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terça-feira, 1 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20195: (Ex)citações (358): Fernando Calado, camarada de Bambadinca, gostei de ler o teu poste... Também eu escrevia cartas diárias, com muitas páginas, para a minha namorada... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) > c. set/out 1967 > Tabuleta com as indicações das distâncias, para Sul, Norte e Leste, localizada numa das saídas-entradas de Nova Lamego. Bafatá para sudoeste a mais longa, com 53 kms, e temos de juntar mais cerca de 60 dali até ao porto fluvial e depósito da Intendência em Bambadinca. 


Foto (e legendas): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 



1. Comentário (*) de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); natural do Porto, vive em Vila do Conde, é gestor reformado; tem 136 referências no blogue:



Fernando Calado (**), estive a ler com toda a atenção esta narrativa, e quase se confunde com a minha estadia na Guiné. 


Levei tempo a escrever, andei à procura do Batalhão que nos foi render em 26fev68 em Nova Lamego. Tinha ideia que era o BCAÇ 2856, mas afinal acabei por encontrar e era o BCAÇ 2835.

Quando ao resto,  eu em Nova Lamego, de 21set67 a 26fev68, as histórias e os locais eram quase os mesmos. Estive várias vezes em Bafatá, mas por Bambadinca, apenas passei por lá duas vezes, em 4out67 e 26fev68. 

Depois fui lá várias vezes à Intendência, em colunas para reabastecimentos, cujo Pelotão era comandado por um camarada do meu curso na EPAM [, Escola Prática de Administração Militar], o Alferes Ramos, pequenino como eu. Era do Pelotão de Intendência, é do Porto como eu, e por vezes falamos, ele tinha uma Galeria de Arte na Foz. Pouco falamos da Guiné, ele não deve gostar, suponho.

Eu era o Chefe do CA - Conselho Administrativo, dependia apenas do 2º comandante, quase não lidava com mais ninguém. O nosso Transmissões era o Alferes Mesquita, tinha vários fotos com ele, e ainda nos vemos nos encontros anuais, quando eu vou.

Frequentávamos muito a Tabanca do Morteiros,  do Alferes Azevedo, que afinal era de Évora e não de Beja como eu pensava. Soube há dias que tinha já falecido, nunca mais o encontrei.

Esse modo de vida era quase o meu, excepto as cartas, nunca joguei, escrevia cartas diárias com muitas páginas para a minha namorada, que afinal eram como seja um diário...

Das centenas delas, apenas me restam meia dúzia, as outras foram todas queimadas e centenas de fotos, devido a um incidente e ficaram cheias de bicharada. Estava lá toda a minha vida de 23 meses, mais os outros na recruta e antes de embarcar.

Nunca fui apanhado nessas posições matinais, normalmente dormia sempre com umas calças de pijama de "terylene" e por vezes o casaco, sem qualquer outra roupa, nem lençóis. Dormíamos uns 10-12 na mesma camarata, e não me lembra de situações dessas, embaraçosas. 

Pois quanto ao resto das DST [, Doenças Sexualmente Transmissíveis,]  não me faltaram,  era de tudo o que vinha nos cardápios, já falei nisso várias vezes, o nosso Pastilhas (mais tarde formou-se em médico, mas já falecido) tratava disso tudo, eram injecções de Terramicina, que nem podíamos andar depois...

O Whisky com a água Perrier e muito gelo era também a minha bebida preferida.

As bajudas, sempre as tratamos bem, elas apareciam lá pelos quartos com as roupas, e gente por vezes ficava embaraçado, mas elas, ainda miúdas, de 15 anos, e eu com mais 10 em cima, levavam aquilo de brincadeira. O quanto eu daria para ir hoje conhecer umas das minhas lavradeiras, quer seja em Nova Lamego quer em São Domingos.

Foi agradável este Poste, por vezes fazem-nos sonhar com aquela idade, e não havia ataque ao aquartelamento que eu não fosse fotografar.

Vamos continuando.

Abraço,

Virgilio Teixeira
ex-alf mil do SAM
BCAÇ 1933/RI15
1967-1969
__________________


Notas do editor:


(*) Último poste da série > 23 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20005: (Ex)citações (357): para um fula, bom muçulmano, crente, como o pai do Cherno Baldé, o homem nunca chegou à lua (nem poderia chegar)... Do mesmo modo, só as mulheres grandes, como a Fatumatá, de Sinchã Sambel, chegavam às 100 luas ou mais (Cherno Baldé, Bissau / Hélder Sousa, Setúbal)


(**) Vd. poste de 30 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20191: (De) Caras (112): O aerograma de 1 de dezembro de 1969: "Meu amor, se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom"... (Fernando Calado, ex-alf mil trms, CCS/ BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20191: (De) Caras (136): O aerograma de 1 de dezembro de 1969: "Meu amor, se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom"... (Fernando Calado, ex-alf mil trms, CCS/ BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)



Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de Maio de 2007 > Encontro do pessoal de Bambadinca 1968/71 > A organização coube ao Fernando Calado (na foto, à esquerda), coadjuvado pelo Ismael Augusto, ambos da CCS/BCAÇ 2852 (1968/71).

