 de Setembro de 2010:

Caríssimo Carlos
Estou a enviar, junto a este, o texto do CONTRAPONTO (15) - Chegada à Guiné (Planeta "África"), no qual tentei reverter minudências que me vieram à memória quando escrevi o anterior.

Um abraço
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (15)

CHEGADA À GUINÉ (Planeta “África”)

Que informação era dada às tropas sobre os territórios africanos onde, dentro de pouco tempo, iriam atracar? – Nenhuma!
Nem sobre as gentes nem sobre o clima nem sobre a insurreição militar e política existente nessas terras.

Só a bordo do navio e no dia anterior à entrada no porto de Bissau, os capitães chamavam os alferes e os furriéis milicianos para dizer umas generalidades sobre a realidade local que os esperava dentro de algumas horas. (E recordo: - Você pode ir embora, porque sabe mais disto do que eu).
Para a tropa, África era uma terra habitada por pretos e onde fazia “um calor do caraças”. E era tudo.

Foto: © Paulo Salgado (2010). Todos os direitos reservados.


A chegada

Imaginemos, então, a rapaziada, acabada de atracar ao planeta “África”, com pouco mais que 20 anos, a chegar a terra e a olhar em volta. (Não existiam na Guiné – nem existem – as grandes metrópoles de outras colónias Portuguesas ou de outros países africanos, nas quais constatamos estar em África somente porque há muitas pessoas de raça negra nas ruas). No nosso caso nem por Bissau passámos. Desembarcámos do Uíge para barcaças que nos levaram, Geba acima, directamente para o interior. A imediata observação da realidade local foi: o contacto “agressivo” com os “velhinhos”, a população próxima, o calor, os cheiros, a sensação de sede africana. Depois veio a diferente fauna, flora, os costumes, a religião… Aquela África rural, interior, quase primitiva foi um espanto. Os peitos nus das raparigas e das mulheres grandes, homens que tinham várias mulheres (e que viviam juntas!). Raças que conviviam com dificuldade.

Foi a observação de tudo o que era exterior ao quartel durante as primeiras saídas para o mato… enquanto não houve tiroteios. A beleza das paisagens, a exuberância e variedade da vegetação, a primeira observação dos babuínos (macaco-cão).

- Aqueles filhos da puta até parecem gente.

Os saguis, “macaco-gato”, macaco de tarrafo… A macacada toda. Os répteis – cobrinhas, cobras médias, cobras grandes, finas, grossas, amarelas, amarelas-esverdeadas, etc. E os lagartos.

– Olha este cabrão a fazer flexões! Paga dez!

E o lagarto, ansioso, lá fazia não dez flexões, mas quatro ou cinco. Dava uma corridinha e – mais duas ou três. Gargalhadas. Mais tarde aprenderam que, se não fizessem gestos bruscos, eles vinham comer os pedaços de pão que lhes atirassem para o chão. Como os gatos e os cães na “Metrópole”.

Com a proximidade dos rios conheceram o risco dos crocodilos ou jacarés, que nadavam mansamente, mas atacavam sem avisar.
A progressão nas matas, mais ou menos densas, trouxe os primeiros sustos causados por porcos-de-mato ou veados em fuga.
Tudo tão diferente!


No reino das aves e dos insectos

Mas África é, em grande parte, o reino das aves e dos insectos.
A variedade de aves ocupava os olhos pela diversidade, diferentes tamanhos, cores e cantos.
Os periquitos, a que havia que ensinar tudo (como à tropa nova, com fardas verdinhas, novas), eram relativamente fáceis de capturar e muito apreciados. Muitos soldados adoptaram um, que era, a assim dizer, a família… de cada adoptante. Eram apaparicados e protegidos até à irracionalidade.

Falando de insectos

Quanto aos insectos, a diversidade era tanta que estonteava um homem. Estavam, de certo modo, mais próximos que as aves, mas, devido à pequena dimensão, eram menos notórios. E a diversidade dos insectos existia mesmo dentro da mesma espécie. Gafanhotos, por exemplo. Uns eram pretos, outros pretos com manchas amarelas. Havia, também, verdes, verdes com manchas rosa, amarelos com manchas verdes, verdes com manchas pretas…

Pedi ao furriel enfermeiro um frasco com formol, onde fui colocando um exemplar dessa diversidade de gafanhotos, que pretendia trazer nas férias. Com o começo da guerra a sério e com tantas andanças e mudanças, o frasco ficou esquecido em qualquer lugar.

E a variedade de formigas?

Desde uma formiga anã, insignificante, à construtora da baga-baga, ao tamanho intermédio, até àquelas grandes, pretas, com grandes cabeçorras e grandes pinças na cabeça. Subiam pelas pernas tão sub-repticiamente que ninguém as sentia, até que, já em número considerável, atacavam selvaticamente o escroto com as tenazes, como se ele fosse um animal suculento, capaz de fornecer proteínas a um formigueiro de milhões. O homem assim atacado, largava a arma, despia-se (da cintura para baixo) em menos de um décimo de segundo, berrando furiosamente das dores, ao mesmo tempo que esfregava, violentamente, virilhas, testículos e toda a zona púbica, desfazendo em pedaços as formigas agressoras.

A primeira vez que testemunhei uma coisa destas foi quando gritos quebraram o silêncio de muitas horas em emboscada. Ficámos apatetados a olhar na direcção dos gritos, sem possibilidade de vermos devido à vegetação, sem saber se devíamos abrir fogo, pensando que o rapaz estava a ser “agarrado à mão”. Um soldado milícia tentou esclarecer-nos com um sorriso irónico:

- Formica, noss’alfero.

- Quê?!

- Formica…

Os soldados olharam-me. Fiz-me de entendido, mas não entendi nada. Certo é que depois de tanta gritaria, não era aconselhável continuarmos ali. Levantámos a emboscada.

Só mais tarde (e por experiência própria) compreendi o sofrimento. Se nunca experimentaram, não o desejem. (Parêntesis – mesmo sendo mulheres, porque, pelo que me informaram, como as mulheres não têm… escroto, as formigas também mordem, mas nos… arredores… onde ele estaria, se fossem homens). A solução para evitar esses ataques é simples – meter as calças por dentro das meias.

E as abelhas, senhoras e senhores?

Abelhas, vespas, abelhas doudas, abelhas bravas ou o que lhes queiram chamar.
Inquietá-las é um risco. Quer dizer: praticar qualquer acto do qual resulte que elas “possam pensar” que estão a ser atacadas. Da fila, em progressão
na mata, os trinta a quarenta mais próximos ficavam com “direito” a vinte ou trinta abelhas cada um. Acabávamos picados e bem picados, apesar da rede mosquiteira à volta do pescoço, mangas puxadas abaixo, golas levantadas e quicos enterrados na cabeça. Tudo isto minimizava mas não evitava ser picado, as dores e algumas partes do corpo inchadas. Por causa das alergias ou excesso de picadas por vezes verificaram-se mortes. Pior que tudo era tentar afastá-las com qualquer objecto ou correr de um lado para o outro (com o risco acrescido de pisar ou tropeçar em minas). Era aconselhado deitar no chão e permanecer imóvel… apesar de picado.

Imagine-se um ataque de abelhas debaixo de fogo (p. ex. caindo em emboscada), situação criada pelo IN, que disparava sobre os ninhos construídos nos troncos das árvores.

Depois de um ataque de abelhas, regressei ao quartel no dia seguinte, no final da operação, com o pescoço e cara de tal modo inchados que não conseguia abrir os olhos. Tive que caminhar com a arma em bandoleira no ombro direito e, com a mão esquerda, manter puxada para baixo a pálpebra inferior do olho esquerdo, espreitando por uma fresta.

O terror que as abelhas causavam aos soldados nativos era tal que, mal as pressentiam, fugiam aterrorizados para a frente da coluna aos gritos:

- Baguera!!! Baguera!!!

Continuando a falar de insectos, pergunto: Será que, alguma vez, observaram a “residência” da matacanha?

Todos viram a infecção causada pela matacanha alojada nas unhas dos pés, nas dobras dos dedos dos pés e nas nádegas das crianças (que brincavam sentadas no chão). E todos viram a mestria com que os nativos extraíam a matacanha ou a “maternidade” que ela tinha instalado nos locais acima referidos. Mas onde vive a matacanha fora desses locais do corpo humano?

Observando o chão durante a época seca, vêem-se de onde em onde uns pequenos buracos de meio centímetro de diâmetro na parte superior e que para baixo, com uma profundidade de alguns milímetros, toma forma cónica. Pois é no bico desse cone invertido que a matacanha vive, aguardando as presas, que serão de dimensões mínimas, pois ela tem o tamanho de um milímetro, mais ou menos.

Se agarrarmos uma formiga pequena e a colocarmos dentro do cone, a matacanha agarra-a e sacode-a, demonstrando uma força que não se imaginava possível para o seu tamanho.

Se lhe taparmos o habitáculo com terra, ela sacode os pequenos grãos de terra para cima, para um lado e para o outro, reconstituindo o cone e, se estivermos atentos, notamos o movimento das partículas quando ela se realoja no bico do cone, voltando TUDO ao sossego anterior.

Experiência - identificação da matacanha: Com um pedaço de papel branco, com mais ou menos, dois centímetros de largura, passemo-lo mesmo por baixo do habitáculo de uma matacanha, puxando, depois, cuidadosamente o papel com a terra para cima. Afastando, cuidadosamente, a terra ao longo do pedaço de papel, é possível identificar a matacanha a movimentar-se (desesperada) a céu aberto.

Destas experiências ficou-me uma “dúvida existencial”: não sei como a matacanha sobrevive no chão lodoso durante a época das chuvas.

Continuando a falar de insectos, deixei para o fim um exemplar que todos os que passaram e passam por aquela terras sofreram e sofrem:

– Sª.Exª., o MOSQUITO !

