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quarta-feira, 26 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24253: Historiografia da presença portuguesa em África (365): António de Cértima, cônsul português em Dacar, anos 1920 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Não fosse o documento que o cônsul português em Dacar nos deixa sobre a comunidade cabo-verdiana e esta obra passava-nos literalmente ao lado já que é aqui que é a Guiné a razão nuclear destas leituras. Mas há observações curiosas que nos ajudam a compreender a importância estratégica do Senegal no império colonial francês da África Ocidental. Aliás, quando frequentei o Arquivo Histórico do BNU, rapidamente me apercebi que o Senegal era para a França uma pequena joia da Coroa, foram muitos os senegaleses que combateram nas trincheiras, o estatuto de cidadania francesa pesava no orgulho senegalês e não foi por acaso que a partir de Teixeira da Mota se instituiu na Guiné Portuguesa uma cooperação científica de grande valor com o IFAN, Instituto Francês da África Negra. António de Cértima escreveu em O Comércio da Guiné, homem convicto do regime de Salazar agiu para sufocar a Revolução Triunfante, a tentativa republicana de manter a Guiné fora da ditadura, o regime condecorou-o, prometeu escrever um livro sobre a Guiné, o que nunca aconteceu.

Um abraço do
Mário



António de Cértima, cônsul português em Dacar, anos 1920

Mário Beja Santos

António de Cértima foi diplomata, teve postos de cônsul no Cairo, Dacar e Sevilha, foi escritor e jornalista, já cinquentão pediu a reforma e passou a trabalhar na SACOR, teve longa vida (1894-1983), deixou obra prolífica, regista-se aqui o seu livro "Sortilégio Senegalês", publicado pela Livraria Tavares Martins – Porto, em 1947. Prometeu escrever sobre a Guiné, mas nunca o fez, conquanto tenha colaborado no jornal "O Comércio da Guiné", ter-se-á mesmo empenhado em fazer fracassar a Revolução Triunfante, uma tentativa de republicanos garantirem a Guiné fora do Estado Novo, foi então condecorado como igualmente virá a ser condecorado pelo Estado Francês. Aliás, este Sortilégio Senegalês é dedicado aos seus amigos franceses.

Trata-se de memórias avulsas onde não falta o “Expresso” do Sudão, inúmeras viagens dentro do território, reuniões sociais, há referências muito cultas e descrições abundantes sobre a atmosfera africana, é o seu olhar europeu que propende:

“Em Dacar, como em todas as cidades jovens e africanas, sente-se que uma vida tumultuosa circula, a agitar-lhe os flancos, a irromper das artérias, numa sede de futuro. Depois, a mão do homem parece ter posto aqui um desígnio ardente. Arrancada pelo génio empreendedor de Faidherbe aos penhascos alcantilados da chamada geograficamente quase ilha de Cabo Verde, onde há 70 anos apenas se destacava o ocre daquelas palhotas de pescadores lebús, Dacar encontra-se hoje em pleno desenvolvimento”.

Fala das etnias, dos antigos impérios que aqui se atravessaram, maravilha-se com o mar esmeralda, rende-se à adaptação dos franceses, à naturalidade com que transportam para aqui as normas da sua vida social, tem curiosidades de antropólogo e etnólogo, situa com rigor a importância de Dacar no contexto das oito colónias francesas na região (Mauritânia, Senegal, Sudão Francês, Níger, Guiné, Costa do Marfim, Alto-Volta e Daomé): 

"À parte os enclaves das possessões da Gâmbia, Guiné Portuguesa, Serra Leoa e Costa do Ouro, aqui temos, bordejando o Atlântico desde o Cabo Branco a Porto Novo, o imenso bloco da África Ocidental, oito vezes maior do que a França da Europa, parecendo desafiar o poderio dos antigos impérios do Gana e do Mali”.

Vai deambulando entre lugares e conversas, é moralista nas leituras, não lhe escapam as considerações éticas, procura a todo o transe distinguir a colónia do Senegal como um corpo à parte dentro do grupo de colónias francesas, apresenta-a como a mais evoluída, muito apegada à cidadania francesa. 

É exatamente aqui, penso eu, que o leitor questiona o porquê de trazer à baila uma obra memorial de um diplomata português no Senegal se ele se escusa terminantemente a falar da Guiné. Aí é que está a surpresa, o cônsul foi visitar a colónia portuguesa, que se acantona na parte alta da cidade de Dacar, por detrás do mercado indígena, e dá-nos informações extremamente úteis para se perceber o que irá acontecer no início da década de 1960 com esta colónia que revelará uma larguíssima indecisão face à ideologia do PAIGC.

Vejamos o que ele escreve:

“A colónia é numerosa: quase três mil. São todos cabo-verdianos, guardando ainda nos gestos vivos, desembaraçados, e na energia dos atos, qualquer coisa do clima viril da denominação em que se agrupam as suas ilhas natais. O cunho racial apresenta-se neles como um medalhão bem vincado. Homens e mulheres entregam-se às suas tarefas guiados por um fervor económico que só deve redundar em proveito da terra, da família, do lar. Temos vontade de perguntar: de que religião doméstica ou de que princípio de associação humana procedem estas regras morais de que os povoadores indígenas destas ilhas atlânticas obedecem com tanta porfia? O marinheiro ou moço do bordo que embarca nos portos da Praia ou S. Vicente com destino a todos os continentes do mundo, se por imprevisto da circunstância se encontra abandonado em qualquer escala das ilhas marítimas, o seu primeiro impulso é o de regressar imediatamente à sua ilha, ainda que escondido nos porões de qualquer cargueiro pirata. Belo exemplo de fidelidade à instituição familiar!

