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terça-feira, 25 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3514: Controvérsias (12): A G3, a FLING, o PAIGC, o Pdjiguiti, São Domingos, Tite e outras lendas (Mário Dias)

Guiné > Bissau > Anos 50 > Praça do Império > Monumento Ao Esforço da Raça > O Mário Dias, sentado no local onde, à noite, com luz eléctrica apenas das 18h às 24h, a malta nova se juntava e fazia serenatas. Era então Governador Raimundo Serrão (1951-53). O Mário esteve na Guiné até 1966, sendo por isso uma testemunha privilegiada não só do desenvolvimento económico e social da Província (com destaque para o crescimento urbano de Bissau) como do início da luta armada, que manda a verdade historiográfica deve ser atribuído à FLING e não ao PAIGC.

Foto: © Mário Dias (2006). Direitos reservados


1. Mensagem de Mario Dias com data de hoje:

Assunto- Novo comentário em Guiné 63/74 - P3503: Controvérsias (11): O início.... (**)


Caro Luís:

Nesta saudável polémica, que visa o esclarecimento de factos ocorridos nos primeiros anos da guerra, há dois assuntos cujo contributo pretendo dar com o simples intuito de repor a verdade pura e simples, sem juízos de valor nem "diz que diz" pois não é essa a minha forma de estar na vida. Limito-me a relatar ocorrências em que participei ou das quais obtive conhecimento directamente dos intervenientes por me encontrar "no terreno", como agora se diz.

Tenho-me abstido de comentar quanto sucedeu na Guiné depois de 10 de Fevereiro de 1966, data em que de lá saí. Não vi, não sei, não comento. Deixo isso para os que por lá andaram e sigo com muito interesse as narrativas publicadas no blogue e, embora tenha a minha opinião sobre certos acontecimentos, não os comento porque não os presenciei.

Feito este preâmbulo vamos aos assuntos:

1- ARMAMENTO DAS NT COM G3

As primeiras unidades militares armadas de G3 na Guiné surgiram em (meados de) (?) 1961. Não sei nem acho relevante para o assunto em questão - existência de unidades militares armadas de G3 em 1961 - a forma como foram obtidas: legais, ilegais, compradas, emprestadas, subtraídas, ou como queiram. O facto é que estavam lá e foi esse o cerne do início desta polémica pois houve quem achasse impossível uma vez que a G3 (que eles conheceram mais tarde) só a partir (dos finais) (?) de 1962 passaram a ser fabricadas em Portugal.


2- INÍCIO DA LUTA ARMADA

Esta questão já tem sido debatida em vários locais pois é comummente aceite a versão do PAIGC de que o início da luta armada ocorreu em 1963 com o ataque a Tite.

É falso. O PAIGC pretende os louros de ter iniciado o que se passou a designar por luta de libertação. Mas não foi assim. Em Julho de 1961, a FLING (Frente de Libertação e Independência da Guiné, liderada por François Mendy e sediada no Senegal) atacou com armas de fogo o quartel de S.Domingos onde se encontrava instalada parte (julgo que apenas um pelotão) da Companhia de Caçadores 5, destacada na Guiné.

Não se tratou de "simples escaramuça" em clima de "sublevação social" e não "reivindicação da independência", como diz o nosso camarada Santos Oliveira no seu texto P3503. Foi um ataque deliberado a um quartel e a uma unidade militar feito por um movimento que também lutava pela independência mas cuja existência o PAIGC procura ignorar e até negar.

Falei com alguns dos militares pertencentes a essa unidade destacada em S.Domingos e um furriel, cujo nome já não me recordo, contou-me até uma cena com algum humor protagonizada por um 1º cabo, um "calmeirão enorme", que ao ser atingido por um tiro de caçadeira no ombro disse: "já caí de asa".

Quanto à posterior ocorrência de incidentes em Guidaje, conforme já relatei, não me recordo deles e, por isso, nada posso acrescentar.

Sobre a opinião expressa no P3503 de que antes de 1963 se vivia na Guiné um clima generalizado de "sublevação social" o que tenho a dizer é que enquanto vivi na Guiné entre 1952 e 1966 apenas assisti e me recordo dos incidentes do Pidjiguiti que foram uma alteração da ordem pública provocada por uma greve de marinheiros e estivadores da Casa Gouveia (***). Nem o PAIGC nem qualquer outro movimento independentista estiveram por detrás desses acontecimentos. Não foi o início da guerra conforme várias vezes tive oportunidade de afirmar.

Nunca dei conta, mesmo depois do que se afirma ter sido o início da luta armada (1963-ataque a Tite) da existência de um "clima de sublevação social". Havia algumas desavenças, por vezes violentas, entre etnias e tabancas provocadas quase sempre pelo furto de vacas ou semelhantes mas que não se podem considerar como fruto da pretendida "sublevação social". Desacatos acontecem um pouco por todo o lado sem motivo aparente.

E por hoje basta.

Um abraço do
Mário Dias

__________

Notas de L.G.:

(*) Mário Dias foi para a Guiné, ainda adolescente, no ínício da década de 1950. Na vida civil, foi emppregada da casa comercial francesa NOLASCO, em Bissau, nos anos cinquenta; fez depois o serviço militar (1959/61), tendo frequentado o 1º Curso de Sargentos Milicianos, realizado na província, onde travou conhecimento e e fez amizade com alguns futuros dirigentes e militantes do PAIGC; trabalhou, depois da tropa, num sindicato para voltar ao Exército, mas desta vez como sargento comando, com curso tirado em Angola. Esteve no TO da Guiné, de 1963 a 1966. Deixou definitivamente a Guiné em 1966. Ingressou na carreira militar, passoiu novamente por Angola, etc. Estava no 25 de Novembro de 1975 no regimento de Comandos da Amadora - faz hoje 33 anos... Deixou o exército em princípios de 1980.

Vd. postes de:

9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXII: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite

19 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - LDXVI: Memórias do antigamente (Mário Dias) (2): Uma serenata ao Governador

15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXX: Memórias do antigamente (Mário Dias) (3): O progresso chega a Bissau


(**) Vd. poste de 23 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3503: Controvérsias (11): O início da guerra (Tite, 23 de Janeiro de 1963) e a estreia da G3 alemã, em 1961 (Santos Oliveira)

(***) 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)

domingo, 23 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3503: Controvérsias (11): O início da guerra (Tite, 23 de Janeiro de 1963) e a estreia da G3 alemã, em 1961 (Santos Oliveira)

1. Mensagem do Santos Oliveira, com data de 22 de Novembro

Luis e Mário [Dias]

Acabo de chegar e tomar conhecimento desta mensagem para conhecimento. Não me foi solicitada opinião, mas dou-a na mesma; posso vir a ser controverso, mas também não possuo documentos que possam atestar a veracidade do que digo. Foi o que apurei no tempo.


Luis

A tua questão e a do nosso Camarada Alberto Nascimento (*), na minha opinião pessoal, não tem muito a clarificar.


(i) Escaramuças antes do início oficial ou oficioso da Guerra, em 23 de Janeiro de 1973

Escaramuças, desde a fundação do PAIGC, aconteciam com mais frequência que as que são conhecidas e/ou registadas. Eram casos de Polícia. O PAIGC necessitava de alimento para a sua causa, pelo que os problemas com os Comerciantes, menos colaboracionistas, foram mais que muitos, mas passavam por ser questões de índole social. Quando não eram resolvidas pelos Chefes de Posto e dos seus Cipaios, era activada a segunda fase, ou seja, a intervenção da PIDE; esta, agia de acordo com o seu Estatuto de Toda Poderosa e “ordenava” a intervenção do Exército que agia e era utilizado como se de Polícia se tratasse. Não havia que justificar o que quer que fosse. Os Castros da época nem pestanejavam e mandavam avançar.

Dos primeiros ou últimos tiros dados antes de Tite, podemos confirmar que se disparam imensos. Podemos falar de Pidjiguiti. Foi aqui que começou? Foi em Farim? Em que ficamos? É que o tema era a “sublevação” social e não a reivindicação da Independência.

Dos poucos Documentos que consegui ler em Tite e das muitas vozes que consegui ouvir entre os mais antigos, conseguindo comparar com o que havia documentado, tirava as ilacções que agora vou reportando. Era um dos assuntos que me fascinava porque havia uma transmissão oral em contraposição com a quase total ausência de Documentação que o atestasse. Veja-se o exemplo gritante do início oficial da Guerra.

Em Tite, uns quantos documentos designavam por um desacato de elementos de fora da jurisdição e que obrigou as NT a reagirem a tiro. Referências aos mortos e feridos e mais nada. A descrição notável do Gabriel Moura, que o Camarada e Amigo Carlos Silva, herdeiro e depositário do Documento já trancrito em Poste (**), tanto quanto conheço, corresponde perfeitamente à realidade do tempo. Confirmei a descrição de factos ao Carlos Silva antes da sua publicação no Blogue. Dessa conversa guardo em memória de que até ele se sentia um tanto céptico. Deficiência Profissional de Advogado, que me perdoe a revelação deste meu sentimento. A sua reacção em nada me surpreendeu, porque é esse o sentimento que encontro nos Camaradas que percorreram os mesmos trajectos uns escassos dois anos depois.

Os mais antigos, os dos primeiros tempos, como o Mário Dias, o Colaço, o Alberto Nascimento, sabem que as informações que o Exército possuia, eram as da PIDE; a 5ª Divisão existia a trabalhar o que já estava trabalhado, decidido e muitas vezes já executado. A informação, a verdadeira, corria, sim, de boca a boca. As comunicações militares, CTMs, eram filtradas e manipuladas segundo conveniências incompreensíveis, das outras, só se estivessemos a uns escassos 2 Km. Esta a minha opinião do que vivi, acompanhei com raiva e com raiva o senti. Daí a importância que se tornou em o Ponto de Encontro, denominado 5ª Divisão, que foi o Café Bento, em Bissau. Alí parava tudo quanto vinha do Mato e a transmissão oral era o modo comum de Informação.

(ii) Agora as famosas e magníficas G3

Vou responder-te pelas perguntas que hás feito ao meu amigo Mário Dias (*).

(a) No meu Curso de Sargentos Milicianos de 63, existiam G3 (Alemãs) e FN suficientes e necessárias ao treino total de Manipulação (montagem, desmontagem) e de Tiro; no entanto, a Mauser era Arma atribuida para o Curso.

