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terça-feira, 28 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21204: (Ex)citações (362): "O que vemos não é o que vemos mas sim o que somos" (Bernardo Soares / Fernando Pessoa, com o 'colon' António Rosinha e o 'luso-sami' José Belo, a assinarem por baixo)



Guiné > Bissau > c. 1960/70 > Vista aérea de Bissau. Ao centro, o Palácio do Governo e a Praça do Império. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 118". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).

Bilhetes postais da coleção do nosso camarada Agostinho Gaspar / Digitalização, legenda e edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010)



1. Comentários ao poste P21199 (*)



(i) Antº Rosinha [, foto à esquerda,]:

A tropa portuguesa via o desenvolvimento das cidades de uma maneira, o PAIGC via de outra maneira.

Então o caso de Dacar ser melhor que Bissau, era coisa que eles nem ambicionavam imitar porque para eles era Conacri o bom, pois era o Sekou [Touré] que mandava, em Dacar eram os franceses que continuavam a pôr e dispor, uma vergonha.

E quem pensa que a Guiné estava muito atrasada, não conheceu em Angola territórios do tamanho da Guiné, que eram atravessados por uma ou duas picadas onde podia haver um ou dois chefes de posto e um administrador e 4 ou 5 comerciantres de permuta. (Por exemplo, em 1966, Cuando Cubango).

Em Moçambique nunca lá pus os pés, tenho pena, diziam que estava muito mais desenvolvido a imitar os ingleses que os rodeavam. (Ponto de vista de colon, o que era bom para branco ver.)

Mas uma coisa é certa:  o PAIGC e os outros movimentos onde imperavam os "estudantes do império", eles não queriam saber, antes pelo contrário, de qualquer benefício vindo de Portugal, quer na educação, na agricultura ou industria..., "
porque eles queriam fazer tudo à maneira deles".
Então fazer doutores e engenheiros era o que menos os preocupava, pois tinham promessas de bolsas de estudo do mundo inteiro (,toda a Europa de esquerda e o Leste) que lhe iam inundar o país de doutores e engenheiros.

E foi exactamente o que aconteceu.

Agora, desenvolver as cidades africanas, de que maneira (Europeia? Asiática? Árabe?...), quando as ajudas, os conselheiros e os projectos vêm de onde calha?!

O melhor para a Guiné ainda era à maneira portuguesa ou cabo-verdeana, mas isso era impossível, as rédeas ficaram à solta, com aquele tipo de 25 de Abril... Com o 24 de Setembro o PAIGC ainda se aguentou, depois perdeu a cabeça.

Mas Bissau era uma cidade porreirinha, os guineenses, o povo, gostavam, apreciavam muito a Bissau portuguesa.

Havia um jardim no Alto Crim, onde hoje está a Assembleia da República, jardim lindíssimo, com guardas e jardineiros, em que, a mando de Luís Cabral, eu, moi, a Tecnil,  mandei avançar um bulldozer... Isto em 1980,  e vi, desde jovens que estudavam lá nos bancos à sombra das árvores até velhotes que lá descansavam, tudo revoltado... Mas, passados umas semanas,  o Luís foi-se.

Eu penso que,  pelo povo,  se lhe perguntassem sobre as estátuas... Sei não!

Só que o povo perdeu a voz.
 
Antº Rosinha
(ii) José Belo  [, foto à direita,]
Os comentários de António Rosinha merecem sempre leitura atenta.

A História como resultado de dinâmicas em entrechoques sempre dramáticos para os apanhados nos seus “redemoinhos”.
Os colonos, e mais ainda os europeus nascidos em África, foram os que acabaram por sentir na carne todo um virar da página deste capítulo dramático.
Capítulo, para uns substituído por novos valores humanos, julgados universais pelos mais ingênuos. Para outros, por ideologias “transformativas”, sempre tão relativas na prática e principalmente no tempo.
A maioria de ambos os grupos têm uma característica comum: Olham a África desde longe.

Por muito profundos e sinceros nos seus valores humanos, nas suas criativas leituras políticas das situações, fazem-no sempre.... de fora!
Mesmo os especialistas em questões africanas , como muitos de nós nos julgamos por lá termos passado 24 meses das nossas vidas, acabam por olhar estas realidades também... de fora!
Sendo indiscutível que por lá estivemos, não devemos esquecer que as condições da “visita” em nada eram normais. Existia uma situação de guerra envolvente, destrutiva de todo o tecido social das sociedades onde estávamos (provisoriamente) inseridos.
Os olhos de António Rosinha viram, sentiram, experimentaram as realidades, desde “ângulos” fora do arame farpado que separava (!) quartéis e populações. "Nuances" quase imperceptíveis às olhadelas rápidas e provisórias.
Daí haver sempre algo que se pode ler em muitas das entrelinhas do que o António Rosinha escreve. E ele sabe sempre levar-nos de forma subtil por caminhos inesperados.
Algumas das conclusões são como duras pedras!

Mas o António Rosinha...NÃO ATIRA estas pedras.  Procura antes construir com elas o edifício de uma realidade por ele experimentada.