O grupo (mais de 60 convivas) teve na dra. Rosa Calado (na foto, ao centro), elemento da direcção da Casa do Alentrejo, uma simpatiquíssima anfitriã. O editor do blogue e fotógrafo, à direita, chegou tarde, mas ainda a tempo de constatar que a organização esteve impecável e o que o sítio não podia  er melhor, em pleno coração de Lisboa. O fotógrafo de circunstância foi o Ismael. 
  

Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de outubro de 2013 > Sessão de lançamento do livro do José Saúde, "Guiné-Bissau, as minhas memórias de Gabu, 1973/74" (Beja: CCA - Cooperativa Editorial Alentejana, 170 pp. + c. 50 fotos) > Dois alentejanos e camaradas do nosso blogue, o Fernando Calado (de camisola vermelha) e o Ismael Augusto.(Ambos foram alf mil da CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70). E ambos partilharam o mesmo quarto...Um terceiro elemento era o João Rocha.


Foto (e legendas): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-


1. O Fernando Calado, natural de Ferreira do Alentejo, vive em Lisboa há muito; é casado com a dra. Rosa Calado,  uma das "almas alenetinas " que animam há muito a Casa do Alentejo, em Lisboa (, tem integrado sucessivas direções,  exercendo o pelouro da cultura); foi alf mil trms, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70); trabalhou na GALP e na RTP; foi docente universitário; tem página no Facebook. tem cerca de dezena e meia de referências no nosso blogue. 

Mandou-nos, no passado dia 26, a seguinte mensagem: "Conforme combinado, junto um exemplar do modelo do aerograma e um texto do conteúdo de um dos muitos que enviei.  Um grande abraço. Fernando Calado"...

             

AEROGRAMA

por Fernando Calado


A guerra colonial configura um acontecimento trágico que envolveu toda uma geração a que pertenço.

Estão feitas algumas análises políticas e sociais, mas, como é sabido, muito pouco é conhecido acerca do que pensavam e sobretudo do que sentiam no dia a dia, os militares enquadrados em unidades operacionais de intervenção.

As razões deste silêncio contido são, do meu ponto de vista, as seguintes:

- condenação política generalizada, após 25 de Abril, dos militares que  participaram, obrigados pelo regime, na guerra colonial, em contraponto com os elogios aos “heróis revolucionários” que conseguiram escapar para Paris ou outras paragens conhecidas;

- insensibilidade quase total a esta questão, por parte  das elites sociais dos últimos 44 anos;

- vergonha de comportamentos desumanos praticados ou observados sem contestação e que sempre se registam em situações-limite como é o caso da guerra;

- participação em situações de extrema violência das quais resultaram, em muitos casos, a morte daqueles que já eram nossos amigos para sempre.


Como a maioria de vós sabe, o pensamento e o sentimento que faziam parte do quotidiano era, na maior parte dos casos, transmitido aos pais, à madrinha de guerra ou à namorada através do celebérrimo aerograma.

Como também sabem, o aerograma era distribuído no embarque pelo Movimento Nacional Feminino, estrutura do regime que tinha por missão dar apoio moral aos militares nas três frentes de guerra (Angola, Moçambique e Guiné)

Estive na Guiné de Julho de 1968 a Julho de 1970 num local designado por Bambadinca,  a cerca de 30 km de Bafatá,  onde, quase diariamente, ao princípio da noite, escrevia o aerograma à minha namorada.

Gostava de partilhar com os leitores do blogue o conteúdo de um desses aerogramas com as óbvias pequenas adaptações.


Bambadinca, 1 de Dezembro de 1969

Meu amor:

Esta manhã, acordei sobressaltado, e reparei que estavam no quarto 2 bajudas (mulheres jovens da Guiné) que nos traziam a roupa lavada e que riam à gargalhada.

Estava nu, de barriga e outras coisas para cima e transpirado como sempre.

Olhei para o camarada do lado que estava tão aflito como eu, e, à boa maneira europeia, tentei cobrir-me com um lençol que não tinha.

Perguntei então às bajudas porque se riam, tendo elas respondido o seguinte: alfero, sonho manga di bom hoje mesmo.

Para além do embaraço, pensei depois que afinal eu, um homem dito civilizado, tive uma postura naturalmente preconceituosa enquanto que elas, mulheres ditas primárias, tiveram uma postura naturalmente genuína, tendo expressado com rigor o que se tinha passado e rido com gosto a propósito de uma situação bastante caricata.

Passei a manhã a tratar da organização das transmissões de vários grupos operacionais escalados para operações e mais uma vez os comandantes de pelotão disseram-me que os rádios são uma merda e que, por vezes, não funcionam em situações de emergência.