(b) A G3 foi conhecida nessa altura, foi na data, em parceria com a FN, o meu brilharete em Tiro Instintivo, mas que não consta dos meus registos individuais.

(c) Como é referido acima, as escaramuças existiam mas não tinham carácter de Guerrilha. As G3 que o nosso Camarada Alberto Nascimento recebeu, teriam sido as que nos foram facultadas pela NATO para utilização dentro do âmbito da Organização e de que Portugal fazia parte. Como se percebe pela descrição do Gabriel Moura (Pel Mort19/ Bcaç 237, 1961 a 1963), as G3 estavam encaixotadas e apenas havia meia dúzia delas em Serviço. A Mauser era a Arma do Batalhão. Deve ter sido um recurso ousado, embora apressado, o ter equipado aquela Unidade para a sua deslocação á região de Farim. Dúvidas não existem de que estas Armas já estavam no Bcaç 237 desde 1961, mas não em utilização oficial.

Esta Brochura do Gabriel Moura (**) bem merecia ser devidamente Editada e Publicada para conhecimento de todos os Camaradas, sobretudo dos que por lá chegaram depois de 65 (pensariam que estavam noutra Guerra ou que era Ficção).

(d) Perante o exposto, não parece ter sido ficção o início das hostilidades a 23 Jan 63, com o ataque ao Quartel de Tite. Data coincidente por ambas as partes.

Acrescento um Comentário aos Comentários do Mexia e do Colaço ao Guiné 63/74 - P3492: Controvérsias (9): Eu fui para Farim (...) (*):

(e) Joaquim Mexia refere, e muito bem, que a Arma G3 não fazia parte do Equipamento do seu irmão, numa zona de Guerra activa e em pleno desenvolvimento;

(f) O Colaço reporta, igualmente muito correcto, que a Licença de produção em Portugal da G3, só se adquiriu em 1962. Mas a verdade é que as Armas que estavam no território da Guiné, como disse, eram originais (alemãs) e que eram parte da nossa participação na NATO (OTAN), pelo que a sua utilização seria ilegal (como os F86-Sabre, os Lockeed P2V-5, etc.). A prudência aconselhava... A partir de 64 começaram a chegar as G3-FBP e então tudo ficou bem. Já era legal.

É quanto sei e posso dizer. Espero merecer a Vossa compreensão para se poder escrever, com verdade, a História desta Guerra na Guiné, pese, embora, que nos sobrem mais dúvidas que certezas.

A todos, o meu mais sincero abraço
Santos Oliveira

2. Comentário de L.G:

Camarada Santos Oliveira: obrigado pelas tuas preciosas informações. O facto de ter-te dado conhecimento do mail, a ti e outros camaradas mais velhinhos (de 1961 a 1963...), era na esperança de poder suscitar também a tua opinião. Em boa hora o fizeste. Há montes de coisas que não vêm (nem nunca virão) nos documentos oficiais ou oficiosos da tropa. Há coisas que só se podem conhecer, ou vir a conhecer, pelo método do boca a boca... Este método tem, de algum modo, funcionado no nosso bogue... LG

_________

Nota de L.G.:

(*) Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf do Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66., membro da nossa Tabanca Grande desde 24 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2301: Tabanca Grande (41): Santos Oliveira, 2.º Sarg Mil de Armas Pesadas Inf.ª (Como, Cufar e Tite, 1964/66)


Vd. postes mais recentes:

15 de Outubro de 2008 Guiné 63/74 - P3318: Album fotográfico de Santos Oliveira (1): Tite

6 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3416: Album fotográfico de Santos Oliveira (2): Tite, Tempestade tropical

10 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3434: Album fotográfico de Santos Oliveira (3): Tite, dia de ronco

15 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3458: Album fotográfico de Santos Oliveira (4): Tite

18 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3332: O meu baptismo de fogo (13): Tite, 1964 (Santos Oliveira)

15 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2352: Ilha do Como: os bravos de um Pelotão de Morteiros, o 912, que nunca existiu... (Santos Oliveira)

21 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3222: Convívios (84): Pessoal dos BCAÇ 237 e 599, Pel Mort 912, Pel Caç 955 e Pel AM Daimler 807 (Santos Oliveira)

4 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3021: Os nossos regressos (6): Regressei a olhar para trás...(Santos Oliveira)
Vd. psotes de:

22 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3499: Controvérsias (10): Vi em 1961 chegarem, a Bissau, as primeiras tropas equipadas com a espingarda automática G3 (Mário Dias)

21 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3492: Controvérsias (9): Eu fui para Farim, em Julho de 1961, com a G3, com o 1º Gr Comb da CCAÇ 84 (Alberto Nacimento)

(**) Vd. postes de:

11 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3294: O ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (Parte I) (Carlos Silva / Gabriel Moura )

12 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3298: O ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (Parte II) (Carlos Silva / Gabriel Moura)

13 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3308: O ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (Parte III) (Carlos Silva / Gabriel Moura)

sábado, 22 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3499: Controvérsias (10): Vi em 1961 chegarem, a Bissau, as primeiras tropas equipadas com a espingarda automática G3 (Mário Dias)




Guiné > Região do Oio > Farim > CCAÇ 84 > 1961 > O Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, da CCAÇ 84, com o capacete na mão, e o seu camarada e amigo Maximino, de G3 ao ombro (*).

Foto: © Alberto Nascimento (2008) Direitos reservados


A G3, espingarda automática, de calibre 7,62 mm,de origem alemã, começou a aparecer na Guiné em meados de 1961... Com punho e fuste de madeira.


1. Resposta do Mário Dias a um pedido de esclarecimento do editor, Luís Graça, sobre a G3 e o início da sua introdução no TO da Guiné (vd. ponto 2).

Comandante Luís:

Mais uma vez me fazes "descalçar as tamancas e largar a ronceirice de gato enroscado no borralho" para responder às tuas dúvidas e lançar alguma luz sobre questões levantadas na nossa Tabanca Grande. Sobre elas recordo o seguinte:

I- Em 1959, ano em que "fui às sortes", ainda não havia "G3" na Guiné. Era a velha Mauser.

II- Vi as "G3" pela primeira vez a uma (duas?) companhia(s) que em 1961 chegou(chegaram) à Guiné,  constituindo a segunda vaga de reforço de tropas. Também duas companhias da Caçadores especiais que para lá foram em 1962 já iam armadas de "G3".

A primeira a ser enviada para a Guiné, ainda em 1959 no seguimento dos acontecimentos de Pidjiguiti, foi uma companhia mobilizada e pertencente ao Batalhão de Caçadores 5 (Campolide) cujo comandante era o capitão Ressano Garcia. Ainda iam armados com Mauser.

III- De facto os primeiros actos de guerra foram em 1961 na área de S. Domingos e Varela feitos pela FLING, organização cuja existência o PAIGC procura ignorar. Era precisamente a referida Companhia de Caçadores 5 que aí se encontrava e aguentou os ataques.

Quanto aos acontecimentos de Guidaje relatados pelo Alberto Nascimento (*) não me recordo deles nem me lembro de os ouvir comentar em Bissau onde tudo se ia sabendo, tal como aconteceu no caso de S. Domingos. Talvez por não ter chegado a haver "troca de tiros" entre os "beligerantes" conforme julgo entender da descrição feita. É possível que algo me tenha escapado pois nessa altura, 1961, já tinha passado à peluda e estava a trabalhar no Sindicato.

A controvérsia gerada sobre a data da utilização da "G3" na Guiné deve-se ao entendimento que alguns têm de, tendo essa arma começado a ser fabricada em Braço de Prata apenas em 1963, então só a partir dessa altura ela esteve disponível. Nada disso, pois as primeiras G3 que equiparam o exército foram cedidas (vendidas?) pela Alemanha e sobretudo pela Espanha e tinham a coronha e o guarda-mão de madeira ao contrário das fabricadas em Portugal que passaram a ser de material plástico. Alguns se lembrarão certamente de ver as primeiras a que me refiro.

Espero ter contribuído para o esclarecimento desta questão da "G3" e continuo à disposição para clarificar dúvidas que estejam ao meu alcance.

Um abraço para todos os "moradores da tabanca".

Mário Dias


2. Pedido de esclarecimento enviado anteriormente ao Mário Dias, pelo editor do blogue L.G.:

Mário:

Eu sei que queres que te deixem em paz, nas tuas tamanquinhas, à lareira, a curtir a tua musiquinha... Mas acontece que tu és o pai de nós (como dizem ainda hoje alguns guineenses, a nosso respeito, a respeito de nós, tugas...). Tu és o pai da velhice, uma testemunha privilegiada dos acontecimentos político-militares na Guiné entre 1959 e 1966... Na nossa Tabanca Grande tens o estatuto de Homem Grande, de mauro, de sábio, de marabu... Se fosses fula, tratava-te por Cherno (tio), Cherno Mário Dias...

É por isso que, de vez em quando, eu venho pedir-te dois cêntimos para este peditório: refiro-me às nossas blogarias, esta conversa mole e amigável, que vamos mantendo entre antigos camaradas de armas, que querem esclarecer (e esclarecer-se sobre) alguns aspectos da nossa história, a pequena e a grande...

Hoje as questões que eu te ponho, meu caro Cherno Mário Dias, são as seguintes:

(i) No teu curso de sargentos milicianos, em 1959, ainda não tinhas obviamente a G3, mas sim eventualmente a Mauser; certo ?

(ii) Em que data é conheceste a G3, menina que tu, de resto, nunca trocarias pela Kalash; (Publicámos um excelente poste teu, sobre as qualidades e as virtudes da menina G3):

(iii) Tens conhecimento de escaramuças, na região do Cacheu (Guidage) ou no Óio (Farim), em meados de 1961 ? O nosso amigo e camarada Alberto Nascimento, soldado condutor auto da CCAÇ 84 (1961/63), foi em coluna, a Farim, nesse mês e ano, a partir de Bissau, para socorrer os comerciantes e população de Guidaje... E já levava a G3, como testemunham inequivocamente as fotos que publicámos...

É um testemunho precioso que nos obriga a contestar a ficção do PAIGC que estabeleceu a data do ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963, como a data oficial do início da luta de libertação, se bem que a fundação do PAIGC (ou melhor, do PAI) seja de 1956...