E acabamos por cair nas verdades do poeta de alguns favorito: “O que vemos não é o que vemos mas sim o que somos “ [Bernardo Soares / Fernando Pessoa]. (**)

Um abraço do J.Belo
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Notas do editor: 

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20341: Historiografia da presença portuguesa em África (186): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (2): "Portugal Vasto Império", por Augusto da Costa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Iniciou-se este punhado de reflexões com uma carta endereçada ao Governador da Guiné a propósito de um questionário etnográfico onde se conferia larga importância ao conhecimento da vida dos indígenas, a sua vida material e a sua constituição moral, conhecê-lo para educá-lo nos bons valores da cultura ocidental, a preponderante.
Nesse mesmo ano surgiu a obra a que agora se faz referência, surgida no início do Estado Novo, maturada durante a Ditadura Nacional, apologia do Império Português, mas onde se fala do perigo espanhol, da indiferença do povo para os valores imperiais, são inquiridas personalidades vincadamente nacionalistas, integralistas, militares das campanhas de África, um grande empresário e até um republicano, que é zurrado pelo seu comentário ao militarismo nacionalista. Seja como for, levantava-se a consciência imperial, pobretes na Europa, mas com vasto Império, imensas riquezas para explorar, o sonho de muitos era levantar a agricultura e desbravar tais riquezas pelas várias partidas do mundo.
Do racismo se falará mais adiante.

Um abraço do
Mário


A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (2)

Beja Santos

Em 1934, em circunstâncias completamente diferentes àquelas em que o Capitão Vellez Caroço se dirigiu ao Governador da Guiné para justificar o seu questionário etnográfico para melhor se conhecerem as minúcias da vida material dos indígenas, para melhor se exercer a ação colonizadora e de soberania na Guiné, a Imprensa Nacional publica um inquérito organizado por Augusto da Costa entre 1926 e 1933, o inquérito aparecera no Jornal do Comércio e das Colónias, tinham sido ouvidos Afonso Lopes Vieira, Pequito Rebelo, Fernando Pessoa, Bento Carqueja, Sousa Costa, Marcello Caetano, José Francisco da Silva, Fernando Garcia, João Ameal, João de Almeida, Paiva Couceiro, João de Azevedo Coutinho, Hipólito Raposo, Fidelino de Figueiredo, Alberto de Monsaraz, Américo Chaves de Almeida.
Augusto da Costa era inequivocamente nacionalista e tradicionalista, as suas preocupações aqui expressas prendem-se com o Império, o que fazer dele quando potências poderosas como o III Reich e o Reino Unido procuram entendimento para retalhar Angola e Moçambique, Augusto da Costa insiste que Portugal é a terceira potência colonial do mundo, que o país permanece indiferente a todas estas potencialidades e verbera:  
“Aos intelectuais portugueses se impõe o dever sagrado de levantar as forças morais do país, acordando a consciência nacional. A imprensa, não há que esconde-lo, tem graves responsabilidades: porque os jornais e jornalistas são capazes de manter o espírito público em tensão durante um mês seguido, dando-lhe todas as minúcias e particularidades de um crime misterioso, são os mesmos que se negam, pelo cansaço, a manter no público esse mesmo estado de espírito, quando se trata de mostrar os perigos que ameaçam as colónias portuguesas”.

O escritor e jornalista endereçou a um conjunto de intelectuais um pequeno questionário, com as seguintes fórmulas:
- sim ou não Portugal, potência de primeira grandeza na Renascença, guarda em si a vitalidade necessária para manter no futuro, na nova Renascença que há de seguir-se à Idade Média que atravessamos, o lugar de uma grande potência?;
- sim ou não Portugal, sendo a terceira potência colonial, tem todos os direitos a ser considerada uma grande potência europeia?;
- sim ou não Portugal, amputado das suas colónias, perderá toda a razão de ser como povo independente no concerto europeu?;
- sim ou não o moral da nação pode ser levantado por uma intensa propaganda, pelo jornal, pela revista e pelo livro, de forma a criar uma mentalidade coletiva capaz de impor aos políticos uma política de grandeza nacional, e na hipótese afirmativa, qual o caminho a seguir?

