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sábado, 30 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23214: Humor de caserna (53): O anedotário da Spinolândia (III): a "melena" do cap inf Vasco Lourenço que irritou o célebre "Coronel Onze" (Fernando Magro, ex-cap mil art, BENG 447, Bissau, 1970/72)

 


Capa do livro do Fernando Magro - Memórias da Guiné. Lisboa: Edições Polvo, 2005, 86 pp.  Na foto, o filho, Fernando Manuel, e o seu cão, na casa em que a família vivia em Bissau. 



Fernando Pinto Valente (Magro), ontem e hoje


1. Mais uma história da Spinolândia (*): desta vez não envolve diretamente a figura do gen Spínola,  mas sim um dos seus próximos colaboradores, o "Coronel Onze",  e um futuro capitão de Abril, o capitão inf Vasco Lourenço, cmdt da
CCAÇ 2549/BCAÇ 2879 (Cuntima e Farim, 1969/71).

Foi já aqui oportunamente contada  pelo Fernando Valente (Magro) (**) que, aos 33 anos, casado e pai de um filho menor, foi mobilizado para o CTIG,  como cap mil art,  BENG 447,Bissau, 1970/72, e que publicou em 2005 um livrinho com as suas memórias da Guiné, de 86 pp.  (reproduzidas no nosso blogue, na série "Memórias da Guiné,  por Fernando Valente (Magro)".

Há dias recebi, pelo correio, uma cópia do livro, via Hélder Sousa (que faz parte parte dos corpos sociais da ANET - Associação Nacional dos Engenheiros Técnicos, tal como o Fernando Magro; aliás, a edição do livro teve o apoio da ANET, e havia por lá sobras do livrinho: obrigado, Hélder, pela encomendinha que chegou a boas mãos pelo correio).



Capa do livro de Vasco Lourenço do Interior da Revolução, entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Lisboa, Âncora, 2009, 608 pp.  

"Vasco Correia Lourenço nasceu em 19 de junho de 1942, em Lousa, Castelo Branco. Integrando desde o início o Movimento dos Capitães, coordenou a organização da sua primeira reunião em 9 de setembro de 1973, vindo a pertencer à sua Comissão Coordenadora e à sua Direção. Único oficial que pertenceu sempre aos órgãos de cúpula do Movimento dos Capitães (CC e Dir.) e do MFA (CCPMFA, CE, C20 e CR). Das várias condecorações que possui, destacam-se a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade e a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Presidente da Direção da Associação 25 de Abril, desde a sua fundação em outubro de 1982. Coronel na Reforma". Fonte: Wook


A melena, pouco "regulamentar", 
do cap inf Vasco Lourenço 


(...) Instalado no Clube de Oficiais, em Santa Luzia, próximo do Quartel-General, iniciei a 21 de Abril de 1970 a minha actividade nos Serviços de Reordenamentos Populacionais no Comando Chefe (Amura).

Durante a minha estadia nesse clube tive contacto com vários oficiais do quadro permanente e do quadro de complemento (milicianos) que também lá se encontravam instalados ou que, estando sediados fora de Bissau, por lá passaram para tratar assuntos relativos às companhias que comandavam.

Em finais de Abril o General Spínola reuniu numa grande sala do Palácio praticamente todos o capitães em serviço na Guiné. Eu, praticamente acabado de chegar, também estive presente nessa reunião.

O General traçou novos rumos no que dizia respeito à luta contra a subversão. Deu a entender que se estavam estabelecendo negociações com os chefes terroristas no sentido da resolução política do diferendo. Ordenou que as Companhias Operacionais não mais tomassem atitudes ofensivas, mas simplesmente defensivas. Mandou que se procedesse sem ódio nem brutalidade contra os prisioneiros de guerra e as populações afectas ao inimigo, de modo a que se possibilitasse a sua apresentação às autoridades e se pudesse caminhar para a pacificação.

 (...) Na referida reunião dos capitães com o General Spínola, fui surpreendido pela forma descontraída, directa e muito incisiva, como o Capitão Vasco Lourenço procurou saber do General mais pormenores sobre o modo como actuar futuramente face às novas directivas. Directivas que passados alguns dias foram canceladas, dado que foram mortos três majores e um alferes que, desarmados, procuravam o contacto com chefes terroristas de que havia indicação de se quererem entregar.

Um dos majores (Pereira da Silva) conhecia-o muito bem, pois havia privado com ele no GACA 3 tendo ele, na altura, o posto de Tenente.

A minha vida ia correndo sem grandes sobressaltos entre o Comando-Chefe e o Clube de Oficiais. Aqui no Clube, havia uma piscina e à noite por vezes havia cinema e outros espectáculos ao ar livre. Lembro-me de ter visto espectáculos de música, de ilusionismo e uma vez de hipnotismo. Neste último um soldado, depois de hipnotizado, foi convencido que estava uma noite gélida (ao contrário do que acontecia, pois tratava-se de uma cálida noite africana) e recordo-me como ele tremeu de frio e se agasalhou o mais que pôde com as roupas que tinha por perto.

Estando à beira da piscina, no dia 19 de Maio de 1970, ouvi pela primeira vez a artilharia dos independentistas em acção. Eram cerca de 23 horas quando foi desencadeado um ataque com artilharia ao Quartel de Tite. Os rebentamenros era perfeitamente audíveis em Bissau. O poder de fogo era grande, tendo havido lançamento, por parte das forças inimigas, de cinco mísseis.

No Clube de Oficiais fazia a minha vida depois de findo o meu serviço no Comando-Chefe. Era a minha casa. Lá tinha tudo: alimentação, dormida e até barbearia. Foi justamente na barbearia onde certo dia fui cortar o cabelo que se deu este episódio com o Capitão Vasco Lourenço que vou passar a contar.

Encontrando-me uma vez sentado numa das cadeiras da barbearia do Clube de Oficiais de Bissau, acomodou-se a meu lado o Capitão Lourenço. Imediatamente solicitou que lhe cortassem o cabelo. Este pedido surpreendeu o soldado da barbearia que, tartamudeando, se aprontou para o atender.
Mas... meu capitão, ainda nem há uma hora lhe cortei o cabelo!
– Pois é. Mas vais cortar-mo de novo.

O rapaz não replicou, mas muito em surdina, ainda conseguiu pronunciar duas palavras que só eu pude entender, embora com dificuldade.
– Está "apanhado".

Também fiquei intrigado com o que se passava, pelo que procurei esclarecer o assunto mais tarde. Quando ambos abandonamos o Clube de Oficiais, o Capitão Lourenço satisfez a minha
 curiosidade.

Segundo me explicou, havia-se cruzado, após o primeiro corte de cabelo, com um dos chefes militares de Bissau. O Coronel Onze, como era conhecido e não me perguntem porquê, era muito rigoroso com o atavio e o porte dos seus subordinados, principalmente com os oficiais. Quando se cruzou com o Capitão Lourenço te-lo-á interpelado com severidade, chamando-o à atenção para o facto de o seu corte de cabelo não ser o regulamentar.
– O Senhor Capitão é miliciano?
– Não, não, meu Coronel. Eu pertenço ao quadro permanente.
– Mas isso é indisculpável. Faça o favor de ir cortar o cabelo imediatamente. Essa melena na testa é uma vergonha. Depois apresente-se no meu gabinete.

Seguidamente a este relato, que tentei aproximar tanto quanto me foi possível da realidade, o Capitão Lourenço teceu várias considerações e deu curso à sua revolta interior.

Explicada a razão pela qual o Capitão Lourenço teve necessidade de cortar o cabelo, pela segunda vez no mesmo dia, o referido oficial encaminhou-se para o gabinete do Coronel Onze. 
(...)