Mesmo aqui, na nossa terra, é melga, teimoso, persistente, chato e perigoso. E tornou-se mais comum devido ao aumento das temperaturas durante o Verão.

Na Guiné, no sul mais a sul, abundava, por vezes, em nuvens. E, como dizia um soldado nos nossos primeiros dias de Guiné:

- Estes gajos não aguentam uma cachaporra, mas mordem p’ra carago!

O mosquito era omnipresente como Deus, pelo menos nas terras do sul mais a sul – estava em todo o lado e ao mesmo tempo. Era impossível fugir-lhes. A quantidade era tal que nem mosquiteiro nem LION BRAND nem repelente nos livravam absolutamente deles.

À noite ou ao anoitecer, em operações militares, principalmente em emboscadas nocturnas, tentava-se evitar as picadas com rede mosquiteira à volta da cabeça, mas a rede não era tão apertada com seria necessário, porque diminuía a visibilidade. Por outro lado, o repelente, colocado na cara, só actuava durante algum tempo e cheirava muito mal para… os repelir. Na manhã seguinte o pessoal regressava com a testa, orelhas e faces cheias de pequenos relevos esbranquiçados e comichosos.

Conheci um capitão miliciano que se “alimentava” de whisky e que dizia que todos os mosquitos que o picassem já não voavam, pois, de imediato, cairiam bêbados no chão.

Do paludismo (ou malária) todos ouvimos já falar, mas só quem o experimentou entende como é aquela noção de “apocalipse”, de fim de mundo, os picos de febre e os tremores, que fazem tremer a cama do doente como se fosse um terramoto.

Muitas histórias se contam de pessoal “apanhado pelo clima” naqueles tempos de guerra, mas a mais surrealista que conheço é de um alferes que, tendo as paredes e o tecto do “quarto” pejadas de mosquitos, cheio de sono e não conseguindo dormir, puxou da G3 e atacou-os às rajadas.

Acabadas estas minudências, muito mais diminuídas por serem acerca desses seres menores chamados insectos, é tempo de regressar.

***************

Não fosse a guerra, as dificuldades de mobilidade que ela provocava e as preocupações que causava (ocupando tempo e mente), para muitos e naquela idade, a descoberta daquela terra teria sido uma vivência extraordinária.

Na Guiné (Planeta “África”) nos fizemos homens como consequência de tudo o que vivemos. Teria sido bem melhor termos “crescido” num ambiente de paz.
Pena foi não terem sobrevivido todos e outros terem regressado afectados no corpo e na alma.

Alberto Branquinho
__________

Notas de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6944: Contraponto (Alberto Branquinho) (14): Discorrendo sobre a(s) água(s) na Guiné

- Fotos retiradas da internete, com a devida vénia aos seus autores

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6944: Contraponto (Alberto Branquinho) (14): Discorrendo sobre a(s) água(s) na Guiné

1. Alberto Branquihno (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem datada de 2 de Setembro de 2010, discorre sobre o excesso e/ou falta de água na Guiné do nosso tempo.


CONTRAPONTO (14)

DISCORRENDO SOBRE AS “ÁGUAS” NA GUINÉ

Quem leia o título pensará que vou discorrer sobre água. Não, não se trata de escrever somente sobre o composto H2O.

Trata-se de alinhavar umas recordações sobre “águas” na Guiné e sobre as diversas situações, circunstâncias e formas em que a “água” se apresentava para satisfazer as necessidades orgânicas dos combatentes (e de outros militares) ou para dificultar a sua vida. E quando escrevo “combatentes” não estou a referir-me aos muitos militares que dizem ter estado “no mato”, porque estão convencidos (ou querem convencer quem não tenha tido conhecimento da realidade) que viveram as circunstâncias e as realidades da guerra. Apesar disso, dissertam sobre a experiência da “guerra”, tendo estado somente dentro de aquartelamento(s) no interior da Guiné (com melhores ou piores condições). Mas nunca dele saíram para fins operacionais, usando as suas próprias pernas para se locomoverem. Dormiram todas as noites nas suas camas, sofrendo (talvez) algum ataque ao quartel, abrigados em trincheiras ou em abrigos de cimento, sem riscos de maior.

Ora o tema deste discurso – AS ÁGUAS – é matéria que esteve presente no dia-a-dia do efectivo combatente, embora o “combatente dentro de portas” tenha conhecido algumas dessas “águas” (as mais agradáveis). O “combatente dentro de portas” não sofreu a “sede” e a “água fora de portas”, como abaixo vão referidas.

Quando havia poço de água (propriamente dita) dentro de portas era feita a recolha e distribuição da mesma pelos depósitos do quartel (bidões habitualmente). Mas quando o poço de água era fora de portas, o “carro de água” era acompanhado/protegido na ida e no regresso por combatentes, que o enquadravam, em coluna apeada.

Este discurso terá quatro capítulos, a saber:

I – Introdução (da qual o texto acima faz, também, parte);
II – As águas dentro dos aquartelamentos;
III – A água propriamente dita, fora dos aquartelamentos;
IV – Efeitos das águas na saúde dos militares (combatentes ou não).

O evoluir deste trabalho fará (espero) aflorar recordações que estarão no sótão ou na cave da memória.
Ele destina-se, principalmente, a informar os leigos que o lerem acerca das realidades hídricas que os combatentes (e, em alguns casos, os outros militares) deparavam no seu quotidiano.

Esta ideia surgiu ao autor no dia em que lhe faltou a água na torneira. A EPAL foi, portanto, a inspiradora. Obrigado, EPAL.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) >  A cambança de uma lala ou bolanha... no decurso de uma operação.

Foto: © Humberto Reis (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


I – INTRODUÇÃO

Em primeiro lugar dá-se aqui como reproduzido o texto inicial, que é, claramente, o pai (ou a mãe) desta Introdução. O que a seguir vai escrito é, portanto, uma ejaculação consequente do texto inicial e… introdutório.

Importa dizer que muitos camaradas foram depositados na Guiné num quartel ou espaço afim e aí permaneceram (incluindo os arredores do mesmo) durante os dois anos de tempo de Guiné. Quem tenha estado assim todo o tempo e numa zona situada mais para norte, não terá consciência que no sul mais a sul dessa linha a água e a terra não estavam devidamente separadas (agravado na época das chuvas). Aí Deus, ao tempo da criação do Mundo, esqueceu-se de separar a terra das águas.

As terras a norte, onde se encontra paisagem tipicamente de savana, mesmo na época das chuvas, não se assemelham às terras do sul mais a sul, nomeadamente no que respeita às dificuldades de progressão no terreno. Nesse sul, os rios grandes, rios médios, rios pequenos, riozinhos, braços de rio, braços de mar, lodo, lodo, lodo e mais lodo e água-lodo cercavam povoações e aquartelamentos.

Os rios, devido à baixíssima altitude do terreno, divertem-se a ziguezaguear, assim como em dança africana, em que cada curva e contracurva quase tocam a curva e contracurva anteriores, criando pequenas e grandes penínsulas lodosas, com vegetação variada e exuberante. Há, também, as grandes poças de água, lodosas (chamadas “bolanhas”) que, vistas do ar, são muito agradáveis de ver. Mas quem tem (tinha) que caminhar por lá não via essa beleza e o cheiro a maresia podre permanecia no camuflado, nas meias e nas botas.

Outro aspecto é a salinidade da água. Mesmo quando a água dos rios se apresenta límpida (o que é pouco comum, porque é, habitualmente, escura e lodosa) o grau de salinidade era tal que, se um soldado “periquito” incauto e sedento a bebesse, sofria um choque que nunca mais esqueceria. À sede, assim agravada, sobrevinha um desespero incontrolado.

A minha Companhia só encontrou rio de água doce mais de um ano depois de ter chegado à Guiné – no Rio Balana, junto a Gandembel, durante a construção deste aquartelamento (Operação Bola de Fogo). Mais ou menos a dez quilómetros a sul de Aldeia Formosa (Quebo).

Por outro lado, quem tenha estado todo o tempo nessas terras mais a sul, não conheceu rios de água doce, que só podem ser encontrados a norte, onde o terreno pode apresentar-se com altitudes de... dez/quinze metros. Ora, nestas circunstâncias, as marés, mesmo as mais vivas (e inteligentes...) não conseguem subir tão alto e, portanto, a água é doce (ou, mais propriamente, não salgada). Na época das chuvas esses pequenos rios têm, como é óbvio, um caudal apreciável.


II – AS “ÁGUAS” DENTRO DOS AQUARTELAMENTOS

A água, dentro dos aquartelamentos, era absorvida pelos militares (combatentes incluídos) sob as seguintes formas:

a) Sob a forma de água propriamente dita;
b) Sob a forma de cerveja (a forma mais apreciada e consumida);
c) Sob a forma de “coca-cola” (proibida na “Metrópole”, mas tolerada pelas autoridades locais);
d) Sob a forma de “7upe”(assim mesmo pronunciado, dada a falta de inglês na formação militar e que não existia na “Metrópole”);
e) Sob a forma de dois ou três refrigerantes;
f) Sob a forma “Água de Castelo”, misturada com bebida alcoólica);
g) Sob a forma de “Pérrier” (água francesa de aparecimento misterioso, só explicável pele francofonia envolvente); era consumida misturada com bebida alcoólica ou simples, quando havia necessidade de arrotar;
h) Sob a forma de “água tónica”, também acompanhada da componente alcoólica;
i) Sob a forma de vinho, que chegava em garrafões de tamanho considerável e difíceis de esvaziar; não era uma forma muito habitual de repor os níveis de H2O no organismo; por outro lado, constava que, devido à adição de uma substância química, em vez de matar a sede, matava a fome de outra coisa...

E, parece que é tudo. Caso falte aqui a referência a alguma espécie de “água” que suprisse as necessidades orgânicas de água, faça o favor de a acrescentar à lista.