 Mulheres de bronze – assim chamam às raparigas de Cabo Verde os viajantes dos grandes transatlânticos que ali fazem escala, e não tanto pela cor, que na maior parte dos casos é de um moreno solar, mas sim pelo bem esculpido das formas. Os homens têm um nobre aspeto físico, e gestos onde se depara a dignidade e certo aprumo fidalgo dos primeiros donatários do arquipélago que mandou descobrir o Infante D. Henrique. São zelosos, cumpridores e de grande curiosidade e inteligência. Aos dois meses da sua chegada a Dacar falam já correntemente o francês. De Portugal conhecem tudo – até mesmo as estações de águas termais. Com os palhabotes ou faluas se dedicam ao pequeno comércio com o porto de Dacar, entre os carregamentos de laranjas e aguardente de cana chegam sempre alguns exemplares do Século e de outros jornais portugueses”.

E prossegue conversa com alguns destes homens culminando esta viagem ao mundo cabo-verdiano dizendo que Portugal lhes deve muito. Indiretamente o diplomata vai referindo as instituições sediadas em Dacar e começamos a perceber porque é que a capital do Senegal foi escolhida para sede de uma entidade científica que ainda hoje marca a vida do país independente o IFAN, então Instituto Francês da África Negra e a partir de 1966 designado por Instituto Fundamental da África Negra, foi possível a partir do governador Sarmento Rodrigues (1945-1949), manter uma cooperação científica ao mais alto nível, não só nas investigações referentes a descobrimentos e viagens nestas paragens da Senegâmbia, como estudos sobre a doença, a fauna e a flora e até a agricultura.

Pouco mais há a dizer da narrativa de António de Cértima das suas memórias senegalesas, relacionou-se com inúmeras pessoas, deslumbrou-se com a música negra. António de Cértima, joeirado pelo tempo, é reconhecidamente um autor secundário, muito formalista, certamente que atraído pelos padrões modernistas, culto, bom viajante, como irá revelar na sua viajem a Tombuctu, muito interessado pela Antropologia, nunca se cansando de exaltar a beleza negra, não sabemos se fala o esteta ou está marcado pela sensualidade, quando nos descreve assim:

“Nas minhas viagens do Atlântico ao Índico, das proximidades do lago Vitória ao Mediterrâneo, tenho surpreendido corpos de tanta finura e harmonia plástica, de tão acertadas proporções e incorrupta euritmia animal, que causariam inveja aos mais puros modelos gregos. Meus olhos não esquecerão jamais a graça e a candura, como nas formas nascentes, de tantos belos corpos escondidos nas luxúrias vegetais da selva, bailando sobre a lua das aldeias indígenas, circulando eretos e melodiosos como ânforas rituais”.

Do que igualmente retive desta saborosa leitura do seu olhar saltitante foi a descrição que fez sobre o naufrágio que ocorreu em 1816 da Fragata Méduse, encalhada nos bancos de Arguim e que está na base de um famoso quadro de Géricault, Radeau de la Méduse.

Resta dizer que a obra mais conhecida de António de Cértima tem o título "Epopeia Maldita", prende-se com as guerras travadas no norte de Moçambique na I Guerra Mundial, onde ele participou.


Jangada da Medusa, por Géricault, Museu do Louvre
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24235: Historiografia da presença portuguesa em África (364): Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (2) (Mário Beja Santos)

sábado, 22 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24241: Os nossos seres, saberes e lazeres (569): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (99): Veloso Salgado no MNAC – Museu do Chiado: O maravilhamento de obras desconhecidas de amigos franceses (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Trata-se de uma surpreendente revelação de uma faceta desconhecida de Veloso Salgado. Esta exposição foi apresentada na Temporada Cruzada Portugal-França, no Museu de Boulogne-sur-Mer, em França, no ano passado. Tudo começou com a doação da neta de Veloso Salgado de um acervo de centenas de peças e de uma correspondência que revela grandes amizades deste mestre do retrato e da paisagem tanto com artistas portugueses, caso de Teixeira Lopes e Ventura Terra como com um conjunto de artistas franceses com quem manteve relações afetuosas toda a vida, tendo mesmo integrado o Grupo da Escola de Wissant no norte da França. Veloso Salgado tornou-se um reconhecido artista na zona de Lille. No seu legado, encontraram-se obras destes pintores, agora patentes ao público. Promete-se continuar, até para fazer referência a outros eventos que se podem visitar no MNAC - Museu do Chiado.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (99):
Veloso Salgado no MNAC – Museu do Chiado:
O maravilhamento de obras desconhecidas de amigos franceses (1)


Mário Beja Santos

Atrai-me a pintura de Veloso Salgado (1864-1945), conhecido retratista, paisagista e pintor de grandes espaços (designadamente públicos) enquadrado no movimento da segunda geração naturalista, rótulo que considero insuficiente para alguém que experimentou um pouco de tudo entre o realismo e romantismo até às primícias do modernismo. O MNAC – Museu do Chiado já lhe consagrara uma retrospetiva onde claramente se manifestava, no último período dos seus trabalhos, uma total disponibilidade para transitar para formulações fora do academismo pictórico.
Esta exposição intitula-se “De Lisboa a Wissant”, espraia-se por todo o seu processo artístico e a sua formação, este homem de origem galega formou-se em Lisboa foi professor na Escola de Belas Artes, teve intervenção em grandes espaços decorativos, caso do Palácio da Bolsa, da Escola de Medicina do Porto, da Assembleia da República. Este acervo vem na continuidade da exposição apresentada no Museu de Boulogne-sur-Mer, que revelou detalhes até agora desconhecidos do percurso artístico de Veloso Salgado. A exposição do MNAC foca-se sobre os estudos e a carreira artística de Veloso Salgado em França enquanto bolseiro, entre 1888 e 1895, nela se expõe obras inéditas desse período. Segundo a documentação que o MNAC distribui, a exposição acolhe 70 obras, põe enfoque no seu itinerário francês (Paris, Bretanha e Wissant), desvela a ligação de uma amizade com os artistas Virginie Demont-Breton e Adrien Demont e a Escola de Wissant. É a primeira vez que se dá a público este diálogo de Veloso Salgado com os seus pares franceses.

Abertura da exposição, com peças do seu ambiente familiar e doméstico
Retratos do jovem artista. Ele começou a trabalhar com o seu tio desde os 10 anos na Litografia Lemos (situava-se na rua Ivens), frequentou a partir de 1878 a Academia Real de Belas Artes, chamou a atenção dos seus professores, caso do escultor Simões de Almeida. Distinguiu-se pela sua profunda capacidade de observação psicológica, a exposição exibirá o Retrato de Julieta Hirsch, que foi seu modelo, uma obra pontuada por uma modernidade incomum na época.
Veloso Salgado
O Éden-Hotel, chalé de férias de Veloso Salgado e onde viveu a sua neta Conceição

A sua neta, Conceição Veloso Salgado legou ao MNAC o acervo concentrado na casa de família, em Lisboa, na rua da Quintinha e no chalé de férias, em Colares. Trata-se de uma importante coleção composta por 400 peças, abarca pintura, desenho, escultura, joalharia, medalhas, mobiliário e um significativo acervo de fotografias do século XIX. Assim se abriu a perspetiva de estudar a correspondência de Veloso Salgado com os artistas franceses seus amigos, correspondência que revela uma cumplicidade e uma profunda amizade que durou toda a vida. Coube a Maria de Aires Silveira, conservadora do MNAC este estudo que permitiu avançar tal rede de contactos.
“Casas pobres”, pintura de Adrien Demont, 1890
Fernand Stiévernart, “Pôr-do-sol”, 1895
Veloso Salgado, “Preto e rosa”, 1872

Veloso Salgado, enquanto bolseiro do Estado português, trabalhou em Paris onde fez conhecimento e nasceu amizade com Viriginie Demont-Breton e Adrien Demont, Félix Planquette e Fernand Stiévenart, tudo aparece confirmado nos quadros que constavam da sua coleção. Foi assim que se descobriu na dita correspondência, as interações de Veloso Salgado com outros artistas, também bolseiros portugueses em França, caso do escultor Teixeira Lopes e do arquiteto Ventura Terra. Nesta exposição comprova-se o interesse de Veloso Salgado pela captura de cenas bretãs, ficam evidentes as suas ligações com o grupo de paisagistas da Escola de Wissant, no norte da França e com artistas praticamente desconhecidos em Portugal. A exposição permite, deste modo reatualizar o estudo do percurso artístico de Veloso Salgado e a sua cumplicidade com estes artistas franceses.
Trabalhando na Bretanha, Veloso Salgado deixou-nos imagens luminosas da região, anos depois a sua obra vai transmitir sentimentos melancólicos e místicos, caso do quadro Velhice. Despedimo-nos hoje com a promessa de continuar a falar de Veloso Salgado e de outro acervo do MNAC, mostrando uma obra dessas relações afetuosas que estabeleceu e onde é incontestável a sua mestria no campo de observação psicológica.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24225: Os nossos seres, saberes e lazeres (568): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (98): Vestígios soltos de dias felizes, custa apagá-los sem haver partilha (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
É inegável que a historiografia sobre a Guiné portuguesa tem uma enorme dívida com o António Carreira. Aqui se faz jus a um trabalho pioneiro sobre o comércio negreiro na costa ocidental africana, Carreira era homem de arquivos, deplora frontalmente a negligência dos investigadores no estudo do tráfico português de escravos. Felizmente que todo este acervo documental passou a ser muito mais escrutinado nas últimas décadas, todo este fenómeno socioeconómico cultural começa a esclarecer-se. A narrativa de Carreira é profundamente didática, tem o mérito de poder ser acompanhada por iniciados e leigos, verifica-se que é um trabalho altamente fundamentado e cumpre o desejo do autor: abre imensas portas a quem queira investigar o papel dos portugueses no tráfico de escravos.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (1)

Mário Beja Santos

O livro "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O investigador abre as suas considerações enfatizando a dívida com que o continente americano ficou com o escravo africano, sem este imigrante forçado teria sido inviável a cultura da cana sacarina, o cultivo do fumo, o apanho das drogas do sertão, a criação extensiva de gado, a extração de ouro e pedras preciosas. A situação do comércio negreiro só conhecerá profunda alteração com a Imigração branca iniciada no século XIX. E adianta também: ”Não foi apenas na América e em África que se sentiram os efeitos da grande imigração forçada de povos africanos e que ficou mais conhecida como tráfico de escravos. Este tipo de migrações transformou a economia de muitas nações europeias, em especial a da Inglaterra, a da França, a da Holanda, a da Espanha, a de Portugal, e outras. No final do século XVIII, só na Inglaterra existiam mais de 14 mil escravos negros. A América cultivava o algodão, utilizando para o efeito o escravo africano, e a Inglaterra industrializava-o, produzindo os tecidos de exportação. Tudo irá mudar com a independência dos EUA, houve que procurar noutras áreas as matérias-primas, e Inglaterra decidiu coartar o fornecimento de mão de obra escrava à América do Norte e a outros países que se lhe opunham como concorrentes ao comércio africano”. Iniciava-se a campanha abolicionista, mas a ilegalização do sistema da escravização, em termos que não foram absolutamente práticos só foi alcançada no final do século XIX.

Carreira dá conta da vastidão do seu trabalho: “Dobrado o Cabo Bojador, a área conhecida por Guiné passou a ter enorme extensão: abrangia a faixa de território que, a partir da foz do rio Senegal, se estendia até ao rio Orange! Depois, quando se conheceu melhor a costa, foi encurtada, limitando-se ao setor do rio Senegal até à Serra Leoa, espaço da capitania de Cabo Verde.” Para baixo temos a Costa da Mina, indo até à Costa de Angola, abrangendo os chamados reinos de Loango, Sonho, Cabinda, Congo, Angola e Benguela.

Debruça-se Carreira sobre as motivações do Infante D. Henrique, a literatura de viagens, a captura de negros, mas o tráfico autêntico ainda não se organizara, a Coroa não possuía organização adequada, confiou a exploração do negócio a particulares, logo Fernão Gomes, em 1468, ele podia resgatar escravos com exceção da terra firme defronte das ilhas de Cabo Verde e do castelo de Arguim. É um período em que surgirão muitas desinteligências com os moradores Santiago, com transgressões ao estipulado pela Coroa. Aumentarão os conflitos entre os negociantes de escravos e as populações africanas, a Coroa tomou decisões: proibiu expressamente as operações de razia e captura de negros, impondo a prática da compra, por permuta por vestuário, manilhas de latão, missangas, contaria, etc., assim como por animais domésticos, isto dentro de uma lógica das preferências dos mercados africanos. E sintetiza Carreira:
“Podemos, em resumo, e baseados em textos portugueses dos séculos XVI e XVII, determinar os principais processos usados na obtenção de escravos:
1. Os prisioneiros de guerra e os capturados nas frequentes operações de razia.
2. Os aprisionados nas lutas travadas entre classes sociais ou profissionais (corporações de ofícios nos Mandingas), de uma mesma etnia e também os resultantes da imposição de credos religiosos.
3. Os condenados por decisões de régulos à pena de morte, e a seguir comutada pela de escravização.
4. Os condenados por decisões proferidas através de ordálios a serem vendidos e a suas famílias como escravos.
5. Os vendidos pelas famílias e os que se vendiam a si mesmos e aos seus familiares nas épocas de fome ou calamidade, etc., etc.”


Dá-nos seguidamente o role dos sistemas de exploração entre o século XV e o século XVII, refere alguns dos principais contratos de arrendamento e nomes dos contratadores, num arco geográfico entre os rios da Guiné e Angola. O comércio da Guiné no século XVI foi o primeiro, destinava-se sobretudo a terras brasileiras. O autor dá-nos a relação do tráfico africano para a Baía em vários ciclos, a concorrência estrangeira, como a dominação espanhola afetou profundamente o comércio português, e dá-nos conta das suas investigações: “Através de números compilados dos livros de registos alfandegários, de relatórios e de correspondência oficial endereçada a Lisboa, e ainda das estatísticas organizadas em algumas áreas do Brasil, podemos ter uma ideia, embora incompleta, da evolução do tráfico de escravos na costa ocidental africana. Há falta de dados durantes longos períodos e temos de ter em linha de conta o contrabando de escravos em todos os setores, parece situar-se numa ordem de grandeza aproximada entre 40-50% do total de saídas registadas na documentação oficial.” Interessa-nos aqui referir a região da Senegâmbia, área compreendida entre a foz do rio Senegal e o limite sul da Serra Leoa, englobando as ilhas de Cabo Verde, das quais a de Santiago teve durante mais de um século a função de depósito ou entreposto de escravos destinados à exportação. Na segunda metade do século XV faz-se referência a uma média anual de 700 a 800 escravos destinados à Península Ibérica e a mercados árabes. Nas primeiras décadas de 1500, o tráfico passou a processar-se mais a sul, entre o rio Senegal e a Serra Leoa, são analisados os contratos de arrendamento. E em meados dos século XVIII surgem as companhias majestáticas do comércio em geral e a do tráfico de escravos.

(continua)


O comércio negreiro feito pelos árabes, os antecessores dos europeus
Livro importante para o estudo do tráfico negreiro árabe-muçulmano
Pintura do francês Jean-Baptiste Debret, 1826, retrata escravos no Brasil
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24111: Historiografia da presença portuguesa em África (357): História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira; Edição do Autor, 1983 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23739: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte V: a juventude antes da tropa, quando o pai sonhava para ele uma grande carreira no exército francês


Lisboa > Museu Militar >  15 de Abril de 2010  > 
 Sessão de apresentação do livro Amadu Djaló > A filha e o neto, antes do início da sessão...  [Foto da criança reproduzida com a devida autorização, na altura, da sua mãe e do seu avô].

 O Amadu foi apresentado como um grande contador de histórias, dotado de uma prodigiosa memória, como um homem bom, recto e profundamente religioso, bem como um grande operacional que serviu, com coragem e dedicação o exército colonial português, a partir de 1962,  ano em que fez a sua recruta em Bolama... Promovido a 1º Cabo em 1966, foi sucessivamente graduado em furriel (1970), 2º sargento (1971) e alferes (1973). Na altura, tinha mais uma filha e um filho, a viverem no estrangeiro

Foto: © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu, neste caso  relativas ao período que antecedeu a sua incorporação na tropa portuguesa, no princípio do ano de 1962 (*). Antes disso, o seu pai tinha o sonho de o levar até ao Senegal, onde dois sobrinhos-netos eram militares do exército francês, ambos 2º sargentos. Após consulta a um vidente, passou a sonhar com uma carreira militar brilhante para o filho, coisa que ele na Guiné portuguesa nunca  poderia ambicionar...

Neste segundo excerto, que publicamos abarcando os seus primeiros vinte anos,  podemos  vê-lo como negociante de fruta (que ia comprar, com um primo,  na região de Tombali para depois ir vender no Senegal) e de gado, além de organizador de "festas de despedida de rapariga solteira", nos bairros populares de Bafatá.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro.

O  nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk". É de relembrar  aqui o "making of" deste livro. Reproduzimos um mail recente que ele nos mandou, aos editores de serviço, no dia 22 do corrente: 

(...) "Boa noite, Caros Camaradas Carlos e Luís: Obrigado pelo excelente trabalho de edição que tem sido feito sobre o livro do Amadú. E naturalmente trazem-me à memória o ano que levou a preparar o livro. Quase todos os dias o Amadú tocava à campainha para mais um dia de trabalho. Almoçava comigo (não era grande garfo, por falta de dentes) e muitas vezes prosseguíamos pela tarde fora até o levar ao comboio em Entre-Campos. Foram uns tempos muito interessantes que me fizeram recuar mais de 40 anos.

Lamentavelmente o negócio não foi devidamente esclarecido entre as partes e julgo que a pressa em levar por diante o projecto (as folhas já tinham passado por mais que uma mão) interferiu com o desentendimento que se seguiu. Mas levámos a peito o projecto e fomos até ao fim, o lançamento do livro. E é sobre esse acontecimento que vos envio algumas fotos que me vieram parar às mãos . Quase todas elas estão identificadas. Obrigado pelo vosso empenho.
Abraço do Virgínio Briote. (...)

.
Os primeiros anos de vida - Parte II:
a juventude antes da tropa, quando o pai sonhava para ele uma grande carreira no exército francês 
 (pp. 26-29)

por Amadu Bailo Djaló



O meu pai tinha dois sobrinhos-netos na Guiné Francesa, que eram militares do Exército Francês, ambos 2º sargentos e ex-combatentes na guerra da Indochina. Depois de três anos de serviço, tiveram direito a três meses de férias. Quando as vieram gozar, um deles, o Aguibo [1], veio a Bafatá visitar a mãe e, nessa ocasião, encontrou-se em nossa casa com o meu pai.

− Aguibo, quando regressares, podes levar o Amadu para o Senegal e deixá-lo em casa do meu sobrinho, o Idrissa Djaló? Ele fica lá até arranjarmos documentos para ele poder ir também para França.

− Sim, tio, não vejo inconveniente.

O meu pai, apesar de eu ter irmãos mais velhos e mais novos, via em mim, algo diferente dos outros. Quando estava com a doença, de que veio a morrer, quis falar comigo, não sei se para me contar algum segredo se para me dar algum conselho, mas eu, infelizmente, não pude ir. 

Na altura, eu já era militar, estava em Bissau, e não me autorizaram a deslocação a Bafatá. Minha mãe pediu que lhe confiasse a conversa que ma transmitia, quando surgisse a oportunidade de estar comigo. Meu pai, doente, não disse nada, não sei porquê, talvez porque a minha mãe, em certas ocasiões,  revelava mais afeição a um dos meus irmãos.

Sempre que podia, o meu pai ia trocando escudos por francos. Às vezes, era eu próprio que os ia trocar a uma loja que fazia câmbios, a Casa Pinheiro. E ia-me informando dessas poupanças.

Dizia-me que não queria que eu fizesse tropa no exército português, pois nunca passaria de cabo. Falava-me disto como se fosse um segredo. Que, em consultas que tinha feito, tinha visto para mim um posto brilhante, com galões, que na Guiné nunca eu viria ter. Que preto não conseguia postos desses na Guiné.

Um rapaz que trabalhava comigo na horta, chamado Abdulai, vinha todos os dias dormir a nossa casa e era o meu companheiro de quarto. Queria acompanhar-me, ir comigo para o Senegal, mas antes queria fazer uma consulta para a viagem e perguntou-me se eu conhecia algum adivinho.

Levei-o ao meu tio-avô Canjura Drame, tio da minha mãe. Era um velho com cerca de 70 anos, muito estimado, procurado por muitas pessoas para consultas. Quando chegámos a casa do meu tio-avô, disse-lhe que o meu companheiro o queria consultar.

Depois de Abdulai lhe entregar 2$50, Canjura juntou os búzios, fechou-os numa mão, passou-lhos para a mão de Abdulai e disse-lhe:

 Pensa aí o que desejas.

O rapaz ficou algum tempo com a mão fechada junto à boca e devolveu-lhos. Mas Canjura, disse:
 Larga-os!

Os búzios espalharam-se na esteira e o meu tio-avô, passado um bocado, perguntou:
 Trata-se de alguma viagem?
 Sim − respondeu Abdulai.

Esta operação do lançamento dos búzios repetiu-se mais duas ou três vezes. Depois, o meu tio-avô, virando-se para Abdulai, disse:
 Olha, vejo que se fores,  vais encontrar muito dinheiro. Agora, eu não estou a ver nenhuma viagem nem nenhuma saída tua.