Fonte: Excertos de Fernando Magreo - Memórias da Guiné. Lisboa: Edições Polvo, 2005,  pp. 37

[Fixação / revisão de texto / título do poste: LG]

2. Comentário do nosso editor LG:

O nosso camarada José Câmara, em comentário ao poste P12028 (**) identificou o "Coronel Onze" como sendo o "Coronel Santos Costa". E acrescentava: "não era só austero, era desumano". Não conseguimos, no entanto,  encontrar nenhum coronel, no CTIG, com este apelido nos livros da CECA...

Será que se trataria do cor cav Fernando Rodrigues de Sousa Costa, um dos comandantes do COMBIS (Bissau), não ?!

O Carlos Pinheiro acrescentou (**): "Gostei desta memória e acima de tudo de ouvir falar do tal "coronel 11" que era mais que famoso na cidade de Bissau. A maior parte dos militares nem o chegou a conhecer, mas histórias acerca dele toda a gente conhecia."

Veja-se este episódio do "anedotário da Spinolândia" também como uma homenagem ao sentido do humor do nosso veterano Fernando Magro (um dos seis membros da família Magro que fizeram a "guerra do Ultramar") e sobretudo ao capitão de Abril , Vasco Lourenço, uma figura que, como diz o Carlos Silva (**), já pertence à história deste país, tal como o gen Spínola,  e que, como tal, merece o nosso respeito. (Felizmente ainda está vivo e vai fazer em breve 80 anos.)

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19196: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (58): os reordenamentos populacionais (Francesca Vita, doutoranda em arquitetura, Faculdade de Arquitetura, Universidade do Porto)


Guiné > Região de Bafatá >  Setor L1 (Bambadinca) > Nhabijões > CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) > Um grande aglomerado populacional, de maioria balanta, com parentes no "mato" (, isto é, nas fileiras do PAIGC; como guerrilheiros, ou elementos da população civil, sob a adinistração do PAIGC).

A dispersão das diversas tabancas (1 mandinga e 4 balantas: Cau, Bulobate, Dedinca e Imbumbe), sua proximidade ao Rio Geba, fazendo ponto de cambança para a margem direita (Mato Cão, Cuor...) e as duas grandes bolanhas (um delas a de Samba Silate, uma enorme tabanca destruída e abandonada no início da guerra), foram motivos invocados para começar a construir, a partir de novembro de 1969, um dos maiores reordenamentos da Guiné no tempo de Spínola. A aposta era também a conquista da população, fugida no mato e sob controlo do PAIGG, vivendo ao longo da margem direita do Rio Corubal (desde a Ponta do Inglês até Mina/Fiofioli)

Foto: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. [Edição  e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Bafatá >  Setor L1 (Bambadinca) > Nhabijões > CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) e CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) >  Uma pausa nos trabalhos do reordenamento de Nhabijões (1970). Foto gentilmente cedida por Luís R. Moreira, ex-slf mil sapador,  CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), e membro da equipa técnica de construção do reordenamento.

Foto )e legenda): © Luís R. Moreira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição  e legendagem: complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Fotococópia da capa da brochura Os reordenamentos no desenvolvimento sócio-económico das populações. Província da Guiné, Bissau: Comando-Chefe das Forças Armadas da Guine. Quartel General. Repartição AC/AP. s/d.

Foto: © A. Marques Lopes / António Pimentel (2007). Todos os direitos reservados. [Edição  e legendagem: complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro "A Engenharia Militar na Guiné - O Batalhão de Engenharia". Coord. Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar. Lisboa : Direcção de Infraestruturas do Exército, 2014, 166 p. : il. ; 23 cm. PT 378364/14 ISBN 978-972-99877-8-6.  Cortesia de Nuno Nazareth Fernandes.


1. Mensagem da nossa leitora Francesca Vita, italiana, a fazer um doutorame em arquitetura (FAUP):

Data: terça, 30/10/2018 à(s) 10:28
Assunto: Guerra Colonial Guiné-Bissau | encontro conversa

Bom dia,  Sr. Prof. Luís Graça,

Chamo-me Francesca Vita, sou professora na Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos e doutoranda em Arquitectura na FAUP do Porto com uma investigação sobre a transformação do espaço doméstico na Guiné-Bissau.

Venho com este meio contactá-lo de seguimento a um email que enviei ao sr, Eduardo Magalhães Ribeiro. Este último sugeriu-me que era melhor entrar em contacto consigo para algumas questões que estou a investigar.  

Estou a realizar uma pesquisa sobre os reordenamentos populacionais durante os últimos anos da Guerra Colonial na Guiné-Bissau: 

(i) quando começaram a ser construídos;

(ii) de que forma;

(iii) quais foram os aldeamentos prioritários;

(iv) como se chegou a sua construção no campo;

(v) eventuais problemas encontrados etc.

Tenho algum material encontrado no Arquivo Histórico Militar em Lisboa, nos Arquivos de Bissau e no Arquivo Histórico Ultramarino sobre o qual queria conversar: fotografias aéreas, plantas, relatórios, etc.. 

Se estaria disponível gostaria muito de conversar consigo sobre estes assuntos.

Agradeço desde já a sua disponibilidade e atenção,

Aguardando uma sua resposta

Os meus melhores cumprimentos

Francesca Vita
____________

Francesca Vita
PhD student in Architecture at FAUP
FCT PhD studentship
PT / IT
(Port) +351 915544599
(Ita) +39 3312831235

francesca.vita0@gmail.com


2. Uma primeira resposta do nosso editor LG;

Francesca, terei muito gosto em ajudá-la... Conheci o grande reordenamento de Nhabijões, no setor de Bambadinca, região de Bafatá.... Bem como o de Bambadincazinho, Posso pô-la em contacto com alguns camaradas meus que  trabalharam em Nhanijões. Eu caí numa mina A/C à saída do reordenamento. Não tenho por isso as melhores recordações do lugar... Tenho escritos sobre isso no blogue... Há 20 referências no blogue com o descritor "reordenamentos".

Já falámos, enretanto, ao telefone. Para além de uma entrevista comigo, a agendar para a semana, há para já dois contactos que lhe vou dar, de dois camaradas que são profundos conhecedores da temática dos reordenamentos, por terem trabalhado nas suas equipas técnicas:


Tem 31 referências no nosso blogue. Engenheiro Técnico de Construções Civis no Ministério das Obras Públicas, prestou serviço na Guiné como Capitão Miliciano de Artilharia, entre 1970 e 1972, no BENG 447, com sede em Bissau. É autor, entre outras obras, do   livro "Memórias da Guiné", Edições Polvo, Lda, 2005 [, vd. capa à direita,]  de que publicámos diversos excertos. (*)

No BENG 447, e dadas as qualificações da vida civil, chefiou os Serviços de Reordenamentos Populacionais.

(,,,) "Tratava-se de um serviço dirigido por militares que era essencialmente destinado às populações civis. Tinha em vista proceder ao agrupamento de diversas pequenas "tabancas" com o fim de constituir aldeamentos médios onde fosse rentável dotá-los com algumas infraestruturas tais como escolas, postos sanitários, fontanários, tanques de lavar, cercados para o gado, mesquitas ou capelas. Além disso tinha-se também em vista, com a execução dos reordenamentos, a defesa e o controle das populações." (...)