Falando de água propriamente dita, ela era recolhida de poços pelas chamadas “viaturas da água”, que tinham na carroçaria todos os bidões (sim, os de gasolina) permitidos pela volumetria da caixa. Todos os dias (e, por vezes, mais que uma vez) essas viaturas iam a esses poços e, através de bombas manuais ou moto-bombas, aspergiam a água, enchendo os bidões. No quartel, a água era passada para os bidões de reserva existentes junto às cozinhas, para bidões colocados em cima de tábuas horizontais sustentadas por tábuas verticais. Eram os... chuveiros. Onde os havia, porque muitas vezes o pessoal lavava-se (quando se podia lavar... ou devido à falta de água ou ao excesso de “fogachal”) baldeando a água para cima dos corpos com vasilhame mais ou menos adequado. Esses “chuveiros” eram, habitualmente, accionados por dois cordéis – um abria a água e o outro fechava. Quem demorasse mais que xis minutos no chuveiro quase era fuzilado.

Em certas situações não se podia usar moto-bomba na recolha da água, porque, quando o motor começava a trabalhar, havia do “outro lado” alguém que, ouvindo o barulho do motor, enviava para o local, a título de reciprocidade ou cumprimento, umas granadas de morteiro. E, claro, como quando acontece com os protestos do vizinho de baixo, desligava-se a moto-bomba e o pessoal espalmava-se no chão assim como peixe escalado. Algum tempo depois recomeçava a recolha de forma manual.

Já me perguntaram porque é que “os gajos” não envenenavam a água. Respondo que nunca lhes perguntei, mas acho que era porque “eles” tanto bebiam a água a montante como a jusante, porque andavam sempre em passeios.

Muita gente morreu nas “saídas” para ir recolher água, caindo em emboscadas. Quando digo isto a alguém que quer saber “coisas” sobre esses tempos, ficam a olhar-me com ar entre o incrédulo e espantado. Aí, remato:
- Não havia água canalizada…

A terminar, há que dizer, quanto às várias formas de água acima referidas, que:

(i) Água (propriamente dita) era, mais ou menos, como ficou dito acima;
(ii) Sob a forma constituinte de cerveja, lá ia aparecendo, quase nunca faltando;
(iii) Sob a forma de “coca-cola”, e “7upe”, era um luxo (nem sempre havia em muitos quartéis);
(iv) Sob a forma de “Água Castelo” ou “Pérrier”, abundava nas messes das sedes de Batalhão (no “mato”);
(v) Vinho, havia em muitíssimos garrafões nos depósitos, arrumados em pilhas.

Parece que está tudo dito. No entanto, se alguém desejar colmatar alguma lacuna, faça o favor de entrar.





Guiné > Zona Leste > Sector L1 > CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) > Destacamento do Rio Udunduma > 3º Grupo de Combate da CCAÇ 12, no "refeitório": Na foto reconheço, à esquerda, o 1º Cabo Carlos Alberto Alves Galvão (o homem que foi ferido duas vezes na mesma operação, vivendo hoje na Covilhã) e o Alf Mil Abel Maria Rodrigues, transmontano de Miranda do Douro; à direita o o Fur Mil At  Inf Arlindo T. Roda (natural de Pousos, Leiria; residente hoje em Setúbal) ...  Lembro-me da cara (mas não recordo o nome) do camarada  (sold condutor auto ?) que guarda o recipiente que continha a famosa "água de Lisboa" (segundo os africanos; para nós, era simplesmente  "água do Poço do Bispo" ou "vinho a martelo") ...

O famoso garrafão de vinho da Intendência era uma versão superior (10 litros ?) do nosso alegre e saudoso "palhinhas" dos piqueniques do tempo dos nossos pais e avós... O vidro era revestido, não a verga, mas a tiras de madeira, de modo a protegê-lo das muitas andanças e cambanças, voltas e baldrocas que tinha de fazer desde o produtor ao consumidor final...

O produtor era o o mixordeiro do Poço do Bispo (que da água do Tejo fazia vinho "pró preto"...); o consumidor final era o pobre Zé Soldado que, segundo o regulamento, tinha direito a uma caneca  por refeição dessa mistura hidro-alcoólica que chegava, quando chegava, às margens dos rios da Guiné, como o Udunduma (afluente do Geba), um dos muitos miseráveis e solitários destacamentos das NT... (LG)

Foto: © Arlindo Teixeira Roda (2010) & Blogue Luis Graca  e Camaradas da Guine. Todos os direitos reservados.
 
 
 
III – A ÁGUA FORA DOS AQUARTELAMENTOS

a) A progressão no terreno

Fora dos aquartelamentos, para além da necessidade de repor os desejáveis níveis de água no corpo, aquilo que um homem mais recorda daqueles tempos são as dificuldades de movimentação no terreno durante as operações ou as colunas auto. Terreno? Nessas terras mais a sul poderia falar-se em terreno, principalmente durante a época das chuvas? Era lodo, lodo, lodo, lama e água-lodo. A falar das águas (e dos lodos) convém não esquecer que aqueles rios do sul mais sul da Guiné, porque a altitude do solo está quase ao nível do mar, invadem a terra/lodo em cada maré-cheia. Na baixa-mar deixam à vista as grandes margens lodosas que os enquadram. Qualquer riacho, braço de rio ou braço de mar exibe a sua moldura lodosa de muitos metros, na margem esquerda e na margem direita. Aí um homem atasca-se, com risco, em alguns casos, de ser engolido. Certo foi que, devido ao esforço de tentar levantar cada pé para tentar avançar ou fugir dali, esse esforço continuado foi a causa de, com o decorrer do tempo, rebentarem hérnias inguinais. Surgiam, também, fungos e micoses entre os dedos dos pés e nas virilhas.

É impossível atravessar a pé o mais pequeno braço de água na maré-cheia, arriscado durante o encher da maré e, principalmente, durante o vazar, porque o risco de ser arrastado é grande. Em certas zonas há que esperar a baixa-mar total e aproveitar zonas mais baixas de lodo ou troncos de árvores caídos para atingir o centro da linha de água e caminhar ao longo dele (que não tem lodo ou tem pouco) até descobrir outro espaço que permita passar para a outra margem. Esta manobra é chamada CAMBANÇA. A mesma designação é, também, usada para o atravessamento de um braço de água, feito em canoa.

Muitas vezes o atravessamento de rios (com centenas de metros de largo) era efectuado, por razões de sigilo operacional, durante a noite e a canoa ia engolindo água pela borda esquerda e pela direita, à medida que avançava. Era um susto contínuo. Nem sempre uma canoa... “é uma passagem para a outra margem”.

Imagine-se o cuidado a ter no planeamento de operações, de modo a que o acesso a uma determinada zona fosse ser feito, por cambança, em maré baixa e o regresso (depois da “fogachada” habitual) também em maré baixa, no mesmo dia ou dias depois para evitar que a tropa ficasse encurralada entre “os gajos” e a água em maré alta.

Também as zonas baixas (alagadas e lodosas – “bolanhas”), cobertas de vegetação rasante à água, eram perigosas de ser atravessadas devido à exposição ao fogo inimigo colocado na orla das matas circundantes e porque a água ficava, pelo menos, à altura da cintura ou do meio do peito de um homem médio. Quando surgiam “baixios” ou a água tinha níveis superiores, havia que retirar a arma aos mais pequenos e levantá-los pela gola do “bibe” para evitar que engolissem água. Água que, além de salgada, era lodosa e insalubre.

Como se vê, os homens colocavam o “chispe de molho” logo ao sair do quartel e só o podiam secar no quartel, depois do regresso, que podia ser na noite desse dia, no dia seguinte ou dias depois. Tudo isto na época das chuvas ou imediatamente a seguir.
Depois ia baixando o nível das águas, mas ela (a água) continuava sempre presente.

Convirá dizer que havia algumas situações preocupantes nas circunstâncias descritas – progressão de noite (mesmo com luar), debaixo de chuva intensa, em caso de emboscada ou flagelação à distância.


b) A chuva

No fim da época seca a chuva anunciava-se com pequenas nuvens no horizonte. A seguir vinham as trovoadas semelhantes a rebentamentos de morteiro, consecutivos. Ventos e as primeiras chuvas.
Começava a formação das lamas nos quartéis, que durariam meses, enlameando tudo e todos e então:

(i)  surgiam, como por encanto, milhares de formigas de asa, que, depois de um voo efémero que as salvava de afogamento, se atravessavam à frente dos rostos, chocavam com as pessoas, com os objectos e a construções, em voo irregular, caindo de seguida por terem perdido as asas. Deixavam tapetes e tapetes de asas que, ou se amontoavam nos cantos ou andavam em redemoinhos provocados pelo vento, que acabava por empurrá-las para longe. As que ficavam tinham que ser apanhadas à pá, molhadas pela chuva ou permaneciam durante vários dias;

(ii) quando a chuva já continuava, verificava-se a “aparição” de centenas de rãs e sapos (e outros exemplares afins) que ocupavam todo o espaço enlameado, procurando abrigo em qualquer canto, com os seus saltos contínuos e nada elegantes, invadindo até os espaços habitados; mas o momento mais desagradável era à noite, porque tornavam impossível o sono com o coaxar ininterrupto, com vozes de tenor, barítono, contralto…

No que respeita à actividade operacional, a chuva, que, por vezes, caía em cortinas de água, dificultava o contacto (visual) entre os homens e os que os antecediam, quebrando, assim, a coluna, impossibilitando a progressão e causando o risco de serem confundidos amigos com inimigos. Imaginem como seria, então, em progressões nocturnas.

