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segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16450: Notas de leitura (877): Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2016:

Queridos amigos,
Há largos anos que andava na peugada de "O descascar da pele", de Sérgio Matos Ferreira, um furriel artilheiro que andou por Buruntuma, Dara e Mansabá, entre 1972 e 1974. Trata-se de uma pesquisa na arquitetura literária com reminiscências acentuadas do novo romance, do surrealismo e do construtivismo. Foi processo literário de pouca dura, os escritores mais persistentes, entre as décadas de 1970 e 1980 viram-se forçados à reconversão.
Destino esta pesquisa a um ajuntamento o mais completo quanto possível de tudo quanto se escreveu sobre a guerra e a despeito da profunda deceção que a leitura me provocou sinto-me contente de constar no blogue mais esta referência.

Um abraço do
Mário


Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (2)(*)

Beja Santos

“O descascar da pele”, por Sérgio Matos Ferreira, Coleção O Chão da Palavra, Veja, 1982, aparece referido em “Os anos da guerra”, de João de Melo, na obra se inclui o seguinte texto deste autor que foi furriel de artilharia de campanha, na Guiné, entre 1972 e 1974 e a assistiu à transmissão de poderes:
“A bandeira arpoada num falo direito, rijo, dedilhava palavras surdas auxiliada por um sorriso fraco de vento, que acordado em sobressaltos estrebuchava soluços de pano bicolor, murcho, à espera da estocada final. Num berro sem esforço o clarim tocou firme e um pulsar de cascata segredou no sangue que o colonialismo se dissolvia, o sopro de metal continuou pleno de satisfação vibrando nas lâminas quentes do dia o tom do sentido, e sentimos na mais escondida célula que a salada da guerra se fechava na caixa da memória. A bandeira escorregava lentamente pelo fio da história em pequenas convulsões, hesitando, agarrando-se em jeito de lapa à madeira inchada e sem resistência poisou suavemente numas mãos esburacadas, ansiosas de remendar essa prisão de mato com a sombra do seu país. Esticada, dobrada em guardanapo aconchegou-se, isolada, entre a camisa e as costelas da fome de um militar que num estilo impecável deu meia-volta, arrumando-se no seu lugar estudado há longos meses. Agora África subia sem dificuldade pelo poste de braços abertos, hélice de espigas doiradas a cuspirem sementes, catana vigorosa de carne a cortar o último nó do cordão umbilical. És independente, meu nervo, Guiné de todos”.

Intrigava-me o texto, chegara finalmente a ocasião de ler a obra na íntegra, ademais a Coleção O Chão da Palavra irrompera no início de 1980 com um conjunto de livros que fazem hoje parte da história da literatura, basta pensar em Memória de Elefante, Os Cus de Judas, Conhecimento do Inferno e Explicação dos Pássaros, de António Lobo Antunes e Contos da Sétima Esfera, de Mário de Carvalho.

A escrita de Sérgio Matos Ferreira é vibrátil, sensorial, dominada por laivos poéticos, tem uma arquitetura afim do novo romance, trata-se de uma sequência de textos encadeados, mas encontramos outras referências na obra como o surrealismo, o expressionismo e o construtivismo. Isto para significar que há uma inegável pesquisa laboratorial, hoje completamente datada e fora de uso. Procura exemplificar:
“Bissau, miscelânea de idiomas a saltitar e de carne saturada do protecionismo, saboreava o andar quente da mulher, destapava o homem a amarrotar o tempo encostado à maresia, rasgava o sorriso manchado do puto meio nu, a correr pelo chão amarelo com tiras de barro, esburacado, solto pelo vento húmido que borrifava as mudanças e ameaçava os músculos baratos na arquitetura pesada, colonial, enquadrada por ruas adobadas de saibro, cortadas em ângulos de fraco recorte ou espalhadas em tímidas películas de alcatrão. A avenida principal, larga, arejada, símbolo da presença portuguesa com o Palácio do Governador, escorregava de cafés sufocados de militares a devorar a sede, vendia distrações empacotadas em filmes pensados, medidos, tragados num cinema de idade insuspeita. Trituravam-se algumas ideias retrógradas auxiliadas no ambiente fresco, requintado, caro do melhor restaurante”.

O destino do artilheiro foi inicialmente Buruntuma, partiu de Nova Lamego e fez a quilometragem passando por Piche e Camajabá. Vai situar o espaço da sua primeira morada de combate:
“Cavalgando para poente, nascia a porta de armas, marco parado no tempo, ferida aberta na nossa imaginação. Nadando para Norte ou remando para Sul, espelho direto da mesma intenção, arame torcido para torcer a vida, espaço partido no intervalo da morte para conter os assaltos de África…"

Contempla o duche, descreve o abrigo, a vida na messe, os jogos de cartas, solta-se o jargão da caserna, não se esquecem os assaltos constantes dos mosquitos e a ansiedade pela chegada do fogo inimigo, como observa:
“Quando a tarde estava lançada e o sopro morno tateava as nossas emoções, o PAIGC penava e muito bem bater a zona com os potentosos morteiros 120 e 82 mm, ou dar um ar da sua graça mostrando a eficácia do canhão 85 mm”.

Deu aulas regimentais da primeira à quarta classe aos africanos que pertenciam ao pelotão. Não esquece o rebentamento de minas, as informações que circulam entre aquele ponto ermo separado por uma bolanha da República da Guiné Conacri. De Buruntuma segue para Dara, nova escala. Daqui ouvem-se os ataques a Canquelifá e Copá. Mais tarde, dão-lhe como destino Mansabá. E um dia chega o 25 de Abril, segue-se Bissau e um transporte aéreo para Lisboa. Foi aquela guerra que lhe descascou a pele, daí o sensorial de toda esta prosa poética, o retorcer e quase apedrejar as palavras, a cuidada escolha que faz em posicionar-se como observador, o vestir a farda do anti-herói, e o seu regresso à procura de apaziguamento, como ele desenha a sua chegada a casa:
“Fechei a porta, tirei a mala tuberculosa do porta-bagagens, subi nervosamente as escadas do prédio, desenrolhei as chaves e respirei as paredes numa só golfada. Liguei para a companheira, não estava, sentei-me no quarto e repousei a vista na janela, quadro aberto na recordação a salpicar cones de luz ainda frescos que estalavam nos ouvidos e saltavam para a minha frente em movimentos de som e imagens de cor”.

É a procura do repouso do combatente, a memória precisa de ganhar alguma distância, a literatura virá depois. Tomou-se esta escrita de Sérgio Matos Ferreira como um anúncio de inovação literária. Não foi o que aconteceu, a porta que abriu este experimentalismo cedo se fechou. Há limites para a prosa poética e acontece que naquela década de 1980 parturejavam-se obras de inolvidável interesse, assinadas por Cristóvão de Aguiar, Álamo de Oliveira e José Brás, referências obrigatórias da literatura da guerra da Guiné. Nestas coisas da escrita, há uma regra implacável em que o que promete ser novo se torna em pouco tempo num irremediável tecido velho e imprestável. Li e reli este “O descascar da pele” e só encontrei um processo literário fora do mundo.

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Poste anterior de 2 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16439: Notas de leitura (875): Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 2 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16441: Notas de leitura (874): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte IX: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (V): Finalmente o regresso a casa, depois do pesadelo do Fiofioli, na margem direita do Rio Corubal... Este homem, hoje professor universitário (?), tem histórias para contar aos netos...

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16439: Notas de leitura (875): Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2016:

Queridos amigos,
O prazer da descoberta de imagens preciosas e uma unidade militar que permaneceu na Guiné entre 1959 e 1961 não ilude a revolta de ver estas imagens históricas fora do seu lugar apropriado, o Arquivo Histórico Militar, é para lá que irão, espero que me ajudei a descobrir que unidade militar foi esta, o fotógrafo, porventura comandante de companhia deixou-nos imagens de truz, posso afiançar que as dezenas e dezenas de fotografias que ficaram para vender mereciam um bom recato, um espaço que recolha, preserve e permita a investigação da história militar. E ver como estavam equipados os militares de Antanho, onde se sediava o CIM, como cresceram os equipamentos da messe de Santa Luzia. Mas as surpresas desse dia não ficaram por aqui. Eu depois conto.