Como se depreenderá, até porque este inquérito se espraiou por diferentes anos compulsivos da Ditadura Nacional e na alvorada do Estado Novo, para além da diversa substância das respostas houve perspetivas políticas de diferente valência. Entenda-se o que Augusto da Costa pretendia: a Idade Média eram as trevas que atravessaram a monarquia constitucional e o republicanismo, gente que acreditava no parlamentarismo e liberalismo de má memória, o Renascimento aparecera com a Ditadura Nacional, havia perigos, a Espanha republicana ali ao lado, esperanças como o Acto Colonial de 1931, mas tudo imerso em dúvidas. A escolha dos intelectuais não fora arbitrária. Marcello Caetano não era indicado como assessor de Salazar mas como diretor da revista Ordem Nova, há muito boa gente que tem esquecido que o último líder do Estado Novo era simpatizante da extremíssima-direita. Fernando Pessoa acreditara em Sidónio Pais e deu apoio à Ditadura, no início; alguns deles, como Pequito Rebelo ou Hipólito Raposo, vinham do integralismo; foram questionados militares das campanhas de África como o Contra-Almirante José Francisco da Silva, Brigadeiro João de Almeida e Paiva Couceiro. Pequito Rebelo considerava que Portugal era uma nação agrária e colonial, o seu futuro estava na agricultura e nas colónias, Fernando Pessoa terá respondido em dia não, torcia o nariz à grande potência, deve ter arreliado quem o questionava respondendo coisas assim:  
“Portugal grande potência construtiva, Portugal Império – aqui, sim, é que, através de grandeza e de decadência, se revela o nosso instinto, e se mantém a nossa tradição. Nas mais negras horas da nossa decadência, prosseguiu, sobretudo no Brasil, a nossa acção imperial, pela colonização; e foi nessas mesmas horas que em nós nasceu o sonho sebastianista, em que a ideia do Império Português atinge o estado religioso”.

 Fernando Pessoa, por Almada Negreiros

A generalidade dos inquiridos não admite a hipótese da perda das colónias. Há quem aproveite para bater em tudo o que se passou depois da revolução francesa, veja-se o Dr. Sousa Costa:  

“Quanto à anarquia, essa explica-se pelas ideias falsas que os enciclopedistas, os seus filhos, netos e todos os outros herdeiros ou parentes espirituais inocularam nas grandes massas urbanas e proletárias. São essas massas, como se sabe, numa época de centralização absolutista e de activo industrialismo, quem constitui as elites populares. Para onde elas se inclinam, para aí se inclina a balança do equilíbrio social”.
O mesmo deponente, questionado se seríamos uma grande potência europeia, responde assim:  
“O exemplo da Holanda é flagrante, e constitui a melhor resposta a dar àqueles que consideram Portugal pequeno demais para tão grande território. A nossa pequenez continental serviria de justificação a todos os ataques, a todas as ambições que pairam sobre as nossas colónias. Porque não atacam a Bélgica? Porque não atacam a Holanda? Simplesmente porque nem a Holanda nem a Bélgica dão as provas de abandono que nós damos à nossa melhor riqueza; porque tanto a Bélgica como a Holanda cuidam seriamente da sua riqueza, não dando motivos a que os outros as apodem de povos perdulários. Porque tanto a Bélgica como a Holanda administram a sua fortuna. Se nós entrássemos pelo mesmo caminho, se tanto interna como externamente administrássemos as riquezas que ainda nos restam de um património já largamente desfalcado, não seria a nossa pequenez continental argumento que servisse para alguém justificar os seus instintos de rapina”.

 O jovem Marcello Caetano

Marcello Caetano também parecia estar em dia não, respondendo que o moral da nação podia ser levantado por uma intensa propaganda de forma a criar uma mentalidade coletiva, deu resposta terminante:  

“Acredito pouco na formação de uma mentalidade colectiva, irmã-gémea da soberania nacional e da opinião pública. Quanto a mim, o remédio é este: a par da propaganda intensa, a acção dirigida no intuito de alcançar o poder para uma minoria inteligente realizar aquilo que vagamente a grande massa poderá apoiar, mas não compreender. Eu não espero nada dos políticos. Espero, sim, de uma política nobre servida por homens dignos. Livro, revista,… Acho-os úteis para chamar a atenção dos homens de escola para o problema. Mas que, os que já se interessam por ele há muito e para ele acharam soluções, busquem pô-las em prática no ambiente novo em que vivemos, sem as peias da politiquice e os embaraços da verborreia estéril do Parlamento”.

A verdadeira voz dissonante foi a de Fidelino de Figueiredo, desdramatizou a perda das colónias, se tal acontecesse não atingiria as garantias da nossa independência, e escreveu:  
“Há muitos países na Europa sem os prestígios históricos e sem a individualidade de Portugal, que gozam tranquilamente a sua independência, sem possuírem colónias e sem as terem perdido”.
E enquanto é perguntado sobre uma política de grandeza nacional, o antigo diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa não esconde ser adverso do militarismo político, o que deixou Augusto da Costa encabulado, ainda por cima Fidelino atacara como gato a bofe a censura prévia, Augusto da Costa sentiu-se no dever de apoiar o 28 de Maio e lançar as suas estocadas à Rússia e à Espanha republicana.