Apesar de a chuva ter uma temperatura idêntica à da nossa chuva de Verão, no meio da mata sentia-se como fria e quando era necessário parar, evitava-se até agachar por ser desagradável sentir o camuflado molhado totalmente colado às costas, o que poderá parecer estranho para quem tenha frequentado os Rangers durante o Inverno de Lamego. Mas quando se tratava de salvar a pele…

Caminhando debaixo daquela chuva persistente (que se mantém durante os meses dessa estação), havia um pingo de água irritante. Baloiçava da esquerda para a direita e da direita para a esquerda (Não estou a falar de políticos…), à frente do nariz de um homem, obrigando-o a sacudir, repetidamente, a cabeça, para o fazer cair no chão. Mas logo outro surgia, ocupando o lugar do expulso. Nova sacudidela… e assim sucessivamente. Não, não era o pingo do nariz. Era o pingo na pala do quico, que passeava de barlavento para sotavento e de sotavento para barlavento, num movimento sem fim e irritante. Solução – passar a pala para trás da cabeça, até porque não iria haver sol durante muitos meses.

Já me perguntaram se debaixo daquela chuva tropical, as armas encharcavam ou se a pólvora encharcava. Não, isso não acontecia, porque os canos das armas eram virados para baixo e graças à Fábrica de Braço de Prata.

Muitos pormenores poderia escrever sobre a água, as chuvas durante a “ época das chuvas”, mas o sentimento que mais me apetece transmitir a quem não viveu essas situações (ou mesmo a quem as viveu) – ao andar pelos terrenos alagados, bolanhas, debaixo daquelas chuvas que nunca mais paravam, sempre dentro de água – é que nunca na minha vida desejei tanto ser peixe…


c) - A sede

A matéria deste texto é, exactamente, a antítese do que trata o texto imediatamente anterior.

Cada homem tinha distribuído um cantil. Teria uma capacidade de, mais ou menos, um litro. Mesmo durante as operações de um só dia havia que saber doseá-lo. No caso de operações de dois, três, quatro dias TALVEZ em algum momento pudesse haver reabastecimento. As instruções eram para chegar o cantil aos lábios, assim como quem beija. Mas a tropa nova esgotava-o em dois actos.

A sede (sede, sede, sede, sede…) era uma coisa horrível. Na época seca, claro.
- Eh pá, dá-me uma pinga de água.

A palavra ÁGUA (água, água, água…) era equivalente a ouro. A palavra era pronunciada, pensada com a cabeça tonta de sol e sede. Era qualquer coisa de divinal, longínqua. Além disso, havia uma música de sons graves, muito graves e repetitivos na cabeça dos homens. E soava como se ecoasse num espaço cavo, oco e profundo.

Um caso conheci em que o soldado urinou no cantil e bebeu a própria urina. O que mais doía era ouvir feridos e moribundos pedir água, por vezes já com o soro a correr nas veias.

Devido à absoluta necessidade, chegámos a beber de poças de água que tinham excrementos de animais lá dentro e que, portanto, também dela tinham bebido. No caso de excrementos de vaca era duplamente perigoso – pelo facto de a bebermos e porque, se havia vacas, havia população, o que, em terreno longe dos quartéis, significava a presença próxima de guerrilheiros. Enquanto uns bebiam, outros montavam segurança, alternando-se depois. Tal como acontecia junto de rios de água doce, para beber e para encher cantis.


d) – O macaréu

Atrás foi já dito que as marés afectavam os rios e o território da Guiné muitos quilómetros para além da foz dos rios. Ora, no tempo das marés vivas, a massa de água que sobe o rio pode ser tal que a primeira onda de maré e as primeiras a seguir (em movimento contra as águas descendentes), tenham uma força e altura tais que podem perigar a navegação, principalmente de pequenas embarcações. É o macaréu, que no Brasil é chamado pororoca.


IV – EFEITOS DAS “ÁGUAS” INGERIDAS

Estando este discurso a atingir o seu final, compreensível será para o leitor quais poderão ter sido os efeitos das “águas” ingeridas nas circunstâncias já descritas.

Quanto aos compostos “cerveja, vinho ou às “Castelo”, “Pérrier” ou água tónica (estas últimas não elas mesmas, mas o respectivo aditivo alcoólico), claro que poderão ter causado efeitos a médio ou a longo prazo, mas é da outra agua (a propriamente dita) que importa, agora, falar.

O facto de a tropa combatente ter ingerido aquelas águas fora dos aquartelamentos (voluntária ou involuntariamente), acarretou, por vezes, problemas de saúde. Não esquecer as involuntárias goladas ou “pirolitos” no atravessamento de rios e bolanhas. Estas águas transportaram para o interior do corpo micro organismos que causaram ou poderiam vir a causar enfermidades em futuro próximo.

No final da comissão, cada um foi obrigado a fazer aquilo que, na gíria de caserna, era denominado “cagar no frasquinho” – acto que exigia grande pontaria, mais facilitado, portanto, para os atiradores especiais... Analisadas as fezes (se é que eram todas analisadas...), ficávamos a saber a densidade de oxiúros, triquinas e outros familiares que, gratuitamente, transportávamos. E foi então que, mais uma vez, se manifestou um dos tais “combatentes de dentro de portas”, que só bebia águas engarrafadas, comentando com ar desdenhoso:
- Não percebo tanta preocupação. A minha análise é negativa!.

Como terapêutica para matar aquela bicharada toda, transportada clandestinamente nas entranhas, eram distribuídos comprimidos, engolidos a custo e à custa de cerveja. Porquê? – Porque eram grandes, maiores e mais volumosos que a antiga moeda de um escudo, em níquel. Era o sinal que a guerra estava a acabar e que, em breve, estaríamos navegando sobre outras águas, fazendo a GRANDE CAMBANÇA de regresso a casa.

Tenho dito!
(Embora mais houvesse a dizer).
Alberto Branquinho
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6803: Contraponto (Alberto Branquinho) (13): Cambança com Caronte, ou A última viagem do soldado

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6803: Contraponto (Alberto Branquinho) (13): Cambança com Caronte, ou A última viagem do soldado


CONTRAPONTO (13)

CAMBANÇA COM CARONTE
OU A ÚLTIMA VIAGEM DO SOLDADO


No meio de toda aquela confusão – tiroteio, gritos, bazucadas, roquetadas… – ouviu um grande estouro. Depois foi o silêncio.

....................................................................................

Agora navegava. O rio era escuro, fundo, espesso. A canoa avançava, a impulsos do remador. O remo à ré. Água sempre escura. Céu não havia. Uma luz ténue a afastar-se, longe.

A canoa penetrava no escuro, aos solavancos. O homem, deitado, adivinhava o vulto do remador, os oscilar das vestes, o capuz que lhe cobria o rosto, os braços que repetiam os gestos.

Havia um grito agudo e angustiante, que não sabia se estava dentro da cabeça ou se o ouvia ao longe.

Não havia tempo. Ou o tempo não estava ali.
Por entre o grito, ouvia vozes graves, profundas. Ora próximas, ora distantes. Talvez, também, murmúrios de quem reza.

Assim ficou. A canoa suspensa sobre a água. Vozes. E o grito. Vozes, vozes. Perto. Perto. Durante muito tempo.

Sentiu que abria os olhos. Por entre um manto vermelho, para além tudo era branco.

Porquê? Porquê? – perguntou-se. Sentiu uma grande angústia. Fechou os olhos.

A cabeça batia com força. Por dentro. E o grito aumentava, aumentava. Ouviu berrar. Chamar alguém. O remador empurrava-lhe o peito, ao ritmo de quem rema. Tentou gritar. Não conseguiu. O grito ficou encalhado na garganta.
Depois tudo foi ficando escuro, escuro e quedo. E acabou.
NUNCA MAIS.

Alberto Branquinho*
__________

Notas de CV:

(*) Alberto Branquinho foi Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69

Vd. último poste da série de 23 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6778: Contraponto (Alberto Branquinho) (12): Duas visões do Almirante Américo Thomaz

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6778: Contraponto (Alberto Branquinho) (12): Duas visões do Almirante Américo Thomaz

CONTRAPONTO (12)

DUAS VEZES


Duas vezes vi o Almirante Américo Thomaz.

A primeira vez foi durante o desfile do juramento de bandeira na Escola Prática de Infantaria, em Mafra.
A formatura de cadetes saiu pelo portão do lado direito para quem esteja a olhar o Convento de fronte para a escadaria central. Começara com o habitual “Em frente, marche!!” e continuou a toque de caixa, voltando os vários pelotões à direita, para passarem em frente ao Convento. Começou a ouvir-se a charanga de metais, sopro e percussão, que tocava de forma ensurdecedora o “Angola é nossa! Angola é nossa! Angola é nossa!”. A partir desse momento os pés esquerdos batiam o chão a cada duas vezes que entrava a nota correspondente às sílabas “gó” de “Angola” e “nó” de “nossa”. A altura da música era tal que não podia ouvir-se qualquer ordem do comandante, colocado à frente de cada pelotão.

E foi assim que, sem ter ouvido a ordem de “Olhar direit’UP!”, percebi pelo colega (perdão, camarada) à minha frente que devia olhar à direita. Assim olhei, mantendo a cabeça a olhar (rigidamente) nessa direcção.
Foi, então, que vi o Almirante Américo Thomaz em pé e ao centro da escadaria, em cima de um palanque, recebendo e retribuindo o cumprimento militar. Fiquei a olhá-lo e a olhar a comitiva. Só percebi que já tinha havido ordem de “Olhar frente!” algum tempo depois.
A formatura torneou o Convento e regressou à parada pelo portão do lado oposto.

A segunda vez que vi o Almirante Américo Thomaz foi (talvez) em 1975.

Passeava eu com um grupo de amigos, num fim de tarde, em Copacabana, não naquele passeio largo a que chamam “Calçadão”, mas no outro passeio do lado oposto junto aos edifícios, quando um chamou a nossa atenção:

- Olha… o Américo Thomaz.

O Almirante (que, claro, não estava fardado) caminhava lentamente à nossa esquerda e em sentido contrário, mais próximo da beira do passeio, em passos curtos e cuidados, seguido a pouca distância pela filha. Pressentindo estar a ser observado e, talvez pela nossa atitude ou pelo vestuário, terá adivinhado sermos portugueses. Inclinou levemente a cabeça, cumprimentando-nos. Todos correspondemos. Como não íamos em formatura, não houve ordens de olhar à direita (ou à esquerda, como teria sido o caso).

