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sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21538: Casos: a verdade sobre... (15): A retirada de Madina do Boé e o enfraquecimento do flanco sul / sudeste do território (regiões de Gabu e Bafatá) (Valdemar Queiroz / Cherno Baldé / António Rosinha / Fernando Gouveia)


Foto nº 4

Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > 21 de junho de 1969 > A antiga tabanca de Padada, a 12 km a sul de Madina Xaquili, na direcção do Rio Corubal.


Foto nº 1 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > 21 de junho de 1969 > Restos, carboizados, da antiga tabanca de Padada, a 12 km a sul de Madina Xaquili, na direcção do Rio Corubal. 


Foto nº 2 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > 21 de junho de 1969 > O grupo de combate do Fernando Gouveia, progredindo nas proximidades da antiga tabanca de Padada,   


Foto nº 3 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > 21 de junho de 1969 > O Fernando Gouveia, nas proximidades da antiga tabanca de Padada,   



Foto nº 5 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > 21 de Junho de 1969 t > Uma pausa para retemperar as forças, a caminho de Madina Xaquili que, tal como Padada antes, viri a ser abandonada em outubro de 1969. 
  

Fotos tiradas pelo nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), no decurso de um patrulhamento ofensivo àquiela tabanca abandonada, com o seu grupo de combate (20 milícias e 10 soldados metropolitanos). Em Padada reencontar-se-ia com forças da CCAÇ 2405 (Galomaro / Dulombi, 1968/70), comandadas pelo Cap Mil Jerónimo. Foram encontrados vestígios recentíssimos da guerrilha do PAIGC.


otos (e legendas): © Fernando Gouveia (2009. Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários de Valdemar Queiroz, Cherno Baldé e António Rosinha ao poste P21531 (*)

(i) Valdemar Queiroz

A questão do abandono de Madina e toda aquela região da zona além Corubal,  é estranha em termos de estratégia da ocupação do terreno, para, inclusivamente, não dar azo a "zona libertada".

Vejamos nos mapas existentes no blogue de toda essa região à data em que foram elaborados. Vejamos, depois, como era a ocupação/fixação da população e presença da NT a partir do início do ano de 1969. 

Verificamos que apenas Canjadude e mais acima Cabuca eram as únicas tabancas existentes a fazer tampão a incursões a Nova Lamego, Dara e Piche, que a partir daquela data começaram a ser atacadas mais frequentemente. 

Em toda aquela área a leste da linha (estrada) Buruntuma - Nova Lamego, só existam Cabuca e Canjadude com pouca população e praticamente só ocupação militar. 

Não sei o que entretanto foi acontecendo (vim para a peluda em dezembro de 1970) com flagelações a estas duas tabancas. O facto de cada vez mais população abandonar essas tabancas da região, concentrando-se nas grandes localidades de Nova Lamego e Bafatá,  fazia com que apenas a NT resistisse nesses locais, não tardando, sabe-se lá, tambéma serem consideradas para retiradas estratégicas formando, assim, mais "zonas libertadas".


(ii) Cherno Baldé: 

Antes do início da guerra, o Sudeste da Guiné, que inclui a parte sul da região de Bafatá (Galomaro Cossé) e da região de Gabu (Boé), não eram zonas desabitadas,  como se pode pensar. 

O seu despovoamento foi gradual e aconteceu nos primeiros anos da Guerra e, em 1968 quando chega o Gen Spinola, a situação ja era irreversível. 

O Galomaro, como diz o nome,  era uma zona habitada por ricos ganadeiros fulas e com arrozais nas bolanhas a perder de vista. Foram abandonadas com o recrudescer da guerra. 

Se depois o abandono do terreno se justificava devido à inexistência da população, é caso para dizer que sempre existiu e existe uma grande diferença entre a teoria e prática, entre os sonhos e a realidade, como podemos perecber no excertodo discurso em baixo, é pena que o homem [. o António Oliveira Salazar,]  nunca tenha vindo ao terreno para constatar a realidade "in loco". 

“As terras coloniais, ricas, extensas e de fraquíssima densidade populacional são o natural complemento da agricultura metropolitana, nos géneros pobres sobretudo, e das matérias-primas para a indústria, além de fixadores de uma população em excesso daquilo que a metrópole ainda comporte e o Brasil não deseje receber. (...) 

"Nós cremos que há raças decadentes ou atrasadas, como se queira, em relação as quais perfilhamos o dever de chamá-las à civilização. Que assim o entendemos e praticamos, comprova-se pelo facto de não existir qualquer teia de rancores ou de organizações subversivas que neguem ou que pretendam substituir a soberania portuguesa. (...)"

Fonte:  António Oliveira Salazar. Discursos e Notas politicas, vols. III e V (1943 e 1957). Coimbra, Coimbra editora, sem data. 

(iii) António Rosinha:

Amigo Cherno: "as terras coloniais, ricas, extensas e de fraquíssima densidade" a que o Salazar se referia, foram os tais colonatos que foram construidos em Moçambique e principalmente Angola. 

Na Guiné não havia extensões agrícolas desabitadas, para albergar tantas famílias, como as que foram para Angola e Moçambique, principalmente transmontanos e açoreanos. Os colonatos de Angola conheci-os relativamente bem. 

Cherno, ainda hoje estou convencido que continua a haver maiores extensões desabitadas em Angola do que as que existem na Guiné, mesmo considerando que a região de Madina do Boé continue pouco habitada. Só que as grandes extensões desabitadas em Angola, hoje já está tudo demarcado e aramado pelos "novos senhores" de Angola. 

A Guiné, tirando a região de Madina, sempre deve ter tido uma densidade populacional muito maior que Angola, que conheci bastante bem. Salazar não ia ao terreno, mas estava bem informado. 

PS- Onde parece que está a ficar muito despovoado é o norte de Moçambique, com decapitações e fugas da população e nem a ONU nem Portugal nem a Inglaterra (aquilo já se passou para a Commonuelth) fazem frente à Jihad ou o que aquilo é. A Europa já não pode com uma gata pelo rabo! 

2. O caso do abandono  de Madina Xaquili em outubro de 1969:

Num dos postes da sua série A Guerra Vista de Bafatá, o nosso camarada e amigo Fernando Gouveia (ex-Allf Mil Rec e Inf, Comando de Agrupamento nº 2957,  Bafatá, 1968/70)  explica o porquê da sua ida intempestiva para Madina Xaquili,lá  no "cu de Judas":

"(...) Com a retirada das NT de Madina do Boé a 05/06 de fevereiro de 1969 e na sequência do fracasso da Op Lança Afiada em Março de 69 [,  de 8 a 21],  era de prever (...) que o IN progrediria no terreno, para Norte, ameaçando as zonas povoadas do Cossé, aproximando-se de Bafatá.

"Em princípios de Junho de 1969 chega ao Agrupamento [de Bafatá] uma ordem do Comando Chefe que determinava o envio de oficiais disponíveis, enquadrando grupos de militares, para as tabancas da periferia da zona habitada, no intuito de segurar lá as populações. Sabia-se que a região do Cossé era habitada predominantemente por fulas e que estes, ao mínimo pressentimento de problemas, se deslocavam aproximando-se de Bafatá.

"É neste contexto que o Cor  Hélio Felgas, meu Comandante (, Cmando de Agrupamento nº 2957), determina que eu vá para Madina Xaqili, sendo a Companhia sediada em Galomaro [, a CCAÇ 2405,] que me asseguraria a logística. (....) O Capitão, pessoa afável que gostaria agora de identificar [, cap inf José Miguel Novais Jerónimo,], deu-me todas as indicações sobre o que iria encontrar em Madina Xaquili.

"Sobre os 7 militares metropolitanos que me acompanhariam, escolheu um que sabia cozinhar, um que sabia fazer pão, outro que sabia de enfermagem e um rádio-telegrafista. Quanto ao armamento que me iria fornecer, fiquei alarmado: Além das G3 e de algumas granadas, só tinha o cano (só o cano e um cepo de madeira a servir de prato) de um morteiro 60, e 16 (dezasseis) granadas" (...).