As escaramuças de que eu já tinha ouvido falar, em 1961, eram as do chão dos felupes, em São Domingos e Varela, ligadas a gente da FLING... Confirmas ?

Para terminar: Sabes mais alguma coisa que queiras partilhar com os teus amigos e camaradas da Guiné ? E, já agora, por onde andavas em 1961 ? Sei que em 1960 andavas a dar instrução militar como 1º cabo miliciano...

Sei que és um homem de palavra, que medes as palavras, e que detestas as luzes da ribalta. Mas já em tempos tive que discordar de ti, quando me pediste discrição em relação à história do Domingos Ramos, alegando que os mais fantáticos do PAIGC nunca entenderiam o estranho comportamento dos dois amigos inimgos (tu e ele)...

Cito o qu então escrevi:

"Estou em total desacordo contigo neste ponto: acho que tens a 'obrigação' (histórica, moral…) de divulgar este momento (raro, se não único…) em que dois antigos camaradas e amigos se encontram, de armas na mão, em campos opostos... Esta história é fabulosa e diz muito dos grandes seres humanos (e dos grandes profissionais) que vocês eram (e tu continuas a ser, agora 'paisano')…


"Não creio que os 'fanáticos' do PAIGC ou dos teus 'comandos' saibam entender estas coisas da grandeza da alma... Que faria o Domingos Ramos, se fosse vivo ? Morreria com este segredo ? Eu acho que esta história já não te pertence mais, desde o momento em que a partilhas comigo ou com outros amigos… Fazia-te bem divulgá-la… Mas eu respeito inteiramente a tua decisão"...

Felizmente, tu reconsideraste, de imediato, a tua posiçáo, e eu tive a o privilégio de publicar, em 2 de Fevereiro de 2006, na I Série do nosso blogue, uma das histórias mais fantásticas e bonitas que eu já ouvi sobre a amizade entre homens, e que tocou muitos dos nossos amigo e camaradas da Guiné.

Um Alfa Bravo, querido Mário.
Luis

________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

16 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3459: Histórias da velhice (1): Eu e o 1º Pelotão da CCAÇ 84 em Farim, em Julho de 1961, em socorro de... Guidaje (Alberto Nascimento)

21 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3492: Controvérsias (9): Eu fui para Farim, em Julho de 1961, com a G3, com o 1º Gr Comb da CCAÇ 84 (Alberto Nacimento)


(**) Sobre a G3, Hedder & Koch G3 ou HK G3 > Vd. Wikipédia

A G3 (em alemão: Gewehr 3, Espingarda 3) é uma espingarda automática fabricada pela Heckler & Koch (daí ser também conhecida por HK G3) e adoptada como a espingarda de serviço pela Bundeswehr (Exército Alemão) em 1959 (e até 2001), e depois por outros exércitos, nomeadamente dos países da NATO.

A G3 é tipicamente um espingarda, de calibre 7,62 mm, capaz de fogo semi-automático ou totalmente automático. Pode ainda ser anexada uma baioneta à G3. Foi desenvolvida pelos engenheiros da Mauser. A versão original da G3 era com punho e fuste de madeira.


Do mesmo fabricante é a HK 21, a metralhadoras em calibre 7,62, igualmente usada pelas NT nos TO da Guiné, Angola e Moçambique.

Face à Guerra do Ultramar, no incío dos anos 60, e ao embargo de armas imposto a Portugal pelo Governo Kenedy, uma nova arma. Por causa do embargo dos Estados Unidos, na época do Kenedy, a escolha acabou por cair num outro país da NATO, a Alemanha, disposto em transferir a tecnologia para a fabricação da arma em Portugal, neste caso para a Fábrica de Braço de Prata.

Quando chegou a África, em comparação com as antigas armas ligeiras das forças armadas a G3 era vista como extremamente sofisticada. Tratava-se de uma arma automática, que podia disparar rapidamente uma considerável quantidade de munição.

Foi necessário bastante treino de forma que a tropa se habituasse a entender que a posição normal da arma deveria ser a posição tiro-a-tiro, porque do ponto de vista operacional, gastar rapidamente a munição no meio do mato, seria um problema.

Em 1965, já o número de espingardas automáticas G3 tinha ultrapassado as 150.000 nas forças armadas, e mesmo assim, ainda existiam em funcionamento 15.000 espingardas automáticas FN, fornecidas de emergência pelo exército alemão, antes da introdução da G3.

17 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2445: Em louvor da G3, no duelo com a AK47 (Mário Dias)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2485: O nosso armamento no princípio da guerra: G-3, FN, Uzi (Santos Oliveira)

(...) Notas de L.G.:

(...) "Sobre armamento usado pelo Exército Português no início da guerra colonial / guerra do ultramar, vd. sítio do Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra:

(...) "Para acorrer às necessidades imediatas, a RFA [República Federal Alemã] prontificou-se a ceder, dos seus stocks, 15 000 espingardas FN usadas, sem restrições de emprego, que deveriam ser devolvidas depois de beneficiadas e à medida que fossem fabricadas as G-3. De facto, foram recebidas 14 867 FN por esta via, mas quanto à devolução, parece não ter havido pressa, porquanto, em 1965, havia já cerca de 140 000 G-3 de fabrico nacional e estas FN continuavam em Portugal.

"Ainda quanto às espingardas FN, foram também adquiridas directamente à fábrica, ou através de outros utilizadores (África do Sul). Mais concretamente, dado o carácter de urgência, houve um lote de armas cedido por este país dos seus próprios stocks, posteriormente repostos pela fábrica belga. No total seriam fornecidas cerca de 12 500 destas armas.

"Antes da adopção da G-3, a distribuição prevista de armas automáticas era a de FN para Moçambique e de G-3 para Angola, mas problemas políticos levaram a que, em certo período, a G-3 fosse mantida “fora de vistas” nesta última. O total de armas adquiridas, antes do fabrico nacional, foi de 8000 G-3, 12 500 FN belgas e de 14 500 FN alemãs, repartidas pela metrópole, Guiné, Angola, Moçambique e Timor.

"A produção julgada necessária em Junho de 1961 era de 105 000 armas, sendo 75 000 para a metrópole e 30 000 para o ultramar. O conceito inicial era de manter na metrópole o número de armas destinadas à instrução e ter em depósito as necessárias para equipar as unidades mobilizadas, mas o futuro se encarregaria de inverter esta distribuição. É curioso notar que só por despacho de 18/9/65 do CEMGFA a G-3 foi considerada 'arma regulamentar'. (...)
.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3492: Controvérsias (9): Eu fui para Farim, em Julho de 1961, com a G3, com o 1º Gr Comb da CCAÇ 84 (Alberto Nascimento)

(i) Guiné > Região do Oio > Farim > CCAÇ 84 > 1961 > "Eu, à esquerda, com capacete na mão, e o meu camarada e amigo Maximino, de G3 ao ombro"

Guiné > Região do Oio > Farim > CCAÇ 84 > 1961 > "Eu, num baga-baga, com a G3, a armar-me aos cucos"

Guiné > Bissau > 1961 > "Numa formatura, ainda em 1961, em Bissau, depois do meu pelotão regressar de Farim, frente ao palácio do governador, Peixoto Correia... já todos os camaradas estão equipados com G3".

Guiné > Zona leste > Região do Gabu > Buruntuma > CCAÇ 84 > Fevereiro ou Março de 1962 > "Na zona dos Bucurés, a malta da companhia, com a G3"

Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ 84 > 1962 > "Mais uma pose para a fotografia, a G3 sem carregador".

Fotos e legendas: © Alberto Nascimento (2008) Direitos reservados

1. Mensagem, de 18 de Novembro, do Alberto Nascimento, a quem tinha, há dias, desafiado para me mandar fotos com a G3 (Alberto: Não tens uma foto tua... com a G3 ? Há malta incrédula com a tua história... G3 na Guiné em Julho de 1961 ?!... Um abração. Luís):

Amigo Luís

Para esclarecimento sobre o Caso G3, só posso confirmar o que escrevi para o blogue (*): Em Julho de 61 o meu pelotão recebeu a G3 e deslocou-se de urgência para Farim (**).

(i) Reenvio uma fotografia tirada juntamente com o camarada e amigo Maximino, (falecido em 2005), após um reconhecimento na zona. Do meu equipamento apenas tenho o cinto com os carregadores da G3 e o capacete, mas aquilo que o Maximino tem ao ombro é uma G3:

(ii) Envio outra fotografia, também de Farim, daquelas que se tiram “a armar aos cucos”, também com a G3;

(iii) Os restantes camaradas da companhia devem ter recebido a arma algum tempo depois, porque na formatura que fizemos ainda em 1961, em Bissau, depois do meu pelotão regressar de Farim, frente ao palácio do governador (Peixoto Correia), no render da parada, ou da guarda, ou coisa do género, já todos os camaradas estão equipados com G3;

(iv) Do destacamento seguinte, Buruntuma, Fevereiro ou Março de 1962, reenvio uma fotografia tirada na zona dos Bucurés, onde se pode verificar que os militares usam a G3;

(v) Do destacamento de Piche, mais uma pose só para a fotografia, com G3 mas sem carregador.

Do destacamento seguinte, Bambadinca, já falei de G3 quando relatei a operação Samba Silate (***), mas lamentavelmente não tenho fotografias com G3 para enviar.

Com ou sem licença, fabricadas ou não pela Fábrica Nacional de Braço de Prata, esta é a realidade e embora admita falhar quando menciono este ou aquele mês nas deslocações para os vários destacamentos, a ida para Farim e o recebimento da G3 são um dado que está absolutamente correcto, seja qual fôr a data convencionada para o início da história da guerra na Guiné e, com todo o respeito, as opiniões divergentes dos camaradas quanto a este assunto das G3.

Um Grande Abraço

Alberto Nascimento

_____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 16 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3459: Histórias da velhice (1): Eu e o 1º Pelotão da CCAÇ 84 em Farim, em Julho de 1961, em socorro de... Guidaje (Alberto Nascimento)

(**) Vejam os seguintes comentários:

(...) Joaquim Mexia Alves

Não coloco obviamente em causa esta história, mas tenho de achar muito estranhas as datas. Não só por tudo aquilo que se julga saber, mas porque um meu irmão mais velho embarcou para Angola em 62 e, ao que me lembro, fez toda a comissão com a Mauser.Haveria já na Guiné a G3?Talvez, não digo que não!