(A História tem destas coisas…)
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Notas de CV:

- Alberto Branquinho foi Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69

- Vd. último poste da série de 9 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6704: Contraponto (Alberto Branquinho) (11): Você é preto!?

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6704: Contraponto (Alberto Branquinho) (11): Você é preto!?

1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 4 de Julho de 2010:

Caríssimo Carlos
Estou a enviar junto o texto para o Contraponto (11), com os desejos habituais de saúde e sorte, que não é, propriamente, a sorte ao jogo, mas pode ser, também, incluída.

Um abraço do
Alberto Banquinho




CONTRAPONTO (11)

VOCÊ É PRETO !!!


Foi em Outubro ou Novembro de 1966. Em Lamego e durante o Curso de Operações Especiais – “Rangers”.

Talvez não saibam que, durante o curso, os aspirantes e os furriéis (cabos milicianos?) que o frequentavam eram enquadrados em “parelhas”, ou seja, em grupos de dois. Tentavam assim criar um espírito de entreajuda, companheirismo e sentido de co-responsabilidade. O meu sócio/parelha era cabo-verdiano, há muito residente em Lisboa, de quem fiquei amigo. Reencontrei-o, depois do regresso da Guiné, na Faculdade de Direito de Lisboa, para onde me transferi, depois de ter chegado a Coimbra em plena crise de 1969.

Em Lamego, durante o curso, havia provas individuais mas havia, também, provas em que se funcionava por parelhas.

Numa noite fria e de céu estrelado, sem lua, fomos carregados, de olhos vendados, em camiões de caixa fechada e transportados para muitos quilómetros de Lamego, por estradas e caminhos de terra batida. O camião parava de onde em onde e vinha a ordem: - Salta a parelha n.º x!

A parelha apeava-se, eram tiradas as vendas e era largada num qualquer caminho no meio de um pinhal… sem despedidas. Corrigidos os atacadores das botas, amanhadas as calças, corrigido o aperto o cinto e de canhangulo (velho, inútil e avariado) em bandoleira, havia que decidir que caminho tomar.

- Qual era a missão? –( perguntarão).

Era alcançar Lamego e o CIOE (quartel) o mais rapidamente possível, sendo proibido seguir estradas ou caminhos. Se detectados em infracção por um carro militar, estacionado e de faróis apagados, seríamos recarregados para uns excelentes quilómetros lá mais para trás.

A primeira decisão foi deixar que o camião se afastasse e seguir-lhe o rumo, procurando espaço com alguma visibilidade.

Alguém perguntará: - Porque é que não tentavam orientar-se pela Estrela Polar? – Porque não sabíamos se Lamego estava para Norte, para Sul ou Leste ou Oeste…

A tentação foi fazer batota – seguir a primeira estrada ou caminho onde os primeiros faróis surgissem e encontrar uma placa sinalizadora.
Bem agachados e quietos no meio do mato (“mata” seria mais tarde, na Guiné), evitando ser vistos, enquanto os carros passavam.

Caminhámos, caminhámos sem que surgisse qualquer placa a indicar Lamego ou proximidades.
Discutimos, discutimos. – Se queres ir por aí vai tu. Acho que a luminosidade que se vê além só pode ser Lamego.
Como natural do Alto Douro, eu achava que tinha melhor conhecimento do terreno (Onde foi que, meses mais tarde, eu ouvi isto?).

E foi durante estas andanças que ouvimos um cão ladrar. Mas bem longe. Por entre o arvoredo parecia ver-se uma luz muito fraca tremeluzindo, longe e em baixo. Aparecia e desaparecia. E o ladrar parecia vir desses lados. “- Vamos lá perguntar o caminho”.

Começámos a caminhar na direcção da luz. Agora não havia dúvidas – era uma luz. Fraca, muito fraca. “- Vamos depressa, que eu já estou farto disto”.

O terreno começava a descer de forma pronunciada. Comecei a tactear o que me pareceram ser videiras. Lembrei-me dos socalcos do Douro e, como ele seguia à minha frente, aconselhei:

– Vai devagar. Vê onde pões os pés”. Deixei de o entrever e, depois de um barulho de restolhada, ouvi-o cair e queixar-se.

- Onde estás?” – perguntei, tacteando o chão à minha frente.

- Caí, estou aqui”. Usando o canhangulo, fiz o reconhecimento do chão escuro à minha frente. Toquei em arames e percebi que ele tinha caído em cima dos arames de suporte das videiras e, depois, no chão. Estaria, portanto, dois a três metros abaixo. O enleado dos arames teria amortecido a queda.

- Estás bem?

- Estou todo cagado.

Deixei-me escorregar pelo desnível e aproximei-me. Estava bem.
Agora já não se via a luz.

Continuámos, torneando socalco a socalco. O ladrar estava mais próximo e a encosta era cada vez mais íngreme. A luz voltou a surgir lá mais abaixo, mas fraca e parecia apagar-se de vez em quando.

Afinal, estava mais longe do que parecia.

Em terreno quase plano e aberto surgiu o barulho de água a correr. O cão ladrava já mais fortemente, pressentindo-nos. A luz, embora vacilante, era já bem visível.
Caminhámos ainda mais uns dez a quinze minutos e o cão veio ao nosso encontro, ladrando ameaçador. Assobiei-lhe baixinho para o acalmar. Ouviu-se, então, a voz de um homem:

- Quem vem lá?

- Militares. De Lamego.

- Cheguem-se cá. Cala-te, Leão.

O cão parou de ladrar. Caminhei pela laje de xisto na direcção da porta do casebre de onde vinha a luz. O homem esperava à porta.

- São só vocês?

- Só.

Ouvia-se o forte caudal da água do ribeiro correndo ali bem perto.

- Querem um copo de vinho?

- Agradecemos. Dá licença?

Entrámos, limpando as botas na soleira, com o cão atrás de nós, cheirando-nos, com o focinho colado às botas.

- Sentem-se.

O homem foi buscar uns copos de esmalte, andou uns passos no sentido do marulhar da água que corria junto à parede, passou-os por água, sacudiu-os e entregou-nos.

Quando passou junto ao candeeiro de petróleo, a figura agigantou-se na sombra, contra a parede e telhado. Constatei, então, que o homem estava ali por causa do trabalho na azenha (ou moinho de água, como lhe chamam no sul).

Puxou da garrafa e encheu-me o copo. Quando ia encher o copo do meu companheiro, parou, a olhá-lo. Foi buscar o candeeiro, ergueu-o à altura da cara e, com espanto, exclamou:

- VOCÊ É PRETO !!!

Olhou-me e perguntou:

- E está aqui na tropa?

Fixei-o nos olhos, acenei que sim com a cabeça, ao mesmo tempo que pensava: ”E eu sou Branquinho”.

Bebemos o copo de vinho e, já informados, abalámos na direcção de Lamego.

Alberto Branquinho
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6562: Contraponto (Alberto Branquinho) (10): Grafia do crioulo da Guiné-Bissau

terça-feira, 8 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6562: Contraponto (Alberto Branquinho) (10): Grafia do crioulo da Guiné-Bissau

1. Mensagem de Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 6 de Junho de 2010:

Karo Karlos Winhal
Não fiques peocupado, não ensandeci. Quando leres o texto que vai junto, entenderás a razão.

Um abraço do
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (10)

GRAFIA DO CRIOULO DA GUINÉ-BISSAU


Não tenho conhecimento que exista grafia oficial ou oficiosa do Crioulo da Guiné-Bissau.

Por outro lado, ninguém põe em dúvida que a sua língua-base é o Português, apesar de encontrarmos vocábulos que são de origem francesa devido ao facto de a Guiné-Bissau estar cercada por dois países francófonos.

Então, porquê escrever o Crioulo da Guiné-Bissau com letras que, na pureza da sua origem, não são do alfabeto português?

Porquê escrever “kriol” e não “criol”? Porquê escrever “ká” e não “cá”? Porquê “kurpo” e não “curpo”, “macaco-kom” e não “macaco-com”? Porquê usar kk e ww?

Será que é para dar um aspecto exótico à escrita? Por serem letras usadas em outras escritas africanas ou com influência anglófona?

Se é o exotismo que se procura, sugiro, então, que se escreva “makako-kom”, que, além do mais, transmite, também, um aspecto “amacacado”.

Apesar de, por força das circunstâncias (terminologia científica e outras), termos sido obrigados a receber esses caracteres para escrevermos algumas palavras, não queiramos ser ortógrafos “avant-la-lettre” com respeito à forma de escrever num espaço geográfico que não é o nosso. Deixemos as autoridades guineenses decidir sobre a grafia do seu crioulo e não comecemos já a “estrangeirar” essa miscigenação linguística que pode continuar fiel à sua origem.

Ainda recentemente pudemos ver, aqui no blogue, uma fotografia de uma mulher guineense (com uma criança às costas) escrevendo no quadro preto de uma escola. Escreveu “Candê”, “Calissa” e não “Kandê”, “Kalissa”. Assim, também, ”Camará” e não “Kamará”.

Claro que convém ter presente que muitos apelidos são comuns à Guiné-Bissau e à Guiné-Conacri e ao Senegal. Nas nossas movimentações dos tempos da guerra, encontrámos muitas vezes cidadãos com “dupla cidadania” (quero dizer, com documentos de identificação de dois países). E, nesses casos, o atrás mencionado apelido “Candê”, estaria, francofonamente escrito, “Candé” ou “Kandé”. Aí está, também, outra diferença – como passar à escrita o som “ê”.

De qualquer modo, a última palavra será da própria Guiné-Bissau.