Nessa qualidade, a sua actividade não estava por isso circunscrita à cidade de Bissau;

(...) "Tinha por vezes que me deslocar ao interior do território para resolver localmente problemas que surgiam durante as obras dos reordenamentos populacionais. Fiz, por isso, algumas viagens para o interior da Guiné em helicóptero ou em avião militar (Dornier). Essas viagens tinham alguns riscos devido aos independentistas, a certa altura, se terem apetrechado com mísseis terra-ar [, s´a partir do 1º trimestre de 1973,] e devido aos tornados que por vezes se formavam e que eram perigosos principalmente para as pequenas aeronaves." (,,,(

(...) Comigo as deslocações ao interior da Guiné correram sempre sem perigo, mas para outros militares não foi sempre assim. O Batalhão de Engenharia 447 tinha como funções dar apoio às tropas aquarteladas na Guiné no âmbito de garantir o regular funcionamento dos quartéis, promover o fornecimento de geradores eléctricos, orientar e apoiar as obras de reordenamentos populacionais, fornecer material de manutenção, construir estradas, pontes e portos de atracagem, quartéis e abrigos subterrâneos, etc." (,..)

Há uma página no Facebook sobre o BENG 447, Brá, Guiné - Comunidade (sem movimento desde há um ano...). No nosso blogue há cerca de 7 dezenas de referências ao BENG 447. E temos vários camaradas da engenharia militar na nossa Tabanca Grande.


Tem 23 referência no nosso blogue. Foi alf mil sapador,  CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), e membro da equipa técnica de construção do reordenamento de Nhabijões (**). Foi gravemente ferido numa mina A/C, à saída do reordenamento.  Completará a sua comissão de serviço militar no BENG 447, depois de tratado e recuperado no Hospital Militar 241, em Bissau. É hoje DFA - Deficiente das Forças Armadas.

Vou pôr a Francesca em contacto com estes camaradas.

Leia também este documento: Os reordenamentos no desenvolvimento sócio-económico das populações. Província da Guiné, Bissau: Comando-Chefe das Forças Armadas da Guine. Quartel General. Repartição AC/AP. s/d.

O documento em causa foi reproduzido, julgo que na íntegra, no nosso blogue em 2007: aqui tens os dois postes (***) 

Boa saúde, bom, trabalho. Luís Graça (****)

PS - Veja também o livro "A Engenharia Militar na Guiné - O Batalhão de Engenharia".
Coord. Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar. Lisboa : Direcção de Infraestruturas do Exército, 2014, 166 p. : il. ; 23 cm. PT 378364/14 ISBN 978-972-99877-8-6.
 _________________

Notas do editor;

(*) Vd. poste de 18 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12057: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (9): Os reordenamentos populacionais

(**) Vd. poste de 21 de setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P182: O reordenamento de Nhabijões (1969/70) (Luís Graça)

(***) Vd. psotes de:


 16 de setembro de  2007 > Guiné 63/74 - P2108: A Política da Guiné Melhor: os reordenamentos das populações (2) (A. Marques Lopes / António Pimentel)

Vd. também poste de 26 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14189: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XXI: outubro de 1973: Flagelação, pela primeira vez, do reordenamento de Nhabijões, de maioria balanta, com parentes no mato...

(****) Último poste da série > 1 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19157: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (57): Contactos de fotocines precisam-se para documentário sobre o seu papel na guerra colonial (Hélder Sousa/ Marisa Marinho)

terça-feira, 10 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16074: Na festa dos 12 anos, "manga de tempo", do nosso blogue (11): Honrando os nossos "mais velhos": Fernando Valente (Magro), cap mil art, BENG 474 (Bissau, 1970/72), que faz hoje 80 anos... Tem 60 meses / 5 anos de serviço militar, e mais 5 manos que serviram a Pátria em Angola, Guiné e Moçambique... Recorda-se também aqui o relevante papel da engenharia militar na Guiné, através do BENG 447


Capa do livro "A Engenharia Militar na Guiné - O Batalhão de Engenharia". Coord. Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar. Lisboa : Direcção de Infraestruturas do Exército, 2014, 166 p. : il. ; 23 cm. PT 378364/14 ISBN 978-972-99877-8-6.  Índice da obra: ver aqui.

[Cortesia de Nuno Nazareth Fernandes] (*).


1. Em honra do nosso camarada Fernando Valente (Magro) que hoje faz 80 (oitenta anos!) (o outro aniversariante é o Henrique Matos, "régulo da Tabanca do Algarve") (*) e é um dos "nossos mais velhos", o que na cultura da Tabanca Grande significa, mais do que um 'posto', respeito, apreço, orgulho ...

Recorde-se que Fernando Valente (Magro):

(i) nasceu a 10/05/1936 em Arouca;

(ii) foi Engenheiro Técnico de Construções Civis no Ministério das Obras Públicas;

(iii) prestou serviço na Guiné como Capitão Miliciano de Artilharia, entre 1970 e 1972, no BENG 447;

(iv) é membro da Associação Portuguesa de Escritores;

(v) é autor das seguintes obras literárias: Menina do Meu Pensar; A Canção Arábica;  Memórias da Guiné; Um Olhar Abrangente; As Aventuras de Robin dos Bosques;

(vi) tem dois blogues: Portugal e o Passado..; Histórias da Vida Real.

Do primeiro blogue voltamos aqui a reproduzir, em sua honra e em honra dos demais camaradas do BENG 447, um poste com a data de 12 de maio de 2015. Foi originalmente publicado no seu livro  "Memórias da Guiné",  Edições Polvo, Lda, 2005...  É um notável poste, não só pelos apontamentos biográficos como pelo relato da trágica emboscada que sofreram as NT em 22/3/1974, a um mês do 25 de abril, na estrada Piche-Nova Lamego, no troço entre Bentem e Camabajá, poderosamente evocado pelo fur mil do BENG 447, Manuel Pedro Santos. É uma forma de os associarmos também, aos nossos camaradas da engenharia militar, à festa dos nossos 12 anos: o nosso blogue nasceu em 23/4/2004 (***).

Há uma página no Facebook sobre o BENG 447, Brá, Guiné - Comunidade  (sem movimento desde há um ano...). No nosso blogue há cerca de 7 dezenas de referências ao BENG 447. E temos vários camaradas da engenharia militar na nossa Tabanca Grande.


2. Poste do blogue Portugal e o Passado... A nossa verdade sobre a história de Portugal... > 12 de maio de 2015 >  A Agonia do Império (excerto)

por Fernando Valente (Magro)


Guiné > s/l > s/d > c. 1970/72] > O Cap Mil Fernando Valente (Magro), à esquerda, acompanhando o Gen Spínola e o Comandante Militar; ao centro, o Ajudante de Campo do Com-Chefe, Almeida Bruno.

[Cortesia do blogue Os Magros do Capim - A gesta de seis irmãos que cumpriram Serviço Militar em África (Angola, Guiné e Moçambique)]

(...) Essa guerra [, a guerra colonial], em três frentes, tornar-se-á longa obrigando a um grande esforço material e humano, com sacrifício de várias gerações de jovens soldados, enquadrados por sargentos e oficiais do quadro permanente e do quadro de complemento (milicianos).

No caso da minha família (Valente Magro) todos os meus cinco irmãos e eu próprio fomos chamados a prestar serviço militar obrigatório e todos fomos mobilizados: um para Moçambique, como alferes miliciano;  dois para Angola sendo um deles no posto de furriel,  e o outro como cabo especialista da Força Aérea;  e três para a Guiné, sendo eu, o mais velho, como capitão miliciano, o mais novo como furriel [Abílio Magro] e o imediatamente a seguir ao mais novo como primeiro cabo auxiliar de enfermeiro [, Álvaro Magro].

No meu caso particular,  fui duas vezes incorporado obrigatoriamente na vida militar. Em 1959 iniciei o cumprimento da minha primeira obrigação militar na Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas como cadete tendo acabado como aspirante oficial miliciano no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves n.º 3, em Paramos, Espinho. Somente regressei à vida civil em Fevereiro de 1960 como alferes miliciano, tendo sido promovido mais tarde a tenente miliciano na disponibilidade. Estive nas fileiras do exército nessa primeira fase durante vinte meses.