"(...) Chegámos a Madina Xaquili a meio da manhã [ do dia 14 de Junho de 1969]. Era uma tabanca com umas 20 palhotas. Estava em auto-defesa, com cerca de 40 milícias, comandados pelo também africano João Vieira (sem Bernardo). Havia uma razoável cerca de arame farpado e abrigos construídos recentemente. A população civil (2 ou 3 famílias) e as mulheres dos milícias não tinham abrigos" (...). (**)




Guiné > Carta geral da província (1961) (Escala 1/500 mil) >  Posição relativa de Madina Xaquili (rectângulo a verde)  em plena zona leste, tendo a sul o Rio Corubal e a norte a estrada Bafatá-Gabu. Madina Xaquili fazia parte do mapa de Cansissé (1/50 mil). 

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010)


3. Com a retirada de Béli (em julho de 1968), Madina do Boé e Cheche (em fevereiro de 1969), passou a haver um corredor, com "via verde", por onde o PAIGC se infiltrava mais facilmente na parte sul / sudeste do chão fula, a norte do Rio Corubal. 

Apesar do reforço temporário de tropas paraquedistas do BCP 12, ao sector de Galomaro (a partir de agosto de 1969, COP 7), bem como da CCAÇ 12 (que vai ter a sua estreia e batismo de fogo logo em Julho de 1969, em plena época das chuvas), Madina Xaquili,  guarnecida Pel Mil 147.  tornar-se-ia insustentável, sendo abandonada pela população e depois pelas NT logo em outubro de 1969. Padada, mais a sul, também já tinha sido abandonada (não posso precisar em que altura). O PAIGC apertava o cerco ao chão fula, e nomeadamente o Cossé donde eram originários, juntamente com Badora,  os soldados da CCAÇ 12.

O Pel Mil 147 (Madina Xaquili) fazia parte, em finais de setembro de 1968 (data em que o BCAÇ 2852 passou a tomar conta do Sector L1), da Companhia de Milícias nº 14 que tinhas pelotões e secções espalhados por Quirafo e Cansamange (Pel Mil 144), Dulombi e Cansamange (Pel Mil 145), Madina Bonco e Galomaro (Pel Mil 144). Nesta data já não há referência a Padada, presumindo-se que tenha sido abandonada anteriormente.

Em agosto de 1969, Madina Xaquili e o Pel Mil 147 já constam no dispositivo das unidades combatentes do BCAÇ 2852, em virtude de se passado a constituir um novo Sector, o L5, com sede em Galomaro (onde já estava de resto a CCAÇ 2405, com forças espalhadas por Imilo, Cantacunda, Mondajane, Fá, Dulo Gengele), integrado no CO7 (Bafatá).


(***) Sobre Madina Xaquili ler as venturas e desventuras do Fernando Gouveia em kunho de 1969... Foram 13 dias surreais, de 12 a 24 de Junho de 1969, contados e fotografados como só ele sabe.

26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4585: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (7): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro (VI Parte)

6 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4470: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (6): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (V Parte)

28 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4429: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (5): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (IV Parte)

21 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4395: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (4): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (III Parte)

8 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4305: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (3): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (II Parte)

27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4254: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (1): Três oficiais: um General, um Coronel, um Alferes - suas personalidades

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21535: (Ex)citações (378): Talvez por causa de Madina do Boé... (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR, CCS / BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74)


1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da  autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 9 de Novembro de 2020:


TALVEZ POR CAUSA DE MADINA DO BOÉ

Talvez como consequência do abandono de Madina do Boé e o grande espaço de progressão que ficou livre até à zona de Galomaro, resultou em 5 mortos no local e mais 3 em consequência dos ferimentos, em emboscada feita à CCS/BCAÇ 2912 nas Duas Fontes em Outubro de 1971.

A CCAÇ 3491 - Dulombi - Fevereiro de 1972

Logo no período de transição teve um encontro de frente durante uma patrulha com IN, do qual só por milagre não resultaram baixas, mas cantis e casacos furados por balas, foram vários tal a violência de parte a parte.

CCAÇ 3489 - Cancolim - 1972/73

Depois seguiu-se Cancolim. Já depois de duas flagelações, a 2 de Março de 1972, Cancolim foi fortemente atacada com morteiros 82 mm tendo daí resultado a morte dos seguinte camaradas:

José António Paulo - 1.º Cabo Atirador - natural de Mirandela.
João Amado - Soldado Aux. Cozinheiro - natural de Carvide - Leiria.
Domingos do Espírito Santo Moreno - Soldado Atirador - natural de Macedo de Cavaleiros.

No final de 1972 a CCAÇ 3489 tinha 60 operacionais.

Não ficou por aí e, assim, morreram ainda em combate, alguns já em 1973:

António Martinho Vaz - Soldado Atirador - natural de Grijó da Parada - Bragança
Álvaro Geraldes Delgado Ferrão - Soldado Ap Morteiro -natural de Silvares - Fundão
Domingos Moreira da Rocha Peixoto - Soldado Atirador - natural de Alto da Vila - Duas Igrejas - Paredes
Califo Baldé - Soldado Milícia - natural de Anambé - Cabomba - Bafatá
Samba Seide - Soldado Milícia - natural de Anambé - Cabomba - Bafatá

Juntamos a este numero duas deserções (um capitão e um alferes) e a captura do Soldado António Manuel Rodrigues, que veio a fugir do cativeiro para o Saltinho já nós estávamos para embarcar para a Metrópole.

CCAÇ 3490 - Saltinho - 1972

Armandino da Silva Ribeiro - Alf Mil Inf - natural de Magueija - Lamego
Francisco de Oliveira dos Santos - Fur Mil Inf - natural de Ovar
Sérgio da Costa Pinto Rebelo - 1.º Cabo Ap Metralhadora - Vila Chã de São Roque - Oliveira de Azeméis
António Ferreira [da Cunha] - 1.º Cabo Radiotelegrafista - Cedofeita - Porto
Bernardino Ramos de Oliveira - Soldado Atirador - Pedroso - V. N. de Gaia
António Marques Pereira - Soldado Atirador - Fátima - V. N. de Ourém
António de Moura Moreira - Soldado Atirador - S. Cosme - Gondomar
Zózimo de Azevedo - Soldado Atirador - Alpendurada - Marco de Canaveses
António Oliveira Azevedo - Soldado - Moreira - Maia (**)
Demba Jau - Soldado Milícia - Cossé - Bafatá
Adulai Bari - Soldado Milícia - Pate Gibel - Galomaro - Bafatá
Serifo Baldé - Assalariado - Saltinho - Bafatá

Juntar o soldado António Baptista feito prisioneiro, bem como os diversos feridos com mais ou menor gravidade.

CCS/BCAÇ 3872 - 1972/73

Manuel Ribeiro Teixeira - 1.º Cabo Rec e Inf - natural Cimo da Vila - Varziela - Felgueiras - Vítima de mina antipessoal na estrada do Saltinho.
Mamassaliu Baldé - Soldado Milícia - natural de Cossé - Bafatá
Mama Samba Embaló - natural de Cossé
Ila Bari - Soldado Milícia - natural de Campata - Nossa Senhora da Graça - Bafatá
Alberto Araújo da Mota - Alf Mil TRMS - natural de Curral - Pico de Regalados - Vila Verde - Evacuado com hepatite, morre 2 dias depois em Bissau. 

Antes tinha sido evacuado o Soldado Radiomontador Carlos Filipe e aos 20 meses de comissão é igualmente evacuado com a mesma maleita o Alferes da ferrugem Amadeu.

Para fechar o ano de 1972 foi a CCS/BCAÇ 3872 violentamente atacada ao arame no dia 1 de Dezembro.

Em 1973 uma mina na estrada do Dulombi destrói Unimog e fere gravemente o meu camarada Falé que é evacuado e já não volta.

De referir o aparecimento de minas na estrada do Dulombi e ataques em Bangacia, Campata e Cansamba, tudo na região das Duas Fontes (entre 6 e 9 km de Galomaro).

Posteriormente a CCS bem como Cancolim foram reforçados com pelotões de Dulombi em retracção, que também reforçam operacionalmente Nova Lamego. Fomos também ajudados com grupos de intervenção independentes bem como com Paraquedistas.

Tendo o meu batalhão chegado à Guiné na véspera de Natal de 1971, a sua partida só se viria a efectivar em 28 de Março de 1974. Escrevo isto para situar o período das minhas narrativas e assim dar a perspectiva da alteração e da intensidade da guerra a que estivemos sujeitos. A violência, bem como o equipamento utilizado contra nós, foram assim sendo alterados de região para região.