Convém lembrar que o(s) crioulo(s) de origem portuguesa falado(s) na parte ocidental de África (Guiné, Cabo Verde, São Tomé) deu(deram) origem a um “papiamento” falado em ilhas da América Central (que contém, também, palavras de origem holandesa e espanhola) e que tem estatuto de língua oficial. Tive oportunidade de o ouvir falar em Curaçau há poucos anos, durante um Carnaval. Este caso será, talvez, o único que beneficiou desse estatuto, mas muitos outros existem em outros lugares do mundo onde o Português foi falado por navegadores e comerciantes.

Alberto Branquinho
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6430: Contraponto (Alberto Branquinho) (9): Eutanásia?

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6430: Contraponto (Alberto Branquinho) (9): Eutanásia?

1. Mensagem de Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 16 de Maio de 2010:

Caro Carlos Vinhal
Agora que o Papa já regressou e portanto, não há o risco de referir um tema que, também, pode causar "rupturas" no tecido social português, junto vai o texto do CONTRAPONTO (9), que intitulei "EUTANÀSIA ?".

Um abraço e, como sempre se despede o meu Tio que por aí reside, SAÚDE e SORTE.
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (9)

EUTANÁSIA?


Foi no fim da época das chuvas.

O pelotão foi destacado para fazer “psico” em chão balanta, percorrendo duas ou três tabancas próximas da sede do Batalhão, acompanhando os enfermeiros – um furriel e dois cabos.

O pessoal estava instalado discretamente nas entradas da aldeia, acompanhado pelos respectivos furriéis e outros postados em posições de segurança (não fosse surgir alguma surpresa). O alferes circulava por entre as moranças acompanhado de um cabo e de um soldado. Seguiam de perto as movimentações dos enfermeiros.

Chegou-se um homem já idoso, solícito e nervoso, perguntando por “aquele qui na manda”. O alferes perguntou-lhe. “Q’é qui bô misste?"

O homem começou a arengar um palavreado nervoso e confuso, misturando crioulo talvez com balanta, sempre de olhos no chão.

O alferes só entendeu que falava da “mãe” e de “dor”. Passado algum tempo olhou o alferes com uns olhos tímidos e brilhantes e, fazendo repetidas vénias, apontou numa direcção e disse: “Bô bem… bem”. E começou a andar devagar, olhando para o alferes, que fez sinal ao soldado para o seguir e ao cabo para continuar a acompanhar os enfermeiros.

O homem colocou-se ao lado do alferes e dizia repetidas vezes: “Dói perna… dói… dói braço, dói… dói…” e batia com a palma da mão direita na perna direita, na perna esquerda, no outro braço, no pescoço, nos ombros, nas costas e terminava dizendo com expressão triste: “Cá pude… cá pude muri...”.

Chegaram junto de uma palhota isolada. O homem empurrou a porta e entrou. Fez o gesto convidando o alferes a entrar. Este disse para o soldado:

- Fica aqui. Só entras se eu chamar.

- Ó meu alferes, bocê bai lá p’ra dentro?

- Aguenta aí.

Quando entrou ouviu uns gemidos agudos e contínuos, mas nada conseguia ver na penumbra interior. O ambiente estava quente, abafado, húmido. Num repente os gemidos passaram a uns guinchos agudos, penetrantes. Viu, então, que o homem estava debruçado sobre um catre muito baixo, atrás da porta e que nele estava deitada uma velhota de idade muito avançada, que, ao mesmo tempo que emitia aqueles guinchos, tentava levantar os braços para ele. O soldado chegou à soleira:

- Ó meu alferes, que merda é essa?

- Nada. Vai lá para fora.

O alferes pôs a arma em bandoleira, aproximou-se, fixou a mulher, tentando ver melhor. Notou, então que, por baixo da cama, estavam espalhadas brasas ainda bem incandescentes. O homem postou-se entre o alferes e a mulher, que não parava de guinchar e, curvado e choroso, repetia, repetia: ”Dói… dói… dói… dói…”, ao mesmo tempo que, com a mão indicava os pés, os joelhos, braços, cotovelos, ombros e as costas. “Cá pude… cá pude…”.

O alferes chamou o soldado e disse-lhe para chamar o furriel enfermeiro.

- Mim parti mèzinha cum bô. Mèzinha bêm lá.”.

O homem calou-se, agarrou um braço da velhota e falou-lhe ao ouvido. A velhota parou de guinchar, embora soltasse gemidos baixos.

O alferes foi à porta esperar o furriel enfermeiro. Quando chegou explicou-lhe o que se passava. Entraram ambos. O alferes ficou afastado a observar o braseiro debaixo da cama, que se estendia da cabeça ate aos pés. O enfermeiro falou com o homem, tentando fazer-se entender e entregou-lhe uma pequena caixa.

Saíram ambos, entre muitos agradecimentos e vénias do homem.

- Que é que você lhe deu?

- Comprimidos LM. Que é que havia de ser?

O alferes pensou: “Aspirina? Reumatismo ou coisa assim… Pode ser que resulte.”

Nesse mesmo dia, quando contava ao médico o sucedido, alguém interrompeu: “Você sabe que os balantas praticam a eutanásia ?”

Não respondeu e ficou a pensar na conversa do homem e na atitude (desesperada?) da velhota.

Desejou voltar à aldeia e perguntar pelo filho e pela mãe, mas não teve oportunidade, porque, mais uma vez, a Companhia foi transferida para outra zona de intervenção.

Alberto Branquinho
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de19 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6187: Contraponto (Alberto Branquinho) (8): Desertores? - A tertúlia anda pouca activa, porquê?

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6187: Contraponto (Alberto Branquinho) (8): Desertores? - A tertúlia anda pouca activa, porquê?

1. Mensagem de Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 9 de Abril de 2010:

Carlos
Embora não tenha recebido procuração nem do Editor nem dos Co-Editores nem indicações de ninguém, achei por bem abordar o assunto tratado no texto.

Não será pertinente, mas é, pelo menos... impertinente.

Um abraço do
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (8)

DESERTORES?


Em Março de 2008 foi inserido o meu primeiro texto neste blogue, que muitos conhecem ainda por “blogue fora nada”, nome que utilizou de Abril de 2005 até Junho de 2006.

Não foi um texto amigável. Foi uma reacção a muitos meses (clandestinos) de leitura deste espaço, porque nele encontrei matéria que entendi menosprezar o envolvimento e o sofrimento da minha Companhia (CART 1689) sobre um determinado período da sua comissão na Guiné.

Já lia, portanto, há bastante tempo, textos publicados no “luisgracaecamaradasdaguine”.

Mas o que me traz aqui hoje é o facto de, lembrando essas leituras e outras posteriores e, além disso, as que resultam de “clicar” em algumas remissões a vermelho, colocadas no final de cada poste, acabei por ler textos muito mais antigos e interessantes de autores que escreveram sobre experiências, situações, sentimentos, costumes, raças, línguas, populações, fauna, flora… Tudo vivido/sentido/absorvido na/ou por causa da experiência na Guiné. Não incluo aqui, como me parece óbvio, aqueles textos que se limitam a descrever experiências guerreiras (sem outro interesse lateral), com pormenores operacionais e fotos variadas que (quase) só aos próprios interessam.

E desses intervenientes mais antigos, que tantos textos interessantes escreveram, não houve mais “novas nem mandados”. Há muito tempo. E PORQUÊ?

- Será que disseram tudo o que tinham a dizer – se esgotaram?

- Será que “foram pregar para outra freguesia”, criando o seu próprio blogue ou outro espaço de comunicação? (De alguns temos nós conhecimento, mas aparecem, também, de vez em quando, por aqui).

- Saturaram-se das temáticas guerreiras e afins?

- Envolveram-se (aqui) em alguma quezília e, por causa dela, debandaram?

- Alguém aqui os ofendeu (voluntária ou involuntariamente) e remeteram-se ao silêncio?

- Pensam que, depois de tantos anos, não se justifica já falar de tempos tão remotos?

- Conheceram outras experiências africanas que substituíram as desses tempos dos 22, 23, 24, 25… anos?

- Entendem que vários temas aqui abordados se desviaram da temática principal, o que causou perda de interesse?

- Saturaram-se de afirmações, posições e contraposições que, de vez em quando, surgem aqui e acolá?

- Foi a entrada na “terceira idade” que os levou a concluir que “já não vale a pena”?

- Os netos (ou bisnetos) passaram a ocupar-lhes todo o tempo?

- Casaram “de novo”… e o novo casamento é muito “absorvente”?

Poderá ser alguma destas (imaginadas) causas ou outra.

Certo é que nova “gente” vem surgindo, fazendo a sua apresentação.

Tendo presente este fenómeno de comunicação e convívio em que se transformou o “luisgracaecamaradasdaguine”, termino com uma questão dirigida a esses “desertores”:

- Vocês dão ou não uma espreitadela, de vez em quando, neste espaço bloguístico?

Alberto Branquinho


2. Comentário de CV:

Caro Branquinho, caros tertulianos.
Por norma não meto colherada nos textos que publico, porque para tal não tenho arte nem engenho.

Desta vez vou abrir excepção, porque o tema levantado é premente e representa o sentir dos editores e de uma parte da tertúlia que se mantém activa.

Não nos cansamos de dizer que ninguém se deve coagir a colaborar feitura das nossas memórias, porque acha que não é capaz de se exprimir convenientemente ou por se achar demasiado intelectual para perder tempo com o que poderá considerar, ser o nosso blogue, uma manifestação naiff.
Todas as sensibilidades são bem vindas porque também todos os extratos sociais conviveram, mais ou menos de perto, dentro e fora do arame farpado. Nas horas difíceis tanto era herói o soldado como o capitão.
Por alguma razão o fundador deste Blogue quer um tratamento uniforme entre os tertulianos, independentemente da formação, emprego e ex-posto militar de cada um.