Depois disso entrei ao serviço do Ministério das Obras Públicas como engenheiro técnico, casei e nasceu o meu filho Fernando Manuel em 1961, precisamente no ano da invasão e anexação pelas tropas da União Indiana das possessões de Goa, Damão e Diu.

Também em 1961 teve início a guerra colonial de Angola, que se estendeu rapidamente à Guiné e a Moçambique como já referi anteriormente. Na altura, em 1961, ainda receei ser mobilizado como alferes, mas tal não se verificou. Mas em 1968, passados sete anos, tive conhecimento que, por haver muita falta de comandantes e companhia (capitães),  o governo estava incorporando os tenentes milicianos na disponibilidade a fim de frequentarem obrigatoriamente um curso de promoção a capitães, tendo em vista a sua mobilização, nesse posto, para as guerras coloniais em África.

O aviso para me apresentar em Mafra a fim de frequentar o referido curso de promoção a capitão chegou-me a vinte e oito de Fevereiro de 1969. Em Março desse mesmo ano fui pela segunda vez incorporado no exército e só passei à disponibilidade em trinta de Junho de 1972, isto é, passados quarenta meses. Como na minha primeira incorporação tinha estado vinte meses ao serviço do exército, com esta segunda incorporação perfiz sessenta meses, isto é cinco anos de vida militar obrigatória.

Vida militar que na segunda fase compreendeu uma comissão na Guiné de 10 de Abril de 1970 a 30 de Junho de 1972. Essa comissão que inicialmente estava para ser cumprida comandando uma companhia operacional no mato, acabou por ser levada a efeito no Batalhão de Engenharia 447, em Bissau por intervenção do Governador e Comandante-Chefe da Guiné, General Spínola, que decidiu colocar-me no referido batalhão de engenharia aproveitando a minha formação civil. Aí chefiei os Serviços de Reordenamentos Populacionais.

Tratava-se de um serviço dirigido por militares que era essencialmente destinado às populações civis. Tinha em vista proceder ao agrupamento de diversas pequenas "tabancas" com o fim de constituir aldeamentos médios onde fosse rentável dotá-los com algumas infraestruturas tais como escolas, postos sanitários, fontanários, tanques de lavar, cercados para o gado, mesquitas ou capelas. Além disso tinha-se também em vista, com a execução dos reordenamentos, a defesa e o controle das populações.

Capa do livro, edições Polvo, 2005
A minha actividade não estava por isso circunscrita à cidade de Bissau. Tinha por vezes que me deslocar ao interior do território para resolver localmente problemas que surgiam durante as obras dos reordenamentos populacionais. Fiz, por isso, algumas viagens para o interior da Guiné em helicóptero ou em avião militar (Dornier). Essas viagens tinham alguns riscos devido aos independentistas, a certa altura, se terem apetrechado com mísseis terra-ar e devido aos tornados que por vezes se formavam e que eram perigosos principalmente para as pequenas aeronaves.

Durante a minha estadia na Guiné ocorreu um acidente justamente com um helicóptero que transportava cinco deputados da Assembleia Nacional e que um tornado fez despenhar no rio Mansoa tendo morrido todos os seus ocupantes.

Comigo as deslocações ao interior da Guiné correram sempre sem perigo, mas para outros militares não foi sempre assim. O Batalhão de Engenharia 447 tinha como funções dar apoio às tropas aquarteladas na Guiné no âmbito de garantir o regular funcionamento dos quartéis, promover o fornecimento de geradores eléctricos, orientar e apoiar as obras de reordenamentos populacionais, fornecer material de manutenção, construir estradas, pontes e portos de atracagem, quartéis e abrigos subterrâneos, etc.

Muitos elementos do BENG 447 tinham de se deslocar ao mato frequentemente em colunas por via terrestre e alguns correram grandes riscos como podemos constatar pelo relato trágico que o Furriel Miliciano de Engenharia Pedro Manuel Santos fez no livro "A Engenharia Militar na Guiné" (no qual também colaborei) (*) quando descreve uma emboscada que sofreu uma coluna de dez viaturas, em que ele mesmo seguia, da seguinte forma:

"No dia 22 de Março de 1974 quando regressava de Piche para Nova Lamego, em coluna militar, e após termos percorrido cerca de dez quilómetros entre Benten e Cambajá, cerca das 8:30 horas, sofremos uma emboscada de grande violência.

O PAIGC (Partido para a Independência da Guiné e Cabo Verde) tinha colocado à beira da estrada cerca de 110 abrigos e outra grande quantidade de guerrilheiros em cima de mangueiros. O número de guerrilheiros estimou-se entre duzentos e duzentos e cinquenta elementos...

A nossa coluna militar era constituída por dez viaturas, sendo duas chaimites, uma white, três berliets e quatro unimogs. Quando deflagrou a emboscada as duas chaimites da frente foram as primeiras a ser atacadas com RPGês bem como uma white e um unimog.

A primeira chaimite onde ia o capitão Luz Afonso passou e saiu da estrada protegendo-se no mato no lado oposto ao dos guerrilheiros tendo sido ainda atingida por um rocket de raspão. A segunda chaimite, onde ia eu, apanhou uma rocketada à frente, bem como no lugar onde ia o condutor e o Furriel Soares que a comandava. Perfurou o blindado e cortou as pernas aos dois referidos camaradas que começaram a gritar por ajuda.

O cabo Augusto Graça que ia na metralhadora, com uma enorme frieza dispara durante algum tempo até que a velha máquina se encravou. Durante uns minutos, que me pareceram anos, a chaimite começou a arder pela frente e as chamas envolveram os companheiros que tinham sido atingidos pela rocketada e que já estavam sem pernas.

Lembro-me de olhar nos olhos o Furriel Soares, que comandava a chaimite, e que me pediu para o não deixar morrer ali. Por segundos tentei pegar num deles mas a viatura já se encontrava com um nível de calor muito elevado e o perigo de ficarmos todos lá dentro era iminente.

O cabo atirador Augusto Graça apenas teve tempo de abrir metade da escotilha do blindado e gritar para fugirmos. Já não pude fazer mais nada. Tive de abandonar o blindado. Saí eu, o capitão miliciano Fernando e o cabo Augusto Graça. Corri cerca de cem metros e logo atrás de mim um guerrilheiro do PAIGC tentou agarrar-me à mão. De imediato os depósitos da chaimite rebentaram e deu-se uma enorme explosão.
Ainda me lembro de ouvir as balas e as granadas que estavam dentro do blindado a rebentar e os últimos gritos dos meus dois camaradas! Nesse momento o guerrilheiro que correu atrás de mim, em volta de um enorme morro de formigas "baga baga", desistiu, presumo que assustado pela enorme explosão da chaimite e consegui despistá-lo fugindo para o mato. A minha G3 tinha ficado no blindado.


Guiné > Zona leste > Região de Gabú > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Coluna logística, vinda (presumivelmente) de Nova Lamego e a chegar a Piche... À frente uma Chaimite, seguida de uma White... As duas viaturas deveriam, possivelmente, pertencer ao Esq Rec Fox 8840 (Bafatá, 1973/74). Foto do álbum fotográfico do nosso camarada Jacinto Cristina (Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo).

Foto: © Jacinto Cristina (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

Dentro do mato encontrei o capitão Fernando... ele trazia uma pistola Walter e disse-me: esta pistola é para nos suicidarmos se formos agarrados à mão!

A partir de aí perdi por completo a memória, não sei por onde andei nem durante quanto tempo, mas dizem-me que foi por um dia inteiro. Tenho uma vaga ideia de ir ter sozinho à estrada e encontrar o Furriel Fidalgo que fazia segurança ao material queimado. Senti o cheiro de carne humana queimada que saía da minha chaimite e que até hoje nunca mais me saiu do nariz.

Levaram-me para Piche onde o nosso capitão Luz Afonso já se encontrava à espera de transporte para Bissau. Segui, depois, para Nova Lamego onde fui tratado a uma perna que ficou ferida ao sair por metade da escotilha da chaimite. Fui depois evacuado para o Hospital Militar de Bissau...

A minha arma foi entregue mais tarde no BENG 447 apenas com a parte de ferro crivada das balas que rebentaram dentro da chaimite. O Furriel Fidalgo disse-me que quando apareci do mato e o encontrei junto à estrada só gritava para ele: "Foge que vem aí os amarelos!" (referindo-me aos fardamentos do guerrilheiros do PAIGC) e que estava completamente baralhado da cabeça. 

Chamaram-me o "morto-vivo" por ter sido dado como morto e depois aparecer com vida. Nesta emboscada tivemos seis mortos (****), dezasseis feridos muito graves e três feridos ligeiros. Tenho na memória alguns camaradas a respirar pelas costas e já sem vida. Alguns completamente desfeitos. Outros a serem tratados com garrotes.

Quando regressei à metrópole para junto da minha família... senti-me completamente abandonado e entregue a mim próprio. Ninguém me perguntou se estava bem ou mal, se precisava ou não de qualquer tipo de ajuda. Tinha de recomeçar a minha vida...

Hoje, passados quarenta anos, acho imprescindível este desabafo para que alguém com poderes para isso não deixe que a história se repita neste capítulo.

Esta é apenas uma história entre outras que em dois anos sucederam e que não gosto de contar mas entendo que a devia escrever. A todos os ex-combatentes ainda vivos deixo uma palavra de coragem para acabarmos os dias que nos falta viver.

As gerações vindouras que não esqueçam a brutalidade a que o Governo de então submeteu os jovens da nossa geração. Quando se fala de ex-combatentes deve tributar-se o respeito que eles merecem pois marcaram e fazem parte de uma página da história que, em nome da Pátria, foram obrigados a cumprir e muitos a darem, inclusive, a sua própria vida."

[Texto originalmente publicado em "Memórias da Guiné",  de Fernando Magro,  Edições Polvo, Lda, 2005]



Guiné > Zona leste > Região de Gabu  > Carta de Nova Lamego > Escala 1/50 mil (1957) > Pormenor: Troço Cambajá-Bentem na estrada Nova Lamego

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016).
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(***) Último poste da série > 8 de maio de 2016 >  Guiné 63/74 - P16065: Na festa dos 12 anos, "manga de tempo", do nosso blogue (10): Republicando o poste P5807, de 13/2/2010: O 6.º aniversário do nosso Blogue (1): Homenagem ao Fundador Luís Graça e a toda a tertúlia (Jorge Félix/Carlos Vinhal)

(****) Nesta emboscada, na estrada de Piche-Nova Lamego,  morreram 2 soldados e 2 furriéis do Esq Rec Fox 8840, 1 soldaddo da CCAÇ 21 e 1 soldado do 12.º Pel Art

Lembremos aqui o nomes desses bravos camaradas:

(i) Do EREC 8840/72 (Bafatá, 1973/74):

2 fur mil cav, José António da Costa Teixeira, natural de Lousada; e Manuel Joaquim Sá Soares, natural de Santo Tirso; e

2 sold cav,  João da Costa Araújo, natural de Ponte Lima; e Victor Manuel de Jesus Paiva, natural de Castelo Branco;

(ii) Dois soldados naturais da Guiné: Bailó Baldé, natural de Nova Lamego, sol at inf, CCAÇ 21; e Bambo Nanqui, natural de Fulacunda, sold at art, 12º Pel Art / GAC 7.

Guiné 63/74 - P16072: Parabéns a você (1076): Fernando Valente (Magro), ex-Cap Mil Art do BENG 447 (Guiné, 1970/72) e Henrique Matos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1966/68)


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Nota do editor

Último poste da série de 5 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16050: Parabéns a você (1074): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 2317 (Guiné, 1968/69)

sexta-feira, 18 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15874: Notas de leitura (819): "Seis Irmãos Em África", narrativa cativante à volta de seis irmãos nascidos entre 1936 e 1951 que foram à guerra em Angola, Moçambique e Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Estamos sempre a aprender, estes seis irmãos experimentaram a guerra e juntaram os relatos que forçosamente nos tocam pela ausência de redundâncias e arrebiques, não há para aqui declarações de valentia nem a descarga de azedumes, as coisas foram assim, e ninguém encenou bravatas, há mesmo a propensão para as horas de folia, até há uma descrição humorada de um amanuense que viu em Cacine os lances dramáticos, as sequelas dos ataques a Gadamael, naqueles bravios meses de 1973.
Honra aos Magro, pelo que se lê vieram de boa saúde e guardam o que há de melhor nos tempos de camaradagem que a guerra permite.

Um abraço do
Mário


Os seis irmãos Magro deixaram a casa e foram à guerra

Beja Santos

Trata-se de uma narrativa cativante à volta de seis irmãos nascidos entre 1936 e 1951 que foram até Angola, Moçambique e Guiné participar na guerra, cada um na sua especialidade. Não sei se existe outra família com tal historial. Juntaram memórias que primam pela singeleza e economia descritiva nas diferentes abordagens. Nada de grandes amarguras, nada de mistificações, sente-se que os Magro são folgazões e não querem fazer alarido de bravuras que não viveram. Fazem parte de um arco familiar que nunca foi esquecido, como escrevem: “Uma casa repleta de juventude e movimento ficou, no espaço de dois ou três anos, vazia, fria, envolta em tristeza, albergando apenas o pai, já viúvo. A mãe, doente, vira partir e apenas regressar um. Foi duro. Já não viu partir o sexto”.

Do mais velho já aqui falámos, o Capitão Miliciano de Artilharia Fernando Magro, que teve responsabilidades em Bissau pelas obras dos ordenamentos. Tinha prestado serviço militar entre 1958 e 1960, foi repescado em 1968. Com a saúde precária, foi colocado em Bissau nos Serviços de Reordenamentos Populacionais, chefiando depois os Serviços do Batalhão de Engenharia 447, tendo acumulado atividades extras. Retomando um texto publicado, lembra-nos que a rapaziada da Engenharia que tinha como funções dar apoio às tropas aquarteladas na Guiné, promovendo o fornecimento de geradores elétricos, orientando e apoiando as obras de reordenamentos populacionais, construindo estradas, pontes e portos de atracagem e até quarteis, também corriam perigos, como nos conta os acontecimentos vividos pelo Furriel Miliciano de Engenharia Pedro Manuel Santos, constante do livro “A Engenharia Militar na Guiné”, uma emboscada sofrida entre Piche e Nova Lamego, em 22 de Março de 1974, seguiam na coluna militar elementos do Batalhão de Engenharia. Escreve Pedro Manuel Santos: “Nesta emboscada tivemos 6 mortos, 16 feridos muito graves e 3 feridos ligeiros. Tenho na memória alguns camaradas a respirar pelas costas e já sem vida. Alguns completamente desfeitos. Quando regressei à metrópole senti-me completamente abandonado e entregue a mim próprio. Ninguém me perguntou se estava bem ou mal, se precisava ou não de qualquer tipo de ajuda. Tinha de recomeçar a minha vida”.

A seguir a Fernando vem Rogério, Furriel Miliciano Atirador de Infantaria, em Angola, 1967/1969. “O Rogério foi dos seis irmãos que prestaram serviço nas ex-províncias ultramarinas o que certamente teve o percurso militar mais duro, como maiores privações e que enfrentou maiores perigos”. Depõe sobre os seus dias em Lumbala, 48 dias a comer rações de combate, não faltaram emboscadas, relata histórias de solidariedade e até ordem de prisão. Para nunca mais esquecer foi uma história vivida em Maio de 1968 em que o mandaram levantar o dinheiro para pagar os ordenados da CCAÇ 1719, andou com a pasta apavorado uma série de dias, um pesadelo quando podiam ter sido alguns dias de férias no Luso.

O terceiro irmão chama-se Dálio, Alferes Miliciano de Engenharia, andou por Moçambique, em Marrupa, entre 1970 e 1972. A despeito da canseira das colunas e dos ataques de abelhas, é o Magro que terá levado a comissão com a maior carga de otimismo e bonomia. Temos depois o caso de Alberto, Especialista da Força Aérea, cumpriu seis anos de serviço militar entre Tancos, Angola e S. Jacinto. Guarda recordações das evacuações, das idas à caça e da operação Siroco, que envolveu tropas especiais.

O mano seguinte é Álvaro, Primeiro-Cabo Auxiliar de Enfermagem, começou em Mansambo, participou numa operação militar, adormeceu e quando acordou viu-se sozinho. O irmão Fernando, Capitão em Bissau, tudo fez para o trazer para o Hospital Militar de Bissau. É por esse tempo que morre a mãe dos Magro, ainda muito nova, foi um abalo para aquela ninhada de oito irmãos.

O último dos Magro, de nome Abílio, foi Furriel Miliciano Amanuense. Deixa-nos um registo do Major Leal de Almeida, amigo do irmão Fernando. Viveu a contragosto o período turbulento dos ataques a Gadamael e de toda aquela gente que se foi recolher a Cacine. Não esqueceu as bombas em Bissau, no café Ronda, no autocarro da Base Aérea e o dia 25 e 26 de Abril em Bissau. Mas divertiu-se imenso, gostou de aprender crioulo, é um belíssimo relato. No termo destas memórias, fecha-se o arco familiar falando dos pais, Acácio Lamares Magro e Adelina de Pinha Valente. Seis irmãos que andaram por várias paragens e que passaram a limpo as suas memórias, sem prosápia nem farronca; dá gosto esta leitura de gente que não precisa de fazer alarde nem teatro nem fantasia do que experimentaram e guardaram para nos contar.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15855: Notas de leitura (816): "Seis irmãos em África", edição de autor, Porto, 2016... Um excerto: "Perdido no mato de Mansambo... por uma hora!" (Álvaro Magro, ex-1º cabo aux enf, CART 3494, Mansambo, e HM 241, Bissau, 1971/74)

quarta-feira, 16 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15864: Tabanca Grande (483): Álvaro Magro (ex-1.º Cabo Aux Enf da CART 3493, Mansambo e HM 241 de Bissau, 1971/74). Passa a ser o grã-tabanqueiro n.º 712, com direito a sentar-se à sombra do nosso poilão, ao lado dos seu manos Abílio Magro e Fernando Valente Magro

1. Aceitou o nosso convite para integrar a Tabanca Grande, sob o n.º 712,  o Álvaro Magro, ex-1.º Cabo Aux Enf (CART 3493, Mansambo e HM 241, 1971/74), um dos seis "Magros do capim", co-autor do livro "Seis Irmãos em África" (*)

O convite fora há dias dirigido nestes termos:

(...) "E como há sempre um Magro desconhecido, aqui vai a ficha da tropa do Álvaro Valente Lamares Magro, o terceiro da família que foi parar à Guiné e a quem eu peço licença para enfileirar na Tabanca Grande, ao lado dos manos Fernando Valente (Magro) e Abílio Magro, se eles. os três, concordarem... 

O mais importante é a vontade e a opinião do Álvaro, por muito que prezemos a opinião do mano mais velho (Fernando) e do mais novo (Abílio). Temos um número para ele, o 712, um lugar jeitoso à sombra do mágico poilão da Tabanca Grande... Era muito honroso termos cá, todos sentadinhos e bem comportadinhos, os três manos Magro que foram à Guiné... É caso único...

Se os outros três, que andaram por outros "matos" (Angola e Moçambique) se quiserem juntar a nós, era ouro sobre azul!... Acho que nos podíamos candidatar ao Guiness Book of Records!... (Na verdade, não conheço até agora nenhum blogue da guerra que tenha juntado, sob o mesmo poilão, seis irmãos, combatentes)...

Vou pedir ao mano Abílio para fazer uma reunião de família... Convidar só o Álvaro, até parece mal!... Bolas, os outros três, também são filhos do mesmo pai e da mesma mãe: o Rogério, o Dálio e o Carlos!... (LG) (...).

O Álvaro respondeu logo,  na sua página do Facebook, e a mensagem chegou-nos através do mano Abílio, nestes termos:

Caro Luís Graça,

E com todo prazer e honra, enfileirar na Tabanca Grande, ao lado dos manos Fernando e Abílio.

Um abraço a todos Tabanqueiros.

Álvaro.

2. Ficha da tropa

(i) em janeiro e 1971, é  incorporado no Exército, fazendo a recruta no RI 7, Leria;

(ii) em abril, faz a instrução de especialidade no Regimento de Serviços de Saúde, Coimbra;

(iii) em Julho/agosto, faz estágio  HMR-1, Porto;
O Álvaro Magro, em Mansambo (1972)

(iv) em setembro/outubro, EPI, Mafra;

(v) em Novembro, é mobilizado para Moçambique;

(vi) em dezembro, é desmobilizado e novamente mobilizado, mas desta vez para a Guiné, onde chega no final do mês:
(vii) é integrado na CART 3493 (Mansambo, 1971/72), como 1.º Cabo Aux Enf; 

(viii)  em março de 1972, consegue transferência para o HM 241, Bissau onde presta serviço na Secretaria até ao fim da Comissão;

(ix) passa à situação de disponibilidade em 26 de fevereiro de 1974.

3. Comentário do editor:

Álvaro, sê bem vindo  a esta fantástica comunidade, real e virtual, dos camaradas e amigos da Guiné. As nossas regras de convívio são simples, estão aqui "on line": todos cabemos nesta tabanca (e por isso ela é grande) com tudo o que nos uniu ontem e une hoje, e até com as diferenças que nos pode separar (política, religião, futebol, etc.). 

Os manos estão por aqui: Abílio Magro (mais de 30 referências) e Fernando Valente (Magro) (um quarteirão de referências)... Apreciamos histórias e fotos... Para que os nossos filhos, netos e bisnetos não se esqueçam de nós, que na Guiné fizemos a guerra e a paz. Sabemos que fazes anos a 19 de maio, diz-nos se queres festejar connosco, na Tabanca Grande.

 Apreciaríamos, por outro lado, poder  ter o teu endereço de email. Manda uma mensagem com um OK na volta do correio. (**)
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Notas do editor:

domingo, 13 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15847: Notas de leitura (816): "Seis irmãos em África" (edição de autor, Porto, 2016, 278 pp.): um livro de memórias escrito a 12 mãos pelos "Magros do Capim": três estiveram no TO da Guiné, e dois deles são nossos grã-tabanqueiros, o Abílio Magro e o Fernando Valente (Magro)... Dois passaram por Angola, e outro esteve em Moçambique... Ao todo, 1 capitão, 1 alferes, 2 furriéis, 2 cabos









Capa e contra-capa do livro "Seis Irmãos em África" (Porto, ed. autor, 2016)


Têm um sítio na Net, Magros do Capim, e acabam de publicar um livro, Seis Irmãos em África (edição de autor, Porto, 2016, 278 pp., impresso na Areagráfica).

É um livro de memórias escrito a 12 mãos, e composto por mais de meia centenas de pequenas/grandes histórias de uma "família tripeira" que teve seis filhos na guerra de África, 3 na Guiné, 2 em Angola, e outro em Moçambique, com diferentes postos (1 capitão, 1 alferes, 2 furriéis, 2 cabos), e com diferentes especialidades (engenheiros,  infantes, auxiliar de enfermagem, especialista da FAP...).  Nascidos entre 1936 e 1951, chegaram a estar 4 em simultâneo em África. É um caso raro, senão mesmo único, no nosso país.

O nosso editor Luís Graça acaba de receber um exemplar do livro, autografado pelo Abílio Magro, nosso grâ-tabanqueiro, e com a seguinte dedicatória:

"À Grande Tabanca do Luís Graça com um alfabravo do amanuense [Abílio Magro, ilegível]".

Como explica a Cláudia Magro, filha do Abílio, no prefácio que escreveu com toda a ternura,  "no decorrer destas páginas, o leitor descobrirá,  através de textos e memórias contados na primeira pessoa, o cenário  do triste teatro que é a guerra. A particularidade e o que mais surpreende  nesta obra, são a emoção e a sinceridade  dos actores, neste caso  "interpretados" por seis irmãos que partiram quase todos em simultâneo para uma guerra descabida, deixando para trás os seus inquietos progrenitores".

O livro merece uma outra atenção por parte dos nossos editores. Este poste é apenas uma primeira, apressada mas calorosa,  apresentação. Aos "Magros do Capim" damos os nossos parabéns pela iniciativa, com destaque para os nossos grã-tabanqueiros, Fernando, o mais velho, e Abílio, o mais novo. Fomos agora a descobrir que o terceiro mano, que passou pelo TO da Guiné, é o Álvaro Magro, 1º cabo aux enf, da CART 3493, que esteve em Mansambo, setor L1, Bambadinca (1971/72), e no  HM 241 (1972/74).

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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15842: Notas de leitura (815): “A Marinha em África (1955-1975), Especificidades”, publicação da Academia da Marinha, 2014 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15638: Blogues da nossa blogosfera (73): No Blogue "Portugal e o Passado", A Agonia do Império, de Fernando Valente (Magro)



1. Publicamos hoje mais um texto do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), intitulado A Agonia do Império, enviado pelo seu irmão Abílio Magro em mensagem de 8 de Dezembro de 2015, que podemos ler, além de outros, no seu Blogue "Portugal e o Passado".


A Agonia do Império

Texto publicado por Fernando Magro no seu blog "Portugal e o Passado"

O Império Colonial Português abrangia em 1960 uma superfície total de 2.031.935 Km2, correspondendo à soma das superfícies dos seguintes países europeus: Portugal Continental, Espanha, França, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suíça, Alemanha e Inglaterra. Em área Portugal ocupava em 1960 o quarto lugar do mundo entre os impérios coloniais nessa altura. Os territórios que estavam sobre o domínio de Portugal eram, além do rectângulo europeu e das ilhas adjacentes da Madeira e dos Açores, o arquipélago de Cabo Verde, a Guiné, São Tomé e Príncipe, São João Baptista de Ajudá, Angola, Moçambique, Estado da Índia (composto por Goa, Damão e Diu), Macau (na China) e Timor (na Indonésia).

A partir porém de 1960 este vasto Império começa a desmoronar-se, devido a movimentos armados dos respectivos povos.
A primeira perda foi a de São João Baptista de Ajudá, uma presença simbólica portuguesa na costa do Daomé, uma vez que era praticamente constituída por uma fortaleza e um pequeno território a envolvê-la.

A 17 de Dezembro de 1961 a União Indiana ocupa militarmente o Estado Português da Índia e anexa Goa, Damão e Diu ao seu território. Nesse mesmo ano, em Angola é iniciada uma guerra de guerrilhas contra a nossa permanência naquela área de África, guerra que se estende rapidamente em 1962 à Guiné e em 1963 a Moçambique.

Essa guerra, em três frentes, tornar-se-á longa obrigando a um grande esforço material e humano, com sacrifício de várias gerações de jovens soldados, enquadrados por sargentos e oficiais do quadro permanente e do quadro de complemento (milicianos).

No caso da minha família (Valente Magro) todos os meus cinco irmãos e eu próprio fomos chamados a prestar serviço militar obrigatório e todos fomos mobilizados: um para Moçambique, como alferes miliciano, dois para Angola sendo um deles no posto de furriel e o outro como cabo especialista da Força Aérea e três para a Guiné, sendo eu, o mais velho, como capitão miliciano, o mais novo como furriel e o imediatamente a seguir ao mais novo como primeiro-cabo auxiliar de enfermeiro.

No meu caso particular fui duas vezes incorporado obrigatoriamente na vida militar. Em 1959 iniciei o cumprimento da minha primeira obrigação militar na escola prática de artilharia em Vendas Novas como cadete, tendo acabado como aspirante oficial miliciano no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves n.º 3, em Paramos, Espinho. Somente regressei à vida civil em Fevereiro de 1960 como alferes miliciano, tendo sido promovido mais tarde a tenente miliciano na disponibilidade.

Estive nas fileiras do exército nessa primeira fase durante vinte meses. Depois disso entrei ao serviço do Ministério das Obras Públicas como engenheiro técnico, casei e nasceu o meu filho Fernando Manuel em 1961, precisamente no ano da invasão e anexação pelas tropas da União Indiana das possessões de Goa, Damâo e Diu.

Também em 1961 teve início a guerra colonial de Angola, que se estendeu rapidamente à Guiné e a Moçambique como já referi anteriormente.

Na altura, em 1961, ainda receei ser mobilizado como alferes [tenente], mas tal não se verificou. Mas em 1968, passados sete anos, tive conhecimento que, por haver muita falta de comandantes de companhia (capitães) o governo estava incorporando os tenentes milicianos na disponibilidade a fim de frequentarem obrigatoriamente um curso de promoção a capitães, tendo em vista a sua mobilização, nesse posto, para as guerras coloniais em África.

O aviso para me apresentar em Mafra a fim de frequentar o referido curso de promoção a capitão chegou-me a vinte e oito de Fevereiro de 1969. Em Março desse mesmo ano fui pela segunda vez incorporado no exército e só passei à disponibilidade em trinta de Junho de 1972, isto é, passados quarenta messes. Como na minha primeira incorporação tinha estado vinte meses ao serviço do exército, com esta segunda incorporação perfiz sessenta meses, isto é cinco anos de vida militar obrigatória.

Vida militar que na segunda fase compreendeu uma comissão na Guiné de 10 de Abril de 1970 a 30 de Junho de 1972. Essa comissão que inicialmente estava para a ser cumprida comandando uma companhia operacional no mato, acabou por ser levada a efeito no Batalhão de Engenharia 447, em Bissau por intervenção do Governador e Comandante-Chefe da Guiné, General Spínola, que decidiu colocar-me no referido batalhão de engenharia aproveitando a minha formação civil.

Aí chefiei os Serviços de Reordenamentos Populacionais. Tratava-se de um serviço dirigido por militares que era essencialmente destinado às populações civis. Tinha em vista proceder ao agrupamento de diversas pequenas "tabancas"(*) com o fim de constituir aldeamentos médios onde fosse rentável dotá-los com algumas infraestruturas tais como escolas, postos sanitários, fontanários, tanques de lavar, cercados para o gado, mesquitas ou capelas.
Além disso tinha-se também em vista, com a execução dos reordenamentos, a defesa e o controle das populações.

A minha actividade não estava por isso circunscrita à cidade de Bissau. Tinha por vezes que me deslocar ao interior do território para resolver localmente problemas que surgiam durante as obras dos reordenamentos populacionais. Fiz, por isso, algumas viagens para o interior da Guiné em helicóptero ou em avião militar (Dornier). Essas viagens tinham alguns riscos devido aos independentistas, a certa altura, se terem apetrechado com mísseis terra-ar e devido aos tornados que por vezes se formavam e que eram perigosos principalmente para as pequenas aeronaves.

Durante a minha estadia na Guiné ocorreu um acidente justamente com um helicóptero que transportava cinco deputados da Assembleia Nacional e que um tornado fez despenhar no rio Mansoa tendo morrido todos os seus ocupantes.
Comigo as deslocações ao interior da Guiné correram sempre sem perigo, mas para outros militares não foi sempre assim.

O Batalhão de Engenharia 447 tinha como funções dar apoio às tropas aquarteladas na Guiné no âmbito de garantir o regular funcionamento dos quartéis, promover o fornecimento de geradores eléctricos, orientar e apoiar as obras de reordenamentos populacionais, fornecer material de manutenção, construir estradas, pontes e portos de atracagem, quartéis e abrigos subterrâneos, etc. Muitos elementos do BENG 447 tinham de se deslocar ao mato frequentemente em colunas por via terrestre e alguns correram grandes riscos como podemos constatar pelo relato trágico que o Furriel Miliciano de Engenharia Pedro Manuel Santos fez no livro "A Engenharia Militar na Guiné" (no qual também colaborei) quando descreve uma emboscada que sofreu uma coluna de dez viaturas, em que ele mesmo seguia, da seguinte forma:

"No dia 22 de Março de 1974 quando regressava de Piche para Nova Lamego, em coluna militar, e após termos percorrido cerca de dez quilómetros entre Benten e Cambajá, cerca das 8:30 horas, sofremos uma emboscada de grande violência.

O PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) tinha colocado à beira da estrada cerca de 110 abrigos e outra grande quantidade de guerrilheiros em cima de mangueiros. O número de guerrilheiros estimou-se entre duzentos e duzentos e cinquenta elementos...

A nossa coluna militar era constituída por dez viaturas, sendo duas chaimites, uma white, três berliets e quatro unimogs.

Quando deflagrou a emboscada as duas chaimites da frente foram as primeiras a ser atacadas com RPGês bem como uma white e um unimog.

A primeira chaimite onde ia o Capitão Luz Afonso passou e saiu da estrada protegendo-se no mato no lado oposto ao dos guerrilheiros tendo sido ainda atingida por um rocket de raspão. A segunda chaimite, onde ia eu, apanhou uma rocketada à frente, bem como no lugar onde ia o condutor e o Furriel Soares que a comandava. Perfurou o blindado e cortou as pernas aos dois referidos camaradas que começaram a gritar por ajuda.

O Cabo Augusto Graça que ia na metralhadora, com uma enorme frieza dispara durante algum tempo até que a velha máquina se encravou. Durante uns minutos, que me pareceram anos, a chaimite começou a arder pela frente e as chamas envolveram os companheiros que tinham sido atingidos pela rocketada e que já estavam sem pernas.

Lembro-me de olhar nos olhos o Furriel Soares, que comandava a chaimite, e que me pediu para o não deixar morrer ali.

Por segundos tentei pegar num deles mas a viatura já se encontrava com um nível de calor muito elevado e o perigo de ficarmos todos lá dentro era iminente.

O Cabo Atirador Augusto Graça apenas teve tempo de abrir metade da escotilha do blindado e gritar para fugirmos. Já não pude fazer mais nada. Tive de abandonar o blindado.

Saí eu, o Capitão Miliciano Fernando e o Cabo Augusto Graça. Corri cerca de cem metros e logo atrás de mim um guerrilheiro do PAIGC tentou agarrar-me à mão. De imediato os depósitos da chaimite rebentaram e deu-se uma enorme explosão.

Ainda me lembro de ouvir as balas e as granadas que estavam dentro do blindado a rebentar e os últimos gritos dos meus dois camaradas!

Nesse momento o guerrilheiro que correu atrás de mim, em volta de um enorme morro de formigas "baga baga", desistiu, presumo que assustado pela enorme explosão da chaimite e consegui despistá-lo fugindo para o mato. A minha G3 tinha ficado no blindado.

Dentro do mato encontrei o Capitão Fernando... ele trazia uma pistola Walter e disse-me: esta pistola é para nos suicidarmos se formos agarrados à mão!

A partir de aí perdi por completo a memória, não sei por onde andei nem durante quanto tempo, mas dizem-me que foi por um dia inteiro. Tenho uma vaga ideia de ir ter sozinho à estrada e encontrar o Furriel Fidalgo que fazia segurança ao material queimado. Senti o cheiro de carne humana queimada que saía da minha chaimite e que até hoje nunca mais me saiu do nariz.

Levaram-me para Piche onde o nosso Capitão Luz Afonso já se encontrava à espera de transporte para Bissau. Segui, depois, para Nova Lamego onde fui tratado a uma perna que ficou ferida ao sair por metade da escotilha da chaimite. Fui depois evacuado para o Hospital Militar de Bissau...

A minha arma foi entregue mais tarde no BENG 447 apenas com a parte de ferro crivada das balas que rebentaram dentro da chaimite.

O Furriel Fidalgo disse-me que quando apareci do mato e o encontrei junto à estrada só gritava para ele: "Foge que vem aí os amarelos!" (referindo-me aos fardamentos do guerrilheiros do PAIGC) e que estava completamente baralhado da cabeça. Chamaram-me o "morto-vivo" por ter sido dado como morto e depois aparecer com vida.

Nesta emboscada tivemos seis mortos, dezasseis feridos muito graves e três feridos ligeiros. Tenho na memória alguns camaradas a respirar pelas costas e já sem vida. Alguns completamente desfeitos. Outros a serem tratados com garrotes.

Quando regressei à metrópole para junto da minha família... senti-me completamente abandonado e entregue a mim próprio. Ninguém me perguntou se estava bem ou mal, se precisava ou não de qualquer tipo de ajuda. Tinha de recomeçar a minha vida...

Hoje, passados quarenta anos, acho imprescindível este desabafo para que alguém com poderes para isso não deixe que a história se repita neste capítulo. Esta é apenas uma história entre outras que em dois anos sucederam e que não gosto de contar mas entendo que a devia escrever. A todos os ex-combatentes ainda vivos deixo uma palavra de coragem para acabarmos os dias que nos falta viver.

As gerações vindouras que não esqueçam a brutalidade a que o Governo de então submeteu os jovens da nossa geração. Quando se fala de ex-combatentes deve tributar-se o respeito que eles merecem pois marcaram e fazem parte de uma página da história que, em nome da Pátria, foram obrigados a cumprir e muitos a darem, inclusive, a sua própria vida."

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Notas do editor

- Sublinhado da responsabilidade do editor

- Nesta emboscada morreram 2 Soldados e 2 Furriéis do Esq Rec Fox 8840, 1 Soldaddo da CCAÇ 21 e 1 Soldado do 12.º Pel Art

Último poste da série de 18 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15631: Blogues da nossa blogosfera (72): Uma aventura em África: em 14 de novembro de 1980, eu estava em Bissau... Depois do jantar, no Hotel 24 de Setembro, fui surpreendido pelo golpe de Estado do 'Nino' Vieira (Francisco George, antigo represente da OMS - Organização Mundial da Saúde na Guiné-Bissau)