O livro com base no inquérito de Augusto da Costa fazia a apologia do Império Português, apresentava-nos como imperialistas, havia que reabilitar o orgulho do vasto império, estabelecer os nossos deveres imperiais, rever a nossa fraca cultura histórica e lembrar a superfície total do Império Português, distribuída pelas sete partidas do mundo, um império com missão espiritual, se o nosso patriotismo era vibrante, havia que dar definição e consciência ao instinto vital da raça, moldar a opinião pública, dar-lhe consciência imperial, definir novas leis para o império, o Dr. Salazar já resolvera o problema financeiro e fizera aprovar em 1931 o Acto Colonial: Portugal, depois de ter sido a pequena casa lusitana, transformou-se, por força da fatalidade histórica e geográfica, num vasto império. O Estado Novo terá ouvido Augusto da Costa, nesse mesmo ano de 1934 realiza-se a I Exposição Colonial no Porto, lá esteve presente a Guiné, com pompa e circunstância. O Império tomara conta das elites, de alguns bancos e de alguns empresários. A Agência Geral das Colónias começou a trabalhar a todo o vapor. Mas não se desenvolveu a tal mentalidade coletiva que Augusto da Costa aspirava. E quando se desenvolveu, bastantes anos mais tarde, foi para mandar gente empobrecida para os colonatos, o novo Eldorado.

Do racismo que se irá aparelhar ao colonialismo, falaremos mais adiante.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 6 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20318: Historiografia da presença portuguesa em África (182): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (1): Questionário Etnográfico elaborado pelo Capitão Vellez Caroço (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20332: Historiografia da Presença Portuguesa em África (184): O modelo (Maria Barba) e o fotógrafo (José Bacelar Bebiano)... A propósito de uma morna "imortal"...Resta saber quem era o "senhor tenente Serra"...evocado na letra "Mária Bárbara, canta mais uma morna... / S’nhôr Tenente, ‘m câ pôdê cantá más...

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18021: Manuscrito(s) (Luís Graça) (130): Lisboa com suas casas, de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa













Lisboa, vista do nº 1 da Travessa do Ferragial, 13 de novembro de 2017. O edifício é o da famosa "Cantina das Freiras", da ACISJF - Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina.  É um dos sítios mágicos de Lisboa, com um "self-service" no último andar, com uma vista sublime sobre Lisboa e o Tejo, enquanto se almoça por meia dúzia de euros!,,, Nos primórdios, há 40 anos atrás, era uma espaço exclusivamente reservado a raparigas que trabalhavam na zona e vinham aqui aquecer a comida da sua lancheira num 
pequeno fogão a gás.  Hoje, a "cantina das freiras", como é carinhosamente conhecido,  é um serviço aberto a toda a população, incluindo turistas...  De 2ª a 6ª feira, das 12h00 às 15h00. É uma das últimas "cantinas sociais" de Lisboa: ir lá almoçar é também "ser solidário" e ajudar a missão da ACISJF. A comida, caseira, é uma delícia. E há bastante mesas, dentro e fora (terraço).

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lisboa com suas casas

Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores ...
À força de diferente, isto é monótono,
Como à força de sentir, fico só a pensar.

Se, de noite, deitado mas desperto,
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.

Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.
Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.

Álvaro de Campos [1934]


In: Fernando Pessoa: Poesia de Álvaro de Campos
Edição de Teresa Rita Lopes
Assírio & Alvim,

Lisboa, 2002
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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17964: Manuscritos(s) (Luís Graça) (129): o deus-sol ou... quem disse que uma imagem vale mil palavras ?...

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16509: Os nossos passatempos de verão (15): jardim e miradouro do Torel, na colina de Santana, em Lisboa, simplesmente uma das mais belas e amigáveis cidades do mundo



Lisboa > 9 Setembro de 2016 > Colina de Santana > Jardim e miradouro de Torel > Vista sobre a baixa e o estuário do Rio Tejo (1): à direita,  o elevador de Santa Justa; e à esquerda, o Arco da Rua Augusta...


Lisboa > 9 Setembro de 2016 > Colina de Santana > Jardim e miradouro de Torel > Vista sobre a baixa e o estuário do Rio Tejo (2)

Lisboa > 13 Setembro de 2015 > Colina de Santana > Jardim e miradouro de Torel >  Palacetes de gosto revivalista, do séc,. XIX

´
Lisboa > 13 Setembro de 2015 > Colina de Santana > Jardim e miradouro de Torel > Vista sobre a sétima colina e o miradouro de São Pedro de Alcântara


Lisboa > 13 Setembro de 2015 > Colina de Santana > Jardim e miradouro de Torel > Vista sobre o antigo convento e a igreja do Carmo.




Lisboa > 9 Setembro de 2016 > Um dos mais belos jardins e miradouros da capital, na encosta de uma das sete colinas > Mural "Do great things" / "Façam coisas grandes"... Homenagem a um grande poeta (*)... [Junto ao mural, a nossa grã-tabanqueira Alice Carneiro].

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O jardim e miradouro é o de Torel, na encosta da colina de Santana... O mural "Do great things" ["Façam coisas grandes"], com 6 m x  4 m (c. 24 metros quadrados)  tem a assinatura  de Odeith, Sérgio Odeith ... O  grande poeta, homenageado, é o Fernando Pessoa...

O jardim do Torel está situado junto ao campo dos Mártires da Pátria  (ou campo de Santana), na encosta virada para a a Baixa lisboeta e a avenida da Liberdade. O sítio, denomiando Torel,  é um espaço ocupado por um conjunto de palacetes de arquitetura  revivalista (século XIX). Tem duas entradas: a principal pela rua de Júlio de Andrade, perto do Elevador do Lavra;  e uma outra, mais abaixo, na Rua do Telhal. A provável origem do nome terá a ver com a família,  presumivelmente de ascendência holandesa, que habitou o local.