Deixamos novo apelo à participação de todos com textos elaborados conforme cada um souber e puder, com fotos ilustrativas dos acontecimentos e dos locais (as das poses para a objectiva não têm grande valor), para podermos construir um arquivo de experiências, memórias, comentários e pontos de vista (mesmo antagónicos), para os nossos vindouros saberem que houve uma geração, que mercê de uma visão desajustada da realidade por parte de um regime totalitário, foi obrigada a fazer uma guerra em África, no nosso caso particular na Guiné, que não nos envergonhamos do nosso passado, que consideramos e respeitamos hoje, os nossos inimigos de então, como um povo irmão que infelizmente ainda sofre.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6049: Contraponto (Alberto Branquinho) (7): Macaco fidalgo, inimigo?

quinta-feira, 25 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6049: Contraponto (Alberto Branquinho) (7): Macaco fidalgo, inimigo?

1. Mensagem de Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 21 de Março de 2010:

Caro Carlos Vinhal
Junto vai um texto (Contraponto 7) que fala de um macaco fidalgo que não era vermelho como os que, no Blogue; têm sido referidos como habitantes da área do Cantanhez.

Um abraço do
Alberto Branquinho



CONTRAPONTO (7)

Macaco fidalgo – inimigo?


O itinerário estava picado e a tropa já há muito estava instalada de um lado e do outro, fazendo a segurança à movimentação das viaturas para abastecimento de um quartel do Batalhão.

A coluna auto nunca mais passava e seriam necessárias duas ou três viagens de carga e descarga. Mas nem se ouviam, ainda, os motores ao longe.

O cabo Garcia estava a acomodar-se melhor, deitado sobre o peito dentro da cavidade do tronco do poilão, a ajeitar a G3 para ficar mais confortável, quando apareceu aquela sombra a descer, a descer no meio da folhagem. E, de repente, surgiu a cabeça, que parou a olhar para ele com aqueles olhos redondos e vivos, quase metálicos. Sentiu-se como que trespassado de um lado ao outro da cabeça. Estaria aí a uns oito, dez metros. Ficaram muito tempo a olhar-se. O macaco fidalgo estava assente nas patas dianteiras, de cabeça para baixo e com a longa cauda enrolada num ramo mais alto. O cabo ficou com a arma aperrada, embora de lado, com a culatra debaixo do ombro direito.

O macaco fidalgo desceu as patas traseiras e ficou mais visível. Curioso, aumentou a intensidade do olhar, visando, agora, o cabo bem de frente.

O cabo soergueu-se, incomodado com o olhar do macaco e, segurando a arma com a mão esquerda, fez, com a direita, o gesto para se afastar, dizendo em surdina: “ Vai embora!”

O macaco movimentou-se lentamente, colocou-se quase de cócoras num ramo, com o rabo pendente, olhando-o sempre. O cabo entreviu no focinho do bicho um ar inquiridor, de cabeça atirada para a frente, com um olhar de raios-x, que o incomodava. Exasperado, fez-lhe, por duas vezes, sinal para que se afastasse.

O soldado que estava instalado do lado esquerdo do poilão, que não se apercebera da situação, notou, então, o que se estava a passar.

O macaco avançou um pouco nos ramos, sempre a olhar o cabo. Este sentiu que o macaco tomava uma atitude sarcástica ou de desprezo, que o irritou ainda mais: “Está a gozar comigo” - pensou. Apontou-lhe a arma e o macaco ergueu-se nas patas traseiras, parecendo ao cabo que ele estava com ares de superioridade. Baixou a arma e o macaco baixou as patas superiores, olhou para os lados e fixou, de novo, o cabo.

Voltou a fazer-lhe sinal para ir embora. O macaco pareceu, finalmente, entender. Rodou a parte dianteira do corpo, parecendo ir afastar-se, mas, num repente, saltou de ramo em ramo e ficou no chão, a quatro patas, com a cauda toda erguida, de frente para o cabo, que sentiu, de novo, um olhar de desprezo e superioridade. Sentiu um arrepio na espinha e ficou entre medo e raiva. Depois de um instante parado, o macaco girou sobre si mesmo dando pequenos saltos, postando-se, depois, bem de frente para o cabo. Com a cauda ainda erguida, dava mostras de ir caminhar na sua direcção. Abriu a boca, com aspecto agressivo, mostrando os pequenos dentes. Pareceu ao cabo que se preparava para saltar na sua direcção. Com dois tiros secos atingiu-o em cheio e caiu morto.

Imediatamente rebentou tiroteio de um lado e do outro da estrada. O cabo levantou-se e desatou a berrar para a direita e para a esquerda: “Pára!!! Pára!!! Pára fogo!!!”

O fogo demorou a suster-se.

Chegou o alferes:

- Que é que se passou?

- Foi o Garcia que matou um macaco.

- Ó sua besta! Fazer fogo aqui por causa de um macaco?!

- Ó meu alferes, parecia que era um gajo… deles.
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Nota de CV:

Vd. último poste de 23 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5873: Contraponto (Alberto Branquinho) (6): (Especial) Os seis anos do Blogue

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5873: Contraponto (Alberto Branquinho) (6): (Especial) Os seis anos do Blogue

Mensagem de Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data 21 de Fevereiro de 2010:

Caro Vinhal
Aqui vai o meu contributo para a festa dos 6 anos do blogue, incluido no Contraponto.

Um abraço do
Alberto Branquinho



CONTRAPONTO (6)

OS SEIS ANOS


Ouvi (ou li?) que está a fazer seis anos um rapaz-adulto que dá pelo nome de Blogue do Graça. Proporciona encontros (por vezes pequenos desencontros…), reencontros, amizade, companheirismo, camaradagem entre rapazes na casa dos sessenta, que passaram pela Guiné quando tinham vintes. Além de outros e outras com vinculo a pessoas e às coisas dessa terra.
É filho do Luís Graça (conhecem?), mas da mãe não há notícia. (Será a E.N.S.P.?).

O rapaz (já crescido, bem crescido) vem sendo acompanhado por dois, três, quatro padrinhos, mais ou menos da idade do pai. Alimentam-no. E dessa acção do pai e dos padrinhos resultam variadíssimas intervenções no corpo do próprio Blogue do Graça, onde todo e qualquer outro, a quem eles já tenham “passado cartão”, pode dar conta das suas façanhas de guerra, das suas experiências menos ou nada guerreiras, dos seus sofrimentos, medos e angústias de guerreiro, das suas tiradas intelectuais, do seu diletantismo, do seu literatismo, do seu ecumenismo, da sua benemerência, do seu humanismo, das suas sensibilidades, ironias, frontalidade, das suas experiências mais ou menos relacionadas com a sua vida na Guiné (ou partir do momento em que foram, de novo, paridos para a vida quando abandonaram Bissau, em barco ou avião).

Aos mortos, aos ressuscitados (há um, pelo menos), aos afectados física e psiquicamente pela guerra, dá o rapaz Blogue espaço, lembrança e vida. E, também, àqueles que estiveram “do outro lado” da guerra e aos que a conheceram enquanto crianças ou aos que, porque ainda não nascidos nesses tempos, eram, então, água, carbono, sais minerais, cálcio, proteínas… vagueando por essa e outras terras do planeta nosso.

Mas o que mais enternece e nos toca na ponta do bico do fundo do coração é que, apesar de toda essa diversidade, cada um pode falar de si e dos outros e encontra nesses outros a ressurreição dos tempos e da juventude (que na Guiné deixou em grande parte) e os encontros/reencontros se sucedem, se repetem e é como se fossem sempre a primeira vez. E os que aparecem pela primeira vez sentem-se, comportam-se e relacionam-se com os outros presentes como se tivessem estado sempre presentes desde o princípio dos séculos.
Alguém pode explicar isto? (É que não é matéria de Sociologia do Trabalho. Ou será da Saúde?)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5767: Contraponto (Alberto Branquinho) (5): Nojo, ou um alferes descomposto

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5767: Contraponto (Alberto Branquinho) (5): Nojo, ou um alferes descomposto

Mais um texto para a série Contraponto, enviado pelo nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), ao Blogue no dia 1 de Fevereiro de 2010:


CONTRAPONTO (5)

NOJO

Era a segunda vez que o alferes ia almoçar àquela tabanca fula, a convite do Bacar e do Jau, soldados do seu pelotão.

Feitos os cumprimentos às várias mulheres e depois de umas brincadeiras com a garotada, estava o alferes a passear pela morança com os dois soldados, quando as mulheres começaram a chamar para o almoço.

Balaios e alguidares esmaltados estavam já colocados no interior de um círculo de esteiras, colocadas no chão batido. Arroz, muito arroz, peixe miúdo da bolanha em molho de palma, galinha em pequenos pedaços e condimentos.

As mulheres ficaram do lado da casa, com as crianças. No lado oposto o alferes, no meio dos dois soldados nativos. Todos sentados no chão, com as pernas cruzadas, em cima das esteiras e por baixo do telheiro, também feito de esteira.

Começou o almoço e a conversa. As mulheres deram indicações sobre comida e temperos e os homens passaram-nas, em crioulo, ao alferes.

Falaram sobre a última operação, sobre os outros militares, sobre os vizinhos, enquanto as mulheres algaraviavam entre elas, no meio gargalhadas.

Comiam fazendo as habituais bolas de arroz com a mão direita ou esquerda (ao jeito de cada um), que, depois, uma a uma, eram molhadas nos condimentos dos alguidares mais pequenos, acrescentadas do conduto, depois mordidas, mastigadas, engolidas. Toda a gente conversava em fula, excepto quando os soldados falavam com o alferes em crioulo.

As mulheres tinham que se levantar continuamente para obrigar as crianças mais pequenas e fugidias a dar as suas dentadas na bola de arroz ou a petiscar pequenas doses, agarradas entre o polegar e o indicador.