Eu bem sei que me disseram sempre que os rádios são os mesmos da 2ª. guerra mundial mas, mesmo assim, custa-me anos de vida quando não se consegue fazer o contacto para evacuação de feridos.

Sinto assim, apesar dos meus 24 anos, que tenho uma responsabilidade excessiva e não me resta outra alternativa senão tentar ser o mais eficiente possível.

Antes do almoço, depois do 2º. banho do dia, dirigi-me ao bar onde saboreei descontraidamente o meu whisky com água Perrier.

Gosto particularmente deste momento do dia.

Diz-se aqui, que na Guiné existem apenas 2 coisas boas: o whisky com água Perrier e o avião para a Metrópole.

Chegou depois o meu colega de quarto e a propósito de qualquer coisa que já não me recordo, ocorreu uma discussão de tal ordem que quase andámos ao murro.

Foi uma vergonha e fomos até ameaçados de ser castigados. São horas, dias, semanas, meses, anos a aturar-nos, sempre em tensão e dentro deste espaço ladeado por arame farpado.

Na verdade, penso que as discussões, a batota, os copos, o calor, os ataques, as emboscadas, etc. criaram uma cumplicidade tal, que tudo indica que seremos amigos do peito para toda a vida

Como se isso não bastasse durante o almoço o médico veio comunicar-me que mais de metade dos soldados da companhia estavam infectados com blenorragia (designação apropriada do termo de calão muito conhecido que dá pelo nome de esquentamento e que se reporta a uma infecção nos órgãos genitais).

Segundo ele, a penicilina não está a actuar em virtude do calor excessivo e da elevada taxa de humidade e, portanto, é necessário organizar uma reunião de esclarecimento com todos os soldados disponíveis.

Soube depois que o pedido a mim dirigido, resultava afinal, do facto do meu pelotão ter a maior taxa de elementos infectados.

Durante a tarde algumas pessoas conseguem dormir a folga, coisa que nunca consegui e ainda menos com este calor e esta humidade.

Eu, como todos os dias que não saio do aquartelamento, cumpri algumas tarefas burocráticas que a tropa, mesmo em guerra, não dispensa.

Mais tarde vagueei, uma vez mais, dum lado para o outro sempre com a sensação de estar encurralado, na ânsia de conseguir gastar o tempo que me falta para me livrar disto.

Por vezes ocorrem, no final do dia, momentos de alguma descontracção. Conversamos sobre a nossa vida na Metrópole e damos umas voltinhas de jeep.

Não tenho carta de condução, mas conduzo. Recebi umas lições do meu colega de quarto e desenrasco-me. De qualquer modo ninguém, nesta situação, está interessado em saber se tenho ou não carta de condução.

Já anoiteceu e partir de agora e até pegar no sono, o que acontecerá lá para as tantas da manhã, instala-se o medo e a saudade.

Eu, que sempre gostei da noite, juro-te que aqui odeio a noite. Estamos todos fartos de fumar, de beber e de jogar, mas a verdade é que estas actividades aliviam, de facto, o medo e a saudade.

Hoje é feriado [, 1º de Dezembro, dia da Restauração da Independência de Portugal, ] e a probabilidade de haver problemas aumenta. A malta está mais concentrada, fala mais baixinho. [No dia 28 de Maio de 1969, Bambadinca tinha sido atacada em força.]

A questão do medo é surpreendente. Há camaradas que parecem não ter medo nenhum. É como se estivessem em casa ou numa esplanada e, mesmo debaixo de fogo, funcionam normalmente.

Depois, talvez a maioria, tem imenso medo, mas mercê de um enorme esforço consegue controlar a situação (julgo que me enquadro neste grupo).

Finalmente há camaradas, alguns deles aparentemente corajosos, que em quase todas as situações, entram em pânico total e que precisam sempre de ajuda. São obviamente os que sofrem mais, quer durante a situação, quer sobretudo pela vergonha que sentem depois.

Tenho saudades de tudo na metrópole: das pessoas, das ruas, dos jornais, da rádio, dos carros e até dos comboios que aqui não existem.

Quanto a ti, meu amor…

Acredita, nunca imaginei que a saudade que sinto de ti me provocasse tamanha dor física. Dói-me a cabeça, dói-me as pernas, dói-me o peito… enfim dói-me tudo.

Sei que estou desesperado, mas não resisto a dizer-te que dava anos da minha vida, se é que os vou ter, para estar neste momento contigo.

São 8 horas da noite e a temperatura nesta altura é um pouco mais amena.
Se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom.

Do teu para sempre

Fernando

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG; negritos e realce a amarelo, da responsabilidade do autor]

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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20122: (De)Caras (111): Carlos Marques de Oliveira, membro da Magnífica Tabanca da Linha, ex-fur mil, Pel Mort 2115, 5º Pel Art e 7º Pel Art (Catió e Cabedu, 1969/71): tive o privilégio de comandar valentes artilheiros