O  Jardim do Torel passou a estar aberto ao público nos anos de 1960. Até então era propriedade privada. Depois de ter sido alvo de uma intervenção de requalificação e restauro, é um hoje um dos belos sítios da cidade. Imagine-se que até tem uma praia urbnana, iniciativa da junta de freguesia de Santo António que, em 2014, ano da inuaguração., recebeu 80 mil visitantes...

Infelizmente continua a ser desconhecido de  muita gente... O Festival Todos - Caminhada de Culturas, edições de 2015 e 2016, deu o devido  protagonismo a este espaço nobre da cidade.

Camarada, lisboeta ou de visita a Lisboa: um dia destes, vem até aqui... Para não te cansares, apanha o Elevador do Lavra, que é o elevador mais antigo da cidade.

Sérgio Odeith, nativo da Damaia, Amadora, Portugal. considerado um dos melhores "graffiters" (, por favor, não confundam com grafiteiro!) do mundo, é o autor deste gigantesco mural,  com o nosso Fernando Pessoa pintado no jardim do Torel...

Foi com esta peça que Portugal participou, em 2015,  na campanha global de lançamento do Windows 10, da Microsoft. Na altura o artista português, distinguido pela Microsoft,  disse; “Já pintei a Amália, o Carlos Paredes e o Eusébio. Faltava-me o Fernando Pessoa. Não há muitos mais portugueses que tenham feito grandes coisas e agora, com esta campanha ‘Do Great Things’, surgiu a oportunidade”.

Amigos e camaradas: chegado ao fim o verão de 2016, pomos  um ponto final no nosso passatempo, a que ninguém ligou grande atenção (e muito menos acertou na resposta....). Se o poste não suscitou o interesse de muitos, espero ao menos que alguns possam descobrir, um dia destes, durante o outono que aí, mais esta jóia da cidade que amamos no singular e que, às vezes, maltratamos, no plural... Lisboa, simplesmente, uma das cidades mais belas e amigáveis do planeta... LG

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sábado, 23 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15658: Manuscrito(s) (Luís Graça) (74): Aquele poema que nunca disseste na parada do quartel de Tavira...


 Aquele poema que nunca disseste na parada do quartel de Tavira


por Luís Graça


Que pena não teres tido a ideia
(ou a coragem ?),
naquela manhã de fim de outono de 68,
em plena parada do quartel de Tavira,
no regresso da tua companhia
de armas pesadas de infantaria,
encharcado e exausto,
depois do crosse até às salinas…
que pena não teres tido a ideia
de dizer em voz alta,
pausadamente,
mecanicamente,
com a voz monocórdia de robô,
aquele poema do Alberto Caeiro
(lembras-te?):

“Quem me dera que a minha vida fosse…
um canhão sem recuo,
montado num jipe,
eu não tinha que ter esperanças,
tinha só que ter rodas,
e chapa,
e um tubo de aço de canhão sem recuo,
e granadas para o municiar.
Nem sequer precisaria de peças sobresselentes,
porque a  minha esperança média de vida,
à nascença,
seria sempre muito curta:
na melhor das hipóteses,
não chegaria sequer à próxima batalha.
Finda a guerra,
seria apenas um monte de sucata,
onde cresceriam ervas daninhas,
e ninguém mais se importaria comigo
e, menos ainda, choraria a minha morte.
Dos sobreviventes,
haveria por certo alguém,
um burocrata da tropa, 
que se daria a maçada
de tomar nota da matrícula do jipe,
e mandar abater-me ao efetivo,
depois lavrado o competente auto de corpo de delito,
como manda o regulamento”…

Não teve sorte, o teu poeta,
coitado,
morreria cedo, ao que parece,
aos vinte e poucos anos,
que é a idade mais bonita para se viver.
Teria feito tropa ?
Teria feito a guerra ?
Não se sabe,
mas só posso imaginá-lo,
morto,
na batalha de La Lys,
esventrado,
os olhos vidrados,
o caderno de notas no bolso junto ao coração,
varado por um estilhaço de morteiro,
o sangue ainda quente,
ao lado daquele menino de sua mãe,
um tal Fernando Pessoa,
de que só se conhece um retrato pungente.

Alfragide, 31/12/2015, v3
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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15563: Manuscrito(s) (Luís Graça) (73): Vamos cantar as janeiras: "O Novo Ano é sempre assim, /Traz sonhos e inquietações, / Em português ou em mandarim, / Aguardaremos as instruções."

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12351: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (2): Diário de bordo - Ó mar salgado!

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 2

DIÁRIO DE BORDO

Ó mar salgado!

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

17 de Julho de 1963


A escada ou o portaló que eu subira devagar, há pouco, como se sentisse vertigens ou medo das distâncias que o mar me iria dar em breve, já não tinha os pés em terra e eu também não.