Abraço camarigo
Joaquim Mexia Alves

José Colaço

É bem possível haver aqui um desfasamento de um ano porque só em 1962 é que a FMBP - Fábrica Nacional de Braço de Prata conseguiu licença para fabricar a HK G3. A minha companhia quando chegou a Guiné em Dezembro de 1963 recebeu a G3. Mas lembro que só na última semana quando estávamos a aguardar embarque, é que apareceu por lá uma G3a cheirar a nova para treino. Toda a instrução tinha sido com a velha mauser.

Um alfa bravo. Colaço


(**) Vd. último poste desta série 28 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3374: Controvérsias (8): Cherno Rachide Djaló: um agente duplo ? (José Teixeira / Manuel Amaro / Torcato Mendonça)

(***) Vd. poste de 11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63

domingo, 16 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3459: Histórias da velhice (1): Eu e o 1º Pelotão da CCAÇ 84 em Farim, em Julho de 1961, em socorro de... Guidaje (Alberto Nascimento)



Guiné > Região do Cacheu > Guidaje > Parece que em 1961 já havia tiros, um ano e meio antes de Tite, onde oficialmente começou a guerra, segundo a historiografia do PAIGC... Em 1973, em Maio, Guidaje vai tornar-se num inferno (parafraseando o título do jornal Público, em reportagem de 5 de Novembro de 1995).

Na foto de cima, um monumento funerário, evocando o Alf Mil Op Esp, António Sérgio Preto, da CCAÇ 19, morto em combate, no dia 29 de Junho de 1972...

Fotos: © Albano Costa (2008). Direitos reservados



1. Mensagem do Alberto Nascimento, membro da nossa Tabanca Grande, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84 (1961/63) (*), com data de 24 de Setembro, e reenviado a 10 de Novembro:

Amigo Luís:

Aí vai mais uma história, esta de Farim, de uma época de relativo sossego, que tu e os camaradas dos anos seguintes não tiveram a sorte de passar.

É uma das vantagens de ser velho...Um bocadinho mais velho.

Um Abraço
Alberto


2. Histórias da velhice (1) > O 1º Pelotão da Ccaç 84 em Farim


Bissau, Julho de 1961, meio da tarde.

O pelotão é formado com urgência e recebe as novas espingardas G3, para substituição da velha Mauser, corre para a carreira de tiro, recebe instruções sobre o funcionamento da arma: para desmontar tiram-se estas cavilhas, o carregador mete-se assim...com esta patilha nesta posição dá tiro a tiro, naquela tiro de rajada...vamos disparar uns tiros... estamos aptos.

Agora era só meter no saco o estritamente necessário para uso pessoal e desandar para Farim porque tinha havido um ataque em Bigene.

Saímos de Bissau cerca das 18 horas e fizemos rapidamente o percurso até Mansoa pelo único troço de estrada alcatroada que conheci (julgo que o único existente na Guiné da altura).

Com a época das chuvas já em pleno, as viaturas sem cobertura alguma, só com o camuflado em cima da pele, as estradas de terra completamente alagadas a ponto de os tabuleiros das pontes ficarem abaixo do nível da água e a nossa ainda incipiente experiência no terreno, a coisa não começava nada bem, mas após alguns atascamentos e velocidades vertiginosas de cinco milhas à hora em grande parte do percurso, conseguimos chegar ao destacamento de cavalaria instalado nos arredores de Farim, cerca das vinte e três horas.

Foi-nos servido um jantar engolido à pressa, e toca a correr para Bigene, onde passámos a noite à espera “que o assassino voltasse ao local do crime”, mas como não voltou, de manhã cedo voltámos a Farim.

Passámos o primeiro dia uns a dormir no chão do alpendre da caserna dos camaradas de cavalaria, eu fazendo serviço da minha especialidade, e à noite, depois de mascarrarmos a pele visível com fuligem das panelas, fomos emboscar um grupo de inimigos que, segundo informações (não fidedignas, pelos vistos), ia infiltrar-se em Farim.

Deitados no capim a uns metros do caminho por onde era suposto passarem, suportámos chuvadas fortes e constantes com a água a correr por baixo dos corpos e quando a chuva acalmava vinham nuvens de mosquitos, que nos faziam rogar aos santinhos para que voltasse a chuva e muito vento.

Movimentos físicos, só respirar, para não denunciarmos a nossa presença.

Não apareceu ninguém, nem nessa noite nem em mais uma ou duas operações semelhantes, porque certamente eles tinham melhor serviço informativo que o nosso.

Continuávamos a dormir no chão do alpendre, mas a partir de certa altura os camaradas de cavalaria, bons alentejanos, já revoltados com a nossa situação, permitiram que esticássemos o corpo nas suas camas durante o dia. Para os que podiam dormir durante o dia...

Estivemos nesta situação durante uns dias até que fomos ocupar um armazém desactivado em Farim e nos concederam o privilégio de voltar a ter as nossas camas.

Estávamos a começar a entrar na rotina militar, quando se deu um ataque a Guidaje e lá fomos nós ver os prejuízos. Fomos acompanhados por um comerciante português vestido com farda militar que conhecia bem a zona (?).

Identificado com alguma dificuldade, o caminho para Guidaje, um caminho por onde só deviam passar viaturas no período de transporte da mancarra, a avaliar pelo mato que crescia nele, deparou-se-nos uma rudimentar ponte de madeira sobre um curso de água que, embora não muito largo, devido às chuvas corria com caudal bastante forte.

Foi com muita dificuldade que conseguimos atravessar passar para o outro lado, porque imediatamente antes do tabuleiro havia um lamaçal que fazia com que a frente do jipão se atolasse ficando o para-choques ainda mais baixo que o tabuleiro. Depois de muito trabalho muita lenha colocada na zona de lama e muitos impactos das viaturas contra a ponte, conseguimos passar e fazer o resto do percurso até Guidaje.

É obvio que nos limitámos a verificar as marcas deixadas pelos tiros que dispararam, a olhar para o armazém de mancarra parcialmente queimado e a conversar com alguns habitantes, após o que o comando da coluna decidiu, ao fim da tarde, regressar a Farim.

Na volta aguardava-nos uma surpresa, daquelas que, passados os instantes de espanto acabam em gargalhada. Da ponte que tanto nos custara a atravessar, restavam apenas umas estacas espetadas na margem do rio...O resto tinha-se desconjuntado com os impactos das viaturas e foi arrastado pela corrente.

Havia palmeiras muito próximo do rio e isso ajudou-nos a improvisar uma nova travessia à força de machadadas dadas com gana principalmente pelo cabo 957(?) também conhecido por Cabo Gordo pelos camaradas africanos, que a cada cinco machadadas derrubava uma palmeira. Depois desta demonstração das nossas capacidades na construção de pontes, ou mais precisamente na arte do desenrasca, e porque a fome já apertava, lá conseguimos chegar a Farim, tarde mas ainda a hora decente para o jantar, que continuava, tal como as outras refeições, a serem fornecidas pelo destacamento de cavalaria.

Entre reconhecimentos da zona, postos de guarda colocados em vários pontos da povoação e umas idas ao bar da piscina, explorado por um cabo-verdiano conhecido por Cuca, o tempo foi passando até que, com muitos protestos da população de Farim, que queria ter segurança e até se revezava para fazer chegar, durante a noite, aos postos de guarda as sandes e o café quente, recebemos ordem para regressar a Bissau...

É a tropa...Quem podia, mandava. A verdade é que até ao fim do ano a nossa vida, pelo menos a minha, foi uma pasmaceira e só à noite se animava, com a visita aos lugares onde se petiscava, bebia, confraternizava e, às vezes, também se arranjavam problemas com os camaradas da P.M. e não só...

O destacamento seguinte, já em 1962, foi Nova Lamego, tendo o meu pelotão sido dividido pelo triângulo Piche, Canquelifá e Buruntuma. À minha secção calhou Buruntuma.

Alberto Nascimento

3. Comentário de L.G.:

Em primeiro lugar, os meus parabéns. Tens uma memória invejável. De elefante! Feitas as contas, já se passaram... 47 anos!... (Só 47 anos, dirão alguns, afinal menos de meio século!)... E tu relatas a cena da ida, do teu pelotão, a Farim, Bigene e Guidaje, do teu pelotão, com a frescura dos teus 20 anos. Um espanto!

Em segundo lugar, as nossas desculpas (ou uma explicação). O teu mail, de 24 de Setembro, por qualquer razão não veio parar à nossa caixa de correio. Ainda bem que deste conta do lapso, se não tinha-se perdido uma história (com H...) mui preciosa, como diriam os nossos vizinhos da Jangada de Pedra...

Em terceiro lugar, os acontecimentos que tu nos relatas, obrigam-nos a rever a história da guerra da Guiné. Afinal, a guerra não começou em Tite, em 23 de Janeiro de 1963. Essa é a lenda que nos contam os camaradas do PAIGC, e que os historiógrafos (guineenses, portugueses e outros) tendem a reproduzir... tal como nós, aqui no blogue.

Pelo que tu nos contas, já usavas G3 em meados de 1961, em substituição da velhinha Mauser. E devias também usar capacete de aço! Imagino o suplício, com aquela torreira toda... Esta é, de facto, uma história da velhice mais velha! Portanto, em meados de 1961, os camaradas - possivelmente gente da FLING, e não do PAIGC - já andavama aos tiros aos nosssos comerciantes e aos seus armazéns de mancarra, lá na região do Cacheu , na fronteira com o Senegal, em Bigene e em Guidaje.

Este facto é historicamente importante. Estamos gratos pelo teu depoimento. Não hesistes em escrever, sempre que te der na real gana. O blogue é teu.

_________

Nota de L.G.:

(*) vd. postes de:

7 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3181: História de vida (16): A falsa Mariama, mandinga de Bambadinca, a sua filha, e o seu amigo... (Alberto Nascimento)

14 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3059: Memórias dos lugares ( 9): Bambadinca , 1963 (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

10 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3044: Estórias avulsas (16): Os cães de Bambadinca (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63

(...) " a CCAÇ 84, três meses depois de aterrar no aeroporto de Bissalanca, foi literalmente fragmentada e enviada para os mais diversos pontos do território, tendo o meu pelotão tido como último destacamento, entre Novembro de 1962 e 7 ou 8 de Abril de 1963, Bambadinca, sob o Comando de Bafatá.