A meio do almoço o alferes notou uns risos abafados e brejeiros de duas ou três mulheres à sua frente. Logo a seguir um dos rapazes, com cinco ou seis anos, levantou-se e colocou-se atrás delas. Com ar enojado e mantendo sempre a sua bola de arroz na mão, começou a olhar o alferes no rosto e, alternadamente, para as pernas. Depois começou a cuspir, cuspir, cuspir para o chão, ao mesmo tempo que limpava, com os pés, as cuspidelas do chão.

O alferes olhou para as suas pernas e viu que o testículo esquerdo se tinha libertado do controle das cuecas e assomava, curioso, espreitando para fora dos calções. Discretamente levantou-se, arrumou o indiscreto como pôde e… tudo voltou ao seu lugar.

O almoço decorreu sem mais incidentes.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5573: Contraponto (Alberto Branquinho) (4): Desenraizado

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5573: Contraponto (Alberto Branquinho) (4): Desenraizado

1. Mensagem de Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689 (, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 27 de Dezembro de 2009:

Como o Natal já passou, abaixo transcrevo uma coisa escrita em 1971/1972 a propósito disso mesmo, enviando, ao mesmo tempo, votos de muitos e bons anos, incluindo o de 2010.

Vai junto, também, um abraço para todos, tanto para os que lerem como para os que venham a não ler e, se tiverem lido, tanto para os que gostem como para os que detestem.


CONTRAPONTO (4)


Desenraizado


No chão
à porta da casa onde foi senhor
está um pinheiro-de-Natal anão
restam-lhe uns flocos de algodão
(fingimento de neve)
e muita dor.
Já não tem luzes, brinquedos,
fios prateados e dourados…
Conheceu intimidades, enredos,
fingimento, adulação, calor.

Agora não pode voltar ao lar
E, nem mesmo, ao seu pinhal
Só porque já passou o Natal.


(IN: “Pré/Texto” – 1973)

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P.S. – Porque Natal é nascimento, o nascimento do Cristo-bébé, o tal que veio a provocar uma revolução social com as suas ideias, qual é a razão pela qual vemos durante o Natal quase só Árvores assim ditas e o dito Pai-Natal?

Alberto Branquinho
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5445: Contraponto (Alberto Branquinho) (3): Fugas... na hora da morte

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5445: Contraponto (Alberto Branquinho) (3): Fugas... na hora da morte

1. Mensagem de Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689 (, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 7 de Dezembro de 2009:

Carlos Vinhal
Junto vai um texto sobre morte e vida ou sobre vida e morte sobre tempos que estavam pela... "hora da morte".

Um abraço bem vivo do
Alberto Branquinho



C O N T R A P O N T O (3)

FUGAS…


Antes de chegar à Guiné, eu era eterno. Morte? Não havia (para mim). Ela estava longe… no tempo e no espaço.

Mesmo o suicídio do rapaz, que se pendurou do ferro mais alto do beliche durante um fim-de-semana algum tempo antes do nosso embarque, não aproximou de mim a ideia da morte. Deu, até, para aprender uma coisa – que o suicida, antes de executar o acto contra si mesmo, descalça ou, pelo menos, desaperta as botas.

Na Guiné, não demorou muito tempo a concluir que… não regressaria. E um homem, quando atinge o ponto que julga ser de não retorno, começava a baloiçar entre dois comportamentos: ou provocar o embrutecimento, a caminho da autodestruição (não, não pelo suicídio!) ou, quando a realidade espremia os miolos, causando angústias, insónias, irritações - a afogar-se em relaxantes, calmantes e outros. Era nessa altura que se começava o dia a beber duas “bazucas” em jejum. (Mesmo quentes, quando o frigorífico a petróleo estava avariado)

Não havia carta da família, por mais próxima que fosse, nem madrinhas de guerra que, por escrito, pudessem ajudar. Os mais fracos (e conhecedores…) movimentavam-se para irem à consulta de psiquiatria, em Bissau.

A saída era, muitas vezes, a dedicação a um macaco, a um periquito, a um cão. Assumiam-se atitudes extravagantes e bizarras, habitualmente nos cortes do cabelo, da barba e bigodes muito “criativos”.

Havia, também, quem, nas horas vagas, passeasse, cuidadosamente, latas de conserva puxadas por um fio, de modo a que não caíssem as “pedrinhas” que tinham colocado lá dentro.

Ou quem, em noite de insónia, agravada pelas picadas e zumbidos dos mosquitos, tentasse matá-los com rajadas de G-3.

Ou quem, no início das chuvas e debaixo de chuva, saísse de noite, de lanterna eléctrica na mão esquerda e vassoura na direita, matando os sapos e rãs que, num ápice, surgiam de não-sei-onde às centenas, num coaxar infernal, como um coro maluco e desafinado de tenores, barítonos e contraltos.

Coisas… Coisas que ainda hoje se recordam, com a diferença de que, agora, nos fazem sorrir (embora sentindo, ainda, um grão de angústia lá bem no fundo, bem fundo da alma).

Alberto Branquinho
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5247: Ser solidário (44): A propósito do Dia dos Veteranos em Stoughton - Estados Unidos da América (Alberto Branquinho)

Vd. último poste da série de 30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4612: Contraponto (Alberto Branquinho) (2): Não vale a pena chorar

terça-feira, 30 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4612: Contraponto (Alberto Branquinho) (2): Não vale a pena chorar

1. Mensagem de Alberto Branquinho, (*), ex-Alf Mil da CArt 1689, Guiné 1967/69, com data de 24 de Maio de 2009:

Meu Editor Carlos Vinhal

Espero que o nosso Editor e os demais co-Editores não fiquem zangados comigo, pois dirijo este mail ao pai dos CONTRAPONTOS, pois sem o estímulo do camarada-Editor Carlos Vinhal, eles não teriam visto a luz do dia (ou da noite, que é quando escrevo).

Aí vai o CONTRAPONTO (2) - "Não vale a pena chorar".

Um abraço para todos
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (2)

NÃO VALE A PENA CHORAR


Teria eu doze ou treze anos e estava em Lamego. Deveria ser Primavera, porque o tempo estava soalheiro, embora instável.

Depois do almoço, o meu Tio disse-me: - Rapaz, se logo à noite estiver bom tempo, vamos ali à Avenida ver a tropa chegar das manobras.

Não chovia. Sob a luz difusa dos candeeiros formavam-se pequenos grupos de pessoas, que, repetidamente, olhavam para o lado de quem vem da Senhora dos Remédios. A ideia que tenho é que não foi uma espera muito longa.

Começou a ouvir-se um sussurro ao longe, lá para o fundo escuro da Avenida. Um barulho surdo e contínuo aproximava-se.

Surgiram os primeiros homens, em formatura, batendo pesada e ritmadamente com as botas no chão, com capacetes na cabeça, armas em bandoleira, vestidos com uns capotes castanhos cor-de-terra quase até aos pés, carregando alforges da mesma cor. E passavam, passavam, passavam, pareciam nunca mais acabar. A imagem que guardo de cada um deles é a mesma da estátua do “Soldado Desconhecido”.

Marchavam com aspecto cansado, como condenados à morte. Mas o espanto maior não foi esse aspecto da formação militar que passava, batendo com as botas no chão. Não! O espanto maior foi porque eles CANTAVAM ao ritmo das passadas. Ainda recordo duas quadras, que o meu Tio me repetiu mais tarde:

Oh Laurinda, oh Laurinda
Não vale a pena chorar
Tu já sabias, Laurinda
Que eu ia p’ra militar.

Que eu ia p’ra militar
Que eu ia p‘ró Regimento
Oh Laurinda, oh Laurinda
Não me sais do pensamento.


E passavam, passavam sempre. E cantavam, cantavam sempre.

Passaram os últimos. Acabou-se o espanto.

A guerra acabou. Voltou o silêncio à Avenida.


Recordei isto dias depois de me obrigarem a ficar no CIOE, em Lamego – para fazer o chamado “Curso de Operações Especiais” (não “Ranger”, porque é marca registada nos Estados Unidos da América).

Não imaginara em criança que um dia seria tropa em Lamego, mas que, no final das manobras, não cantaria à Laurinda para não chorar.


Ora, a finalidade do “Curso de Operações Especiais”, segundo nos transmitiram logo no primeiro dia, era atingir a “DUREZA 11” – portanto um grau acima do diamante! No final do curso era entregue aos instruendos (alferes e furriéis milicianos na mobilização) uma fita escura, levemente arqueada, com as palavras “Operações Especiais”. (Parêntesis: Como haveria só um alferes e um furriel por cada Companhia mobilizada, ver-se-iam, mais tarde, impossibilitados de – somente a dois – fazerem qualquer operação especial).

O uso dessa fita, cosida ao alto da manga (direita ou esquerda?) do uniforme garantia “urbi et orbi” a “Dureza 11” do utente.


Era o mês de Novembro ou Dezembro de 1966

Acabado o curso, houve formatura para entrega das referidas fitas. Foram chamados quatro ou cinco, com ordem para darem um passo em frente. E frente a toda a formatura foi comunicado que, a esses quatro ou cinco, não lhes era atribuída a referida fita. Eu estava entre eles, com fundamento em qualquer coisa como resistência passiva.

Apesar do comportamento que lhe era exigido em formatura, um dos excluídos desatou a chorar lágrima a lágrima e, depois, em choro abundante e notório.

Mais tarde soubemos que a decisão fora reconsiderada e, consequentemente, lhe tinha sido atribuída a almejada fita. Chorando, terá conseguido a “Dureza 11”?

Ao contrário da Laurinda, valeu a pena chorar.
(Se é que valeu a pena fazer uma fita por uma fita).

Alberto Branquinho
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Notas de CV:

(*) Alberto Branquinho é o autor do livro "Cambança - Guiné, morte e vida em maré baixa" e da série do nosso Blogue "Não venho falar de mim... nem do meu umbigo", que por sua vez deu lugar à série "Contraponto"

Vd. primeiro poste da série de 18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4371: Contraponto (Alberto Branquinho) (1): Mudam-se os tempos