No terraço um mar de gente agitada, convulsiva, emocionada.
Encostado a uma grade branca, debruçado de olhos perdidos no olhar de todos que acenavam lenços, também acenei.

Ali era em todos o mesmo sangue a correr, o mesmo coração a vibrar de mágoa, os mesmos braços, a mesma Pátria. Os dois metros de água, entre o barco e o cais, quando a sirene roncou gritos tristes, como todo o adeus, em mim já eram lonjuras intermináveis, outras terras, nova aventura.

Ia partir. Mas cais de partir serão sempre cais de chegar? Pensei comigo. Olhei mais uma vez e deixando tombar os olhos no rio Tejo e dentro de mim, desci ao camarote, fui arrumar as malas.

Deitei-me. Vi selva e capim, olhos ferozes de terroristas, poças de sangue.
Os boatos sobre a Guiné eram de amedrontar, os piores, que alguns, malevolamente, lançaram ao vento.

Era assim um pesadelo aquela tarde de gaivotas, que, esvoaçando rente aos mastros do Niassa, desejavam uma boa viagem. Parecia impossível tal sonho e subi ao convés.

Navio Misto Niassa
Com a devida vénia a Navios Mercantes Portugueses

Lisboa, pequena, apagando-se quase na retina, fugia toda para trás. O céu também. E foi aí que recitei apenas para mim Fernando Pessoa, para mim e para o mar, onde acabara de entrar o navio:

Ó mar salgado, quanto do teu sal 
São lágrimas de Portugal. 
Por te cruzarmos quantas mães choraram, 
Quantos filhos em vão rezaram! 
Quantas noivas ficaram por casar, 
Para que fosses nosso, ó mar!

Fechei a alma. Os versos verteram-me lágrimas no coração, na pele arrepios fundos e longos.
O mar era já tão grande como a saudade. O céu era azul. E eu esperava-o sempre assim.

(Jornal da Bairrada, 5 Setembro 1964)

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 25 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12341: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (1): Diário de bordo - A primeira grande desilusão

segunda-feira, 16 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4039: O Prémio: Sirvam , em nome da Pátria, uma bica quente a estes rapazes!, dizia o Gen Spínola... (Joaquim Peixoto)

Guiné > Zona Leste > Sare Bacar > CCAÇ 3414 (1971/73) > O Fernando Ribeiro, de pé, ao lado do seu amigo Joaquim Peixoto (hoje professor do ensino básico, em Penafiel). Morreu em Julho de 1973, na estrad de Binta-Faria, já no final da sua comissão.

"Algum tempo depois de regressarmos da Guiné, fizemos um almoço em Coimbra e fomos depositar um ramo de flores no cemitério em Condeixa. Haveria muito a dizer deste amigo que nos deixou tão cedo. Envio também uma fotografia em que estou com ele. (O Fernando está de pé.) Chamo-me Joaquim Carlos Peixoto, vivo em Penafiel, sou Professor do 1º Ciclo do ensino básico" (JP).

Foto: © Joaquim Peixoto (2007). Direitos reservados

1.Mensagem do Joaquim Carlos Peixoto, de Penafiel:


Amigo Luis:

Se vires que há algum interesse neste artigo, gostava que o publicasses.
Já escrevi para aí, mas o endereço era outro.
Agora tenho um novo mail.
Um grande abraço para todos
Joaquim Carlos Peixoto



2. O prémio que nunca me deram...
por Joaquim Peixoto

Amigo Luís Graça:

Há [dois] anos escrevi um artigo para este blogue (*), e em boa hora o fiz, porque através dele já fui contactado por vários camaradas da Guiné, dos quais já pensava ter perdido o contacto.

Frequentemente leio os assuntos publicados e tenho uma grande vontade de também escrever.Mas, ou por falta de tempo ou por preguiça vou adiando…

Agora resolvi escrever. Se achares oportuno, publica-o.

Identifico-me:

Joaquim Carlos Peixoto (59 anos ); Professor do 1º Ciclo, a exercer funções em Penafiel.

Já deixei de utilizar o mail antigo:
joaquim.peixotomegamail.pt

[Revisão / fixação do texto: L.G.]


O PRÉMIO

1970 - De um jovem, quase adolescente, com um nome próprio...

... vivendo no seio de uma família, um ser humano, (como tinha aprendido o que era um ser humano desde os bancos da escola primária) passei de uma hora para a outra (sem que tivesse consciência de todo do que me estava a acontecer) a fazer parte de um número, um número frio e sem identidade.

Autómato... Maria vai com as outras... o caminho é este que te mandam seguir. Não perguntes, não reajas, não penses, segue em frente… o teu caminho é defender a Pátria. Mas, no escuro do subconsciente perguntava:
- Como vou defendê-la?O que me irá acontecer? Porque tenho de abandonar a minha família.. e fazê-la sofrer? O que vou fazer? Onde guardo os meus sonhos de menino?Quando voltarei ? …Ou não voltarei?

Perguntas e mais perguntas e sempre perguntas que não tinham e não havia resposta .
- Carne para canhão - ouvia-se, de longe a longe, esta frase.