"O primeiro destacamento, ainda em Julho de 1961, foi para Farim, após os primeiros e ainda pouco violentos ataques a Bigene e Guidaje. Seguiu-se o destacamento de Nova Lamego, conforme é dito no seu blogue (P 1292 - Contributos) onde o pelotão foi dividido por Buruntuma, Piche e Canquelifá.

"Só estou a mencionar o 1º pelotão da Companhia, porque à grande maioria dos camaradas dos outros pelotões só voltei a ver nos dias que antecederam o embarque para a Metrópole.

"Como a memória se perde no tempo por indocumentação, ou porque a essa memória se teve medo de atribuir qualquer importância (existiam e ainda existem muitos complexos sobre a guerra colonial), resolvi dar o meu contributo para esclarecer uma dúvida colocada no seu blogue, sobre quem teria participado nos massacres de Samba Silate e Poindom, no início de 63.

"Sem conseguir precisar o mês, um dia soubemos que a PIDE estava em Bambadinca para deter o padre António Grillo, italiano da Ordem Franciscana, acusado - não sabíamos se por denúncia, se por investigação - de colaborar, proteger, e fornecer alimentos a elementos do PAIGC, a partir de Samba Silate" (...).



(**) Sobre o ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963, e sobre a FLING, vd. postes de:

11 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3294: O ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (Parte I) (Carlos Silva / Gabriel Moura )

12 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3298: O ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (Parte II) (Carlos Silva / Gabriel Moura)

13 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3308: O ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (Parte III) (Carlos Silva / Gabriel Moura)

13 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3057: A Guerra estava militarmente perdida (26)? A situação político-militar na Guiné (A. Marques Lopes)

9 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2826: FLING, mito ou realidade ? (2): Africanos contra africanos... (A. Marques Lopes)

7 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2818: FLING, mito ou realidade ? (1) (Magalhães Ribeiro, Fur Mil Op Esp, CCS/BCAÇ 4612/74, Mansoa)

18 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2190: PAIGC - Quem foi quem (4): Arafan Mané, Ndajamba (1945-2004), o homem que deu o 1º tiro da guerra (Virgínio Briote)

domingo, 27 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2485: O nosso armamento no princípio da guerra: G-3, FN, Uzi (Santos Oliveira)

A espingarda automática FN, de origem belga [produzida pela Fabrique Nationale]

A pistola-metralhadora UZI, de origem israelita

A espingarda automática G-3, de origem alemã.


1. Mensagem do Santos Oliveira (1), de 20 do corrente, dirigida ao Mário Dias, com conhecimento aos editores do blogue:

Amigo caríssimo Mário:


Afinal, parece que sou bem mais azelha que o que pensava, pois não conseguia comunicar contigo devido a um simples til.

Mas, já agora, acerca do assunto em esclarecimento (das estrias da G3), não há um Camarada ilustre, o Victor Condeço, que era Mecânico de Armamento? Suponho que é dos anos seguintes aos nossos, mas deve ter documentação mais completa que a minha e da minha curiosidade daquela época me ter guiado para o fresado. Mas, cá vai o que sei e o que penso estar certo.

Mais uma vez, mil perdões por interferir.

Um imenso abraço, do
Santos Oliveira

2. Mensagem enviada ao Mário Dias e ao Virgínio Briote:

Caros Amigos:

Sem criar polémicas, entendo que é um mau exemplo o meu Alferes ter, um dia, transportado a arma naquela posição (2). Eu pregar-lhe-ia uma porrada se fosse da minha competência. Razão, muita razão tinha o nosso Furriel em condenar e censurar.

O Mário Dias ouviu, certamente, o meu desabafo acerca dos equipamentos com que ambos os lados iniciaram a Guerra. Eu disse que a nossa G3 (FBP) não conseguia fazer tiro útil, em determinadas condições de terreno, como, por exemplo, se se molhassem; mas também afirmei que a minha G3 (original Mauser) nunca se encravou.

O ponto de que o Mário fala, as estrias, é o ponto fulcral. Efectivamente só haviam 4 estrias longitudinais, mas cuja diferença era, tão-somente, o tipo de fresado que as diferenciava. Enquanto que o fresado das originais (da minha, por ex.) tinha um ângulo de uns 30 graus (??) as de origem em Braço de Prata eram perpendiculares (90 graus), o que facilitava a acumulação de poeiras e pólvora, que depois de humedecida…

De resto a minha G3 e a minha UZI foram fabulosas, embora a minha função não fosse igual, nem semelhante, àquela que vocês tiveram.

Essa G3, eu também defendo. Ainda deve estar aí para as curvas…

No manual que vos anexo, não há nenhuma referência às estrias do cartucho. Na época, também não se sabia qual arma que viria ser aprovada (se a G3 ou se a FN) e por isso a sua produção, em Portugal, nem sequer era equacionada (3).

Espero ter dado o meu contributo.

A ambos, com admiração, o meu abraço

Santos Oliveira

_____________

Notas dos editores

(1) Vd. poste de 24 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2301: Tabanca Grande (41): Santos Oliveira, 2.º Sarg Mil de Armas Pesadas Inf (Como, Cufar e Tite, 1964/66)

(2) vd.postes de:

19 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2458: Os sulcos... e as estrias da G3 (Mário Dias / Virgínio Briote)

17 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2445: Em louvor da G3, no duelo com a AK47 (Mário Dias)

(3) Sobre armamento usado pelo Exército Português no início da guerra colonial / guerra do ultramar, vd. sítio do Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra


(...)
Espingardas: O desencadear das hostilidades revelou, logo de início, em qualquer dos três teatros, a falta de uma arma automática de base: em Angola, os ataques em massa não podiam ser eficazmente contrariados com espingardas de repetição; na Guiné e em Moçambique, os guerrilheiros dispuseram, desde o princípio, de armas automáticas que lhes davam nítida vantagem sobre algumas das tropas portuguesas (caso das unidades de guarnição normal).

Assim, a prioridade, em 1961, foi a obtenção imediata de armas automáticas, mas tendo em atenção a necessidade de garantir o fluxo de abastecimento de munições e sobressalentes, o que só poderia ser plenamente conseguido através do fabrico nacional. Duas armas pareciam corresponder aos desideratos operacionais então formulados: a FN, de origem belga, e a G-3, de origem alemã. Quanto às munições, não havia problema, porquanto o cartucho de 7,62 mm era já fabricado em Portugal e exportado em larga escala, sobretudo para a RFA [República Federqal Alemã].

Foram assim adquiridas (com dificuldades, como veremos), dois lotes destas duas armas:
- FN: 3835 sem bipé (s/b) e 970 com bipé (c/b);
- G-3: 2400 sem bipé (s/b) e 425 com bipé (c/b).

Estas armas foram testadas em operações, “a quente”, tendo-se concluído, de modo genérico, que as FN eram de mais fácil transporte, mas o sistema de regulação de gases levantava problemas com pessoal pouco instruído; quanto às G-3, tinham mais precisão, mas o sistema de travamento de roletes revelava tendência para quebrar. No entanto, ambas foram consideradas como satisfazendo os requisitos operacionais. (...)


Sobre as dificuldades de abastecimento com que se deparou o Exército Português no início da década de 1960, no quadro da guerra colonial / guerra do ultramar:

(...) Na época, qualquer fornecimento de material militar a Portugal era extremamente melindroso, não sendo de admirar as dificuldades encontradas. No tocante ao fabrico, a decisão tenderia naturalmente para a opção alemã, mais que não fosse pelo grande volume de transacções já existente entre a RFA e Portugal (dezenas de milhões de cartuchos 7,62 e centenas de milhares de granadas de artilharia eram fabricadas nas FBP [Fábrica Braço de Prata] e FNMAL [Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras ] e vendidas à Alemanha). O fabrico nacional ficou decidido ainda em 1961, saindo as primeiras armas 15 meses depois (fins de 1962), para o que foi determinante a transferência de tecnologia e a assistência à produção, que permitiram, a partir de 1962, o fabrico de canos e carregadores.

Para acorrer às necessidades imediatas, a RFA [República Federal Alemã] prontificou-se a ceder, dos seus stocks, 15 000 espingardas FN usadas, sem restrições de emprego, que deveriam ser devolvidas depois de beneficiadas e à medida que fossem fabricadas as G-3. De facto, foram recebidas 14 867 FN por esta via, mas quanto à devolução, parece não ter havido pressa, porquanto, em 1965, havia já cerca de 140 000 G-3 de fabrico nacional e estas FN continuavam em Portugal.

Ainda quanto às espingardas FN, foram também adquiridas directamente à fábrica, ou através de outros utilizadores (África do Sul). Mais concretamente, dado o carácter de urgência, houve um lote de armas cedido por este país dos seus próprios stocks, posteriormente repostos pela fábrica belga. No total seriam fornecidas cerca de 12 500 destas armas.

Antes da adopção da G-3, a distribuição prevista de armas automáticas era a de FN para Moçambique e de G-3 para Angola, mas problemas políticos levaram a que, em certo período, a G-3 fosse mantida “fora de vistas” nesta última. O total de armas adquiridas, antes do fabrico nacional, foi de 8000 G-3, 12 500 FN belgas e de 14 500 FN alemãs, repartidas pela metrópole, Guiné, Angola, Moçambique e Timor.

A produção julgada necessária em Junho de 1961 era de 105 000 armas, sendo 75 000 para a metrópole e 30 000 para o ultramar. O conceito inicial era de manter na metrópole o número de armas destinadas à instrução e ter em depósito as necessárias para equipar as unidades mobilizadas, mas o futuro se encarregaria de inverter esta distribuição. É curioso notar que só por despacho de 18/9/65 do CEMGFA a G-3 foi considerada “arma regulamentar”. (...)


Quanto às pistolas-metralhadoras (PM):

(...) a orgânica anterior a 1960, as pistolas-metralhadoras (PM) tinham uma distribuição relativamente elevada (uma por secção de atiradores). Existia mesmo uma PM de concepção nacional, a FBP de 9 mm m/947, que tinha o inconveniente de só fazer tiro automático, problema resolvido com o novo modelo (m/961), que podia fazer também tiro semi-automático.