Enquanto o alcance da nossa artilharia era ultrapassada largamente pelo o alcance da artilharia do PAIGC, também nos vimos privados da normal utilização de meios aéreos, pese a grande coragem com que os pilotos se forçaram a voar após serem confrontados com uma arma da qual ignoravam tudo, ou quase tudo.

E passo citar o TenGeneral António Martins de Matos no seu livro Voando Sobre Um Ninho De “Strelas”:

A guerra estava a entrar numa nova fase, nada de emboscadas e confrontos directos mas sim, de duelos de artilharia e seria de esperar o aparecimento de uma aviação rebelde/mercenária.

Duelos de artilharia? Interroga-se o autor. A grande maioria desses obuses  estavam no Sul, autênticos monos da II Guerra com alcance não superior a 14.000 metros. Na maioria dos quartéis da Guiné só tinham direito a morteiros 81 mm (4000 metros) e ainda 11 morteiros 105 mm espalhados por diversos sítios de alcance igual.

O PAIGC usava o 120 (5700 metros) depois haviam os foguetes 122 mm (20.000 metros) e a breve trecho emprestados por Sekou Touré, peças de 130 mm (27.000 metros) e enquanto a artilhara utilizada pela guerrilha só podia ser posta em causa pelo aparecimento da nossa força aérea. Estas últimas peças fariam fogo directamente do Senegal e da Guiné Conácri e sete dos nossos aquartelamentos ficariam assim debaixo de fogo.

Tudo isto para relembrar que aquela guerra era intensificada consoante interesse do PAIGC, uma fez que lhe chegavam abastecimentos cada vez de maior qualidade e quantidade, enquanto a nós há muito enfermávamos de uma penúria franciscana.

PS: Publico os nomes dos nossos mortos porque lembrá-los é honrá-los e é uma obrigação registar os nomes de quem na flor da idade nos deixou.

*******************

O António Tavares que pertenceu à CCS do BCAÇ 2912, que nós fomos render, sobre a emboscada das Duas Fontes fez-me chegar a correcção sobre o numero de mortos e assim: 

Na emboscada morreram 5 militares e posteriormente três dos feridos que foram evacuados vieram a falecer em resultado dos ferimentos.

Os mortos foram oito e não seis como eu tinha inicialmente escrito.

Da parte do ex-Alf Mil Luís Dias, que chegou a comandar a companhia do Dulombi, chegaram-me estas informações mais precisas sobre a actividade operacional do Batalhão 3872.

CURIOSIDADES OU NOTAS SOBRE A NOSSA ZONA

Podemos verificar que os 4 quartéis do Batalhão sofreram 22 ataques/flagelações (CCS-1; CCAÇ 3489 - 12; CCAÇ 3490 - 0 e CCAÇ3491 - 9) e que as Tabancas das nossas populações em redor dos nossos aquartelamentos sofreram 23 ataques/flagelações, sendo que 9 deles foram contra populações indefesas e num acto de salteadores de estrada, o IN roubou dinheiro e bens a 16 elementos da população que transitavam na picada Saltinho-Galomaro.

BCAÇ 3872

FLAGELAÇÕES E ATAQUES AOS NOSSOS QUARTÉIS

CCAÇ 3489 - CANCOLIM

8 Flagelações em 1972 (1 delas c/ 3 mortos, 5 feridos graves e 5 feridos ligeiros)
2 Flagelações em 1973
2 Flagelações em 1974

CCAÇ 3490 – SALTINHO

Não sofreram quaisquer ataques ou flagelações durante a comissão

CACAÇ 3491 – DULOMBI

3 Flagelações em 1972
4 Flagelações em 1973
2 Flagelações em 1974

CCS - GALOMARO

1 Ataque/flagelação em 1972 c/1 IN morto confirmado e prováveis feridos IN

MINAS ACTIVADAS E DETECTADAS

Cancolim: Mina A/P reforçada accionada c/1 morto e 1 ferido+mina A/C accionada c/12 feridos graves, 1 ferido ligeiro e 2 feridos pop.+2 minas A/P levantadas
Saltinho: 3 minas A/C levantadas e 1 A/P levantada
Dulombi: 2 minas A/C levantadas e 2 minas A/P levantadas
Galomaro: 1 mina A/P reforçada accionada c/1 morto+1 mina A/C reforçada accionada c/1 ferido grave

EMBOSCADAS/CONTACTOS/FLAGELAÇÕES AUTO

CCAÇ 3489 - 1 contacto com o IN, após flagelação ao quartel, em 1972+1 emboscada aos milícias em Anambé, em 1973 c/2 mortos e 1 ferido
CCAÇ 3490 - 1 emboscada no Quirafo c/ 9 mortos+1 milícia e 2 civis+1 militar capturado. 1 emboscada c/feridos e mortos do IN+1 contacto do IN c/milícias de Cansamange
CCAÇ 3491 - Flagelação numa operação no Fiofioli+1 emboscada/contacto com 4 feridos ligeiros nossos e mortos do IN (s/confirmação de quantos, mas a rádio do PAIGC referiu que tínhamos tido 8 mortos e eles também tinha tido mortos+1 emboscada/flagelação junto à recolha de águas no Dulombi+2 flagelações a coluna de escolta e protecção na estrada Piche-Buruntuma.
CCS - Contacto entre forças milícias e o IN, após ataque a Campata c/elemento IN capturado.

ATAQUES A TABANCAS EM AUTO-DEFESA E TABANCAS INDEFESAS

- Tabanca indefesa de Bambadinca/Cancolim, em 25/1/72;
- Tabanca indefesa de Mali Bula/Galomaro, em 1/2/72;
- Tabanca de Umaro Cossé/Galomaro, c/2 feridos civis, em 7/12/72;
- Tabanca de Campata/Galomaro, em 20/6/72;
- Tabanca indefesa de Sinchã Mamadu/Saltinho, na mesma data de 20/6/72;
- Tabancas indefesas de Sana Jau e Bonere/Saltinho, em 30/6/72;
- Tabanca de Cassamange/Saltinho, em 15/7/72;
- Tabanca indefesa de Guerleer/Galomaro, c/ morte de 3 prisioneiros civis e 1 ferido grave, em 27/7/72;
- Tabanca de Patê Gibele/Galomaro c/ 1 sarg. milícia morto+1 ferido grave e 2 feridos ligeiros da pop., em 11/8/72;
- Tabanca de Anambé/Cancolim c/1 morto (CCAÇ 3489)+3 feridos também da mesma CCAÇ, que ali estava de reforço, em 5/9/72;
- Tabanca de Sinchã Maunde Bucô/Saltinho, c/3 feridos IN confirmados, em 20/9/72;
- Tabanca de indefesa de Bujo Fulpe/Galomaro, em 26/9/72;
- Tabanca ainda indefesa de Bangacia/Galomaro, com 1 milícia e 2 civis mortos, no mesmo dia (26/9/72);
- Tabanca de Dulô Gengele/Galomaro, com 3 mortos IN confirmados e 3 mortos civis (que tinham sido feitos prisioneiros antes do ataque e que foram abatidos+1 ferido grave e 1 ferido ligeiro dos milícias e 4 feridos graves da pop e 5 feridos ligeiros da pop., em 17/10/72;
- Tabanca indefesa de Sarancho/Galomaro, com 2 mortos civis e 2 feridos civis;
- Tabanca indefesa de Samba Cumbera/Galomaro, c/1 ferido grave da pop., em 13/11/72;
- Tabanca de Cansamange/Saltinho, 17/12/72;
- Picada Saltinho-Galomaro c/16 elementos da pop. capturados e roubados dos seus haveres (dinheiro), em 18/1/73;
- Tabanca de Bangacia/Galomaro, c/2 mortos civis+2 feridos civis+2 feridos milícias, em 1/2/73;
- Tabanca de Campata/Galomaro, c/5 mortos do IN e 1 capturado+3 mortos milícias e 3 mortos civis, em 16/3/73;
- Tabanca de Sinchã Maunde Bucô/Saltinho, em 14/5/73;
- Tabanca de Bangacia/Galomaro, em 18/9/73;
- Tabanca de Madina Bucô, em 20/1/74.