O quê ? Eu ? Eu, era um ser humano que tinha ilusões, sonhos, desejos, sentimentos, gostos… Eu era aquilo ?

Não havia tempo para pensar. O tempo era de agir, obedecer e seguir o caminho indicado.

A roupa escolhida por mim ou pela minha mãe, passou a ser igual à de todos os outros, tratada e arranjada por mim.

As botas, essas - pesadas e desconfortáveis - tinham de andar sempre um brinquinho .

Fazer a recruta. Tirar a especialidade (atirador de infantaria). Tirar curso de minas e armadilhas. Ida para os Açores formar Companhia.


1971 – Chega o dia do embarque.

Para um sítio desconhecido, uma terra com usos e costumes totalmente diferentes. Uma terra que nos embriagava com tanto calor e humidade. ERA A GUINÉ. Uma terra onde havia guerra. Guerra a sério, não um simples jogo de cow boys. Era a doer,… era desesperante. Eu, como todos os outros, confrontado com um ataque, reagia, atacando.

Sofri muito... Vi morrer amigos (**). Saudades. Pergunto:
- Combatíamos por instinto? Porque nos haviam ensinado? Porque queríamos defender a Pátria? Porque nos queríamos defender a nós? Porquê ?

HOJE, passados trinta e seis anos, pergunto:
- PORQUÊ ?

Alguém lúcido e com as ideias bem ordenadas poderá responder-me?

A minha juventude, como a de tantos milhares de camaradas, foi passada entre tiros, medo, mato, vivências terríveis, desilusões, sonhos desfeitos…

Alguém, de vez em quando, dava-nos uma esperança, dizendo que ao regressarmos teríamos a recompensa, o tempo de tropa contaria a dobrar para efeitos de reforma, seríamos reconhecidos pelo contributo que estávamos a dar à Pátria, teríamos orgulho de ser portugueses, a consciência confortada com o dever cumprido.

Um General, muito conhecido, fiel aos seus compromissos, honrando a farda que usava, dizia-nos muitas vezes e passo a citar:
- Quando chegarem à metrópole e vos servirem uma bica fria, reclamem e digam: 'Quero uma bica quente, porque estive a servir a Pátria, na GUINÉ'!

Que ilusão !!! Que desespero !!!

Quem se lembra de nós ? Quem nos estende uma mão de reconhecimento? Que falta de memória !!!

Ao regressar da guerra, ao confrontar-me com a realidade, dura e crua, o que vi, o que senti? O que recebi?

Quando pedia uma bica, não a recebia, nem quente, nem fria. Simplesmente não ma serviam.

Verifiquei que ninguém me reconhecia, nem queriam saber o que tinha feito pela Pátria. Recebi incompreensão, falta de emprego (Os empregos eram para outros) no pós-25 de Abril.

Senti uma tremenda desilusão, um vazio que doía, doía e se transformava, aos poucos, numa frieza que eu não queria.

Queria constituir família. Onde estava a recompensa do dever cumprido? Que era feito das promessas?

Como a minha namorada era Professora Primária (como ainda hoje gosta de ser chamada), incentivou-me a tirar o curso de Professor. Em boa hora o fiz, porque foi sempre muito gratificante trabalhar com crianças. Profissão que abracei com gosto e profissionalismo. Ao longo destes 30 anos de trabalho, raras foram as faltas e sempre por motivos justificados.

A vida foi mudando, o regime político alterou-se, o nível de vida subiu, mas as marcas, o pesadelo, os traumas, o estigma de guerra, esse continua implacável dentro das mais profundas entranhas.

A vida foi pouco a pouco tomando o seu rumo e com este ou aquele projecto de vida, com este ou aquele sonho em melhorar cada vez mais as condições, essas marcas de guerra foram-se camuflando e cada vez mais ténuas foram quase passadas ao esquecimento.

Eis se não quando, por magia ou brincadeira do destino, tudo desaba sobre os ombros e tudo que parecia adormecido vivo e em chamas, prostrando-nos a uma apatia tal que a força para lutar escapa-se-nos pelos dedos, qual água gélida de um glacial a derreter…

Não há mais força, não há mais sonhos…

As leis mudaram, o tempo de tropa já não conta para o regime especial a que os Professores Primários tinham direito. Esse tempo conta só para o regime geral.

E então, tudo o que passei, tudo o que dei à Pátria, todo o meu contributo que prestei com o meu serviço militar só serviu para ser injustiçado ?

Mas que erro cometi em ser Professor Primário só depois de ter cumprido o serviço militar? Que culpa tenho eu em ter ido cumprir esse serviço? Onde se encontra a justiça deste país?

Porque tantos Professores, por não terem cumprido o serviço militar e não irem para o Ultramar, muito mais novos do que eu, já estão aposentados?

Eu, que defendi a Pátria na zona mais perigosa das nossas colónias- a Guiné; que não tive logo emprego quando cheguei porque eram todos ocupados pelos retornados (o que não tenho nada contra eles); que tirei um curso para poder viver e trabalhei sempre com o maior profissionalismo, não me posso aposentar se não aos 65 anos?!...