A adopção de uma espingarda automática relegou as PM para segundo plano, porquanto obrigavam a dois calibres nas unidades elementares e identificavam os comandantes a quem estavam normalmente distribuídas. Apesar disso, foram adquiridas PM, quer importadas (UZI de concepção israelita), quer de produção nacional (FBP m/961), empregues essencialmente na defesa de instalações e nas forças de segurança e de autodefesa. (...)

sábado, 19 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2458: Os sulcos... e as estrias da G3 (Mário Dias / Virgínio Briote)



Em S. Vicente, no regresso a Bissau, depois da Op Atraca, no corredor de Canja. Setembro de 1966. Ou como não se devia transportar a G3, como ensinou vezes sem conta, o nosso Furriel Mário Dias.

Foto: Virgínio Briote (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem do Mário Dias sobre a G3, a propósito dos sulcos que eu, quarenta anos depois e ainda instruendo, confundi com as estrias. Assim se vai fazendo a história dos aprendizes (*). Claro que pensei duas vezes, antes de perguntar ao Mário se ele estava a falar das estrias da G3. Tal como o conheci, fiel a ele próprio, minucioso e delicado como naqueles tempos, o Mário passa por cima. Grato, meu Furriel, por mais esta lição.

Caro Briote

Obrigado pelo reparo que fizeste sobre as estrias da G3 que são realmente 4, helicoidais, e enrolam no sentido dextorsum. (Ainda me recordo deste palavrão).

Mas, no meu texto, não me refiro às estrias propriamente ditas que se situam no cano. Falo de uns sulcos em linha recta, longitudinais, existentes na câmara da arma e que se destinam a fazer com que o cartucho não fique totalmente "colado" às paredes da dita câmara.

Esses sulcos, ao receberem os gases da explosão, permitem que o invólucro do cartucho seja extraído com maior facilidade. Se esses sulcos ou ranhuras estiverem obstruidos com qualquer sujidade a extracção pode não se realizar. Deves estar recordado que era um dos pontos que nós fazíamos questão de inspeccionar introduzindo o dedo mínimo na dita câmra para ver se o retiravámos limpo ou sujo. Alguns, eu por exemplo, até brincavamos com isso dizendo que era uma operação semelhante à que se faz para ver se as galinhas estão ou não prestes a pôr um ovo. Continuo com a dúvida se esses sulcos ou ranhuras era ou não 6. Creio que eram. No entanto, peço ajuda aos camaradas da Tabanca com a memória mais fresca que esclareçam esta dúvida.

Um grande abraço para toda a Tabanca, especialmente aos editores.

Mário Dias


__________

Nota de vb:

(*) O cano da minha G3

"As reclamações do costume, uma das mulheres do Tomás Camará à porta de armas, que marido, não dava dinheiro há que tempos, tinha que pagar arroz, ele não dá dinheiro, nosso alfero!



Tomás Camará. Na estrada Ingoré-Barro em Set 1966.

E porque vens falar comigo, eu não sou teu marido, fala com o Camará! Mas, nosso alfero, ele não vai a casa, meninos não têm que comer, eu não tem que dar! Como te chamas, qual é teu nome? Binta? Nome lindo, quantos pesos bó precisa?

Um dia igual a tantos outros. Aplicação militar de manhã, banho, carreira de tiro, almoço, uma sorna a seguir. Lá para as quatro, frente a Brá, exercícios com as equipas, progressão das parelhas por lances, projécteis nos troncos das palmeiras quando mostravam o quico, eles outra vez aos ziguezagues, granadas para cima, reunir as equipas para o regresso. No caminho em direcção ao aquartelamento, alguns mais descontraídos, já relaxados, a conversa a alargar-se, uma granada ofensiva para cima, para lhes lembrar que nas guerras não há descansos. E nove deles para o hospital, dar trabalho ao pessoal de enfermagem, como se eles já não tivessem que chegasse, para retirar-lhe um a um, os pequenos estilhaços que lhes tinham calhado na brincadeira.

À noite, cross até à entrada de Bissau, pelas margens da estrada, a cantarem, eu vi a BB na avenida marginal, a andar de lambreta, mas que lasca bestial…toda nua, nua, nua, toda nua…volta à rotunda, para trás até Brá. Para o quarto de banho, para o chuveiro, para onde há-de ser? E depois, tens alguma ideia? Ideias, não me fales em ideias, Vilaça, às vezes são tantas que até atrapalham.

Um dia, curso terminado nem há uma semana, tinha tido uma que, passados meses, ainda o moía. Fora até uma carreira de tiro que tinham improvisado, dois ou três kms para lá da base aérea. Pegara na G3, um cunhete ainda fechado, jeep na esgalha, como de costume. Mirara os alvos, garrafas de cerveja, de uísque, latas e mais latas, umas pelo chão, outras penduradas nos arames, umas atrás das outras. Do cunhete sobrara a caixa de madeira, pisava cápsulas, pelo chão mais de cinco mil de certeza, as que tinha gasto mais as que por lá tinham ficado de sessões anteriores. Depois, mais calmo, com o final da tarde a aproximar-se, sentara-se no jeep, arma com o cano a deitar fumo no banco de trás, ouvidos a zunirem, de regresso a Brá, uma brisa a dar-lhes.

Arma no quarteleiro, para limpeza completa. No dia seguinte, acordara com a voz esganiçada do Sany, nosso alfero, capitão Saraiva quer falar com o senhor.

Encontrou o capitão no gabinete às voltas com um relatório. Os bons dias amigáveis que dera não tiveram resposta, se calhar não ouviu, embrulhado com a papelada, nada que fosse da especialidade do Sariava.


Cap Maurício Saraiva, idolatrado e odiado. Um mal amado em Brá.1965

Viu-o levantar-se, o olhar de poucos amigos, e o que ele tinha para lhe dizer. Uma G3 na mão, o capitão disparou, quem foi o asno que fez esta merda?

Olhei para a arma, era a minha. Um pequeno lanho na ponta do cano, sem tapa chamas. Não foi um asno, fui eu, a arma é a minha, não, não há dúvida, é mesmo a minha, admitiu depois de ter passado os dedos pela racha.

Ora bem, os olhos do cap dentro dos óculos, como é que o alferes quer resolver isto?

Vou pagar, tem que ser, olhos nos óculos. Pagar vai, isso está fora de dúvidas, agora vamos ver como quer pagar, não é? Claro que há, aqui há sempre alternativas, responde o capitão.

A expulsão ou um par de chapadas, a escolha é sua!

Chapadas, expulsão?"



Guiné > Brá > 1965 > Os 4 Grupos de Comandos, sob o comando do Cap Nuno Rubim.

A expulsão é pública, sabia-o bem, já a fizera a um cabo. Os grupos formados em sentido, o clarim, o cabo em frente a tremer todo, escolta ao lado, a nota de expulsão em voz alta, o chefe de equipa a arrancar-lhe o crachá, os distintivos, o lenço, a entrega da guia de marcha para o QG, a escolta a conduzi-lo à porta de armas, esta a fechar-se, tudo seguido.
O par de chapadas devia ser em privado, mas mesmo assim, chapadas? Na cara?

Não sabia o que fazer, as alternativas não eram fantásticas. Vou pensar, meu capitão. Boa ideia, mas aqui e agora, alferes. Ficamos aqui os dois, até se decidir.

Ao lembrar-se como tudo terminara saiu-lhe uma gargalhada. O nariz a ferver, um abraço e o convite para jantar no Grande Hotel." (...)


Texto e fotos: Tantas Vidas, Blogue de Virgínio Briote, Lisboa

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2445: Em louvor da G3, no duelo com a AK47 (Mário Dias)

1. Mensagem de Mário Dias, recebida na terça-feira, 15 de Janeiro de 2008, com o título: Em louvor da G3

Caro Luís:

Por ser tão comum enaltecer a vantagem do PAIGC sobre as NT a propósito da AK47 versus G3, o que não considero verdadeiro, junto em anexo a minha opinião mais ou menos fundamentada sobre o assunto.

Aproveito para anunciar que, contrariamente ao meu desejo, não me vai ser possível estar presente no lançamento do livro do Beja Santos que profundamente admiro. Daqui lhe envio um grande abraço e continue a escrever. Que nunca as mãos lhe doam.

Boa viagem até Guiledje e votos que o Simpósio venha a constituir-se numa mais profunda amizade e compreensão entre todos nós.

Um grande abraço.
Mário Dias
__________

2. Resposta do VB:
Meu Caro Furriel Mário Dias,

Não é o Luís, sou eu, o Briote que assumo o encargo de publicar a tua (minha também) defesa da G3, essa namorada que, tanto quanto me lembre, me foi fiel durante a minha comissão na Guiné.

Não dei muitos tiros em combate. Ainda hoje me lembro que foram 22, em toda a comissão. Só que de uma vez, logo no início da comissão, quando me encontrava ainda em Cuntima, na CCAV 489, despejei o carregador até ao fim numa emboscada entre Faquina Fula e Faquina Mandinga.

Depois nos Comandos, a minha história com a G3 quase dava um romance. Na carreira de tiro que havia lá para os lados do aeroporto (lembras-te?), esvaziei um cunhete. Há quem diga que foram cinco, não acredito. Certo é que o cano, sem tapa-chamas, rachou. E o Saraiva obrigou-me a pagar a asneira.
Achei, na altura, que ela me tinha sido ingrata, pela vergonha que me fez passar. E que o cap Saraiva era um exagerado. Troquei-a por uma FN, também sem tapa-chamas (ainda estou para saber porque é que eu as preferia assim).

Meses depois, reconciliámos-nos, fizemos as pazes e foi a minha namorada até ao fim. Custou-me tanto a liquidação da dívida que, a partir daí, passei a ser eu a tratar dela. Como tu dizes, com as mãos na massa.

Mário,

Foste um dos instrutores que me ensinaste a pegar nela. A pôr os meus olhos no cano, a usá-la o estritamente necessário, a trazê-la no colo, com meiguice.