09 de Novembro de 2020 às 21:26
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Nota do editor

Último poste da série de17 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21457: (Ex)citações (377): As visitas da D. Cecília Supico Pinto ao leste da Guiné (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Guiné 61/74 - P21534: Armamento (11): Material apreendido ao PAIGC em 1972 e 1973, em Galomaro e Dulombi (Luís Dias, ex-alf mil, CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro, 1971/74)


Foto nº 1 > Mina A/C


Foto nº 2 > Tambor e fita de metralhadora ligeira Dectyarev RPD


Foto nº 3 >  Granadas de RPG 2 e RPg 7 e outro material


Foto nº 4 > Baionetas de Kalashnikov AK-47 e AK-47/51


Foto nº 5 >  Estilhaços de RPG 2 e de RPG 7

Fotos (e legendas): © Luís Dias (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Luís Dias

1. Mensagem do Luís Dias[, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74), o nosso especialista em armamento; tem mais de 8 dezenas de referências no nosso blogue]:

Date: sexta, 6/11/2020 à(s) 11:56
Subject: Material que pode ter interesse de museu

Caro Luís Graça

Atendendo ao teu pedido,  seleccionei um grupo de fotos que talvez aches interessantes, relativos às nossas actividades na Guiné.

Assim segue um grupo de "roncos" ou prendas"... do PAIGC.

Foto nº 1 > Mina A/C levantada na picada Dulombi-Galomaro, em Outubro de 1972; 

Foto nº 2 > Fita e tambor de metralhadora ligeira Dectyarev RPD, no calibre 7,62 x 45mm, apreendida num ataque a uma das tabancas da área de Galomaro, em 1973;

Foto nº 3 >  Material apreendido num contacto com o IN em Março de 1972, em Paiai Lemenei-Dulombi. 

Foto nº 4 > Baionetas de Kalashnikov AK-47 e AK-47/51, a primeira apreendida num ataque à tabanca de Campata- Galomaro e a outra, após contacto com o IN, na estrada Piche-Buruntuma, em 1973. 

Foto nº 5 >  Estilhaços de RPG 2 e de RPG 7, após flagelação ao aquartelamento do Dulombi, em 1972.

A seguir envio e-mail, com objectos da arte fula.

Abraço.
Luís Dias
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Nota do editor:

Último poste da séreie > 25 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21110: Armamento (10): As novas Armas Ligeiras para o Exército (Conclusão) (Luís Dias, ex-Alf Mil Inf)

terça-feira, 9 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19662: Memória dos lugares (390): As três pontes de Bafatá, sobre os rios Geba e Colufe (ou Campossa): contributos de Fernando Gouveia, Humberto Reis, Manuel Mata, Luís Graça, Ricardo Lemos e Virgílio Teixeira


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > c. 1968/70 > Estrada (não alcatroada) Bafatá-Geba  > Bonita foto aérea, tirada de avioneta (talvez DO-27, a avaliar pela sombra da aeronave projetada na margem esquerda da Ponte Nova (ao tempo, ponte Salazar), no rio Geba Estreito. Na margem direita, vê-se a guarda  à ponte [, assinalada com uma seta], cujos elementos costumavam apanhar camarão que depois vendiam aos outros militares da vila (mais tarde cidade) de Bafatá. Esta ponte em betão deve ser fo início da década de 1960.

Foto (e legenda): © Fernando Gouveia (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.] (*)


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > c. 1969/70 >  Vista aérea da Ponte Salazar sobre o Rio Geba, na estrada entre Bafatá e Geba e Bafatá. A Ponte ficava a oeste da vila (, mais tarde cidade, em 1970),

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 1996 > Ponte sobre o rio Geba na estrada Bafatá-Geba. O Humberto Reis voltou lá, vinte e sete anos depois.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > Vista aérea > Em primeiro plano, o rio Geba, à esquerda, e a piscina de Bafatá (que tinha o nome do administrador Guerra Ribeiro e foi inaugurada em 1962, tendo sido construído - segundo a informação que temos - por militares de uma unidade aqui estacionada ainda antes do início da guerra).

Ainda do lado esquerdo, o cais fluvial, uma zona ajardinada, a estátua do governador Oliveira Muzanty (1906-1909)... Ao centro, a rua principal da cidade. Ao fundo, ao alto da avenida principal, já não se chega a ver o troço da estrada que conduzia à saída para Nova Lamego (, que ficava  a nordeste de Bafatá); havia um a outra, alcatroada, para Bambadinca,  mas também com acesso à estrada (não alcatroada) de Galomaro-Dulombi, povoações do regulado do Cosse, que ficava a sul. À entrada de Bafatá, havia uma rotunda. ao alto. Para quem entrava, o café do Teófilo, o "desterrado", era à esquerda..

Do lado direito pode observar-se a traseira do mercado. Do lado esquerdo, no início da rua, um belo edifício, de arquitetura tipicamente colonial, pertencente à famosa Casa Gouveia, que representava os interesses da CUF, e que, no nosso tempo, era o principal bazar da cidade, tendo florescido com o patacão (dinheiro) da tropa. Por aqui passaram milhares e milhares de homens ao longo da guerra,. que aqui faziam as suas compras, iam aos restaurantes e se divertiam... comas meninas do Bataclã.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.] (*ª)


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > O Fernando Gouveia, de pé, na piscina municipal, situada na foz do rio Colufe (à esquerda) que ia desaguar no rio Geba (em frente).

Foto (e legenda): ©  Fernando Gouveia (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > Vista aérea > Bafatá, o porto fluvial e o Rio Geba, vistos de oeste; ao fundo, a ponte do Rio Colufe, assinalada a amarelo, à esquerda  da piscina municipal.  Era uma ponte em betão, devia ser de 1920. Quase um século depois, em 2010, já não existia, segundo o depoimento do Fernando Gouveia que voltou a Bafatá nesse ano. Ou como se pode comprovar pelo mapa do Google.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Bafatá > Estrada Dulombi - Galamoro, a caminho de Bafatá


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > Ponte (em madeira, com estacaria em troncos de cibe) sobre o rio Colufe (ou rio Campossa), vista por quem vinha de Dulombi e Galomaro, ou de Bambadinca, ou seja, do sul / sudoeste, com Bafatá em frente (cerca de 2 quilómetros). Vê-se que falta uma secção do corrimão da ponte, do lado esquerdo, sinal de que o sítio era propício a acidentes...

Foto, com a devida vénia, de Ricardo Lemos.


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1971 > Restaurante Transmontana, na esquina da Rua Capitão Sousa Lage (, um dos militares portugueses que se destacaram nas "campanhas de pacificação" de finais do séc- XIX) . A "Transmontana" (, pensão e restaurante,) era famosa pelo seu "bife com batatas fritas e ovo a cavalo"... Vinte pesos!... Foto do Ricardo Lemos, com a devida vénia.


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1971 > Sporting Club de Bafatá > Um clube muito popular na região. Foto do Ricardo Lemos, com a devida vénia.


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1971 > A Rotunda, donde partiam duas estradas: à direita para Galomaro-Dulombi e Bambadinca; e à esquerda, para o Gabu. A foto, com a devida vénia, é  do Ricardo Lemos ("Ferrugem") com o seu amigo "Estraga"... E era aqui ficava o café do Teófilo, onde a malta de Bambadinca bebia o último copo, antes de regressar á base...

Fotos (e legendas): © Ricardo Lemos (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] [Com a devia vénia ao autor e ao editor...]

Escreve  Ricardo Lemos, ex-fur mil mec, CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (que vive em Matosinhos, e a quem já convidámos em tempos para integrar a Tabanca Grande),  no blogue CCAÇ 2700 - Dulombi, 1970/72), criado e mantido desde 2007 pelo nosso grã-tabanqueiro, da primeira hora, Fernando Barata.

(...) "Está na hora de seguir viagem até Bafatá. A distância a percorrer andará à volta dos 40 km. Os Unimogs da coluna militarizada e também outros veículos oriundos de Galomaro, percorrerão os caminhos em terra batida até chegarmos ao cruzamento da estrada Bambadinca / Nova Lamego. A partir daqui seguiremos até Bafatá em estrada alcatroada" (...)


(...) "Era uma zona ampla, muito bonita, cuja estrada em terra batida era rodeada de muitas árvores, entre elas, as frondosas mangueiras, cujos frutos em cada árvore, eram aos milhares. A mangueira é uma árvore da família das anacardiáceas e que produz a manga, uma drupa carnosa e saborosa. Existem 35 espécies diferentes. Só que estas que se vêem nas imagens, não eram de cultivo, mas sim, selvagens. E nestas árvores, aproveitando-se da sombra refrescante, as aves exerciam o seu direito territorial, ocupando os ramos, aos milhares. Era uma delícia ouvir as melodias das linguagens das diversificadas aves que nelas coabitavam. As rolas eram surpreendentemente abundantes. Já se adivinha a chegada à periferia de Bafatá. Agora, em estrada alcatroada, a conhecida ponte com estrutura em troncos de palmeira, sobre o rio Colufe, nos surge pela frente." (...)

(...) Ao longe, Bafatá, cidade cosmopolita, situada no centro da Guiné, era a terra mais distante de todas as fronteiras, o que a protegia das garras da guerrilha. Por tal motivo, as pessoas e bens podiam circular com alguma segurança e um certo à vontade. Situa-se na confluência dos rios Geba e Colufe." (...) 


1. Mensagem do Fernando Gouveia [, ex-alf mil rec inf, Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70; autor do romance Na Kontra Ka Kontra, Porto, edição de autor, 2011, e mais recentemente  do livro de memórias "A  Guerra Vista de Bafatá: 1968- 1970". ediçãpo de autor, 2018; arquiteto, reside no Porto; tem 160 referências no nosso blogue: foto atual à direita]

Camaradas:

Como estive em Bafatá de 1968 a1970 posso dizer com toda a certeza que nessa altura havia a ponte Nova (Salazar) [, sobre o rio Geba], e uma ponte sobre o rio Colufe, que desaguava no Geba, mesmo em frente à piscina. (***)

Essa ponte era de um tabuleiro simples com uns pilares e em betão. Quando estive lá em 2010 já tinha caído toda.

Mando uma foto tirada na piscina, onde se vê o rio Geba [, em frente,] e à esquerda a foz do rio Colufe.

No blogue há muitas fotos aéreas em que se vê bem a ponte do rio Colufe, nessa época.

Abraços

Fernando Gouveia


2. Comentário do editor Luís Graça:

Quando falamos de pontes, em Bafatá, nos finais dos 60, início dos anos 70, estamos a falar de três:

(i) um sobre o rio Geba (Estreito), a oeste da vila (e depois cidade) de Bafatá, na estrada (não alcatroada) Bafatá -Geba;

(ii) uma sobre o rio Colufe ou Campossa), afluente do rio Geba: uma em betão, dos anos 20, que irá ruir no início do séc. XXI, e ficava na confluência do rio Colufe e do rio Geba, junto à piscina municipal; era apenas pedonal;

(iii)  e uma terceira, também sobre o rio Colufe (ou Campossa), a montante, em madeira, assente em estacaria de cibe (palmeira). devia ser dos anos 30/40/50 ficava na estrada Bafatá . Banbadinca,  já nas proximidade de Bafatá, a cerca de 2/3 km; mais à frente, a escassos quilómetros, apanhava-se a estrada (, em terra batida,) para Galomaro . Duas Fontes Dulombi.

Esta última ponte, em madeira, já não existe, é hoje em betão, como se pode ver pelo  mapa do Google. E a cidade de Bafatá está irreconhecível, com uma enorme expansão no sentido norte / nordeste.  Tinha, em 2010, cerca de 35 mil habitantes.


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá Ponte sobre o rio Colufe (ou Campossa), "com a sua célebre estrutura em troncos de palmeira". Em janeiro de 1970, a ponte era guardada por uma força do Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) a quem pertencia o nosso camarada Manuel Mata.

Foto (e legenda): © Manuel Mata (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá > Bafatá Ponte sobre o rio Colufe (ou Campossa) > Novembro de 1967 > Virgílio Teixeira, alf mil SAM, da CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lameho e São Domingos, 1967 / 1969), mais a sua escolta, a caminho de Bambadinca, vindos do Gabu.

Fotos (e legenda): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] (****)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 23 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12491: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (11): Fotos nºs 13 (estrada para Geba e Bafatá), 14 (Ponte Nova) e 15 (tabanca da Ponte Nova)

(**) Vd. poste de 22 de março de  2013 > Guiné 63/74 - P11293: Memória dos lugares (226): Vistas aéreas da doce e tranquila Bafatá, princesa do Geba (Humberto Reis, ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71) (Parte I)

(***) Último poste da série > 28 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19629: Memória dos lugares (389): Ponte do Rio Colufe (que desagua no Rio Geba, em Bafatá), onde houve um acidente com um Unimog 411, em 6/1/1971, em que morreram, afogados, 3 militares, 1 do GAC 7 e 2 da madeirense CCAÇ 2680 (Cabuca e Nova Lamego, 1970/71) (Mário Migueis e José Martins)

(****) Vd. poste de 28 de janeiro de  2019 > Guiné 61/74 - P19448: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LXI: As colunas para o sudoeste do setor: Bafatá, Fá Mandinga e Bambadinca, eram mais de 200 km, ida e volta

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18912: Estórias do Juvenal Amado (61): Um pouco de todos nós - "Difícil foi libertar-me do abraço", por Carlos Paz

CICA 4 - 8.º Pelotão - Com o Aspirante Pimenta e o Cabo Miliciano Picado


1. Em mensagem de 3 de Agosto de 2018, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos mais uma das suas estórias, esta sob o pseudónimo de Carlos Paz.


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

61 - UM POUCO DE TODOS NÓS

"DÍFICIL FOI LIBERTAR-ME DO ABRAÇO"

Um Conto por
Carlos Paz[1]

Movimentos ritmados, cadência entre a passada e a vara, picamos o chão à frente dos pés. O ar está seco, as botas levantam pequenas nuvens de pó, as gargantas suplicam por água, os sentidos ficam cada vez mais absortos, à medida que o cansaço provoca um tropel na marcha e a respiração cada vez mais audível. Ninguém fala, a mata cala-se à nossa passagem, só sinto um zumbido e o roçar da arma a tiracolo na anca, o calor faz-nos desfazer em suor que encharca o pescoço e a farda.
Quantos passos quantos compassos por hora, quantas gotas de suor se limpam com as costas da mão?
Só penso na hora do regresso, só quero descansar. Viro-me para trás, a fila alonga-se, os rostos ainda com barba mal semeada mas mesmo assim por barbear na sua quase maioria, estão deformados pelo esforço.
Quem nos reconheceria agora?
Quando pisámos o cais éramos praticamente crianças a boiar nos camuflados novos, agora passados nove meses, a cara tisnada, tensa e crespa, corpo dorido, olhos duros não parecemos os mesmos. O nosso aspecto acompanhou a degradação do camuflado, que está roto e com as cores desmaiadas.

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Quanto tempo passou na verdade? Aqueles momentos parecem tão longe.
Em pouco tempo percorremos o espaço entre os bailaricos, das festas, dos namoricos e a idade adulta. Uma cavalgada desenfreada em que galgámos os dias e as noites num salto no tempo. Aceitámos sem revolta ir combater numa terra estranha e que da qual, só conhecíamos o que aprendemos na escola e pouco ou nada nos lembrávamos.
Tudo se passou rapidamente no implacável contar das horas, dias e meses. Quase sem darmos por isso, passámos da vida despreocupada, do convívio com familiares e amigos, para um mundo diferente no clima, nos costumes e cheio de armadilhas, umas imaginárias e outras, bem reais como rapidamente constatamos.
Por vezes tanto se dá correr como saltar porque as curvas, as escorregadelas e as pedras do caminho, estão lá à nossa espera. Depois de escorregarmos pareceu-nos tão simples, ficamos a pensar como não antevimos o obstáculo, como não nos desviamos a tempo, porque aceitámos inexoravelmente que não havia outro caminho, não questionámos quem nos mandou naquela direcção. Costuma-se dizer que não vale a pena chorar sobre leite derramado e é uma grande verdade.
Difícil foi libertarmo-nos do abraço, do inevitável, enquanto num fio de voz murmurava baixinho: “Isabel não me esqueças mas ajuda-me a libertar-me deste abraço e ajuda-me despedir-me de ti”.


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Estações cheias, comboios apinhados de mancebos, fardas verdes, boinas castanhas, na sua esmagadora maioria destinos incertos, despejados em Sta. Apolónia, cais dos nossos medos. Com graçolas e risadas engana-se o aperto no peito e a ansiedade pelo passo seguinte.
No rio ali perto baloiçam navios e um deles abre os porões para nos engolir. Aperta-se a tenaz à nossa volta e para muitos a viagem vai ser uma descida aos infernos.
Só virão para cima às costas dos camaradas, tão doentes do enjoo, que facilmente se deixariam definhar e morrer naquele porão nauseabundo e fétido. Tudo ficou enevoado e esquecido, perante os dolosos incontroláveis arranques que vêm do fundo das suas entranhas e que lhes levam as últimas forças. Naquela atmosfera de humidade extrema e pegajosa, vomitam e urinam-se, sem forças para subir ao tombadilho onde instalaram as latrinas. Ninguém gosta de lembrar esses momentos em que o homem perde a dignidade e se dá ao abandono físico e anímico. Deixa-se de lutar, pois a cabeça não raciocina e o corpo deixa de ter vontade. A nossa juventude não merecia tal tratamento, tal falta de respeito, tanto desprezo.
Não enjoei mas estou com a cabeça levemente zonza pelo contínuo balançar do barco e o barulho em surdina dos motores, que se espalha pelo o porão abaixo do nível da água. Recordam-se os sorrisos e a trocas de olhares, as promessas mudas, o leve roçar dos corpos ao som da música, a respiração junto ao rosto que, tantas promessas encerram.

Ao largo da Madeira

A bordo do Angra do Heroísmo

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Hoje ansiamos pelo dia do correio, onde esperamos reviver os dias brilhantes de romance contido, dos beijos mais ao menos tímidos, por isso mais saborosos na maravilhosa descoberta um do outro.
Naquele dia encontrámo-nos. Um e outro tinham a certeza nos olhos daquele amor reprimido. Não é sexo mas entrega, é paixão incontrolável num acto tantas vezes desejado, mas mesmo assim assumido com atracção irreprimível de promessa e dos segredos por desvendar.
O desejo explode com as caricias e beijos, os seios crescem para serem afagados, as bocas entreabrem-se, línguas tocam-se as mãos percorrem cada centímetro dos corpos frementes. Nada é calculado nada é previamente estudado. A natureza, o desejo vibra não há reserva, há necessidade de consumar de ir na corrente que nos leva para um doce abismo. Um soluço agudo a dor que desaparece como a dúvida, já nada nos faz parar é o assomo que nos transcende, que nos transforma num só.
É a beleza do momento consumado, universo alinhado, é a natureza que comanda que dita as leis, as dos homens e de Deus, ficaram esquecidas, pois só há lugar para nós dois, que ficaremos ligados para sempre a este momento mágico.
Por fim descansamos abraçados com a respiração ofegante, a realidade e os sons voltam pouco e pouco. Há uma felicidade pela descoberta, há algum receio pela consequência, mas nada nos pode tirar o que acabamos de sentir e viver. Está tudo mais belo mais humano mais florido o nosso segredo é um elixir para os sentidos.
O lugar vai ser repositório dos nossos encontros, catedral dos nossos arrebatamentos e fortaleza do nosso amor. Não deixa de haver algo trágico e belo nos encontros e nas despedidas.
Depois acorda-se e é preciso encarar a vida, a dor e a separação que nos espera, como que à esquina, sem apelo sem queixume e sem justificação.
Era o dever, disseram.
O carteiro vai saber o nome do remetente de cor e salteado, tantas vezes escrito e lido. Vai fazer de arauto a cada nova carta e também vai reparar, no dia que não houver nenhuma.
O correio só sai duas vezes por semana e só nessa altura recebemos também as cartas dos nossos. Há um desfasamento de datas entre o seu recebimento e a resposta, o que por vezes confunde.
No meio da parada, sob Sol escaldante gritaram o meu nome e apressei-me a receber aquele envelope tão simples, mas que tem o teu cheiro, que foi tocado por ti e ao tocares-lhe, o transformaste num bem mais preciso que o ouro, mais resistente que os diamantes, água que transborda límpida e fresca, que sinto correr pelos meus sentidos, que me dá vida e transporta para fora dali onde o Mundo é porventura perfeito.

“10 de Outubro 1972
Jorge meu amor
Espero que estejas bem de saúde, que eu cá vou andando com muitas saudades e à espera do passar dos dias em que te voltarei a abraçar, a beijar e tornarmo-nos um só novamente repetidamente. Até durmo com a tua fotografia a que dou mil beijos logo de manhã. Bem sei que é preciso ter paciência mas o desejo de te ter, faz os dias dolorosos que não vejo o fim deste castigo.
Meu querido são tantas saudades tuas que até doem. Ontem recebi várias cartas tuas pois o correio anda com atrasos.
Entre a fábrica e os afazeres em casa, só fica para mim o tempo em que leio e releio as tuas cartas. A tua recordação mantém-me os dias. Gostei de saber que não vais mais para o mato e que ficas impedido no quartel, só não percebi bem porquê e a fazer o que vais fazer.
Os teus colegas perguntam-me por ti sempre.
Ouvi dizer que que José António também vai para aí. Se for verdade vou-lhe pedir que te leve alguma coisa de que precises".


A caixa vai enchendo com as cartas, aerogramas e fotos. Todos guardam ciosamente o seu correio e é doloso quando a má sorte bate à porta de algum camarada. Ao juntarmos os seus pertences, a sua correspondência recebida em que as ultimas cartas já não terão resposta. “Meu querido
Nas últimas fotos que enviaste, vi que deixaste crescer o bigode e gosto de te ver com ele, mas não gostei de ter ver agarrado à rapariga negra. Vê lá como te comportas e não mandes mais fotos dessas. As minhas colegas gozam comigo e dizem que tu andas para aí só metido com essas mulheres”
.
Como viveremos depois de passar pelo que vimos e as provas a que fomos submetidos? A mentira de que está tudo bem, que não vamos mais para o mato, é recorrente para sossegar os nossos entes queridos.
Não há impedimentos para tantos, assim, só nos livramos das colunas e patrulhas quando estamos doentes.
Alguma coisa secou em nós só se mantém viva a esperança do regresso, mas como ainda falta tanto não se pensa muito nisso. Dizem, que o verdadeiro medo começa quando se acredita que estamos prestes a deixar para trás aqueles caminhos. Aí pensamos duas vezes no que vamos fazer e onde nos vamos meter.
Isabel meu amor, o que eu não daria para estar contigo, abraçar-te, sentir as tuas mãos, cheirar o teu cabelo, fazermos amor e esquecer tudo ao nosso redor. Por vezes julgo ouvir-te, sinto a tua cara molhada contra a minha na hora da despedida, a tua recordação é como um bálsamo que me acompanha a todas as horas, quando estou acordado penso em ti e quando durmo só quero sonhar contigo.
“- Jorge meu amor aqui as notícias não são boas sobre o que se passa aí, mas tu dizes que está tudo bem e não sei em que acreditar. Se correres perigo diz-me por favor.”
A caminhada parece não ter fim, o calor cada vez aperta mais. Por fim há ordem de parar e descansar, mas não abandonamos a picada uma vez que é perigoso sairmos dela. As armadilhas são um tormento.
Troco um lata de corned beeff por uma de cavala em óleo com o Lopes. A carne em pasta enlatada dá-me vómitos. O Sol a pique, por isso só existe sombra fora do caminho debaixo de umas árvores, mas quem é que se arrisca a ir para lá?

"- Jorge ontem estive com a tua mãe, que se queixou de não escreveres. Quase tive acanhamento de lhe dizer que recebo carta tua, uma por cada dia. Por um lado esconder-lhe isso, seria preocupá-la mais, assim sabe por mim que tu estás bem.”

Falámos pouco pois mantivemos as distâncias da marcha.
- O que ia agora era uma cervejinha fresca - murmura alguém que no fundo diz o que todos pensamos.
Foi breve o descanso, há que retomar a marcha, cada vez mais perigosa pois há muito deixámos zona mais ao menos segura e encontrar alguém será com certeza hostil. Volto a pensar na casa, lembro os sítios e as pessoas, as mesas de refeições onde estão os meus pais e irmãos, a Isabel a sair da fábrica com o seu passo rápido, jovem e sensual e eu que tudo fazia para me encontrar com ela. Parecia impossível que ela para mim olhasse, que finalmente correspondesse aos meus sentimentos.

- “Tenho tantas saudades que até doem, sonho com os teus beijos e quando estamos juntos. Acordo de noite com pesadelos em que não voltas para mim, por favor diz-me que me amas e que nunca me deixarás”

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É de esperar sempre o pior, mas quando acontece é um choque, a dúvida e terror instala-se, o bafo da explosão chega até mim. Mergulhamos em busca de protecção com terra a cair por cima de nós, alucinados de arma pronta. O coração bate desordenadamente ameaça sair-me pela boca. Ouvem-se gritos que abafam o estrondo da explosão, rasgam o silêncio em que o eco se vai desvanecendo. Momento mil vezes temido acontece sempre quando nunca se espera e nunca se está preparado para isso. Nada será igual daí em diante. Este momento lembra-nos que podia ser qualquer um de nós. Gritos e mais gritos misturam-se com o medo o calor e suor. Cheira a pólvora e sangue.
Pisou uma mina. Está sem pernas. Já deixou de gritar e nada podemos fazer por ele a não ser lembrá-lo, até que o tempo esmoreça o seu rosto quase irreconhecível, a sua farda em farrapos, a sua cama vazia, a última cerveja bebida o cigarro que ardeu até queimar os dedos. Quantos mais terão de morrer?
O Santos morreu, mas ninguém morre de imediato para toda a gente ao mesmo tempo. Neste momento só morreu para nós, daqui a umas horas, a notícia da sua morte atravessará o oceano, atingirá a sua aldeia os seus pais, mulher, amigos e conhecidos. Até lá o Santos estará vivo. Está em contagem decrescente até que o eco da sua morte se junte com a notícia do facto consumado.
A mulher, talvez ainda esteja a escrever a derradeira carta que porá na caixa do correio. Esta viajará milhares de quilómetros sem encontrar destinatário, voltará pois às mãos dela que a receberá de volta mais dia, menos dia, pois o tempo deixou de ser importante. Olhará para ela e a dor atingirá mais um degrau e a certeza cavará um buraco no seu peito, a lágrimas rolarão como ácido a queimar as faces, o grito de animal ferido partirá para o vazio que sente. Depois, abraçará o filho de ambos e deixará que o seu calor e a doce respiração faça amainar a sua dor.
Suamos em bica, as moscas e mosquitos fazem nuvem sobre nós, despejo um pouco de água sobre a cabeça com o cantil. Está quente mas mesmo assim tenho que a poupar, pois só teremos água quando regressarmos. A mata agiganta-se ameaçadora, parece que nos vai engolir a qualquer momento sem que possamos fazer algo para o impedir.
A mala com os pertences dele será enviada à família.
O corpié, o serviço de chá e o robe chinês, comprado no “Libanês”, para os dias felizes, serão os bens materiais a que se juntarão as cartas da mulher as fotos dela e do filho que ele só conhecia por elas, que cuidadosamente exibia em cima do armário improvisado ao lado da espingarda, cartucheiras e granadas de mão.
Estava tudo igual como estava ontem e anteontem em perfeito estado, ele é que já não serve, como escreve o poeta[2]. Fazia parte do plano dele para o seu futuro agora perdido irremediavelmente.

[2] - Fernando Pessoa no poema “O Menino de Sua Mãe”

Dirão as velhas da aldeia na sua simplicidade que não tem remédio, remediado está, que foi o destino, ou a vontade de Deus, que no fundo acaba por ter as costas largas para servir de ónus para todas as culpas, que resultam da estupidez humana.
O cemitério será local de visita semanal. Ele na sua inocência brincará à volta das campas, quando a mãe ali for depositar flores e cuidar da última morada do marido. Dir-lhe-ão que o pai foi para o céu e seus olhitos responderão com a incompreensão da inocência.

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É o quinto morto. Vêm-me à lembrança os outros quatro. O primeiro de acidente, os outros três ceifados num ataque com morteiros ao destacamento.
Também eles tinham muitas cartas começadas por meu amor.
A galeria de rostos cresce, morre-se naqueles sítios perdidos quase sem nome, o local só perdurará na nossa memória e a certeza de que nada ali vale um pingo das nossas lágrimas, nem do nosso sangue.
Cresce com a dor e esgotamento físico.
Tento dormir, a mata tem barulhos próprios que parecem passos, perigos iminentes, rastejantes e sombras que estão à espreita. Estou alagado em suor, mas sei que vou ter frio sobre a madrugada, ponho o pano de tenda e o mosquiteiro por cima da cabeça e das costas para ficar mais confortável e em vão tento dormir. O amanhecer traz a luz que afasta as sombras fantasmagóricas, que parecem espiarem-nos durante toda a noite mal dormida e a certeza de outro dia a caminhar sob Sol escaldante.
Vamos regressar ao destacamento pois já ali não estamos a fazer nada. O rebentamento da mina denunciou-nos e perdeu-se o efeito surpreso da operação. O que estamos aqui a fazer tão longe de casa?
Faltam 16 meses, bebo água que refrescou durante a noite e como a ração de combate sem prazer. É hora de voltar a caminhar, não interessa para onde. É penoso voltar a caminhar sem saber bem onde pôr os pés. Se caminhasse para regressar aos teus braços até voaria.
As viaturas com escolta vêm ao nosso encontro, e é com algum regozijo que nos afastamos dali. A natureza cumprirá o seu designo de apagar rapidamente os vestígios que a tragédia deixou no local. Se alguma coisa fizesse sentido, ali e em muitos lugares da Guiné, nasceriam flores ou ervas cor de sangue.
Lá na terra, a família e amigos podiam pôr flores ou ergueriam mesmo pequeno monumento, onde se podia pôr uma vela a arder, mas aqui, o momento ficará para sempre na memória de quem o viveu.
Finalmente acendo um Português Suave, aspiro fundo o fumo e o cheiro a gasolina do isqueiro, e solto grossa coluna de fumo. Sinto uma leve tontura e, ao dar-me tosse, lembro-me das ordens do médico para deixar os cigarros, pois tenho os brônquios em mau estado, mas quem se preocupa com o perigo do tabaco, quando corre tantos perigos todos os dias?

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No destacamento as conversas são parcas. A morte do camarada pesa no pensamento de todos. Bebe-se o que há, é preciso ficar dormente e assim conseguir dormir, esquecer, distanciarmo-nos do doloroso momento, do cheiro do estrondo e do medo. O tempo dele a sua recordação, pouco a pouco, dará lugar ao nosso tempo e esse, trará uma forma de esquecimento ainda parcial, ainda assim latente.
O último aerograma que a Isabel me mandou está ali aberto, está inalterável, nada mudou no que lá está escrito e nada mudaria, se o morto fosse eu.
Deito olhar às linhas escritas, não me confortam como seria natural. Há demasiado horror nas pernas decepadas, no rosto há tantas interrogações, há tanta dor e ansiedade, sentimo-nos impotentes para mudar o que se quer que seja. Tento dormir mas vai ser sempre em sobressalto. Os tiros que as sentinelas dão, quando vêm alguma coisa a mexer na escuridão da orla da mata, ou simplesmente para espantar o sono, fazem-me sentir menos só naquele momento.
O que é feito da aventura, da vontade de conhecer outras paragens? Não sabíamos que o preço seria tão alto, que demoraria o resto da vida a pagar.

Dulombi - Monumento de homenagem aos Mortos

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Meu amor, quando regressar caminharemos na areia molhada, sentar-nos-emos a ver o mar, sentiremos o nevoeiro a envolver-nos e propagar o ruído dos comboios a quilómetros de distância, o cheiro das ervas molhadas, ouviremos de madrugada os homens que partem para azáfama dos campos, os cães a responderem uns aos outros, as sirenes das fábricas, todos estes ruídos insignificantes do dia-a-dia, são o ruído que a paz tem e serão música para os nossos ouvidos. Este pensamento aviva-me as saudades, pudesse eu deitar-me nos teus braços e chorar os dias e as noites longe de ti, talvez esta dor desaparecesse e eu fosse finalmente salvo.

-“Meu querido. 
Por hoje é tudo. 
Recebe mil beijos com muita saudade desta que te ama mais que tudo, e conta os dias e horas para ter novamente junto de mim. 
Recebe muitos beijos 
Sempre tua 
Isabel” 

[1] - Pseudónimo de Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18884: Estórias do Juvenal Amado (60): O azar das margaridas

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15398: Notas de leitura (778): Américo Estanqueiro, álbum fotográfico sobre Dulombi (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
Graças ao nosso confrade Carlos Silva que tão prestimosamente me franqueia a sua biblioteca, acabo de conhecer o talento do nosso camarada Américo Estanqueiro que aterrou em Dulombi em época de transição.
Falando por mim, ir a Dulombi numa daquelas fainas que o Luís e eu tão bem conhecemos, de recoveiros distribuidores de toda a sorte material, significava um bom passeio, uma pausa entre as emboscadas noturnas, as colunas ao Xitole, as operações e correlativos.
O que me impressiona nas imagens de Américo Estanqueiro é a viagem entre dois mundos, a captação da bonomia e de uma vida simulada numa aparente pacificação e a contenção da crueldade da guerra, na chegada dos mortos, espojados aqui e acolá, as viaturas destruídas parecem ganhar vida, e uma viagem de "periquitos" a caminho do Xime parece algo de funambulesco, dado pelo paradoxal daquela montanha de bagagens e a vigilância das metralhadoras.
Para que conste.

Um abraço do
Mário


Américo Estanqueiro, álbum fotográfico sobre Dulombi

Beja Santos

O nosso blogue anunciava em finais de 2007 uma exposição que decorria na Fundação Mário Soares com fotografias de Américo Estanqueiro, da qual se publicou um álbum, na notícia do blogue há mesmo quem o exiba. E depois silêncio. O historiador de fotografia José Pessoa apresenta-o nos seguintes termos:
“Américo da Conceição Estanqueiro nasceu em 15 de Abril 1947, na aldeia de Vendas de Maria, concelho de Alvaiázere, distrito de Leiria. Quando completou o 1.º ciclo, e devido às dificuldades económicas da família, empregou-se numa fábrica de lanifícios onde durante dois anos ganhou o dinheiro necessário para voltar a estudar, tendo completado o 2.º ciclo com 21 anos de idade. Em 1968, fez a recruta nas Caldas da Rainha e a especialidade de atirador em Tavira. Pediu para fazer a especialidade em Foto-cine, o que não lhe foi concedido. Foi mobilizado no Regimento da Infantaria de Abrantes e embarcou para a Guiné em 24 de Abril de 1970.
O seu primeiro contacto com a fotografia foi através do irmão António, na altura empregado da Kodak. Este tinha acabado de fazer a sua comissão em Moçambique, durante a qual ganhou dinheiro fazendo fotografias dos companheiros de armas. Este deu-lhe esse exemplo e ensinou-o a dar os primeiros passos. Parte da formação profissional do Américo Estanqueiro foi feita através da leitura de livros e revistas, pela sua iniciativa.
Começou logo a concretizar o seu objetivo durante a recruta, revelando as imagens na sua casa em Lisboa. Era tudo a preto e branco. Logo que embarcou montou um laboratório a bordo. O negócio aumentou significativamente quando chegaram ao aquartelamento na Guiné, com solicitações constantes de retratos, mais ou menos compostos com elementos locais. Trabalhava com uma câmara Minolta 6x6cm e imprimia papel Agfa lustroso. Os rendimentos desta atividade paralela valeram-lhe umas abastadas férias em Bissau, tirou a carta e enviou 85 contos para casa, graças ao pré que descansava intacto.
Um mês antes de regressar deu todo o material ao soldado Adriano Francisco, que o tinha ajudado nos trabalhos fotográficos e vendia as fotografias (não ficava bem um furriel proceder à venda e à cobrança direta aos soldados). Infelizmente o Adriano acompanhou as malas e veio a falecer em Bissau, vítima de uma crise súbita de tuberculose.
Américo Estanqueiro regressou a Portugal e montou uma casa de fotografia na Estrada da Damaia, que não veio a ter sucesso. Voltou à terra e montou um estúdio fotográfico em Figueiró dos Vinhos. Em 1977, recebeu um convite para ir para a Venezuela, onde se empregou no maior estabelecimento do ramo, em Caracas. Dali saiu para arrancar com dois novos laboratórios, como responsável técnico. Porém, a desvalorização da moeda venezuelana levou-o a regressar à pátria. No regresso, abriu o Centro Fotográfico de Alcobaça. Ao tempo em que se realizou a exposição era empregado da firma Foto Industrial 2.
O que aconteceu entretanto aos cerca de 6 mil negativos realizados durante o serviço militar? Deitou-os os fora logo que perdeu contacto com os camaradas e considerou que se tinham tornado inúteis. Nem um sobreviveu para a amostra. Resolveu então conservar, das provas impressas em África um conjunto de imagens que mostrasse às suas filhas a viagem que começou no Cais da Rocha”.

Américo Estanqueiro, ex-Fur Mil da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) autografando o catálogo da sua exposição para o antigo camarada de armas Joaquim Alves, ex-Fur Mil Enf.




Agora é a minha vez de falar. Ao tempo da minha comissão (68/70) a região de Dulombi era sossegada, guerra a sério era a uns bons quilómetros daqui, no Xitole. Havia a pressão do PAIGC, é certo, raptos, intimidações, Quirafo foi várias vezes atacada. Daqui a Bambadinca, nesses tempos, era um simples passeio, levava-se a arma por precaução. Na intervenção em Bambadinca, uma das tarefas rotineiras era levar mantimentos, munições e material de Engenharia, tarefa menos espinhosa não havia. Folheio o álbum e tudo me parece convencional até ao porto do Pidjiquiti. A foto a bordo da LDG “Montante” não deixa de impressionar, por um amontoado de gente encostada às malas, o sossego vem das duas armas, há pessoal placidamente encostado à amurada, o fardamento a cheirar a novo. Quem ali vai é CCAÇ 2700. E embrenhamo-nos em Dulombi, Américo Estanqueiro mostra gente sorridente em tempos de pausa, simulações de guerra, bom material para mandar à família e deixá-la descansada. E depois surgem os sinais da guerra, imagens de minas, interpoladas com o folclore das lavadeiras de peito à mostra e nosso militar em tanga, perfilado com elementos da população local. Há imagens nos estragos causados por um tornado, em 25 de Abril de 1971, e legenda não houvesse bem podíamos pensar que houvera para ali um bom foguetório. Do simulacro, da atmosfera de bonomia salta-se, e com que dureza, para a tragédia: um Unimog com soldados mortos; um outro Unimog que acionou uma mina anticarro, morreram dois soldados, o que há de incomum é a máquina ferida que parece dar um murro e saltar da esquadria da fotografia; o fotógrafo escolhe o ângulo, temos agora um ferido em combate atravessado na maca, levanta a cabeça como que para assegurar a quem o vai ver que está vivo a despeito da farda esfarrapada, dos pensos e da sua face marcada por sequelas várias; e há um soldado africano morto, o fotógrafo cuidadosamente escolhe um ângulo que não escandalize mas que faz vibrar o coração, um outro soldado africano toca-lhe delicadamente no antebraço, pela expressão pesarosa parece querer ressuscitar quem ali jaz em chão térreo, sob o mosquiteiro. Não menos doloroso é uma outra fotografia de um outro soldado morto em combate, jamais saberemos se é branco ou africano, está tudo concentrado no seu corpo sofrido, a cabeça entrapada em gaze, não faltam ligaduras até aos pés, há corpos inclinados, não têm direito a mostrar consternação; até uma imagem de urnas ganha humanidade, são caixões alinhados com corpos embrulhados em mantas, alguém se despede ou procede a reconhecimento levantando a manta junto ao rosto.

A CCAÇ 2700 substituiu a CCAÇ 2405, a que pertenceu o nosso confrade Paulo Raposo, que vivenciou o desastre do Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969. A companhia teve sete mortos e quatro feridos e meia centena de baixas por doença. E os tempos tinham mudado, a região já não dispunha de serenidade, como no meu tempo: Dulombi sofreu flagelações, emboscadas, minas antipessoais, mina anticarro. Em 1971, a região sofria o impacto de ter o Boé e a outra margem do Corubal com uma nova agressividade. Agora a guerra era outra coisa.

As fotografias de Américo Estanqueiro são eloquentes pela vibração da paz que se quer manifestar às famílias e pela contenção de uma guerra que parecia, naquele ponto do mapa, inimaginável.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15387: Notas de leitura (777): “O Mundo Português”, revista de cultura e propaganda, editada pela Agência Geral das Colónias em conjunto com o Secretariado da Propaganda Nacional em Abril de 1936, um número dedicado à Guiné (Mário Beja Santos)