Que justiça é esta que em iguais condições de trabalho dão a aposentação aos mais novos que tiveram a possibilidade de tirarem o curso mais cedo, que não sabem o que é deixar família, que não sabem o que é uma guerra, que não defenderam a Pátria em detrimento daqueles que, pelo menos 5 anos , como eu, me desfiz de sonhos, que vivi horrores e por esses horrores tirei o curso mais tarde, tenho o PRÉMIO de trabalhar ainda mais !!!...

Vejo muitos dos meus amigos professores a aposentarem-se aos 52 ou 55 anos.Não chegou o que já fiz pelo meu país?

Senhor General Spínola, onde quer que esteja, ilumine os nossos governantes dizendo-lhes:
- Sirvam um café quente a estes ex-combatentes pois estiveram na Guiné...

Joaquim Peixoto

3. Comentário de L.G.:

Pois é, camarada Peixoto, dois anos (tu dizias 'alguns', mas são só dois, o que não deixa de ser muito tempo, era uma comissão em África, dias e dias, noites e noites, semanas e semanas, meses e meses, que nunca esqueceremos, uns pior passados do que outros, com sangue, suor e lágrimas, com muita camaradagem e amaizade, também...).
Mas a verdade é que, desde Maio de 2007, passaste a fazer parte da nossa Tabanca Grande, pudeste reencontrar velhos camaradas da tua CCAÇ 3414, tiveste oportunidade de ler os nossos escritos - já lá vão cerca de 2300 a mais, desde esse dia em que nos contaste a história do teu malogrado amigo e camarada Fernando Ribeiro...

Pois é, a tua/nossa Pátria não foi Mátria, foi Madrasta, para ti, para todos nós, para toda uam geração de portugueses quye combateu em África... Como eu percebo a tua amargura, quando te referes ironicamente ao Prémio que os valorosos e generosos combatentes de África era pressuposto virem a receber, no regresso, depois de cumprido galhardamente o seu dever... No mínimo, o reconhecimento do sacrifício da sua juventude (e em muitos casos da sua vida), por parte dos seus compatriotas, da sociedade e do Estado, do regime democrático instaurado a seguir ao 25 de Abril...
Mas, não, esqueceram-te, arquivaram-te, arrumaram-te a um canto, ao canto das velharias e dos anacronismos da História... Os ex-combatentes são sempre uma pedra no sapato para as novas elites dirigentes, as que assinam a paz antiga e preparam os cenários das novas guerras...

Como entendo a tua ironia, ao citares o General Spínola, uma das suas frases que o tornaram tão popular entre as nossas tropas da Guiné:

"Quando chegarem à metrópole e vos servirem uma bica fria, reclamem e digam: 'Quero uma bica quente, porque estive a servir a Pátria, na GUINÉ'"

Não sei se a frase é apócrifa, mas tu deves tê-la ouvido... Podia ser tão sincera como demagógica, mas a verdade é que tinha o seu efeito emocional: no mínimo, fazia bem ao ego, à auto-estima, de milhares de homens que regressavam das bolanhas, das picadas e das matas da Guiné, amargurados, uns, 'apanhados do clima', outros...

Automaticamente fez-me lembar esse grande poema do Álvaro de Campos / Fernando Pessoa, que tu, como professor, e homem nortenho, deves conhecer, e bem. Permite-me que o reproduza aqui, socorrendo-me, com a devida vénia, do Arquivo Pessoa, disponível em linha:

Álvaro de Campos
DOBRADA À MODA DO PORTO


Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.


(s.d. In: Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).- 310).

Pois é, Peixoto, serviram-nos o amor da Pátria frio, como dobrada fria, quando a dobrada é sempre quente, à moda do Porto, da Cidade Invicta... E nem direito tiveste/tivemos a um cimbalino, quente... Em Lisboa, diz-se uma bica, e eu peço-a sempre... escaldada.

Olha, o único consolo que te posso dar é que gostei do teu 'regresso' e do tom intimista da tua mensagem... Daqui para a frente não tens desculpas, sejam as da perguiça ou da timidez: o nosso blogue, em Penafiel, está à distância de um clique...Um Alfa Bravo. Luís
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 22 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1774: A morte do Fernando Ribeiro: eu ia nessa fatídica coluna e era seu amigo (Joaquim Peixoto, CCAÇ 3414)

(**) Sobre o Fernando Ribeiro, vd. postes de:

24 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1544: Quem conheceu o Furriel Mil Art Fernando J. G. Ribeiro, morto na picada de Binta-Farim em Julho de 1973 ? (Luís Graça)

25 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1547: O Furriel Mil Atirador Fernando Ribeiro pertencia à açoriana CCAÇ 3414 e morreu entre Mansabá e Mansoa (A. Marques Lopes)

28 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1554: As mulheres que ficaram na rectaguarda (Luís Graça /Paulo Raposo / Paulo Salgado / Torcato Mendonça)