No fim da consulta o meu tio-avô olhou para mim e perguntou-me para onde eu queria ir.
− Para o Senegal, o Abdulai quer ir comigo.
 O teu pai sabe disso?   perguntou-me o meu tio.
 O meu pai está a tratar da viagem!
 Diz então ao teu pai que veja bem essa viagem. Porque se fores, nunca mais voltarás a ver os teus pais. Quando o teu pai morrer, ninguém te vai substituir em casa e tu és o único herdeiro. A vossa casa vai ser abandonada, vai cair de velha, e os terrenos vão ser ocupados por gente de outra etnia. 

E continuou:
 Tu, Amadu, se não fizeres a viagem, vais ficar com a casa, com os terrenos, com a família à tua beira, mas isso só vai acontecer até um dia. E quando esse dia chegar vais ter que aguentar, porque é o dia em que vais acordar com uma calça, uma camisa e um par de chinelos, mais nada [2]! Quando a camisa se romper, vais querer mudar e não vais ter outra para vestir. Então, a sorte vai outra vez aproximar-se de ti.

Voltámos, eu e o Abdulai, para casa e à noite perguntei ao meu pai se ele tinha feito alguma consulta sobre a minha ida para o Senegal.

 Não, tu fizeste?
 Eu também não, pai.

Não lhe contei nada da conversa com o meu tio-avô. Nesse próprio dia, o meu pai disse que no dia seguinte me diria o resultado, porque ainda ia fazer a consulta.

Desde os meus quinze anos, o meu pai obrigava-me a fazer um tratamento para evitar que alguma coisa má me pudesse atingir no futuro. Era um costume a que alguns pais recorriam para bem dos seus filhos. Um tratamento simples. À noite ao deitar-me e ao levantar-me de manhã, dirigia-me ao quarto do meu pai, despia-me e lavava-me com a água [3], as mãos, os braços até ao cotovelo, a cara e a cabeça e espalhava um pouco pelo corpo e pelos pés. Um tratamento que durava quarenta dias, durante o qual não era permitido ter relações. Eu era muito jovem e não me agradava o tratamento, por isso o meu pai obrigava-me a lavar-me no quarto dele. Vendo a minha cara, às vezes, um pouco contrariada, apontava-me o dedo e dizia:
 Amadu, se soubesses o que tens à tua frente, agradecias-me!

O meu pai falava, às vezes, de uma guerra e que eu iria participar nela. E, quando ele falava nisso, eu pensava numa guerra que se viria a travar na Europa.

Na manhã do dia seguinte, entrei no quarto do meu pai, para me lavar. Quando peguei na garrafa reparei numa grande quantidade de notas de francos, em cima do Alcorão. Abanei a cabeça e disse para mim, que já não ia viajar. O meu pai entrou, nessa altura, no quarto e disse-me:
 Estive a ver aquilo da viagem, ontem à noite. Tu não podes ir, Amadu. És o meu único herdeiro e, se fosses para o Senegal, isto iria ficar ao abandono. Vai morrer um homem de cor clara, que sou eu, e tu és o meu único herdeiro. E finalizou:
 Leva o dinheiro, é teu, guarda-o ou compra o que quiseres, não quero que penses que é por causa do dinheiro que não vais fazer a viagem.

Troquei as notas por escudos, comprei um maço de “Português Suave”, uma caixa de fósforos e o que restou devolvi-o ao meu pai, que não queria aceitar. Mas eu insisti, deixei-lhe o dinheiro em cima da cama.

Nos finais de 1959, o meu primo Ussumane comprou um carro, uma Commer, de caixa aberta, e passámos a negociar laranjas com as populações senegalesas de Ziguinchor. Deslocávamo-nos para sul, ficávamos em Salancaur, cujo régulo era nosso patrício e dali partíamos para comprar a laranja em Guilege, Quebo Sutubá, Mejo, Afiá, enchíamos a Commer e íamos para o Senegal vender a fruta. Este trabalho durou até Abril de 1960.

A incorporação de Janeiro já tinha passado. Tive conhecimento que os meus companheiros, da reunião com o governador, já tinham sido todos incorporados, feito a recruta em Bolama e, depois, escolhidos para condutores. E também soube que, na administração em Bafatá, tinham chamado pelo meu nome.

Terminadas as viagens para Ziguinchor, voltámos ao negócio do gado. Levava uma vida boa, tinha 19 anos, algum dinheiro no bolso e gostava de me divertir. Ia a festas e depois, eu e o meu primo Fuad, começámos a organizá-las, cobrando as entradas. 

Tínhamos uma casa desocupada, que era do meu irmão mais velho, que servia para as nossas festas. Falávamos a dois ou três amigos que sábado ou domingo ia haver baju [4] de sala e eles encarregavam-se de contar a outros e em breve quase toda a Bafatá sabia. Quando queríamos fazer festas de despedida de rapariga solteira, fazíamos uma carta e entregávamo-la no bairro da Ponte Nova e em Nema, onde tínhamos amigos que se encarregavam de avisar as pessoas. Era sempre aos sábados e ia até às madrugadas de domingo, a dançar e a comer. Passou-se assim o ano de 1960.
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Notas do autor (Amadu Djaló) e/ou do editor literário ("copydesk") (Virgínio Briote)

[1] Aguibo Djaló já morreu. O irmão, Tchana Djaló, seguiu a carreira militar até atingir o posto de Coronel. Foi piloto de aviões, reformou-se e enveredou pela carreira política, chegando a ser Ministro da Agricultura da República da Guiné-Conakry.

[2] Durante dois dias seguidos, em 1979, não tive comida em minha casa, para os meus cinco filhos, a minha mãe, as minhas duas mulheres e para mim próprio. Recordo que no terceiro dia fui até ao mercado, encontrar-me com dois antigos companheiros de infância. Um tinha um bar e o outro uma banca com artigos diversos. Quando chegou o meio-dia, as mulheres trouxeram-lhes os almoços. Que tinha comido bem, foi assim que respondi ao convite deles. Se não havia comida em casa, também não tinha direito a comer, dizia para mim. Levantei-me e fui embora dali. Para passar o tempo dirigi-me a casa de um amigo, Suleimane, que era comandante do PAIGC. Quando entrei, Suleimane disse que lhe tinham oferecido tanto cuscuz, que ele sozinho não conseguia comer. Suleimane, não me apetece, há três dias que não tenho nada para dar de comer em casa. Amadu, se queres ter alguma coisa para dar, tens que comer aqui, respondeu o meu amigo. Depois de lhe fazer companhia, Suleimane repartiu comigo um saco de arroz, 25 quilos para cada um, e ainda me passou para as mãos 500 escudos. Fui ao mercado, gastei pouco mais de 50 escudos em peixe, óleo de palma e cebolas, e fui para casa.

[3] Consiste em escrever, numa tábua de madeira, um versículo do Alcorão e depois lavar as letras com água. Depois da lavagem a água passa a designar-se por “Nassi”. Perfumada com algumas gotas, é metida numa garrafa e tapada. É essa água que é utilizada nos tratamentos do jovem.

[4] Baile.

[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. ]
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quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23702: Agenda cultural (820): doclisboa'22- festival internacional de cinema, 6-16/10/2022: Retrospectiva - A questão colonial: 35 filmes - III ( e última) Parte: destaque para a Argélia ("Harkis", 83') e Moçambique ("O Vento Sopra do Norte", 101')


"Em meados da década de 1950, o encontro entre Oumarou Ganda, então um jovem estivador do Porto de Abijão, recém-regressado da guerra da Indochina, e Jean Rouch, o engenheiro-cineasta, marca um ponto de viragem no cinema de Rouch com "I, a Negro". Uma década mais tarde, no Níger, nasce o cinema de Ganda com o autobiográfico "Cabascabo".  [Dois filmes que passaram no doclisboa2022, no passado dia 11]. 

Acima, fotograma de "Cabascabo", de Oumarou Ganda  [1969, Níger, 46’]: "Cabascabo, veterano do exército colonial francês na Indochina, regressa à terra natal no Níger e é aclamado por amigos e familiares. Em analepses fragmentadas, narra a sua aventura e as batalhas naquela terra longínqua. Durante algum tempo, desfruta da glória de veterano, mas, depois de esbanjar tudo o que tem, [...]"


1. Este ano, na sua 20ª edição, o doclisboa tem na secção "Retrospectiva", dedicada à "questão colonial", um total de 35 filmes (de curta, média e longa metragem), que já passaram ou ainda vão passar por estes dias, entre 6 e 16 de outubro, o mês do festival, o mês que "todo o mundo cabe em Lisboa"... Vamos continuar a listar, a título informativo, alguns desses filmes (*).

A Argélia, que conquistou a sua independência em 1962, há 60 anos, após um conflito extemamente sangrento com a potência colonizadora, a França (e as milícias dos "pied-noirs", os colonos franceses), desde 1954, e depois de inúmeros massacres, está talvez sobrerrepresentada no doclisboa2022... Não só devido ao seu peso "geopolítico", mas também por ter uma cinematografia mais ativa do que outros países africanos, a começar pelos PALOP.  Alguns desses filmes já passaram no festival (como "Algiers, Capital of tthe Revolutionaries"), 
outros ainda podem ser vistos até ao fim do festival, como "Harkis".

Moçambique, por seu turno,  também tem uma boa representação no doclisboa deste ano, muito superior à de Angola ou à da Guiné-Bissau. Alguns dos filmes sobre Moçambique, de cineastas moçambicanos  como Ruy Guerra e Licínio de Azevedo. ainda podem ser vistos no doclisboa2022, que termina em 16 do corrente.

O  texto e as imagens, a seguir, são extraídos do programa do doclisboa'22, incluindo as sinopses dos filmes que aqui se reproduzem para mera informação dos nossos leitores, não implicando da nossa parte qualquer juízo de valor, documental, estético, ético, técnico, político ou ideológico.

Algiers, Capital 

of the Revolutionaries

Gordian Troeller, Marie-Claude Deffarge
Aquando da independência, ficou escrito na Constituição da Argélia que todos os movimentos revolucionários e de libertação nacional poderiam reclamar asilo político. Diz assim: “O desenvolvimento do socialismo na Argélia está intimamente ligado à luta de libertação de povos noutras partes do mundo. É imperativo que qualquer movimento revolucionário apoie [...]

[Passou em 9 Out2022, 14:00, no Cinema São Jorge Sala 3]

12 Out — 22:00 / 75’
Cinema Ideal


About the Conquest

Franssou Prenant
Uma sucessão de material de arquivo (relatórios, testemunhos, memórias) é lido num tom de facto, relatando as etapas da colonização da Argélia pela França entre 1830 e 1848 e delineando a paisagem ideológica de um esforço de aniquilação espantoso.



13 Out — 17:30 / 83’
Cinema Ideal

Harkis

Philippe Faucon

Durante a Guerra da Argélia, muitos jovens argelinos pobres alistam-se no exército francês. Paira a hipótese de independência e a perspectiva para eles é sombria. O tenente Pascal insiste para que todos os homens do seu pelotão sejam evacuados para França.

A jovem nação moçambicana atraiu muitos cineastas, num movimento do qual poucos filmes sobreviveram. Rouch terá realizado Makwayela no âmbito de uma formação para jovens técnicos e cineastas. Já Ruy Guerra, que regressa ao país natal nos primeiros anos da independência, procura em Mueda a memória do início da guerra colonial.

Makwayela

Jacques d’Arthuys, Jean Rouch
O único vestígio que resta da passagem e envolvimento de Jean Rouch numa oficina de formação em Super 8mm em Moçambique é este filme. Em Maputo, um grupo de trabalhadores de uma fábrica de garrafas canta e dança todas as manhãs no pátio. A dança makwayela é uma forma de [...]

[Passou em 10out2022, 15h30, na Cinemateca Portuguesa Sala M. Félix Ribeiro]

Mueda, Memória e Massacre

Ruy Guerra
Ruy Guerra participou activamente na fundação do Instituto Nacional de Cinema de Moçambique e realizou a primeira longa-metragem produzida no país após a independência. O filme cruza a reconstituição teatral do massacre cometido pelas forças coloniais portuguesas em Mueda, a 16 de Junho de 1960, quando soldados portugueses abriram fogo [...]
[Passou em 10out2022, 15h30, na Cinemateca Portuguesa Sala M. Félix Ribeiro ]

Os filmes de Licínio de Azevedo, decano do cinema moçambicano, revisitam e reconstituem a história recente do seu país, num gesto que oscila entre ficção e documentário. A questão da terra e dos seus frutos no coração do conflito colonial e pós-colonial atravessa estes dois filmes, lembrando a dimensão física e económica da exploração.

Nhinguitimo

Licínio Azevedo
Pequena fábula política, Nhinguitimo analisa as relações entre a desapropriação das áreas rurais – e respectivas colheitas – e o sistema colonial. A história da revolta de um trabalhador agrícola contra os colonizadores há seis décadas pode também moldar uma reflexão sobre a exploração continuada do território e suas gentes.  
[Passou em 11out2022, 19h00, Cinemateca Portuguesa Sala M. Félix Ribeiro]
 

A Colheita do Diabo

Brigitte Bagnol, Licínio Azevedo

“A Colheita do Diabo é a minha primeira grande experiência no cinema (…) em que pela primeira vez utilizei, além de actores de teatro, pessoas que não tinham nenhuma experiência [em cinema], sendo as personagens principais antigos combatentes, ex-guerrilheiros da FRELIMO que participaram na guerra pela independência.” Licínio de Azevedo [...]

[Passou em 11out2022, 19h00, Cinemateca Portuguesa Sala M. Félix Ribeiro]

13 Out — 17:30 / 83’
Cinema Ideal

Harkis


Philippe Faucon
Durante a Guerra da Argélia, muitos jovens argelinos pobres alistam-se no exército francês. Paira a hipótese de independência e a perspectiva para eles é sombria. O tenente Pascal insiste para que todos os homens do seu pelotão sejam evacuados para França.


13 Out — 19:00 / 56’
Culturgest Auditório Emílio Rui Vilar

Catembe

Faria de Almeida
Catembe documenta os sete dias da semana no quotidiano de Lourenço Marques. Após uma série de entrevistas em que Manuel Faria de Almeida pergunta a transeuntes na Baixa lisboeta o que sabem sobre Lourenço Marques, o filme integrava sequências de ficção protagonizadas pela rapariga Catembe. O corte, imposto pelo Ministério [...]

14 Out — 19:00 / 101’
Cinemateca Portuguesa Sala M. Félix Ribeiro


O Vento sopra do Norte

José Cardoso
O filme revisita a última fase do colonialismo português. No seu dia-a-dia, dois rapazes e uma rapariga locais lidam como podem com a prepotência dos colonos, até que a violência passa das palavras aos actos. Do Norte, sopra o vento da mudança.


Kuxa Kanema, o projecto de cinema com e para o povo moçambicano, que não pode deixar de lembrar o mítico cine-comboio de Medvedkin, é contado pelos cineastas que o fizeram, entre eles Ruy Guerra. A missão de registar os primeiros passos da independência também passou pelo duro processo dos comprometidos, acusados de compactuar com o colonizador português.

Kuxa Kanema – O Nascimento do Cinema


Margarida Cardoso
A primeira ação cultural do governo Moçambicano após a independência, em 1975, foi a criação do Instituto Nacional de Cinema (INC). As suas unidades de cinema móvel vão mostrar por todo o país o jornal cinematográfico Kuxa Kanema. Kuxa Kanema quer dizer o nascimento do cinema e o seu objectivo [...]

Os Comprometidos — Actas 

de um Processo de Descolonização

[Acta 5]


Ruy Guerra

O duro julgamento de presumidos colaboradores do regime colonial por um tribunal popular foi liderado pelo presidente Samora Machel em 1982. Ruy Guerra acompanhou o processo ao longo de seis dias de filmagem quase ininterrupta. O material resultou numa série de quarenta horas para a Televisão Experimental de Moçambique, sendo [...]
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Último poste da série >10 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23691: Agenda cultural (819): Conferência sobre Bases Aéreas de Portugal - BA 11 - Beja e BA 12 - Bissalanca, Guiné, no dia 20 de Outubro de 2022, às 18h00, Palácio da Independência, Largo de São Domingos (ao Rossio)