Um abraço do
Mário


Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (1)

Beja Santos

Entro habitualmente na Feira da Ladra junto ao Hospital da Marinha, o propósito é vasculhar os trastes que o Nuno trouxe de vários espólios em móveis, bugigangas e livros; conversar e por vezes comprar roupas de cama à D. Ercília, sempre de largo chapéu de palha na cabeça, sentada à volta dos seus haveres numa pose de rainha Ginga, subo depois para uma banca onde estão expostos mapas, relicários e centenas de fotografias. Foi aí que me saiu a sorte grande do dia, a vendedora alertou-me: “Tem para aí mais de uma centena de fotografias da Guiné”. Era inteiramente verdade. Material inacreditável, belas imagens tiradas com uma boa máquina, sempre legendadas, e com trabalho de revelação da Instanta, que foi casa de prestígio. Eram centenas, adquiri nove, mas primeiro deliciei-me a vasculhar a matéria-prima existente. E a conjeturar. Deve tratar-se de uma unidade militar que por ali andou entre 1959 e 1961. Há imagens da chegada a Lisboa, a bordo do Ana Mafalda. A letra é cuidada, aqui e acolá referem-se nomes de alferes. É bem possível que o possuidor deste valioso espólio fosse o comandante de companhia, espólio que deve ter deixado indiferentes os herdeiros, porventura desconhecedores de que existe um Arquivo Histórico Militar. Aqui vos deixo as imagens:

Bissau, 28 de Junho, 1960, vista do edifício dos quartos de oficiais da messe de Santa Luzia

Bissau, 15 de Agosto, 1960, juramento de bandeira, demonstração do CIM, Alferes Vigário num perfeito salto mortal para a lona

Guiné, 23 de Dezembro, 1960, dois soldados a desfazerem um monte de bagabaga que já está com metade da altura; a terra é para preparar o presépio

Rio Cacheu (Barro), 5 de Janeiro, 1961, canoa com indígenas junto da jangada

Rio Cacheu (Barro), 5 de Janeiro, 1961, soldado navegando numa canoa

Bissorã, 5 de Janeiro, 1961, junto do monumento ao Governador Serrão, dois fulas montados em burros, animais estes que abundam nesta região

Bissau, 15 de Janeiro, 1961, início das obras para a construção de mais um edifício para quartos destinados a oficiais sem família, junto da messe

Praia de Varela, 18 de Fevereiro, 1961, quatro rapazes Felupes e o alferes miliciano Lourenço

Praia de Varela, 18 de Fevereiro, 1961, vista dos balneários da praia, os quais têm chuveiro, o que não se espera ao ver-se o seu teto de palha

O regateio deste punhado de relíquias foi relativamente duro, a vendedeira apercebeu-se da minha comoção, jogou com ela. Subo a rampa da feira em fúria, como é possível as pessoas desembaraçarem-se destas imagens históricas para receber uma tuta-e-meia? A meio da ladeira está plantado, frente ao velho Casão, o senhor Manel, vendedor de livros e trastes, de humor instável, num repente grita: “Tudo a 50 cêntimos!” e pode-se comprar um legítimo e intacto bule inglês ou uma caterva de bons livros, mas pode igualmente mostrar-se patibular e sentenciar: “Os livros são a 2 euros, quem não quer desampare-me a loja!”. Tinha aqui surpresas à espera, encontrei um livro que vem referido em “Os anos da guerra”, de João de Melo, bem como um panfleto grosseiro assinado por uma senhora que entrou há pouco na Academia Brasileira de Letras e por prudência não refere na sua vasta bibliografia o que escreveu sobre a Guiné-Bissau. Eu depois conto.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16420: Notas de leitura (874): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VIII: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (IV): "Os guineenses são muito resistentes...Numa ocasião, uma bomba caiu perto de uma mulher e feriu-a no abdómen... Eu devia abrir-lhe o abdómen pois tinha peritonite. Coloquei-lhe anestesia local e, quando lhe ia dar a geral, um avião largou outra bomba que caiu perto. A mulher levantou-se, com a ferida meio aberta, e fugiu. Não a vi mais. Depois disseram-me que a tinham localizado, já morta, a cerca de quatro quilómetros dali."

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16352: Notas de leitura (864): "África Misteriosa, Crónicas de viagem", de Julião Quintinha, Editora Portugal Ultramar, 1928 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Li Mário Domingues às carradas na juventude. O pretexto era a história de Portugal, Mário Domingues constava do acervo da Biblioteca Municipal das Galveias, no Largo do Campo Pequeno, ali passava as tardes, sobretudo nas férias. E chegava a casa e o Mário Domingues era motivo de conversa, a propósito do Infante Dom Henrique ou do Marquês de Pombal, Domingues escrevia compulsivamente. Só muito mais tarde soube que ele escrevera mais de uma centena de livrinhos de aventuras extraordinárias com espiões e faroeste à mistura. Ora Domingues, fiquei a saber, era amigo de Julião Quintinha e este ofereceu-lhe África Misteriosa onde falou da Guiné, talvez o primeiro relato depois da pacificação.
Fica tudo explicado o que me levou hoje a recordá-los, e o pretexto foi a Guiné.

Um abraço do
Mário


Julião Quintinha, a Guiné e Mário Domingues

Beja Santos

Encontrei na Feira da Ladra "África Misteriosa, Crónicas de viagem", de Julião Quintinha, Editora Portugal Ultramar, 1928. Não é a primeira vez que falamos aqui de Julião Quintinha e até já se fez recensão desta “África Misteriosa” que lhe fez receber o Prémio da Literatura Colonial de 1928 da Agência Geral das Colónias. Para surpresa de muitos, a capa é de Bernardo Marques, um artista modernista então em fase ascendente e que marcou profundamente o design gráfico português até à década de 1960. Convém recapitular que a escrita de Quintinha era muito impressiva, lúbrica, o olhar penetrante do repórter é uma constante das suas crónicas. Quando ele se despede da Guiné descreve assim os Bijagós: “Chegam notícias de uma pequena rebelião nalgumas ilhas do arquipélago dos Bijagós. Uma questão de impostos prontamente debelada. Do arquipélago, além de Bolama, fazem parte as ilhas de Canhambaque, Bubaque, Agó Pequeno, Galinhas, Sogá, Eguba, Agó Grande, Orango, Uracene, Uno, Umbocomo, Caraxa, Caravela, Ponta, Maio, João Vieira e Formosa. E dizem-me que é interessante país, ainda bastante em, estado primitivo, onde há grande riqueza de palmares, coconote e algumas tentativas de industrialização europeia. Estes Bijagós veneram uma rainha, chamada Pampa, servida por um ministro Bufo; as mulheres usam saias de folhas de árvore e, quando virgens, cobrem a cabeça de barro; os homens têm o encanto dos chapéus velhos, e quase nus cobrem-se apenas com uma pequena tanga de coiro. Impossível visitar essas terras de conhecer a sua gente feliz. O navio vai largar. Pela última vez vejo Bolama à luz dos relâmpagos de uma grande trovoada. Dentro em poucas horas, a Guiné será no meu roteiro mais uma saudade…”.
Viajou pela Guiné entusiasmado mas nem sempre bem informado: inventou doze etnias, que a população andaria num milhão de habitantes… E desabafa perante tanta miséria e falta de tudo: “Só há pouco começamos a cumprir a nossa missão colonizadora. Nada fizemos nestes cinco séculos de ocupação”.
Fala da desordem, das doenças, da falta de dinheiro e da administração. É um relato a que não podemos ficar insensíveis, será mesmo primeiro depoimento depois da pacificação operada por Teixeira Pinto.

Mas a que propósito é que estamos a falar do que já foi falado sobre este livro de Julião Quintinha? É que este exemplar encontrado na Feira da Ladra tem uma dedicatória para Mário Domingues, um escritor que me fez muita companhia na juventude. Mário Domingues (1899-1977) foi uma figura apaixonante. Inventou aventuras extraordinárias com os heróis Anton Ogareff e Billy Keller, os autores seriam Henry Dalton e Philip Gray. Acontece que estes autores não existiam, o autor era Mário Domingues, um talentoso escritor são-tomense que escreveu às carradas de livros históricos: sobre Inês de Castro na vida de D. Pedro, a vida do Condestável, o Infante Dom Henrique, D. João II, D. Manuel I, o Padre António Vieira, Bocage, Fernão Mendes Pinto, Liberais e Absolutistas… É um nunca mais acabar de relatos históricos numa escrita verdadeiramente compulsiva. Foi também crítico de pintura, onde exaltou Almada Negreiros, Eduardo Viana, António Soares e Jorge Barradas. Fenómeno único para o seu tempo, decidiu viver só da escrita, e daí mais de uma centena de romances policiais e de aventuras extraordinárias.

E a ligação fica feita pelo mesmo Bernardo Marques que o desenhou.

A Guiné é capaz de abrir a boceta de Pandora a muitos mistérios e surpreender-nos como Julião Quintinha nos trouxe até Mário Domingues, oriundo também de África, e um espantoso plumitivo, injustamente esquecido.


Julião Quintinha num desenho de Bernardo Marques
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16345: Notas de leitura (862): Os Vampiros, BD de Filipe de Melo e Juan Cavia, Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16284: Nota de leitura (855): Feira da Ladra, 2 de Julho de 2016: um documento raríssimo e um livro excecional sobre a Lisboa africana (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Julho de 2016:

Queridos amigos,
A Feira da Ladra é um ponto de partida para certo tipo de escavações e de encontros surpreendentes, com papéis insuspeitáveis, caso desta edição do GADCG, que demorei a saber sobre a sua efemeridade na clandestinidade e também a "Lisboa africana" com belíssimas fotografias de Elza Rocha, também autora de textos com o escritor José Eduardo Agualusa e o jornalista Fernando Semedo.
Como já lá vão 23 anos sobre esta publicação, bom seria que um editor se afoitasse a apoiar um projeto da grande Lisboa africana do nosso tempo, com outra gente, outras situações, a despeito de muitos Manjacos em S. João do Estoril e Fulas em Chelas J e na Reboleira.

Um abraço do
Mário


Feira da Ladra, 2 de Julho de 2016: um documento raríssimo e um livro excecional sobre a Lisboa africana

Beja Santos

Mal chegado à loja de Eduardo Martinho, um camarada da Guiné, recebeu-me este especialista em livros com interjeições acaloradas: “O que eu tenho aqui para si, veja as surpresas que o esperam!” Com os mesmíssimos cuidados com que usaria para me mostrar uma carta manuscrita inédita do Rei D. Carlos para João Franco, tirou de uma gaveta um exemplar um tanto puído do discurso pronunciado por Aristides Pereira no Boé, em 23 de Setembro de 1973, texto passado ao stencil, edição do GADCG – Grupo da Ação Democrática de Guiné e Cabo Verde, que era constituído essencialmente por estudantes ligados ao PAIGC, e que depois se dissolveram. O que neste documento se publica é exclusivamente o discurso de Aristides Pereira, todo ele centrado na glorificação de Amílcar Cabral e a sua obra, as etapas da luta de libertação, o reconhecimento internacional, a unidade do PAIGC, e a tal propósito o novo secretário-geral do PAIGC vai citando abundantemente Amílcar Cabral. Vivendo-se um período conturbado a seguir ao assassinato de Amílcar Cabral e depois de operações e atos militares que tinham instalado uma maior confiança no PAIGC, pairava no interior da liderança e nas fileiras um elevado grau de tensão em que o sentido da unidade já carecia de sentido. Daí as repetidas alusões de Aristides Pereira ao papel da unidade na trajetória ideológica de Amílcar Cabral. Daí o seu discurso exaltar, perto do seu termo, “Glória eterna ao camarada Amílcar Cabral, militante n.º 1 do nosso Partido que, com o seu patriotismo e a sua clarividência revolucionária, a sua capacidade e a sua inteligência, deu toda a sua vida pela libertação do nosso povo, transformando-o no obreiro principal de todas as nossas vitórias e de todos os nossos empreendimentos. Ele está aqui reunido connosco, nos nossos espíritos, nas nossas cabeças e nos nossos corações”.

O documento não traz nenhum aporte ao que já se sabia ter acontecido nesse dia na região do Boé, mas é uma peça de estimação para os colecionadores.



“Lisboa africana”, por Elza Rocha, José Eduardo Agualusa e Fernando Semedo, Edições Asa, 1993, é um belíssimo livro e onde a Guiné tem o justificado destaque. Logo na abertura:
“Quem passar pelo Rossio encontra todos os dias grupos de africanos em conversa tranquila. Observando com cuidado, percebe-se que estes grupos não são idênticos.

Em frente da Pastelaria Suíça, junto à boca do Metro, concentram-se jovens de pele muito escura. Falam entre si numa linguagem clara e calorosa – onde é possível adivinhar o sabor de antigas palavras portugueses – e riem alto, com gestos largos e espontâneos. São guineenses. Mais adiante, debaixo das arcadas do teatro D.ª Maria II um grupo sonolento de velhos guineenses, muitos deles usando os tradicionais barretes de lã com que Amílcar Cabral se deixou tratar para a posteridade, conspiram em surdina contra o regime de Nino Vieira. Num quiosque próximo, é possível comprar o jornal Corubal, do movimento Bafatá”.


São igualmente apresentado povos dos outros PALOP, faz-se uma sinopse da presença africana em Lisboa. Mas adiante fala-se em guerreiros Fulas, veio uma larga referência àqueles que tiveram que fugir por terem combatido nas fileiras portuguesas, com destaque para os ex-comandos. Segue-se uma referência aos Manjacos, como se segue: 

"O Fim do Mundo, em S. João do Estoril, as Marianas, em Carcavelos, Chelas e Prior Velho, em Lisboa, Quinta do Mocho, em Sacavém, Vale das Amoreiras, na Moita, Vale da Arsena, em Alverca, são os locais de maior concentração populacional de guineenses. Há ainda muitos na Margem Sul, Almada e Setúbal sobretudo. Também repartem quartos em velhas e pobres pensões da zona de Almirante Reis. Os principais núcleos de Manjacos podem encontrar-se no Fim do Mundo, nas Marianas, em Algés e no Prior Velho. Os Manjacos, tal como os Fulas são as subcomunidades mais identificadas. O apelo do gregarismo da comunidade guineense é, sobretudo, visível ao nível da animação. Há duas empresas de espetáculos formadas por guineenses e que apenas produzem festas e convívios para naturais deste país. A primeira foi a Kilimanjaro, que se destacou na organização de festas populares. Depois, apareceu a Tabanca que, às sextas-feiras e domingos, tem alugada a discoteca Bambu para festas quase exclusivamente concorridas por guineenses”. 


Fala-se na Associação Guineense, em Fernando Gomes Ká e da Associação Guineense de Solidariedade Social. Fala-se nos trabalhadores da construção civil nos batuques da noite, nos fados tropicais, na literatura africana, e assim chegamos aos curandeiros. Um deles é guineense, Samba Seidi, na altura com 67 anos. Foi militar português, hoje exerce a função de curandeiro, deixou em Bafatá mulher e nove filhos. Oiçamos a descrição: 

“Tudo se passa no chão do quarto onde dorme, sobre uma esteira pousada ao lado do colchão. Ele senta-se de pernas cruzadas e descalço; o cliente também deve descalçar-se, mas fica sentado numa pequena cadeira de lona. Os elementos utilizados por Samba Seidi na procura de respostas e soluções foram todos trazidos de Bafatá. Serve-se de um grande punhado de pequenos búzios e de um dóli, semente seca e dura, de cor vermelha. Também manipula um rosário de 99 contas. A consulta começa com um conjunto de gestos silenciosos em que o curandeiro deixa cair os búzios e o dóli, afasta uns, pega noutros, entrega alguns ao visitante. O curandeiro sopre a balbucia algumas palavras em tom baixo para os búzios selecionados, até que os pousa de novo no chão; o visitante faz o mesmo. Na forma como eles se dispõe, o curandeiro encontra resposta para tudo; ou, praticamente tudo. Diz ao cliente que tipo de problema é que ele tem, as dificuldades por que está a passar, quais são as perspetivas ou formas de os ultrapassar”.

Este livro foi muito provavelmente um roteiro útil para a Lisboa africana e arredores, com as suas informações sobre restauração, oposições ao PAIGC, ao MPLA e à FRELIMO, temos aqui heróis africanos atuais como Jorge Perestrelo, a quem os autores chamam o Luandino Vieira do relato desportivo, filho, neto e bisneto de angolanos brancos, um relator desportivo que começou o ofício quase por acaso em Sá da Bandeira e que chamou à atenção de Emídio Rangel. Obteve sucesso em Lisboa mas é (ao tempo) um dos muitos angolanos que sonha com o regresso definitivo à terra onde nasceu: “Há sempre aquele apelo; um cancro que nos vai minando, um cancro de saudade. O apelo que só aquela terra tem; um feitiço de conseguir diariamente nos chamar”.

Trata-se porventura de um livro do passado. Mas que belo livro!
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16267: Nota de leitura (854): Os Livros do Povo - A Guiné Portuguesa em 1917, Livraria Profissional, Lisboa (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16256: Nota de leitura (853): Notícias da safra de 18 de Junho na Feira da Ladra (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Junho de 2016:

Queridos amigos,

Se é certo e seguro que gosto de desencantar imagens de combatentes, na procura de que fiquem registadas no mais impressionante álbum fotográfico da guerra da Guiné, que é o nosso blogue, não escondo o desconforto destas fotografias e por vezes correspondência comprada pelos feirantes às famílias dos militares desaparecidos ou rejeitados por uma separação, por exemplo.

Sei que o assunto não tem solução, o Arquivo Histórico Militar tem feito apelos à recolha deste preciosíssimo acervo mas a insensibilidade pesa muito mais.

Naquele sábado gostei muito de me reencontrar com o envelope esverdeado da Agência Militar, foi ali que acabei os meus estudos, guardo as melhores recordações da camaradagem e ainda hoje sinto arrepios quando me lembro que saía da porta principal do Banco de Portugal a segurar um malão de couro com três milhões de contos, uma pistola à cintura, o 1.º Cabo Silva com outra mala e sempre a perguntar-me o que é que devíamos fazer se houvesse assalto à mão armada...

Um abraço do
Mário


Notícias da safra de 18 de Junho na Feira da Ladra

Beja Santos


Ainda não desisti de escrever longamente sobre a minha experiência como oficial na Agência Militar. Todos os dias úteis, tinha como uma das minhas obrigações era entrar num jipe aberto, com uma cobertura de lona, acompanhado por um 1.º Cabo que pegava pelo fuste uma G3, ele que nunca tinha dado um tiro depois da instrução, trazia uma mala de couro e ia até ao Banco de Portugal buscar de mil a três milhões de contos. A Agência era o Banco do Exército, pagava religiosamente as pensões aos familiares dos combatentes que vinham à rua D. Estefânia (é hoje uma igreja com um nome estranhíssimo) desciam uma escada de madeira sobre uma rampa e traziam um subscrito igual a este que encontrei na Feira da Ladra, era sempre esta cor, a importância variava, como é óbvio, de acordo com a patente do militar. Podíamos deixar dois terços na metrópole. Vezes sem conta imaginei-me apanhado num golpe de mão com largos milhões de contos, na rua do Comércio. Estes passeios diários eram também educativos: aprendi a comprar moedas comemorativas e a visitar cambistas; e apercebi-me de que havia um desenlace trágico no nosso sistema financeiro quando a partir do último trimestre de 1973 vi uma autêntica multidão a comprar e vender ações a preços irrealistas junto do Banco Totta & Açores, a polícia bem pretendia afugentar as pessoas, sem resultado. Estavam a vender as ações das empresas que apareceram falidas a seguir ao 25 de Abril.




Dois dos meus “fornecedores” combateram na Guiné. Do Eduardo Martinho, que esteve em Bissorã, e é amigo do nosso confrade Armando Pires, já aqui falei várias vezes. Tudo quanto é revista, mapa, publicação avulsa onde apareça a palavra Guiné, é religiosamente guardado para me surpreender, em situação alguma esqueço esta elevada prova de consideração. E quando não trago na bolsa algo sobre a Guiné é muito capaz de virem estudos sobre Fernando Pessoa ou aparentados.

O outro fornecedor combateu em Encheia, prefere o anonimato, está à espera que a ex-mulher lhe devolva o seu património de combatente, quer pôr tudo por miúdos, aceitou o convite que lhe fiz para falarmos da sua comissão. Compra espólios, o mesmo é dizer que traz tudo aquilo que as famílias não querem, incluindo álbuns de fotografias, peças de vestuário, penicos, tenho visto de tudo. Mostrou-me estas duas fotografias, indignado, para ele estas imagens não são comercializáveis.

José Martins Pereira aparece em pose em Bissau, a data é de 15 de Janeiro de 1965. Escreve no verso: “Zé, Como vês, continuo a estar magro mas da maneira que estou a comer espero engordar dentro em pouco. O edifício que vês ao fundo é o mais importante do quartel-general. É o Estado-Maior, sala de operações. Não tem elevador. A pistola está aqui porque tinha chegado de uma reportagem perto de Bissau e fora de Bissau anda tudo armado”. Assina com garatujado.

Temos agora a última fotografia, alguém que se assina “Belo”. No verso escreve-se Bigene e diz-se que é uma imagem do descanso da porrada. E solta-se um palavrão.



Trata-se de uma edição da Afrontamento, Setembro de 1974, trata-se da reedição de uma publicação clandestina policopiada. Diz-se na nota introdutória: compilação de textos significativos, procurando dar uma visão de conjunto sobre o colonialismo português e as guerras coloniais, com o intuito de fornecer um instrumento de trabalha para a luta anticolonial.

Luís Moita e Nuno Teotónio Pereira são dois dos editores, o que faz supor que era uma açã clandestina os católicos de vanguarda. O leitor encontra os seguintes dossiês: a expansão colonial portuguesa com o tratamento do comércio ao longo da costa, a partilha de África e a ocupação militar e um documento sobre a evolução da escravatura aos trabalhos forçados; o segundo dossiê tem a ver com dados coligidos pelos autores sobre trabalho forçado, dados sobre a saúde na Guiné nos anos 1950 e a saúde em Angola nos anos 1960, o ensino e a cultura, o racismo, o papel da igreja católica e o sistema económico; o terceiro caderno, seguramente o maior, tem a ver com a luta pela independência em Angola, Guiné e Moçambique; o quarto prende-se com solidariedade em torno das lutas de libertação, o quinto é dedicado às vítimas de guerra, o sexto perspetiva a luta nos anos seguintes e o sétimo documento comporta anexos, desde mapa cronológico à bibliografia.

Dá relevo às fases da ocupação portuguesa na Guiné entre 1878 e 1936, cita abundantemente passos de livros de Basil Davidson, Gérard Chaliand e relatórios de Amílcar Cabral. O livro tem aspetos muito melindrosos na medida em que apresenta nomes de militares e polícias de segurança política, designadamente em Angola, associados a crimes gravíssimos, trata-se da citação de um documento clandestino que teria sido elaborado por estudantes portugueses. O mapa cronológico dos acontecimentos ligados à guerra parece bem elaborado.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16241: Nota de leitura (852): Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15465: Antropologia (23): “Portugal Romântico”, com texto de Frederic P. Marjay, edição de 1955 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2015:

Queridos amigos,
Este livro tem consigo uma chave explicativa para a imagem que se pretendia dar ao estrangeiro sobre o Portugal dos meados da década de 1950: os tesouros da História, a ordem por toda a parte, a doce harmonia entre os tesouros preservados dos nossos ancestrais e a construção de infraestruturas modernas.
Um país com espécimenes incontornáveis da arte românica e gótica, um país com moinhos, fiadeiras, com fontes e tranquilidade. O país de Aljubarrota e da viagem de Vasco da Gama, um país virado para o mar, com belíssima praias, com excelente vinho, sargaceiros, cruzeiros, com beatitudes da natureza, campinos, o Navio-Escola Sagres, a cal das casas alentejanas, as amendoeiras em flor, a epopeia das pescas.
Este o Portugal romântico, esvaído nas brumas da memória, com fotografias impressionantes, a rivalizar, e nalguns casos a ultrapassar o que que cá vieram fazer génios da fotografia como Sir Cecil Beaton e Henri Cartier Besson.

Um abraço do
Mário


O Portugal fabuloso da década de 1950

Beja Santos

Encontrar na Feira da Ladra, com preço altamente abordável, que nada tem a ver com os preços a que a obra se vende nos leilões, o “Portugal Romântico”, com texto de Frederic P. Marjay, edição de 1955, foi dia em que se bateu com a biqueira do sapato no chão e saiu pepita de ouro. Frederic P. Marjay, basta ir ao Google, escreveu que se fartou obras de bom grafismo e de apresentação de Portugal sobre múltiplas facetas. Naquele ano, resolveu olhar para Portugal, para aquela gente ordenada, sorridente, amante da casa portuguesa com certeza, o Portugal marítimo, das igrejas românicas do Norte, do Mosteiro da Batalha, do Mosteiro dos Jerónimos, de uma rapariga alentejana fotografada em estúdio, do tempo em havia pesca do atum no Algarve e o corridinho era uma delicadeza etnográfica só para o mercado interno. Um Portugal fabuloso, de gente crente, pobrete mas alegrete.


Marjay, diga-se em abono da verdade, era exigentíssimo na escolha das imagens, iremos encontrar neste álbum com texto em inglês e em português fotografias, entre outros, de Artur Pastor, Domingues Alvão, Amadeu Ferrari, Otto Auer Júnior, Horácio Novais e António Rosa Casaco.


Que será que, em Portugal, nos atrai com tal intensidade, desde o primeiro instante? Temos o tempo histórico, o país que desabrochou a partir do Condado Portucalense, um rei esforçado e aí o autor lançou-se desbragadamente na fábula, entrou na lenda da Batalha de Ourique, ora vejam: “Livre em relação aos castelhanos, D. Afonso Henriques lança-se contra os sarracenos e infligi-lhes a derrota de Ourique, a mais bela vitória alcançada pelos cristãos contra os infiéis. Nessa batalha, 13 mil portugueses derrubaram 400 mil árabes. Cinco reis mouros foram vencidos ao mesmo tempo. Foi no Campo de Ourique que Cristo apareceu, segundo a lenda, a D. Afonso Henriques, prometendo-lhe a derrota dos mouros e a sua proteção a Portugal. Desde então, a pátria portuguesa ficou sob a proteção de Cristo”.


As margens do Douro, a linda ponte sobre o Rio Lima, a Igreja de Rates, o Mosteiro de S. Pedro de Roriz, isto é o Norte, onde as mulheres de Mogadouro fiam e os Pauliteiros de Miranda revelam o fascínio pela sua dança artística e original. Cá mais a baixo, ali bem perto de Peniche, há esta fortaleza que pouco serviço bélico prestou mas que hoje é um encanto, encastrada em paisagem protegida, garanto-vos que só para chegar aqui vale a pena esperar pelo mar calmo e contemplar património construído dentro de um exótico património natural.


Estes livros eram para ser comprados por turistas com posses, eram distribuídos nos centros do turismo de Portugal espalhados por bastantes países, e eram oferecidos pelo SNI e departamentos oficiais aos convidados. Todas estas imagens são marcantes, intrigam ou assombram.


O mar é destino de Portugal, somos um país de marinheiros, o nosso mar conhece ondas gigantescas, inventámos a caravela, ou quase, e fomos pelo mundo fora. E escreve o autor que os portugueses venceram todas as violências das águas infinitas. A sua audácia, a sua coragem, o seu heroísmo, dominaram todas as dificuldades que se lhes opuseram. Estamos ligados ao Atlântico, é este o nosso destino e a nossa sorte. E temos o peixe, que é do melhor, já fomos grandes consumidores dele, da costa Norte, passando por Sesimbra e quase todo o Algarve, o peixe foi riqueza e deu indústria grada, a das conservas, durante as guerras a nossa sardinha enlatada matou muita fome, consolou muito estômago em casas particulares, em submarinos e nas frentes de combate.


Há os belos templos e há essa profunda religiosidade. O autor lembra-nos Fátima como resposta direta ao ateísmo do século XX. E porque o livro se destina a turistas deixa-se uma informação pertinente: “Pelo menos metade dos visitantes pertence à classe média de todo o mundo. Senhoras da sociedade sueca e norueguesa, engenheiros alemães, sábios franceses, arquitetos americanos, médicos de toda a parte, até professores universitários lá vão. Cada um deles tem o seu desgosto, a sua dor, a sua preocupação ou a sua doença, talvez incurável. Vão ali orar e arrepender-se”.


Há os castelos, as raparigas castiças, as pontes romanas e medievais, as serras, as barcas, os mosteiros, os acontecimentos gloriosos como Aljubarrota que deu o Mosteiro da Batalha, há a religiosidade e há o homem português, do antes quebrar que torcer, o rosto de centúrias, o protótipo do português capaz de grandes feitos, todo ele identidade da terra e do mar. Todos estes livros visavam um entrelaçamento entre os pontos obrigatórios do turismo, a riqueza folclórica e as figuras típicas, imemoriais, como acontece aqui, um rosto tirado de um romance de Camilo.


As gentes que habitam para lá das fragas, que pastoreiam nas penedias e nos lameiros também fazem parte do Portugal romântico imaginado por Frederic Marjay. Não é só mar que é distinto de Portugal, o mar do Infante D. Henrique, de Vasco da Gama, nem a história começou com o Castelo de S. Jorge, o país é rico porque é compósito e nesta década de 1950 muito mais de metade da população vive dependente desta agricultura humilde. Para lá desta imagem, neste preciso instante, estes camponeses começam a sair a salto, o primeiro destino é França, mais tarde a Alemanha, a Suíça, o Luxemburgo e outras irradiações. O que aqui se fixa é que os portugueses trabalham e têm uma moral sólida como o granito das casas, são pastores exímios.


Um dos triunfos de António Ferro consistiu na divulgação do folclore, genuíno ou processado. Recordo um episódio que o meu padrinho viveu em Londres, em 1937. Pediram-lhe na Casa de Portugal para acompanhar um grupo de Pauliteiros, salvo erro o das Duas Igrejas, que vinham participar no Royal Albert Hall no Festival Mundial de Folclore. O grupo deu brado, saiu medalhado. E o meu padrinho contava sempre o que era andar no metro de Londres com aqueles pauliteiros com meias de renda, botifarras, chapéu florido, bigodaças e um garrafão de vinho, foi um espetáculo irresistível. Vendemos a imagem dos nazarenos, do corridinho algarvio, das chulas do Alto Minho e os mirandeses. O cante alentejano ficou para muito mais tarde.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de março de 2013 Guiné 63/74 - P11251: Antropologia (22): O Korá: Elementos essenciais para a sua compreensão (Braima Galissá / Mário Beja Santos)

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15257: Notas de leitura (767): “Como Deus me guardou”, por Agostinho Soares dos Santos, Edição de autor, Porto, 1990 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
É a versatilidade de abordagens que enriquece a nossa literatura de guerra, com tantas peças na penumbra.
A mexericar num caixote lá na Feira da Ladra deparou-se um livrinho com capa insólita, pus-me a remexer, lá dentro vinha uma folha falando de livros bíblicos de ambos os testamentos. Sentei-me a ler o que nunca me fora dado ler, o testemunho de um cristão evangélico, tudo escrito com enorme simplicidade e indiscutível sinceridade, uma escrita amena onde a glorificação a Deus é permanente. A esvoaçar para o Divino fora me dado a conhecer o testemunho de alguns capelões, mas nada, nem por sombras, com o vigor desta fé.

Um abraço do
Mário


Como Deus me guardou:
O testemunho de um cristão evangélico na guerra colonial

Beja Santos

Isto de vasculhar sem desânimo nos caixotes da Feira da Ladra acarreta sempre resultados imprevistos, e alguns dão que pensar. É o caso de “Como Deus me guardou”, por Agostinho Soares dos Santos, Edição de autor, Porto, 1990. O autor tem obra feita, indica nesta edição de 1990 sete títulos: “Bíblia, ciência e vida”; “Maravilhas do Criador”; “Ufologia à luz da Bíblia”; “Tudo nos mostra que Deus existe”; “Onde está, evolução a tua ciência?”; “Falsas ciências do nosso tempo”; “Profecias, acontecimentos probabilidades”; “Nuclear apocalíptico”. O autor explica-se: “Este livro é um testemunho da misericórdia de Deus para comigo durante a guerra colonial”. 
Dá o seu testemunho para glorificar o nome do Senhor. É poeta e verseja assim:
“Ó Angola, negro diamante multifacetado
Como deves ser feliz e bela em tempo de bonança
Quisera eu conhecer-te noutras épocas diferentes
Mas entregaram-me uma arma automática FN
E uma seção de morteiros 81!”.

Embarcou em 24 de Julho de 1965. De imediato escreve: “Já li alguns capítulos da Bíblia e acabei de escrever à minha namorada”. E no dia seguinte, desabafa: “Que loucura! Um tempo maravilhoso e os homens a pensarem a matarem-se uns aos outros! Não foi para isso que Deus criou o ser humano”. Agostinho é furriel num pelotão de morteiros, viaja enfastiado e a 28 esclarece os seus leitores: “Hoje passei em revista a minha despedida na Igreja Evangélica de Picoutos. O irmão André Artur da Rocha era o servo escalado para o culto em causa e resolveu chamar-me. Durante a reunião, os irmãos estiveram a animar-me. Alguém leu o Salmo 91, onde diz que mil cairão ao teu lado e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido. Glória a Deus por tudo!”. Já se adaptou à rotina. Converteu-se em 9 de Dezembro de 1962, aos 19 anos de idade. Foi mobilizado para Angola em Abril de 1965. E assim chegam frente a Luanda, cidade a quem ele dedica uma ode. Desembarcam e vão para o Grafanil. Já sabe o itinerário: Caxito, Piri, Úcua e Vista Alegre. Vai descrevendo as povoações por onde passaram. E assim chegam à parada de Zemba, a sua futura casa. Está aqui o batalhão 770, o Agostinho faz parte do Pelotão Independente de Morteiros n.º 1021. Em Zemba escreve à namorada: “Saí hoje para dar proteção aos negros sapadores que efetuaram a colheita do café numa fazenda abandonada desde 1961”. Em 23 de Agosto dá a saber à sua Cindinha que vai para a sua primeira operação, escolta a artilharia, escreve. E temos a primeira nota do seu comportamento face à crueldade: “Em Mucondo deram-nos dois turras para transportamos até ao Zemba. Havia um soldado que queria cortar a orelha a um deles. À cautela fui dizendo que ninguém tocava nos prisioneiros”. Assisto a um sinistro e depois a outro: “Um soldado ao saltar de uma camioneta bateu com a coronha da arma no chão a qual disparou, matando-o quase instantaneamente. Recentemente, um soldado deu um pontapé numa espingarda que estava pousada no chão e ela disparou também atingindo mortalmente um outro soldado. O autor do chuto ficou afetado psicologicamente, coitado, não voltou a sair para a mata. Anda aqui a trabalhar na messe dos sargentos, quase só se ri e mais nada". De Zemba vão até um lugar próximo do rio Dange. À distância ouvem-se tiros. E em 15 de Outubro este acampamento é atacado. Voltam para Zemba. Refere as caçadas que se realizam nas redondezas e apresenta-nos o soldado “Terrinas”, assim designado por ser comilão, não sabia ler nem escrever, o Agostinho escrevia por vezes as cartas. Numa dessas missivas à mãe, Agostinho teve o devaneio de meter uma bucha dizendo que ele era conhecido por “Terrinas”. A mãe respondeu: “Olha, filho, fartámo-nos de rir! É assim mesmo! Olha pela tua vida, não te importes com o que dizem. Come e segue em diante!”. Agostinho arrependeu-se pela imprudência e cita a Bíblia. Anda por vários destacamentos onde há obras de Engenharia. Não gosta da expressão batismo de fogo e recorda o batismo de Jesus. Assim se passou o Natal e o Ano Novo. Critica as enormes colunas militares: “As picadas serpenteiam em volta das colinas. Às vezes acaba-se por passar bem perto do local onde já se passou anteriormente. É fácil nesses pontos a própria coluna envolver-se em tiroteio”.


Segue para Onzo, destacamento próximo de Nambuangongo, queixa-se dos tiros e dos mosquitos e de situações que podiam ter descambado numa tragédia como aquela companhia que ficara cercada num morro e cuja evacuação foi um verdadeiro ato de heroísmo. Os acidentes de viação sucedem-se, Agostinho é cada vez mais envolvido nas operações apeadas. Chegou a hora do batalhão 770 abandonar Zemba, o Pelotão 1021 fica, Agostinho vem passar férias à metrópole. Em Luanda encontra Levi que conhecera em Mafra, ambos estudavam a Bíblia, Levi pertencia à Igreja dos Irmãos de S. João da Madeira e Arrifana, Agostinho era membro da Assembleia de Deus do Porto. Em férias, foi à inauguração de uma Casa de Oração em Serralves. O regresso é muito doloroso e de Luanda até Zemba é uma verdadeira odisseia. Escreve de Cova das Pacaças, em 17 de Agosto de 1966: “Mais uma vez estamos a dar proteção à Engenharia. Desta vez, é de castigo. Os meus soldados embriagaram-se ontem”. No fim de Agosto escreve à sua amada dizendo que vai para um lugar mais pacífico, Portugália, no Nordeste de Angola, anda a ler o "Quo Vadis". Nova viagem e nova odisseia, rumam para o Grafanil, seguirão pela estrada de Catete, depois o Dundo, depois Nova Lisboa. O comboio prossegue a sua marcha interminável, passam por Silva Porto, finalmente Henrique de Carvalho. É daqui que se inicia a marcha para Portugália em território onde pontificam os interesses da Diamang. Agostinho gosta muito de Portugália, uma pequena vila antigamente conhecida por Chitato, a estrada que dá acesso à vila está ladeada por longos canaviais. Explica o porquê da presença da tropa: “As nossas instalações em Portugália já pertenceram às milícias da Companhia dos Diamantes. A certa altura, a população local exigiu a presença do exército português. Foi-me dito que houve problemas junto à fronteira em determinada altura e um dos elementos das milícias disparou uma rajada de metralhadora para os pneus da única viatura que possuíam. Os civis não queriam tropa daquela”. Agostinho descreve as redondezas, estão perto do Congo. Depois é despachado para Cassanguidi, a 80 quilómetros de Portugália e do Dundo, o pelotão vai repartindo. Mais incidentes, mais mortes. A comissão avança para o fim. Em Luanda descobre uma igreja evangélica. E regressa no paquete Vera Cruz. No regresso, descobre que já existe a ponte Salazar. A família e namorada estão à espera dele no Cais da Rocha do Conde de Óbidos. Em Julho de 1990, concluiu a passagem a limpo das suas memórias: “Deus tem-me dado tudo aquilo que necessito. Tem-me abençoado no lar, no emprego e nos estudos. Em toda a minha estada na guerra colonial eu pude ver a mão de Deus a proteger-me. Aqui neste livro contei somente a verdade, porque só a verdade glorifica o nome do Senhor”.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15241: Notas de leitura (766): "Botânica", por Vasco Araújo, editado pela Sistema Solar, 2014 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14483: Notas de leitura (704): A contestação contra a guerra colonial: A radiografia das universidades em 1971 feita por uma organização ultranacionalista (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Junho de 2014:

Queridos amigos,
A Feira da Ladra é sempre um alfobre de surpresas, ali encontrei um policopiado de 16 páginas da responsabilidade de um grupo ultranacionalista que inventariava a turbulência em meio universitário contra a guerra, dando conta do como e porquê.
Para melhor se entender a atividade desta Frente Nacional Integracionista, recomendo a leitura do documento que envio em pdf em que o investigador Riccardo Marchi nos dá uma panorâmica das direitas radicais em Coimbra até 1974. Só lendo esta documentação é que se pode ficar com a perceção da agitação estudantil e a sua importância para a criação de uma opinião desfavorável à continuação da guerra.

Um abraço do
Mário


A contestação contra a guerra colonial: 
A radiografia das universidades em 1971 feita por uma organização ultranacionalista

Beja Santos

Um investigador social, Riccardo Marchi, vem há anos a estudar a evolução das direitas radicais portuguesas nomeadamente nos anos contíguos aos da guerra que travávamos em África. A nota mais saliente que Marchi assinala é a exacerbação destes movimentos criticando o que eles apelidavam a pusilanimidade do regime de Marcello Caetano para contrariar as campanhas em meio universitário das esquerdas contra essa guerra. Para compreender melhor como as direitas radicais contestaram Marcello Caetano vale a pena ler o artigo de Riccardo Marchi publicado num número da Revista Análise Social, volume XLIII, 2008, intitulado “A Direita Radical na Universidade de Coimbra (1945-1974)”, que se anexa em pdf.(1)

Um feliz acaso levou-me a encontrar um documento produzido em maio de 1971 por uma intitulada Frente Nacionalista Integracionista. Para eles, o pesadelo começara com a vitória do comunismo e das democracias na II Guerra Mundial, surgira um aliado inesperado, os EUA, cujos dirigentes viam na saída dos europeus de África e da Ásia uma excelente oportunidade para encontrar novos mercados. Os outros países abandonavam cobardemente as suas posições em África, escreve a Frente, Portugal, guiado pelo génio político Salazar, mantinha-se indiferente à demagogia das Nações Unidas. Assim se fabricou o terrorismo. A Frente recorda o que dissera o Alferes Robles, por ocasião da manifestação de 27 de agosto de 1963, no Terreiro do Paço: “Nada mais pedimos senão que a retaguarda cumpra também o seu dever, como nós estamos cumprindo o nosso! Esta guerra nunca se perderá em África mas poderia perder-se em Lisboa!”. Alude-se seguidamente à propaganda comunista e como esta se infiltrou no nosso movimento associativo, tal como já acontecera em França, durante a guerra da Argélia.

Referem as campanhas de contestação, ao longo dos anos de 1968 e 1969, em que as faculdades foram inundadas de cartazes contra a guerra do Vietname. Depois, começaram a circular em diversas faculdades panfletos em grande parte emanados da Esquerda Democrática Estudantil, movimento marxista, embora de linha antissoviética, em que a defesa do Ultramar era apresentada como uma guerra destinada a servir os lacaios dos grandes monopólios internacionais. A Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa foi a primeira a tomar a iniciativa de atacar abertamente a guerra, ao afixar, em abril de 1969, no seu jornal de parede um recorte do artigo “Programa do Ministério da Defesa: fechar a universidade e mandar os estudantes para a guerra”.

A campanha eleitoral de 1969 levou à manifestação do movimento associativo, a mesma Faculdade de Ciências afixou um jornal de parede com uma mensagem dirigida por Amílcar Cabral em que incitava a nossa juventude a desertar das fileiras. E vem o remoque: “Durante alguns dias, este documento permaneceu afixado sem que as autoridades académicas o mandassem retirar”. A Frente dá também a saber que a linha maoista estava muito ativa, reconhecendo os movimentos de libertação e apelando ao seu apoio político. É a partir daí que vão proliferar artigos da maior violência contra a defesa do Ultramar. Surge mesmo um panfleto com “exigências da juventude”: fim da guerra; solução pacífica do conflito com a independência dos povos africanos. As faculdades de Medicina e Direito de Lisboa também afixam cartazes contra a guerra. Nova crítica da Frente: “Indiferença das autoridades académicas. O subdiretor da Faculdade de Direito chegou mesmo a afirmar que esse problema não lhe interessava absolutamente nada, tanto mais que não o considerava da sua alçada”.

A cabine da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico transmitia durante as horas das refeições programas subversivos, atacando o colonialismo português. Os estudantes de Direito quiseram realizar em 18 de fevereiro um colóquio “Política Colonial”, orientado por Salgado Zenha, Afonso de Barros e Arnaldo Matos. Comentário da Frente: “Felizmente que nessa ocasião o diretor da Faculdade se mostrou à altura das suas obrigações e proibiu o colóquio”. Em Coimbra, realizou-se em 9 de março, dentro das instalações da Universidade, um colóquio sobre o serviço militar, um dos pontos analisados era o serviço militar como castigo. Acabou por se debater a guerra colonial. No final do colóquio, aprovou-se uma moção que classificava o ministro da Defesa Nacional e o secretário de Estado do Exército como inimigos da Academia.

A frente também está atenta ao que fazem os alunos do ensino secundário, registam um boletim do Liceu Nacional de Gil Vicente e fazem troça dos estudantes liceais nacionalistas: “A vossa comunicação distingue-se das demais pela contestação vigorosa e justa, pela mensagem válida aos corações portugueses de têmpera, que em África defendem o nosso património, regam as florestas a napalm, aquecem as palhotas dos negros com lança-chamas, engordam os corpos com chumbo, desmentindo assim os boatos de que as populações das nossas províncias ultramarinas estão subalimentadas e subdesenvolvidas…”. Também o Instituto Comercial de Lisboa incitava contra a guerra colonial. Preso o estudante Saúl Noronha da Costa, decretou-se greve às aulas, pediu-se a demissão do direito do Instituto, os estudantes fizeram uma manifestação de apoio que decorreu no Chiado e na Baixa.

Em Coimbra, uma multidão de associativos apedrejava quem saia do Teatro Gil Vicente onde nacionalistas e seus simpatizantes assistiam à representação de uma peça de Paul Claudel. A Frente não esconde a sua preocupação com o facto de que a partir de 1970 quase todas as associações propõem que se reflita sobre a libertação do Ultramar. O grupo cénico do Instituto Superior Técnico pretendia mesmo fazer um espetáculo sobre o colonialismo. Na Faculdade de Letras de Lisboa era distribuída a letra da balada de Manuel Alegre "Romance de Pedro Soldado", que visava criar na população sentimentos de derrotismo. No anfiteatro I, algumas centenas de estudantes, pouco antes do natal de 1970, discutiram a invasão da República da Guiné, classificando-a como um ato de agressão preparado pelo colonialismo português. Nesse mesmo mês de Dezembro, houve em Coimbra um convívio com Zeca Afonso, gritou-se contra a guerra colonial e aplaudiu-se entusiasticamente um texto de Amílcar Cabral intitulado “A Força das Armas”. E comenta a Frente: “O ambiente atingiu o paroxismo quando dois cabo-verdianos, após entoarem algumas canções nativas, leram uma poesia contra a guerra no Ultramar, tudo isto no meio de estrondosas ovações”.

A Frente explica porque procedeu a este levantamento: para demonstrar o espírito de traição que reina no associativismo estudantil e a necessidade que há de pôr termo a essa atividade bem como à benevolência com que é encarada por quase todas as autoridades académicas. Insistentemente, a Frente refere que as autoridades académicas têm sido negligentes a tomar medidas para que estes pasquins prontamente desaparecessem das paredes dos edifícios que a nação entregou à sua guarda.

Riccardo Marchi tem razão: estes grupos ultranacionalistas estavam ativos e identificavam os focos de contestação que se iam espalhando sobretudo nas universidades de Lisboa e Coimbra. Bom seria conhecer o trabalho destes grupos em 1972, 1973 e 1974. Pelo menos ficaríamos com uma ideia da temperatura da contestação universitária contra a guerra.
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Notas do editor

(1) - O PDF referido pelo nosso camarada Mário Beja Santos vai ser enviado à tertúlia

Vd. último poste da série de 14 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14468: Notas de leitura (703): Sinopse do livro "Guerra na Bolanha", por Francisco Henriques da Silva

segunda-feira, 9 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14337: Notas de leitura (689): A minha querida Aldeia do Cuor! (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2014:

Queridos amigos,

Para quem vivia no regulado do Cuor era obrigatório patrulhar a região da Aldeia do Cuor, que conheci reduzida a imponentes paredes de pedra, dava mesmo para sonhar que tinha havido por ali a capital de um império de ouro ou de caju, tanto fazia. Patrulhava-se toda a margem à procura de sinais de cambança, até perto de Canturé, era a única maneira de saber quando e como os rebeldes procediam a reabastecimento junto dos seus amigos de Mero e Santa Helena.

Sabíamos da sua passagem pelos indícios das vacas, esteiras perdidas, vestígios de sal e tabaco, com mais sorte um carregador de PPSH ou uma granada. Íamos no encalço dos caminhos percorridos, entre Mato Madeira e Chicri. E depois, era montar emboscadas para responder com contra-terror.

Mas a Aldeia do Cuor era um local espantoso, dali se desfrutava, perto da foz do rio Gambiel, de um panorama surpreendente sobre o regulado de Joladu. Gostava de lá voltar, caminhar a partir de Canturé, passar por Gã Gémeos, onde aportava o Sintex, passar por Caranquecunda, onde estacionaram os macuas, em 1908, quando se declarou guerra a Infali Soncó, o régulo rebelde que queria impedir a circulação do Geba.

A minha querida Aldeia do Cuor!

Um abraço do
Mário


A minha querida Aldeia do Cuor!

Beja Santos

Na minha proverbial coscuvilhice na Feira da Ladra, à cata de papelada fora de circulação e que ainda nos possa tocar na razão e coração, encontrei, sem que a emoção pesasse, umas notas sobre explorações zoológicas e história das explorações faunísticas da Guiné portuguesa, uma daquelas obras que se deveu ao período áureo do governador Sarmento Rodrigues. Os temas não são santos do meu culto e penso que no presente só um punhado de estudiosos se interessará em saber que andaram pela Guiné espécies animais como o Gato-de-algália e o Cachorro-de-mango. Pelo menos fiquei a saber que data de 1898 a nomeação de Francisco Newton para fazer a exploração zoológica de Cabo Verde e da Guiné, nova expedição iria realizar-se em 1908. Francisco Newton, de regresso à metrópole, enviou animais para o Jardim Zoológico de Lisboa.

Houve uma missão zoológica que decorreu entre 1945 e 1946, com vastos e importantíssimos resultados, os investigadores ocuparam-se de copépodes, protozoários, crustáceos, insetos, moluscos marinhos, vertebrados, batráquios, repteis, aves e mamíferos, o zoólogo F. Frade rejubila com os resultados alcançados. Vou lendo toda esta exaltação num estado de arrefecimento total. Eis, porém, que vêm estampas a seguir, e aí o sangue alcançou alguma fervura com a bela fotografia do Canal do Impernal, em baixa-mar. Folheei outras imagens, a estrada para Mansoa, a paisagem da Ilha de Bolama, aves de rapina em Bafatá, Rápidos de Cusselinta, no rio Corubal, uma das grandes atrações que tive o privilégio de ver, volto a página e fico estarrecido, não precisei de ver a legenda nem aquelas embarcações, é a Aldeia do Cuor, uma das fronteiras do regulado, do lado de lá é extensa bolanha de Santa Helena, com povoações como Mero, onde os guerrilheiros de Madina e Belel se vinham abastecer. 

Conheci aquele palmar como o fotógrafo, na década de 1940, o fixou. Com a guerra, estas embarcações desapareceram. Continua por resolver o mistério da importância comercial da Aldeia do Cuor, houve quem dissesse que fora aqui que se procurara instalar o comércio de Bambadinca, tais e tantas eram as potencialidades do Gambiel. O mistério fica por resolver, sobra agora esta fotografia de tempos desaparecidos onde até podemos ver em primeiro plano uma chapa de bidão, parece uma relíquia dos nossos tempos. E ponto final para a magra mas emotiva colheita de uma manhã de sábado na Feira da Ladra.


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Nota do editor

Vd. último poste da série de 6 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14326: Notas de leitura (687): “O Legado de Nhô Filili”, por Luís Urgais, Oficina do Livro, 2012 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14153: Recordações de uma ida à Feira da Ladra: 10 de Junho (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
Foi escassa a safra, ainda encontrei uma revista ultranacionalista chamada Resistir editada em francês para os nostálgicos da França de Vichy e que trazia mera propaganda turística.
Achei curioso este princípio do federalismo africano do final dos anos de 1950 em que Amílcar Cabral encontrou as raízes par a unidade Guiné-Cabo Verde, é esta uma das interpretações possíveis para aquela associação que se sabia de antemão condenado ao malogro.
Foram várias as tentativas de associações de países, como é sabido, tirando a Tanzânia, tudo caiu no charco. E Ahmed Sékou Turé foi uma peça essencial no apoio ao PAIGC, é dado que ninguém ignora.

Um abraço do
Mário


No rescaldo de uma ida à Feira da Ladra, em 10 de Janeiro

Beja Santos

Naquela manhã ensoleirada, sem uma aragem na pouca friagem daquela arquitetura maciça onde não chega o sol, numa das faces no mosteiro de S. Vicente, iniciei as hostilidades por uma incursão a fotografias e papéis avulsos. Nada de deslumbrante, a não ser uma fotografia onde Sequeira e Costa está ao piano acompanhado o violinista Vasco Barbosa, os dois de casaca e bem compenetrados no seu míster, foram companheiros de muita música que tenha ouvido ao longo da vida, ainda há três anos me embeveci com Sequeira Costa, já não é criança, num concerto portentoso no Palácio de Queluz, no festival de música de Sintra.

Só mais à frente é que me chegou a Guiné e colaterais. Primeiro, uma radiografia do ensino, saúde e assistência e atividade missionária da Guiné ao nível de 1968, dados informativos da Agência Geral do Ultramar. Não vale a pena reproduzir as fotografias, todas elas são sobejamente conhecidas, desde o Museu e Biblioteca de Bissau até à Sé Catedral. Ficamos a saber que em 1883 havia já professores oficiais em Bolama, Bissau, Cacheu, Buba, Geba e Farim, e que em 1890 foi publicado o primeiro Regulamento Escolar da Província, tornando-se o ensino primário obrigatório para as crianças de ambos os sexos, dos 7 aos 15 anos de idade. Depois desta informação e todo o seu caráter ilusionista, ficamos igualmente a saber que nos números relativos a 1966/67 haveria 105 escolas primárias com 280 professores e 12 mil alunos, mais 52 postos escolares, com 64 professores. Fazia parte do ensino primário, embora estranho ao plano oficial, 276 escolas muçulmanas.

O liceu Honório Barreto surgiu em 1958 e no ano letivo de 1966/67 teve 417 alunos, lecionados por 21 professores. Passando para a saúde e assistência, a rede sanitária da época incluía o hospital de Bissau, três hospitais regionais (Bolama, Teixeira Pinto e Bafatá), seis hospitais rurais, dez delegacias de saúde, cinquenta e três postos sanitários, dez maternidades regionais e doze maternidades rurais. Concentrava-se no Hospital Central de Bissau a gama dos serviços de medicina com praticamente todas as especialidades. Fazem-se referências igualmente ao combate à tuberculose, às tripanossomíases, à doença do sono. Quanto à atividade missionária, a prefeitura apostólica de Bissau tinha três arciprestados em Bissau, Cumura e Bafatá, confiados, respetivamente, aos missionários franciscanos portugueses, padres franciscanos da província de Veneza e missionários do Instituto das Missões Estrangeiras de Milão. Nota curiosa é o que se diz sobre o Islamismo: “A dispersão do Islamismo encontra-se ligada ao sistema de confrarias (na Guiné Portuguesa, a dos Cadiriya e a dos Tidjaniya) derivados do ritmo malequita. As confrarias são dirigidas por grão-mestres (cheiques) que detêm a emanação de santidade (baraca), sendo muito hierarquizadas. À volta delas gravitam os operadores de milagres, curandeiros, místicos ou iluminados). A nova mesquita de Bissau foi inaugurada em Abril de 1966, está situada no bairro do Cupelon".

O segundo achado da manhã intitula-se “Mohammed V, Ferhat Abbas e Séku Turé” escrito por Jean Lacouture, figura prominente do jornalismo francês dos últimos 40 anos do século XX, Editorial Início, sem data. Como é óbvio, não vamos falar nem de Marrocos nem da Argélia, mas Lacouture descreve de forma muito impressiva a ascensão de Ahmed Sékou Turé, a implantação do RDA (Rassemblement Democratique Africain) e a tese federalista a que seguramente Amílcar Cabral não foi insensível, a industrialização acelerada da Guiné Francesa graças aos seus recursos em ferro e bauxite. Sékou provinha da etnia dos malinké, etnia de conquistadores, nasceu na linha de junção da África da savana e da África das florestas. Foi graças ao sindicalismo que ganhou proeminência. Desde cedo que perfilhou teses nacionalistas e sentiu a tentação pelo socialismo e a revolução. Lacouture disseca a personalidade do líder guineense, releva os seus aspetos mais paradoxais de um dirigente que parecia animando em pertencer a uma grande comunidade franco-africana que imprevistamente deu sinais claros de querer a independência de Conacri sem quaisquer ligações políticas a Paris. Em 1958, ele é já líder absoluto e liquidou toda a oposição interna, diz para o exterior que é um mero porta-voz do Bureau Político, o que era uma pura ficção. Jogou até ao fim a cartada dúplice da ameaça franco-africana e da independência pura e simples da Guiné Conacri.

O general De Gaulle apercebeu-se de que Sékou queria a independência e negava-se a fazer parte da aliança franco-africana. E dá instruções terminantes para que os quadros da administração retirem na manhã do dia seguinte de Conacri, sem apelo nem agravo. Assim irá acontecer, em pouquíssimo tempo as autoridades francesas deixam o país sem investimento e sem quadros: era a consequência do “não” à França. Vai seguir-se um período de aproximação e repulsa em que por várias vezes se esteve à beira de concluir acordos de cooperação com maior interesse para a Guiné, mas Sékou eleva a parada, pede demasiado e Paris desinteressa-se. Todo o ano de 1959 será um período de rancores, intrigas e promessas de parte a parte. Nos seus discursos, Sékou passa a acusar a França de ter sufocado a cultura negra, de ter preferido ensinar aos jovens africanos Lamartine e Corneille e impedir a formação de uma elite intelectual, o que levou ao caos inicial da administração civil. O ano de 1960 marcará o afastamento, Sékou entrara na onda anticolonial, será nesse ano que receberá em Conacri Amílcar Cabral, pelo PAIGC, e Mário Pinto de Andrade, do MPLA. E na conclusão do seu ensaio, Lacouture interroga: “No afastamento em que está hoje Sékou em relação à França, qual é a nossa parte de responsabilidade? Ele está demasiado ligado à França da Frente Popular para poder render justiça ao fenómeno De Gaulle e para não ser repudiado por ele. Mas que fez verdadeiramente a França de Esquerda – tão hábil em manter abertas as vias do lado vietnamita ou norte-africano – para libertar Sékou do isolamento que pesou extraordinariamente na história dos últimos meses. Enquanto a França de Jaurès não sabe sobrepor-se à de Poincaré, a descolonização corre o risco de se tornar uma perda desolado e irreparável”.

Isto foi escrito em Abril de 1961, o ditador de Conacri sente-se tentado pelos apoios de Moscovo e companhia, isto enquanto a economia do país se afunda. A ver se descubro outro livro que nos dê a visão senegalesa, Senghor viu sempre com suspeita Sékou, irá lutar vários anos para apoiar forças multipartidárias nacionalistas guineenses, do lado da Guiné Portuguesa, cortará cedo relações com Portugal mas tentará manter o diálogo com as autoridades de Lisboa por muito tempo. Senghor era anticomunista e temia ficar rodeado de democracias populares. Como veio a acontecer.

Estas foram as leituras decorrentes da manhã de 10 de Junho.
Guardo sempre a esperança de que tenho novas descobertas a fazer num sábado desses que se avizinham.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13963: Recordações de uma ida à Feira da Ladra: 15 de Novembro (2) (Mário Beja Santos)