Não vou aqui falar de outras coisas que me ensinaste, que a hora é de honrar a G3. Mas é sempre tempo para publicamente reconhecer que foste um instrutor que nos deixou marcas muito positivas, nomeadamente pelo teu saber e conhecimento daquela terra e daquelas gentes que, eu sei, tanto apreciavas.

vb
___________

3. Texto de Mário Dias:
Em louvor da G3.

É muito vulgar e frequente tecerem-se comentários depreciativos à espingarda G3, quando comparada à AK47. Em minha opinião, nada mais errado. Analisemos, à luz das características de cada uma e da sua utilização prática, os prós e contras verificados durante a guerra em que estivemos empenhados em África:

Comprimento: G3 - 1020mm; AK47 - 870mm
Peso com o carregador municiado: G3 - 5,010Kg; AK 47 – 4,8Kg
Capacidade dos carregadores: G3 – 20 cartuchos; AK47 – 30 cartuchos
Alcance máximo: G3 – 4.000m; AK47 – 1.000m
Alcance eficaz (distância em que pode pôr um homem fora de combate se for atingido):
G3 – 1.700m; AK47 – 600m
Alcance prático: G3 – 400m; AK 47 – 400m

Passemos então a comparar.

No comprimento e peso a AK47 leva alguma vantagem. A capacidade dos carregadores, mais 10 cartuchos na AK47 que na G3, será realmente uma vantagem?

Se, por um lado, temos mais tiros para dar sem mudar o carregador, por outro lado esse mesmo facto leva-nos facilmente, por uma questão psicológica, a desperdiçar munições. E todos sabemos como o desperdício de munições era vulgar da nossa parte apesar de os carregadores da G3 serem de 20 cartuchos.

O usual era, infelizmente, “despejar à balda” sem saber para onde nem contra que alvo. Sem pretender criticar a maneira de actuar de cada um perante situações concretas, eu, durante todas as acções de combate em que participei ao longo de 4 comissões, o máximo que gastei foi um carregador e meio (cerca de 30 cartuchos). Por tal facto, em minha opinião, a dotação e capacidade dos carregadores da G3 é mais que suficiente, além de que os próprios carregadores são mais maneirinhos e fáceis de transportar que os compridos e curvos carregadores da AK47.

Também quanto ao poder balístico, a G3 leva vantagem pois, embora na guerra em matas e florestas seja difícil visar alvos para além dos 100/200 metros, tem maior potência de impacto e perfuração sendo a propagação da onda sonora da explosão do cartucho muito mais potente na G3, o que traz uma maior confiança a quem dispara e muito mais medo a quem é visado. A G3 a disparar impõe muito mais respeito.

Porém, os principais motivos que me levam a preferir a G3 à AK47 (creio que a fama desta última é mais uma questão de moda) são as que a seguir vou referir ilustradas, dentro das possibilidades, com gravuras:



G3


AK47

Deixem-me, então, começar a vender o meu peixe em louvor da G3. Todos sabemos a importância do silêncio e da rapidez de reacção numa guerra de guerrilha e de como o primeiro a disparar leva vantagem.

Normalmente o combatente numa situação de contacto possível em qualquer lado e a qualquer momento leva geralmente a arma com um cartucho introduzido na câmara e em posição de segurança. Eu e o meu grupo tínhamos bala na câmara e arma em posição de fogo desde a saída à porta de armas do aquartelamento até ao regresso e nunca houve um único disparo acidental. Mas, partindo do princípio que nem todos teriam o treino necessário para assim procederem, a arma iria então com bala na câmara e na posição de segurança.

Quando dois combatentes se confrontam, o mais rápido e silencioso tem mais possibilidades de êxito e, nesse aspecto, a G3 tem uma enorme vantagem sobre a AK47. Talvez poucos se tivessem dado conta dos pequenos pormenores que muitas vezes são a diferença entre a vida e a morte.

Um caso concreto:

Vou por um trilho no meio do mato e surge-me de repente um guerrilheiro. Levo a arma em segurança e tenho rapidamente de a colocar em posição de fogo. Do outro lado o guerrilheiro terá de fazer o mesmo. Em qual das armas esta operação é mais rápida e fácil? Sem dúvida alguma na G3.

Se olharmos para as gravuras observamos que na G3, levando a arma em posição de combate, à altura da anca com a mão direita segurando o punho dedo no guarda mato pronto a deslizar para o gatilho, utilizando o polegar sem tirar a mão do punho com toda a facilidade e de forma silenciosa passo a patilha de segurança para a posição de fogo e disparo.

E o portador de AK47? Sendo a alavanca de comutação de tiro do lado direito da arma e longe do alcance da mão terá que, das duas uma: ou larga a mão do punho para assim alcançar a alavanca de segurança ou então tem que ir com a mão esquerda efectuar essa manobra. Em qualquer das soluções, quando a tiver concluído já o operador da G3 terá disparado sobre ele.

Suponhamos agora que o homem da G3 vê um guerrilheiro e não é por este detectado. A passagem da posição de segurança à posição de fogo, além de rápida, é silenciosa pois a patilha de segurança é leve a não faz qualquer ruído ao ser manobrada. O guerrilheiro não se apercebe de qualquer ruído suspeito e mais facilmente será surpreendido. Ao contrário, um guerrilheiro que me veja sem que eu o veja a ele e tenha que colocar a sua AK47 em posição de fogo para me atingir, de imediato me alerta para a sua presença pois a alavanca de segurança dá muitos estalidos ao ser accionada. Assim, não é tão fácil a um portador de AK47 surpreender alguém a curta distância.

Outro caso concreto:

Todos certamente estaremos recordados de quantos vezes era necessário combinar o fogo com o movimento nas manobras de reacção a emboscadas ou na passagem de pontos sensíveis. Nessas ocasiões, em que fazíamos pequenos lanços em corrida para rapidamente atingirmos um abrigo para o qual nos teríamos de lançar de forma a ficarmos automaticamente em posição de podermos fazer fogo (a chamada queda na máscara), a G3, devido à sua configuração era de grande ajuda pois, não tendo partes muito salientes em relação ao punho por onde a segurávamos, (o carregador está ao mesmo nível) permitia que de imediato disparássemos com relativa eficácia.

E a AK47? Reparem bem naquele carregador tão comprido e saliente do corpo da arma. Como fazer manobra idêntica? Impossível. Mesmo colocando a arma com o carregador paralelo ao solo para facilitar a “aterragem”, isso faz com que tenhamos que perder tempo a corrigir a posição de forma a estarmos aptos a disparar. E em combate cada segundo é a diferença entre a vida e a morte.

Um defeito geralmente apontado à G3 é que encravava facilmente com areias e em condições adversas.

Quero aqui referir que ao longo dos muitos anos da minha vida militar, tanto em combate como em instrução ou nas carreiras de tiro, tive diversas armas G3 distribuídas e nunca nenhuma se encravou. A G3 possui de facto um ponto sensível que poderá impedir o seu funcionamento se não for tomado em conta. Trata-se da câmara de explosão, onde fica introduzido o cartucho para o disparo, que tem uns sulcos longitudinais (6 salvo erro)* destinados a facilitar a extracção do invólucro. Acontece que se esses sulcos não estiverem limpos e livres de terra ou resíduos de pólvora não se dá a extracção porque o invólucro fica como que colado às paredes da câmara. Se houver o cuidado em manter esses sulcos sempre livres de corpos estranhos nunca a G3 encravará. Outra coisa que poderá levar a um mau funcionamento é as munições estarem sujas ou com incrustações de calcário ou verdete.

Nós tínhamos por hábito, como forma de prevenir este inconveniente, untarmos as mãos com óleo de limpeza de armamento, para esfregarmos as munições na altura de as introduzirmos nos carregadores. E resultou sempre bem.

São pequenos pormenores que deveriam ter sido ensinados na recruta mas, pelos vistos, nem sempre havia essa preocupação bem como muitas outras que foram, a meu ver, causa de algumas (muitas) mortes desnecessárias.

CONCLUSÃO

Depois de passados tantos anos sobre a guerra, continuo fã incondicional da G3. Se voltasse ao passado e as situações se repetissem, novamente preferia a G3 à HK47.

__________

Notas e fixação do texto: vb

(*) Quatro estrias ou seis, Mário?

Foi a arma de infantaria padrão do exército alemão, Bundeswehr, até 1997, e continua a ser utilizada por vários exércitos nacionais. A G3 é tipicamente um fuzil de calibre 7.62 x 51 mm NATO, capaz de fogo semi-automático ou totalmente automático com um cartucho desmontável. Pode ainda ser anexada uma baioneta à G3.

Foi desenvolvida pelos engenheiros da Mauser, após terem passado algum tempo em Espanha a trabalhar para outros fabricantes de armas nesse país. Ajudaram a criar a espingarda CETME e levaram-na de volta para a Alemanha. De facto, por algum tempo as G3 tiveram a palavra "CETME" estampada num dos lados; o design levou contudo várias modificações, como por exemplo, a CETME tinha um apoio em madeira e a G3 não.


G3 significa "Gewehr 3", Espingarda, 3 em alemão. A G3 foi adoptada em 1958 como substituta para a G1 da Bundeswehr, uma versão modificada da belga FN FAL, que estava em serviço desde 1956, o ano em que a Alemanha Ocidental tinha entrado para a NATO.

Portugal teve necessidade de adotar uma nova arma no inicio dos anos 60, por conta da guerra colonial na África. As possibilidades não eram muitas. Os Estados Unidos mantinham um claro embargo a Portugal durante a era Kennedy. Assim, a escolha tinha que recair numa arma fornecida por um país que estivesse na disposição de transferir a tecnologia para a sua fabricação em Portugal. A escolha foi pela arma alemã, que passou a ser fabricada em Portugal pela Fábrica de Braço de Prata.

Quando chegou a África, em comparação com as antigas armas ligeiras das forças armadas a G3 era vista como extremamente sofisticada. Tratava-se de uma arma automática, que podia disparar rapidamente uma considerável quantidade de tiros.
Foi necessário bastante treino de forma que a tropa se habituasse a entender que a posição normal da arma devería ser a posição tiro-a-tiro, porque do ponto de vista operacional, gastar rapidamente a munição no meio do mato, sería um problema.

Em 1965, já o numero de espingardas automáticas G3 tinha ultrapassado as 150.000 nas forças armadas, e mesmo assim, ainda existiam em funcionamento 15.000 espingardas automáticas FN, fornecidas de emergência pelo exército alemão, antes da introdução da G3.

A arma esteve presente nos vários cenários de guerra, em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Viu-se ainda a G3 ser utilizada em Timor leste pelas guerrilhas das Falintil.

Até ao ano 2000, ainda algumas velhas G3 se encontravam operacionais naquele território.
A substituição da G3 nas forças armadas portuguesas aproxima-se a passos largos. A sua provável substituta será provavelmente a
G36, que é vista internacionalmente como a substituta lógica da G3, embora outras possibilidades continuem em aberto.

Extraído da Wikimedia Commons. Com a devida vénia.

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De Mário Dias, ver também postes de:

15 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)

17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)

Sobre a Kalash, vd. os seguintes postes publicados no nosso blogue:

30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74- DCCCXVIII: Confissões de um pacifista: A minha paixão pela bela Kalash (João Tunes)

17 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XX: "Foi você que pediu uma kalash?" (David Guimarães)

domingo, 5 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2030: Estórias do Zé Teixeira (19): A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Guiné > CCAÇ 2381, Os Maiorais ( Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) > O 1ºCabo Enfermeiro Teixeira, em Empada, em 1969, com a sua namorada, a G3ertrudes, com quem irá manter um conflituosa relação que acabará mal. Quem lhe manda, entretanto, um grande Alfa Bravo (abraço) é um dos antigos Maiorais, o ex-Fur Mil Armas Pesadas Samouco, José Manuel Samouco.

Como o mundo é o pequeno e o nosso blogue já é grande, conheci-o pessoalmente, na Praia da Areia da Areia, a caminho da Praia de Vale de Frades, no nosso passeio matinal. Ele reconheceu-me, do blogue... Demos um grande abraço e ficámos um bom bocado à conversa. Ex-bancário, ex-dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Bancários do Sul e Ilhas (durante 10 anos), acaba de reformar-se, prometendo mandar algum material documental para o blogue. Tem casa aqui na Praia da Areia Branca. Falámos, inevitavelmente, dos Maiorais, do Alf Belo e do enfermeiro Teixeira, do blogue, de uma próxima ida à Guiné... Ao fim da tarde, ligo o computador e temos o Zé Teixeira em cena... Nem de propósito! Telepatia ? Boa continuação de férias para o pessoal da Tabanca Grande que se pode dar a esse luxo! Desculpa, Carlos, de meter o bedelho no teu serviço... (LG).

Foto: © Zé Teixeira (2006). Direitos reservados.


A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas

por Zé Teixeira

O Encontro

Na quinzena de campo (IAO) que antecedeu a partida para Guiné, deram-me uma companheira, a namorada que, afirmaram, me ia acompanhar durante todo o tempo em que ia estar na guerra. Se houvesse alguma infelicidade, me acompanharia até ao caixão. Era uma G3 ou a G3ertrudes.

Disseram-me também para a tratar com carinho. Cuidar dela era cuidar de mim próprio.

1º. Trazê-la sempre limpa e asseada, sobretudo o cano, para que a baba, ao tentar sair, furiosa por não conseguir devido a sujidade, não rebentasse o cano. Pois, na pior das hipóteses, as tiras de aço voltavam-se para trás e atingiam o crânio do atirador, mandando-o de volta no sobretudo de madeira.

2º. Pôr-lhe creme (óleo) nas partes mais sensíveis, para responder rapidamente aos estímulos.

3º. Sempre travadinha, para não fazer asneiras.

4º. Nunca a abandonasse, pois, se perdida, dava origem no mínimo, mais meio ano de comissão. O importante era chegar, sempre, ao aquartelamento com uma G3ertrudes.

Durante os primeiros três meses, foi de facto, a minha companheira preferida e inseparável. Pendurada no meu ombro, ao lado da bolsa de enfermeiro. Deitada a meu lado à sombra de uma árvore protectora do sol e do IN, ou no chão de cimento na caserna em Ingoré.

Antes da partida, prometera a mim mesmo não lhe tocar nas partes sensíveis, porque vomitavam fogo, matavam vidas e isso não fazia parte da minha missão como enfermeiro e muito menos dos meus planos. Cantei de alegria, quando soube que as sortes me tinham destinado a ser enfermeiro, convencido que escaparia à guerra dura e que com o meu trabalho iria minimizar dores e, quem sabe, salvar vidas.

Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação.


O início do fim de uma relação impossível

Ao fim de três meses de companhia dedicada, algo de grave se passou que me levou a repudiar a G3ertrudes para sempre.

Estávamos em plena época das chuvas. Partimos de Buba às seis da matina com destino a Aldeia Formosa , terra até então desconhecida, onde deveríamos chegar à tarde.

A CCAÇ 1792 veio buscar-nos. Os Lenços Azuis foram, assim, testemunhas no meu baptismo de fogo em aquartelamento. Mal chegámos (tínhamos ido ao seu encontro), fomos recebidos com fogo cruzado das duas margens do Rio, mas foi só o susto. Uma amostra do que nos ia esperar no futuro.

Para além de uma enorme coluna de viaturas carregadas com mantimentos, seguiam três obuses de 14 cm. Toneladas de aço a atravessar lamaçais contínuos, pontes montadas e desmontadas por nós e o IN à espreita.

Ao meio da tarde, depois de uma tempestade de... abelhas, quando tínhamos andado, apenas uns três quilómetros, uma traiçoeira mina destrói a 5.ª viatura, a das transmissões, levantando uma nuvem de lama. As transmissões terminaram a sua missão.

Ficámos isolados do mundo. Aparentemente, os quatro camaradas que voaram com o sopro, ficaram apenas combalidos, mas um deles, o rádiotelegrafista, projectado com o forte impacto, ao cair, ficou ferido interiormente. A morte foi-se aproximando lentamente. A vida dele caminhava para o fim devido à perda de sangue, que não podíamos controlar. Só uma evacuação urgente o salvaria. Tínhamos ficado sem comunicações.

Foram tremendamente dolorosos, para mim e para os enfermeiros das duas companhias, viver estes momentos, horas, de vida, a lutar sem armas, pela vida de um camarada que se apagava. Ele sentia que as forças lhe estavam a escapar. Nós sentíamo-nos impotentes para o salvar. Só o milagre do helicóptero, que não aparecia, porque ninguém sabia, que aquela jovem vida se estava a apagar.
- Já não vejo ! - gritava.
- Ajudem-me a levantar - balbuciava ele, mesmo no fim, com a esperança de ainda conseguir recuperar forças e poder gritar bem alto Safei-me! Mas não. Não era possível. O seu destino fora traçado, quando alguém pegou num lápis e riscou o nome dele, assinalando-o para ser mobilizado para a guerra. A guerra que ele não queria...

O sol começou a esconder-se como que envergonhado e o camarada irmão disse adeus à vida, serenamente, sem pressas, em silêncio...

Na azáfama de tratar os feridos, esqueci-me da G3ertrudes. Foi posta de lado, esquecida, algures. Agora, era preciso procurá-la. Onde? Tinha-lhe perdido o lugar.

Apareceu uma abandonada junto a uma árvore. Deitei-lhe a mão. Estava safo. E segui caminho.

Uma noite sem sono, com milhares de mosquitos a perseguirem-me e o IN à espreita.

Até que o Sol raiou de novo e com ele a ordem de marcha. A partida para o desconhecido. Chão que eu nunca pisara. Lama e mais lama. Mata cerrada. Grandes palmeiras que furaram a selva verdejante à procura do sol, apontavam o céu...

Não demorou muito a aparecer o IN. A coluna era demasiado longa e pesada. Lentamente lá se ia movendo à procura do destino. Deu para emboscarem a frente. Recuaram face à forma como ripostamos e voltaram a atacar a retaguarda.


O meu baptismo de fogo na mata

Deitado sobre os rodados das viaturas, com o coração a bater como nunca o tinha sentido, escutava o tiroteio que me rodeava, ao ritmo dos rebentamentos das morteiradas que me faziam vibrar violentamente os tímpanos. A G3ertrudes, a meu lado muito quietinha, quando senti que estava a ser incomodado directamente. Alguém estava a querer brincar às guerrinhas comigo. As balas assobiavam muito por perto e vinham do alto. Olhei para as palmeiras e vislumbrei fogachos de luz.

A raiva contida, pela morte do camarada, veio ao de cima.
- Ah! G3ertrudes de um raio! Anda cá.

Apontar, disparar e... um tremendo coice, um som seco e abafado, seguido de um ruído estranho.

À minha frente jazia a G3ertrudes, com o cano esventrado em tiras. Uma espécie de fole, ou balão.

Fui desarmado para que pudesse cumprir o voto de não matar na guerra para onde me atiraram sem me perguntar.

Deus esteve comigo neste momento. Contrariamente ao que me disseram na instrução de armamento, o cano não abriu em leque, o que a acontecer, muito provavelmente se viria espetar no meu crânio e era a morte certa. O tapa-chamas foi o impecilho que me salvou a vida. Uf! Desta já escapei.

A G3 que no dia anterior tinha encontrado abandonada pertencia ao Salvaterra Bernardes (*), natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental, que assassinos (não encontro nome mais apropriado)´apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na CCAÇ 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné.

A arma na mão deste homem, não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza para quê? O cano estava cheio de areia. A bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa-chamas.

Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e... talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me.

Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.

Não houve feridos de nossa parte. A coluna seguiu caminho.


O divórcio

A meio da tarde a aviação localizou-nos, o héli veio buscar os feridos do dia anterior e a vida continuou. Chegamos ao destino ao fim da tarde, ou seja vinte e quatro horas depois do previsto. Localizei a minha arma na mão do Salvaterra, fiz o relatório que me exigiram para abater a arma destruída e... para não mais ser tentado a fazer fogo e correr o risco de matar vidas humanas, fui entregar a minha arma ao quarteleiro, sob a ameaça do capitão que me daria uma porrada se me apanhasse sem a minha G3ertrudes.

Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão (2).


Zé Teixeira
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Nota do autor:

(*) Vd. a descrição que o José Belo faz do Soldado Salvaterra [no post anterior]:

Pobre Salvaterra que aparentava ser uma figura de comédia. Uma caricatura barata de Soldado. Desde o quico, às botas, do cinturão à G3, tudo nele estava mal vestido, mal assentado. Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca.

Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços, e muito menos, com o movimento das pernas.

Na ordem unida tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis. Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada!
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Notas do editor:

(1) Vd. último post desta série > 18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1853: Estórias do Zé Teixeira (17): Quando não se acautela a vida, a morte pode espreitar

(2) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi