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quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23995: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (15): Humilhados e ofendidos... (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista, CCP 121 / BCP 12, 1972/74, natural de Águeda)


Victor Tavares

1. O Victor Tavares, natural de Águeda, conterrâmeo e amigo do nosso Paulo Santiago (outro dos nossos "históricos"),  antigo presidente da junta de freguesia de Recardães, sua terra natal, não foi um "tipo qualquer"... Foi um grande combatente e um dos melhores do melhores: ex-1.º cabo paraquedista, da CCP 121 / BCP 12 (Bissalanca, 1972/74),  Tem cerca de meia centena de referências no nosso blogue. Integra a Tabanca Grande desde 6 de outubro de 2006. É, portanto, um dos nossos "veteranos".

Justifica-se, por muitas razões,  a reprodução deste excerto de um poste já muito antigo (*): o Victor dá-nos aqui o retrato do abandono e da humilhação, a que foram sujeitos, em Cacine, os militares que, sob as ordens do comandante do COP 5, major Coutinho e Lima (1945-2022), abandondaram Guileje, em 22 de Maio de 1973, chegando a Gadamael, também fortemente atacada pelo PAIGC, a seguir a Guileje, e salva pelos pára-quedistas e a Marinha -, refugiando-se depois em Cacine. 

A "batalha dos 3 G" foi há 50 anos  (**)... Ainda há gente que se lembra, e participou nos acontecimentos, em Guidaje, em Guileje, em Gadamael... O Vitor Tavares esteve lá,  em todas... Este texto, que voltamos a reproduzir, é também uma forma de ele "fazer a prova de vida"... Andou há tempos atrapalhado com sérios problemas de saúde... Felizmente, superou-os, está melhor, já voltou ao seu Facebook... 

Um abraço fraterno para ele. LG


Gadamel Porto, o outro inferno a sul

por Victor Tavares



Depois de regressada do inferno de Guidaje (***), a Companhia de Caçadores Paraquedista (CCP) 121 encontrava-se estacionada em Bissalanca [Base Aérea n.º 12], gozando um curto período de descanso, após a desgastante acção que tivera no norte da província.

Daí o Comando Chefe entender que os 4 a 5 dias de descanso concedidos já eram demais e ser necessário o reforço das nossas tropas aquarteladas em Gadamael por se encontrarem em grandes dificuldades. Acaba, por isso, por dar ordens para rumarmos a Gadamael, para onde partimos a 12 de Junho de 1973.

Partindo de Bissau em LDG [Lancha de Desembarque Grande] com destino a Cacine, onde chegámos a meio da tarde deste mesmo dia. Como a lancha que nos transportava, não conseguia atracar ao cais por falta de fundo, fomos fazendo o transbordo por várias vezes em LDM [Lanchas de Desembarque Médias] para aquela localidade.

Foi então, logo na primeira abordagem da lancha, que me apercebi que na mesma estava um indivíduo que pela cara me pareceu familiar. No entanto, como o mesmo se encontrava vestido à civil,  calções, camisa aos quadradinhos toda colorida e sandálias de plástico transparente - pensei ser porventura algum civil que andaria por ali no meio da tropa, o que seria natural e podia eu estar errado.

Depois de toda a tropa estar desembarcada, indicaram-nos o local onde iríamos ficar, num terreno frente ao quartel de Cacine. Instalámo-nos e de seguida fomos dar uma volta pelas redondezas, até que no regresso deparo com a mesma criatura, sentada no cais com ar triste e pensativo, típico da pessoa a quem a vida não corre bem. 

Eu vinha acompanhado do paraquedista Vela, meu conterrâneo – e hoje meu compadre. Perguntei-lhe:

Ouve lá, aquele tipo ali não é nosso conterrâneo?

Responde ele:

− Sei lá, pá, isto é só homens.

 "Gadamael ?!... Vocês vão lá morrer todos!"

Por ali estivemos na conversa mais algum tempo, até que tomei a iniciativa de me dirigir ao fulano uma vez que ele continuava no mesmo sítio. Acercando-me dele, perguntei-lhe:

  
 Diz-me lá, camarada, por acaso tu não és de Águeda ?

Responde-me ele:

 −  Sou.
E pergunta-me de seguida:

 E, você, não é de Recardães?

Digo-lhe que sim, cumprimentamo-nos e vai daí perguntei-lhe o que é que ele estava ali a fazer, porque de militar não tinha nada. Respondeu-me que não sabia o que estava ali a fazer, de uma forma triste e ao mesmo tempo em tom desesperado e desanimado.

Entretanto com o desenrolar da conversa, ele perguntou o que estávamos ali a fazer, eu respondi que na madrugada seguinte íamos para Gadamael Porto... Qual não é o meu espanto quando ele põe as mãos à cabeça, desesperado e desorientado, e me diz:

− Não vão, porque vocês morrem lá todos!

Tentei acalmá-lo, dizendo-lhe para estar descansado que nada de grave ia acontecer, pedi-lhe para me contar o que se passava, vai daí, começa ele a relatar o que tinha passado em Guileje e Gadamael até chegar a Cacine. Na verdade depois de o ouvir, não me restaram dúvidas que ele tinha mais do que sobejas razões para estar no estado psicológico aterrador em que se encontrava .


Os militares portugueses que abandonaram Guileje, 
foram tratados como desertores e traidores à Pátria

Entretanto, informa-me da sua situação militar daquele momento tal como a de outros camaradas que abandonaram Guileje. Neste grupo estava também outro meu conterrâneo, que o primeiro foi chamar, vindo este a confirmar tudo.

O que mais me chocou foi a forma desumana como estes militares foram tratados, depois da sua chegada a Cacine, sendo considerados como desertores e cobardes, quando, em meu entender, se alguém tinha que assumir a responsabilidade dessa situação, seriam os seus superiores e nunca por nunca os soldados.

Estes homens foram humilhados por muitos dos nossos superiores  
 que eram uns grandes heróis de secretária!  , foram proibidos de entrar no aquartelamento, não lhes davam alimentação, o que comiam era nas Tabancas junto com a população. 

As primeiras refeições quentes que já há longos dias não tomavam, foram feitas por estes dois homens juntamente com os paraquedistas, porque o solicitei junto do meu Comandante de Companhia, capitão paraquedista Almeida Martins – hoje tenente general na reserva   ao qual apresentei os dois camaradas do exército que lhe contaram tudo por que passaram.


Os dois desgraçados de Guileje eram meu conterrâneos: 
o Carlos e o Victor Correia

Solicitei ao meu comandante para eles fazerem as refeições junto com o nosso pessoal, prontificando-me eu a pagar as suas diárias, se fosse necessário. Ele autorizou os mesmos a fazerem as refeições connosco enquanto não tivessem a sua situação resolvida e a nossa cozinha que dava apoio ao bigrupo que estava de reserva, ali se mantivesse.

O meu comandante expôs o problema destes homens ao comandante do aquartelamento do exército, solicitando que o mesmo fosse resolvido com o máximo de brevidade uma vez que a situação não era nada dignificante para a instituição militar.

É de salientar que estes dois homens já não escreviam aos seus familiares há mais de um mês, porque não tinham nada com que o fazer. Fui eu que lhes dei aerogramas para o fazerem e os obriguei a escrever, porque o seu moral estava de rastos e a vida daqueles militares já não fazia sentido. Dormiam debaixo dos avançados das Tabancas enrolados em mantas de cor verde, não tendo mais nada para vestir a não ser o camuflado.

Estes meus dois conterrâneos que atrás refiro eram o Carlos (que infelizmente já faleceu, natural do lugar de Perrães, Oliveira do Bairro) e o Victor Correia (de Aguada de Baixo, Águeda, e que hoje sofre imenso de stresse pós-traumático de guerra) (****)

[ Selecção / Revisão e fixação de texto / Substítulos / Parênteses retos / Negritos, para efeitos de edição deste poste: LG]
_____________

Notas dos editores:

(*) Vd. postes de:


(**) Ultimo poste da série > 21 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23903: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (14): "Cobarde num dia, herói no outro" (João Seabra, ex-alf mil, CCav 8350, 1972/74)

(***) Vd. postes de:

25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

(****) Estes camaradas devem ter pertencido à CCAV 8350 (ou a subunidades adidas, os "Piratas de Guileje" foram os últimos a deixar Guileje, por ordem do comandante do COP 5, o então major Coutinho e Lima (*****).  

Recorde-se que, de 18 a 22 de Maio de 1973, o aquartelamento de Guileje foi cercado pelas forças do PAIGC (Op Amílcar Cabral), obrigando as NT a abandoná-lo (juntamente com algumas centenas de civis)

(i) 2 grupos de combate da CCAÇ 4743 (unidade de quadrícula de Gadamael) (incluindo o seu comandante); 

(ii) CCAV 8350 (unidade de quadrícula de Guileje) (incluindo o comandate do COP 5, major Coutinho e Lima);

(iii) Pelotão de Artilharia, comandado pelo Al Mil Pinto dos Santos (já falecido); 

(iv) Pel Cav Reconhecimento Fox (reduzido, havendo apenas duas Fox); e

(v) Pelotão de milícias local...

 A Companhia Independente de Cavalaria 8350/72 foi a unidade de quadrícula de Guileje entre outubro de 1972 e maio de 1973. Viu morrer em combate nove dos seus homens, entre algumas dezenas de feridos. Foi seu Comandante o Cap Mil Abel dos Santos Quelhas Quintas,  também ferido.

sábado, 29 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23746: In Memoriam (458): Manuel Alberto da Costa Marinho (1950-2022), ex-1.º cabo, 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 (Nema / Farim e Binta, 1972/74)




Manuel Aberto da Costa Marinho (1950-2022)

1. Mensagem de Maria João Ferreira, sobrinha do nosso camarada Manuel Marinho, membro desde 15/9/2009 da nossa Tabanca Grande (*), entretanto falecido há três meses, notícia que acabámos de saber e nos deixa desolados:

Data - quinta, 27/10, 22:05/2022
Assunto - Manuel Marinho (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74),

Boa Noite,  

Não sei se posso enviar por aqui mas sei que muitos dos seus camaradas não sabem e pedia se podiam publicar este meu testemunho no vosso blogue sobre o meu tio Alberto Marinho que, depois das doenças que lhe diagnosticaram,  afastou-se de várias áreas da sua vida.

O meu nome é Maria João da Costa Marinho Ferreira. Sou licenciada em História e Mestre em História e Património.

O caminho que segui não foi por acaso. Sou sobrinha do ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), Manuel Aberto da Costa Marinho. O meu tio (como um segundo pai) sempre me contou as suas histórias que passou durante a guerra e isso inspirou-me a seguir o caminho da história e contar a história daqueles que já cá não estavam e que mereciam ser homenageados.

É isto que me traz aqui hoje.

O meu tio faleceu a 22 de Julho deste ano e está sepultado no cemitério de Agramonte, Porto (**)

Depois de alguns meses ainda sinto de luto, talvez porque não me despedi como deveria. No final da sua vida,  o meu tio escolheu a amargura da doença que o atacou e preferiu não ver a sua família ou amigos. Algo que hoje me arrependo de não ter forçado a minha visita.

Encontrei novamente o blogue que lhe apresentei anos atrás (*) e descobri a sua primeira mensagem no qual ele me menciona sem saber o quanto me inspirou:

"Apresenta-se o ex-1.º Cabo Manuel Alberto Costa Marinho, do 1.º GComb/1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, comissão em Nema/Farim, Binta, em 1972/74.

É com enorme sentido de gratidão, extensível aos restantes colaboradores do blogue e a todos os tertulianos da Tabanca Grande, que me dirijo, pela primeira vez. Mais vale tarde que nunca.

Como ex-combatente da Guiné, não posso ficar indiferente ao que de melhor temos neste País para testemunhar o que foi a Guerra Colonial, mais concretamente a da Guiné, vivida e contada pelos seus protagonistas, por isso mais uma vez, um muito obrigado pelo excelente trabalho que podemos testemunhar.

E antes de mais peço a admissão na “Tabanca”, certo que já o poderia ter feito, mas só agora julgo oportuno, pelo facto (se calhar egoísta) de estar a ajudar uma sobrinha a fazer um trabalho sobre a Guerra Colonial, foi a miúda, que me incentivou a contar as minhas vivências na Guiné, depois de consultar muitas vezes o blogue, e sabendo que estive no inferno de Guidaje, praticamente em todas as suas incidências.

Como muitos de nós já o disseram, é penoso lembrar o que já estava na penumbra da memória, mas acho valer a pena este esforço, porque entendo que uma parte muito importante das nossas vidas ficou para sempre na Guiné, numa Guerra da qual eu não me envergonho de ter participado, e sou dos que sabiam minimamente para o que iam.

Depois porque ao longo destes anos (e já são 35), somos vergonhosamente ostracizados por todos os poderes instituídos neste País, que foram coniventes com o apagar da memória colectiva, de tudo o que diga respeito à Guerra Colonial, e mais grave do que isso, transformando os que por razões várias desertaram, em heróis, e nós que combatemos, só nos falta pedir desculpas por ainda estarmos vivos a contar (dissecar) esta guerra.

Pessoalmente, sinto-me ofendido com a imagem redutora que tem sido dada às gerações que se seguiram, não quero louvores, mas exijo respeito pelos que morreram, e por todos os que ficaram marcados por ela para sempre.

Desculpa, camarada Luís, este desabafo, corta tudo o que achares necessário, porque sinto esta revolta surda sempre que abordo esta questão.

Quero saudar muito especialmente os camaradas Amílcar Mendes (*) da 38.ª de Comandos, Victor Tavares,  da 121 dos “Páras”,  e o Albano M. Costa,  da CCAÇ 4150, os dois primeiros que descrevem operações de combate e o Albano que me fez rever Binta, peço desculpas ao omitir mais camaradas, sei que os há que viveram Guidaje e escreveram sobre esse fatídico mês, os Fuzileiros por exemplo.

Como também não desejo que outros contem a Guerra por mim, vou descrever o ataque à primeira coluna para Guidaje, que como é sabido não chegou ao destino.”


A vida são dois dias e por vezes amarguras indispensáveis levam-nos ao afastamento dos nossos entre queridos.

Pretendo honrar o meu tio em um livro. Contarei as suas memórias que ele me deixou e precisava de comentários ou conhecer o batalhão que ele fez parte.

Sendo assim, presto a homenagem ao meu tio Manuel Alberto Marinho e imploro que de vocês entre em contacto comigo para falarmos sobre as memórias de Guiné e Guidaje e memórias de Manuel Marinho.

2. Comentário do editor LG:

O Manuel Marinho tem 37 referências no nosso blogue. Fazia anos a 11 de abril. Deixou de fazer prova de vida. A últíma vez que lhe publicámos um poste de parabéns foi em 2020. Temos a agora, com um atraso de 3 meses,  a funesta notícia da sua morte, dado pela sua querida sobrinha Maria Ferreira, cujas palavras nos comovem.

Vamos, naturalmente, ajudá-la a completar a escrita do seu livro com as memórias do seu querido tio e nosso já saudoso camarada que, conforme podemos verificar pelos postes que aqui publicou, era um apaixonado sobre tudo o dizia respeito a Guidaje e os duros combates que lá se travaram e os exemplos de abnegação e coragem que ele lá viveu, em maio de 1973 (****).  
Acho que podíamos publicitar aqui o endereço de email da Maria Ferreira, a quem convidamos para integrar a nossa Tabanca Grande e, de algum modo, suprir a falta que o Manuel Marinho nos faz, De qualquer modo, aguardamos que ela nos autorize a divulgar o seu endereço de email, se achar conveniente e necessário,  para troca de informações com os camaradas do Manuel Marinho, do BCAÇ 4512. E que, na volta do correio, nos diga se aceita o nosso convite. 

Sabemos que em 28/4/2013, o Manuel Marinho estava "a ultimar um trabalho sobre Guidaje, tentando sistematizar tudo o que se passou", mas acrescentando: "não sei se terei fôlego para chegar ao fim" (***)

Temos cerca de seis dezenas de referências ao BCAÇ 4512. Vamos partilhar essa informação com a Maria Ferreira.
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4957: Tabanca Grande (173): Manuel Marinho, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Farim e Binta (1972/74)

(**) Último poste da série > 19 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23720: In Memoriam (457): Xico Allen (1950-2022), ex-Soldado Condutor Auto, CCAÇ 3566, "Os Metralhas" (Empada e Catió, 1972/74): A minha homenagem ao amigo Xico Allen, como sempre o tratei (Albano Costa)

(***) Vd. poste de 28 de abril de  2013 > Guiné 63/74 - P11491: 9º aniversário do nosso blogue: Questionário aos leitores (31): Respostas (nº 58 e 59) de Manuel Marinho, ex-1.º Cabo do BCAÇ 4512 (Nema e Binta, 1972/74) e José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf da CART 2716 (Xitole, 1970/72)

(...) Gosto das estórias que vou lendo sobre a nossa presença na Guiné, e tenho a impressão que já conhecia muitos destes camaradas, é uma aprendizagem constante, de facto este Blogue é um caso único de afectos e camaradagem. (...)

(...) No Blogue, não gosto de escritos que nada têm a ver com a Guiné, não gosto de ver fotos de camaradas nossos aos abraços com elementos do PAIGC, não gosto de escritos sobre quem nos traiu, estou a referir-me a desertores, (o lugar deles não é neste Blogue), não gosto de elogios ao PAIGC, porque não lhes devo nada, e não gosto da ficção de muitas das estórias contadas, devemos fazer um esforço para escrever (contar), com os nossos 20 anos de então, e não com os olhos e a experiência de hoje.

(****) Vd. por exeplos postes de:

7 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5067: Guidaje, Maio de 1973 (1): Momentos difíceis para as NT (Manuel Marinho)

7 de novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5230: Guidaje, Maio de 1973 (2): O fim do pesadelo (Manuel Marinho)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23720: In Memoriam (457): Xico Allen (1950-2022), ex-Soldado Condutor Auto, CCAÇ 3566, "Os Metralhas" (Empada e Catió, 1972/74): A minha homenagem ao amigo Xico Allen, como sempre o tratei (Albano Costa)


1. Mensagem do nosso camarada Albano Costa (ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150 (Bigene e Guidaje, 1973/74), com data de 18 de Outubro de 2022:


A minha homenagem ao amigo Xico Allen (como sempre o tratei)

Sabia que estava a passar por um período menos favorável na sua saúde, mas sempre muito otimista. Ainda há 15 dias, falando com ele ao telefone, me disse que uma dia em breve íamos tomar uma café para falar, era uma maneira que ele tinha de estar na vida, era uma conversa com todos os seus amigos, e eram imensos.

Conheci o Xico Allen no ano de 1996. Tinha eu organizado o meu convívio militar a CCaç 4150. Telefonou e veio à minha procura, logo ali sem nos conhecermos, tivemos uma empatia muito grande que acabamos depois de muita conversa sobre a Guiné irmos os dois almoçar para continuar a conversar.

Explicou-me como podia saber as direcções de todos os meus colegas que fizeram parte da minha companhia e um dia foi comigo ao Arquivo Geral do Exército para saber e acabei por conseguir.

Sempre preocupado com os guineenses que viviam em Portugal, falou-me de um Braima que gostava de tocar música e tocava em alguns convívios militares, e convenceu-me a o convidar para ir actuar no próximo convívio, e foi o que veio a acontecer.

Nunca mais nos separamos. Começou a convencer-me a ir visitar a Guiné, eu disse que gostava, mas tinha muito receio, porque a minha zona (Guidaje) era um zona muito complicada para lá chegar e também muito perigosa (na minha mente ainda andava muitos «bichinhos» de outrora). Ele sempre muito otimista nas suas afirmações nunca desistiu de me convenver a voltar à Guiné, e eu sempre a resistir.

Um dia, depois de tanta insistência, ele apercebeu-se que eu tinha vontade, mas faltava-me a coragem. Acabou por aparecer no meu estabelecimento junto com a Zélia e ali os dois conseguiram convercer-me a ir à Guiné, o que veio a acontecer em Novembro de 2000.

Fomos: o Xico, eu, o meu filho Hugo, o Manuel, o Carlos, o Amândio, o Casimiro, o Armindo, o Lúcio e o Camilo, sempre com o receio na minha mente, com os pensamentos do passado, mas o Xico Allen sempre ótimista, e com muita organização no que dizia e fazia, não deixava nada para trás, ele sempre tratava de tudo.

Xico Allen, agradeço (já te tinha dito pessoalmente) por teres conseguido com que eu, a partir do dia em que cheguei à Guiné e a Guidaje, conseguisse limpar todos os receios que tinha na minha mente sobre o meu passado na guerra na Guiné. Mais um vez obrigado.

"Lembro-me quando chegamos a Empada, à zona onde estiveste na Guiné. Um africano ir ao teu encontro e dizer: oh Xico, eu sabia que vinhas aqui, porque já tinha sido informardo que te viram em Bissau", tal a popularida que o Xico Allen tinha na Guiné.

Nós deixamos de ter o Xico Allen fisicamente connosco, mas ele nunca vai sair de dentro de nós. E vai também deixar muitas saudades aos guineenses.

É uma pequena homenagem póstuma que te faço.

Albano


____________

Nota do editor

Vd. poste de 18 de Outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23717: In Memoriam (456 ): Xico Allen (1950-2022), ex-Soldado Condutor Auto, CCAÇ 3566, "Os Metralhas" (Empada e Catió, 1972/74), um dos nossos pioneiros nas viagens de saudade à Guiné-Bissau

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23714: Fichas de unidades (27): 1.ª CCAÇ/CCAÇ 3 (Bissau, Nova Lamego, Farim, Barro, Guidaje, Bigene, 1961/74)


Fichas de unidade > 1.ª CCAÇ / CCAÇ 3

1.ª Companhia de Caçadores

 Identificação: CCaç 1 

Cmdts (a): 

Cap Inf Arnaldo Manuel Serra Gomes | Cap Inf Helder Fernando Pires Ataíde Ribeiro | Cap Inf Renato Jorge Cardoso Matias Freire | Cap Inf Carlos Alberto Alves Viana Pereira da Cunha |Cap Inf Laurénio Felipe de Sousa Alves | Cap Inf António Lopes de Figueiredo | Cap Inf António Lourenço | Cap Inf João Manuel Martins Maltez Soares | Cap Inf Joaquim Tavares Cristóvão | Cap Art Vítor Manuel da Ponte da Silva Marques | Cap Art Samuel Matias do Amaral

 (a) Os Cmdts Comp são apenas indicados a partir de 1jan61 

Início: anterior a 1jan61 | Extinção: 1abr67 (passou a designar-se CCaç 3) 

Síntese da Actividade Operacional 

Era uma unidade da guarnição normal, com existência anterior a 01jan61 e foi constituída por quadros metropolitanos e praças indígenas do recrutamento local, estando enquadrada nas forças do CTIG então existentes. 

Em ljan61, estava colocada em Bissau, com um pelotão destacado em Nova Lamego, onde foi transitoriamente instalada, na totalidade, em 3abr61, com pelotões destacados em Sedengal e Cacheu e depois em S. Domingos. 

Após a reorganização do dispositivo de 23ago61, foi substituída em Nova Lamego, por troca, pela 3ª CCaç, regressando a Bissau, tendo destacado efectivos para várias localidades da zona Oeste, nomeadamente em Ingoré, Enxalé, Susana, Mansabá e Bigene e também, na zona Sul, em Cabedú. 

A partir de 1jul63, foi colocada em Farim, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 239, com pelotões destacados em S. Domingos e Ingoré e secções em Susana, Mansoa, Mansabá, Bigene e Barro, tendo depois ainda deslocado efectivos para Bissorã, Cuntima, Olossato, Binta, Guidage, Canjambari, Porto Gole e Enxalé, sucessivamente integrada no dispositivo e manobra dos batalhões que assumiram a responsabilidade do sector de Farim. 

Em 27out66, foi colocada em Barro, onde assumiu a responsabilidade do respectivo subsector, então criado na área do BCaç 1887 e transferido, em 3nov66, para a zona de acção do BCaç 1894, mantendo, no entanto, dois pelotões destacados no anterior sector, em Binta e Canjambari, este último deslocado para lumbembém, a partir de meados de jan67. 

Em 1abr67, passou a designar-se CCaç 3. 

Observações - Em diversos documentos, esta subunidade era muitas vezes designado por 1ª  CCaç 1. 

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 621/ 622-


Companhia de Caçadores n.º 3

Identificação;  CCaç 3

Cmdts: 

Cap Art Samuel Matias do Amaral | Cap Inf Cassiano Pinto Walter de Vasconcelos | Cap Inf Carlos Alberto Antunes Ferreira da Silva | Cap Inf José Olavo Correia Ramos | Cap Art Carlos Alberto Marques de Abreu | Cap Art Fernando José Morais Jorge | Cap Inf João da Conceição Galamarra Curado | Cap Inf Carlos Alberto Caldas Gomes Ricardo | Cap Cav Nuno António Amaral Pais de Faria | Cap QEO João Pereira Tavares | Alf Mil Inf José Manuel Levy da Silva Soeiro | Cap Inf Manuel Gonçalves Mesquita | Cap Mil Inf José Maria Tavares Branco | Cap Mil Inf António Eduardo Gouveia de Carvalho | Cap Mil Inf José Maria Tavares Branco

Divisa: "Amando e Defendendo Portugal"
Início: 1abr67 (por alteração da anterior designação de 1ª CCaç) | Extinção: 31ago74


Síntese da Actividade Operacional

Em 1abr67, foi criada por alteração da anterior designação de 1.ª CCaç.

Era uma companhia da guarnição normal do CTIG, constituída por quadros metropolitanos e praças indígenas do recrutamento local.

Continuou instalada em Barro, mantendo-se então integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1894, com dois pelotões destacados em reforço do BCaç 1887 e estacionados em Binta e Jumbébém, este depois em Canjambari a partir de finais de set67. Ficou sucessivamente integrada no dispositivo e manobra dos batalhões e comandos que assumiram a responsabilidade da zona de acção do subsector de Barro.

Após recolha dos pelotões instalados em Binta e Canjambari em 20ju168, destacou, em meados de out68, um pelotão para Guidage, tendo assumido, em 9Mar69, a responsabilidade do subsector de Guidage por troca com a CArt 2412 e destacando então dois pelotões para Binta, sendo especialmente orientada para a contrapenetração no corredor de Sambuiá, onde em 21/22jan69 tomou parte na operação "Grande Colheita", realizada pelo COP 3.

Em 22fev72, rendida em Guidage pela CCaç 19, assumiu a responsabilidade do subsector de Saliquinhedim, onde substituiu a CCaç 2753 e ficou integrada no dispositivo e manobra do COP 6 e depois do BArt 3844.

Em 08dez72, foi substituída, transitoriamente, por forças da CArt 3358 no subsector de Saliquinhedim (K3) e foi colocada em Bigene para onde se deslocou, por escalões, em 26nov72 e 8dez72 e onde assumiu a responsabilidade do respectivo subsector em substituição da CCaç 4540/72, ficando então novamente integrada no dispositivo de contrapenetração no corredor de Sambuiá.

Em 31ag074, as praças africanas tiveram passagem à disponibilidade e, após desactivação e entrega do aquartelamento de Bigene ao PAIGC, o restante pessoal recolheu a Bissau, tendo a subunidade sido extinta.

Observações - Não tem História da Unidade. Tem Resumo de Actividade referente ao período
de mai73 a set74 (Caixa n." 129 - 2.ª Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 627/ 628.
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Nota do editor:

Útimo poste da série > 16 de agosto de  2022 > Guiné 61/74 - P23528: Fichas de unidade (26): BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72): sem subunidades operacionais orgânicas, responsabilidade de um vasto sector, na região de Tombali, o sector S3, com sede em Catió, que abrangiam os subsectores de Bedanda, Catió, Cufar, Guileje, Gadamael e Cacine.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23633: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (13): Cumbamori, uma das mais violentas acções das NT em território estrangeiro e um dos maiores desaires do PAIGC... Mas falta-nos a versão do outro lado...


 
Batalhão de Comandos da Guiné (1972/74): Guião



1. Guidaje, Guileje e Gadamael, os famosos 3 G... Daqui a menos de um  ano, em maio e junho de 2023, a "batalha dos 3 G" vai fazer meio centenário...

Será que já está tudo dito, escrito e lido sobre os 3 G ? De modo nenhum,  e sobretudo aqueles de nós que não viveram na pele as agruras daqueles longos, trágicos mas também heróicos dias de maio e  junho de 1973 (e que se prolongam até julho, no caso de Gadamael), continuamos a querer saber mais,,, 

Foram dos combates mais violentos que se travaram em toda a guerra, desde o início de 1963, a par da Op Tridente (1964) e da Op Mar Verde (1970)... A batalha dos 3 G  (há quem não goste da designação)  não se pode resumir à contabilidade (seca) das munições gastas ou das baixas de um lado e do outro (e foram muitas, as baixas, as perdas). E menos ainda aos "roncos" como a destruição de material fornecido pelos russos e outros ao PAIGC. No balanço dos ganhos e perdas, o PAIGC, apesar da destruição (parcial) da base de Cumbamori,  é capaz de ter marcado pontos ao nível político e diplomático, junto da OUA (Organização de Unidade Africana) e países do bloco soviético e até de alguns dos nossos amigos nórdicos, com o seu cerco a Guidaje (e depois Guileje e Gadamael). Deixemos esse balanço para os historiadores.

Passados 49 anos sobre a Op Amílcar Cabral, em que o PAIGC jogou forte (em termos de meios humanos e materiais mobilizados) contra as posições fronteiriças de Guidaje ou Guidage (no Norte) e Guileje e Gadamael (no Sul), parece-nos que continua a ser oportuno e importante, para os nossos leitores,  repescar alguns postes e comentários que andam por aí perdidos... E publicar novas histórias ou informação de sinopse dos acontecimentos  

Daí esta série "Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra?" (*).

É uma pena que os camaradas ainda vivos, que podem falar "de cátedra" sobre os 3 G, Guidaje, Guileje e Gadamael, não escrevam, ou já não escrevam ou ainda não tenham escrito tudo sobre o assunto.  Infelizmente, há outros que a morte já levou, sem que tenham sequer passado ao papel as suas memórias: é o caso, se não erramos, do próprio comandante da Op Ametista Real, o então major Almeida Bruno, 1º cmdt do Batalhão de Comandos da Guiné,  recentemente desaparecido...Enfim, ficou pelo menos o relatório da Op Ametista Real, que será da sua autoria (...) (**) 

Do lado do PAIGC,  já não temos grande esperança de ainda podermos conhecer a versão dos seus combatentes, "na primeira pessoa do singular". Do lado das NT, republicamos mais um resumo sobre a Op Ametista Real, em que foi invadido o território do Senegal para destruir ou neutralizar a base de Cumbamori (ou Kumbamory) e aliviar a pressão sobre o nosso aquartelamento fronteiriço de Guidaje.

Infelizmente, também está pouco ou nada documentada, em termos de imagens, esta operação em que os nossos bravos comandos pagaram uma "fatura elevada", em "sangue, suor e lágrimas". Como já aqui temos comentado, não sabemos por andaram os fotocines do exército durante a guerra do ultramar / guerra colonial. E o arquivo da RTP, sobre esta matéria, é de um pobreza franciscana...

Por outro lado, já chamámos a atenção para o facto de, em duas das maiores (e mais temerárias, do ponto de vista político e militar) operações terrestres em território estrangeiro, a Op Mar Verde (Guiné-Conacri, 22 novembro 70) e a Op Ametista Real (Senegal. 19-20 mai 73), Spínola não ter arriscado o envio de tropas metropolitanas (páras e comandos, por exemplo). Foram os comandos africanos  (1ª, 2ª e 3ª CCmds Africanos, do Batalhão de Comandos da Guiné) que deram o corpo ao manifesto (para além dos nossos pilotos da FAP: os bombardeamentos aéreos de Cumbamori foram decisivos, como é público e notório,  no desfecho da Op Ametistra Real). 

O risco era menor, de todos os pontos de vista... Mas os comandos africanos acabaram por ser "usados e abusados" (se nos é permitida a expressão)  e em Cumbamori enfrentaram não só os combatentes do PAIGC como inclusive tropas paraquedistas senegalesas... Vale a pena reflectir sobre isto... Em todo o caso, é bom lembrar que o  BCP 12 também participou nesta operação, mas do lado de cá da fronteira. Releia-se o precioso e dramático testemunho do nosso querido amigo e camarada Victor Tavares, no poste P1316, de 26/11/2006: 

(...) "A 17 de Maio de 1973, a Companhia de Caçadores Paraquedistas 121 recebe ordem para se integrar na operação acima referida [,a Op Ametista Real] , tendo-lhe sido atribuída a missão de garantir a segurança de um corredor entre Ujeque e Guidaje, através do qual se processaria a retirada dos Comandos Africanos. (...) (**)


17 de Maio de 1973: início da Op Amestista Real  (***)


Início da Operação Ametista Real, em que o Batalhão de Comandos da Guiné assalta a base de Cumbamori, do PAIGC, situada em território do Senegal

A operação destinava-se a aliviar o cerco do PAIGC a Guidage e a permitir o reabastecimento daquela guarnição.

Só a destruição da base de Cumbamori, a grande base do PAIGC no Senegal, na península de Casamança, permitiria pôr fim ao cerco a Guidage. A operação era difícil e de resultados imprevisíveis. O ataque ao Senegal foi atribuído ao Batalhão de Comandos Afruicanos  [ou melhor, da Guiné, constituído pela 1ª, 2ª e 3ª CComds Africanos]
, comandado pelo major Almeida Bruno – que tinha por hábito atribuir às acções militares o nome de pedras preciosas: esta ficou Operação Amestista Real.

Na tarde de 19 de Maio de 1973, uma sexta-feira , 450 homens do Batalhão de Comandos Africanos embarcavam, em lanchas da Marinha e subiram o rio Cacheu até Bigene onde chegaram ao pôr-do-sol. À meia noite a força de ataque seguiu dividida em três grupos de combate:
  • o Agrupamento Bombox, comandado pelo Capitão Matos Gomes;
  • o Agrupamento Centauro, sob o comando do Cap Raul Folques;
  •  e o Agrupamento Romeu, comandando pelo capitão paraquedista António Ramos.

O Comandante da operação, Almeida Bruno seguiu integrado no Agrupamento Romeu, que levava um grupo especial comandando por Marcelino da Mata. Avançaram, durante a madrugada e pisaram território senegalês, cerca das seis da manhã do dia 20, sábado.

Às oito horas, uma esquadrilha de aviões Fiat iniciou pesado bombardeamento da zona. Os pilotos atacaram um pouco às cegas, porque a axacta localização da base da guerrilha não era conhecida. Mas por sorte as bombas da avião acertaram, em cheio nos paióis. 

Mal cessou o ataque aéreo , que não terá demorado mais do que dez minutos, os grupos comandados por Matos Gomes e Raul Folques lançaram-se ao assalto, enquanto o Agrupamento Romeu, comandado por António Ramos, e onde seguia o comandante da operação, Almeida Bruno, tomava posição como força de reserva. Os três agrupamentos envolveram-se em duros combates: “Os soldados de ambos os lados estavam tão próximos uns dos outros que era impossível delimitar uma frente”.

O combate foi corpo a corpo e desenrolou-se até às 14h10, quando Almeida Bruno deu ordem para o Agrupamento Centauro apoiar uma ruptura de contacto entre as forças do Batalhão de Comandos e as do PAIGC. O Agrupamento Bombox estava praticamente sem munições e o Agrupamento Centauro substituiu-o no contacto. Entretanto, Raul Folques, o comandante do Agrupamento Centauro, apesar de gravemente ferido numa perna, conseguiu a ruptuta do combate. A marcha do Batalhão de Comandos em direcção a Guidage foi lenta e com várias emboscadas pelo meio.

Resultados

Pelas 16 horas cessaram os combates e às 18h20 os primeiros homens do Batalhão de Comandos começaram a chegar a Guidage. Tinham sido destruídos:

  • 22 depósitos de material de guerra;
  • duas metralhadoras antiaéreas;
  • 50 mil munições de armas ligeiras;
  • 300 espingardas Kalashikov;
  • 112 pistoals PPSH
  • 560 granadas de mão;
  • 400 minas antipessoal:
  • 100 morteiros 60;
  • 11 morteiros 82;
  • 138 RPG7:
  • 450 RPG2;
  • 21 rampas de foguetões 122.

O PAIG sofreu 67 mortos entre os quais uma médica e um cirurgião cubanos e quatro elementos mauritanos, enquanto os Comandos sofreram dez mortos, dos quais dois oficiais, 23 feridos graves (três oficiais e sete sargentos) e três desaparecidos.

Uma nova coluna de reabastecimento ficou retida em Farim, por ter sido atacada uma coluna entre Mansoa e Farim de que resultou a destruição de três viaturas que ficaram, no terreno, tendo as forças portuguesas sofrido quatro mortos e 16 feridos, dos quais nove graves.

Na luta por Guidage o PAIGC utililizou a sua infantaria apoiada por artilharia pesada e ligeira, além de um grupo especial de mísseis terra-ar. Em armamento utilizou foguetões de 122 mm, morteiro 120 e 82 mm, canhões sem recuo de 5,7 e 7,5 cm, RPG2 , RPG7, armamento ligeiro e mísseis Strela. (...)

Fonte: Excerto de Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso - Os anos da guerra colonial: volume 14: 1973: Perder a guerra e as ilusões. Matosinhos: Quidnovi, 2009, pp. 41-45. (Com a devida vénia..)

[Seleção / revisão / fixação de texto,  para efeitos de edição deste poste: LG. ]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 18 de setembro de  2022 > Guné 61/74 - P23625: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (12): A Op Ametista Real: o batalhão de comandos em Cumbamori, no Senegal, 19 de maio de 1973 (Amadu Bailo Djaló, alf graduado 'comando', 1940-2015)


(***) Vd. informação mais detalhada no poste de 18 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23364: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (5): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte IV: Op Ametista Real, de 17 a 21 mai73, destruição da base de Cumbamori, no Senegal

Vd. também o testemunho, na primeira pessoa, de Amadu Djaló (1940-2015):

domingo, 18 de setembro de 2022

Guné 61/74 - P23625: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (12): A Op Ametista Real: o batalhão de comandos em Cumbamori, no Senegal, 19 de maio de 1973 (Amadu Bailo Djaló, alf graduado 'comando', 1940-2015)

Guiné > Brá > 1973 > Cerimónia das promoções dos comandos africanos (pág. 257 da edição em livro)

Guiné > Brá > 1973 > Foto nº 108 > O general Spínola a dirigir-se ao Batalhão de Comandos da Guiné, em Brá. À direita, os majores Almeida Bruno e Raul Folques e atrás, por baixo do emblema dos Comandos, o tenente graduado 'comando' Zacarias Saiegh, de camisa mais clara. Fotos retiradas, com a devida vénia, do livro de Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, pág. 256)

Batalhão de Comandos da Guiné (Brá, 1972/74): guião
 

A Op Ametista Real,  19 de maio de 1973

por Amadu Bailo Djaló (2010, pp. 248-260) (*)

Em homenagem à  memória do nosso camarada Amadu Djaló (nascido em Bafatá, em 1940 e falecido em Lisboa, no Hospital Militar, em 2015, com 74 anos), e com a devida vénia aos seus herdeiros, à Associação de Comandos (que oportunamente, ainda em vida do autor, editou o livro, entretanto há muito esgotado), e com um especial agradecimento ao Virgínio Briote que, na qualidade de "copydesk" e grande amigo do autor, e coeditor jubilado do nosso blogue,  nos facultou o "manuscrito" (em formato pdf), vamos reproduzir aqui o excerto, sem a totalidade das respectivas fotos, relativo à Op Ametista Real, Cumbamori, Senegal, 19 de maio de 1973 (correspondente às pp. 248-260 da edição em livro).  

Este é um valioso (e raro) testemunho, escrito na primeira pessoa do singular sobre uma operação arriscada e temerária, realizada em solo estrangeiro, contra a base do PAIGC em Cumbamori, e que permitiu aliviar a pressão militar sobre Guidaje. Nove militares do Batalhão de Comandos da Guiné morreram na Op Ametista Real. O Amadu Djaló até então 2º sargento graduado 'comando', será depois promovido a alferes, e irá fromar, com o tenente graduado 'comando' Jamanca a CCAÇ 21.


(...) 51. O Batalhão de Comandos[1] em Cumbamori, Senegal

Embarcámos em Bissau, ao início da tarde de 18 de maio de 1973, numa lancha de desembarque, e navegámos durante a tarde e a noite toda até Ganturé[2].

Quando desembarcámos, já passava do meio da tarde, encontrámos soldados conhecidos. Estávamo-nos ainda a cumprimentar, ouvimos um companheiro gritar alto “atenção, ataque!”

Ouvimos as saídas de morteiros 120. Não falando nos estilhaços, só os rebentamentos desorientavam. Cada um procurou um local para se abrigar, mas a flagelação[3] não durou mais de cinco minutos. Para nós, foi um sinal do PAIGC. Acalmámo-nos e rimo-nos um bocado, enquanto comíamos da comida que nos trouxeram.

Mantivemo-nos em Bigene até aproximadamente às 22h00, que tinha sido a hora destinada para nos prepararmos para a saída. Mais ou menos, uma hora depois, começámos a andar rumo ao objectivo para cumprir a missão de atacar e destruir os locais que estavam a servir de base às flagelações a Guidaje[4] e a toda aquela zona, Bigene, Barro, Binta.

O agrupamento onde ia o comandante Almeida Bruno[5] seguia à frente, em direcção à zona de fronteira com o Senegal. Foi uma noite toda a andar, até atingirmos uma estrada alcatroada, paralela à fronteira, de Koldá a Ziguinchor, entre Tanafo e Samine, mais próximo deste. Portanto, bem dentro do Senegal[6].

A certa altura foi-nos ordenado um alto e ali nos mantivemos. Tínhamos sido avisados que a aviação vinha a caminho. Neste intervalo ia a passar uma viatura das obras que andava a carregar material para a estrada.

Como tínhamos recebido ordens para não deixarmos passar nenhuma viatura[7], o Alferes Tomás Camará mandou-a parar. O condutor não quis obedecer ao sinal de stop, mas como viu muitos militares armados parou mesmo. O Major Almeida Bruno abeirou-se dele e disse-lhe que “hoje não há trabalho. Vai avisar o PAIGC de que estamos aqui à espera deles”. Mas o condutor não deve ter ido ter com o PAIGC, arrancou a correr na direcção de Samine.

Nós continuávamos a aguardar a entrada da aviação, que não devia demorar. E poucos minutos depois começámos a ouvir os ruídos dos aviões e, nessa altura, levantámo-nos para nos prepararmos para os ataques aos objectivos, que eram diferentes para cada companhia.

Por volta das 07h00, mais ou menos, começámos a ouvir os rebentamentos das bombas dos aviões, uns atrás dos outros. A seguir, avançámos, formados em bigrupos e lançámo-nos ao ataque.

Lembro-me de ter entrado numa clareira e, depois mais nada, desmaiei. Soube mais tarde que tinha sido atacado na cabeça por um enxame de abelhas. Tiraram-me dali, não sei de onde nem para onde. Dei por mim deitado no chão, a ouvir uma voz, era o capitão Folques a dizer tratem o homem, e eu a pensar no que teria acontecido. Não me lembrava de nada do que se passou, nem me lembrava do local onde estava, nem o que estava ali a fazer. Sentia dores e não via nada, só ouvia as vozes. Minutos depois, recuperei a memória e já me lembrava do que me tinha acontecido na saída e do ataque de abelhas. E eu, a falar para mim, estou deitado no chão, devo estar a morrer.

Perguntei qualquer coisa mas ninguém deu resposta. Levantei-me a custo, comecei a ver, sentia dores na cabeça, na cara, nas mãos. Então, não estou a morrer! Mais animado, procurei a minha arma e as cartucheiras, era um soldado radiotelegrafista do meu grupo que tinha o meu material. Tinha trazido arma, levava a minha arma, assim estava mais tranquilo, tão tranquilo que me preparei para avançar.

Alguns homens de um dos nossos bigrupos, que caminhava na nossa retaguarda, quando nos viram, não estiveram com cerimónias, atiraram-se para o chão e abriram fogo sobre nós. Fizemos o mesmo, respondemos e durante cerca de um minuto o fogo intensificou-se. Não sei porquê, parámos o fogo, os dois lados ao mesmo tempo. Começámos a ouvir gritos “Comandos, Comandos”[8]. Restabelecido o contacto procurámos saber dos feridos. Eles não tinham nenhum e nós também não, por sorte.

Juntámo-nos e continuámos o avanço para o local onde se deveria encontrar o comandante Bruno. Quando chegámos, instalámo-nos e ficámos a aguardar ordens. Havia grupos que ainda não tinham regressado ao local.

Neste espaço de tempo, foi recebida uma mensagem de um grupo a pedir apoio. Tinha sofrido baixas e pedia auxílio para os tirar daquele local. Já íamos a sair e nova mensagem chegou a dizer que já não precisavam. Que o grupo do Marcelino estava a trazer os feridos e os mortos para o local onde estávamos. Entretanto, começámos a preparar as macas para facilitar o transporte. Sabíamos que a retirada ia ser feita na direcção de Guidaje. Não demoraram muito.

Um dos feridos estava a contar-me como tinha sido atingido quando chegou o 1º cabo José Có, que tinha sido meu instrutor na recruta em Bolama.

− Amadu, onde é que estamos?

− Aqui é o Senegal − respondi.

− Então, vou-me embora. Estive ali à frente, ouvi muitos barulhos, de gente a falar e a gritar alto, barulho de gente a cortar ramos das árvores para fazer macas, olha, era tanto barulho que parecia o mercado de Bandim.

Só voltei a ver o José Có em Guidaje. Saí do local onde estavam quatro ou cinco feridos e o corpo de um soldado, para verificar o andamento dos trabalhos das macas e, momentos depois começaram os rebentamentos.

Foi um inferno. Ao primeiro estouro ninguém pensou em mais nada senão em escapar dali. Eu corri para a frente, com sete ou oito soldados, armados de bazucas e RPG, para respondermos ao fogo. Todos dispararam uma vez, outros duas vezes, depois saíram dos locais, porque a posição deles estava denunciada quando fizeram fogo. Sabíamos isso da instrução.

Fiquei muito satisfeito com eles, porque foi com os disparos que fizeram que travámos a contra-ofensiva do PAIGC e dos páras senegaleses[9].

O tenente Jamanca estava à minha esquerda, sentado, com as pernas estendidas, encostado a uma pequena árvore, parecia exausto.

− Então, o que é que se está a passar? − perguntei.

− Amadu, anda cá! Mata-me, não deixes o PAIGC levar-me! Mata-me, Amadu, mata-me!

− Tu não ficas, levámos-te de qualquer forma. Não ficas aqui! Descansa um pouco, Jamanca!


Durante esta conversa vi o Alferes Melna, de pé, com dois soldados, um deitado, de frente para eles.

 −  Melna, de quem é esse corpo?

− É o Alferes, o Mama Samba Baldé!

Fui para a beira deles. O Melna apontou para uma árvore e perguntou-me se eu sabia de quem era o corpo que estava lá. Não, não sabia, respondi.

− É o corpo do José Vieira[10].

Ouvi o Jamanca chamar-me:

 − Vai chamar Demba[11].

Dirigi-me para um grupo de soldados e perguntei pelo Demba.

  −  Já retiraram todos, só estamos nós aqui −  respondeu alguém.

Quando transmiti ao Jamanca o que tinha ouvido, ele não queria acreditar. Depois, levantou-se e foi ver com os seus olhos. Não viu nenhum dos seus oficiais e abanou a cabeça.

No local estávamos 31 militares, três capitães europeus e vinte e oito comandos africanos: um tenente, um alferes, não sei quantos sargentos e praças. Os capitães eram o Folques, o Matos Gomes e o Ramos, que era paaquedista.

O grupo ainda ficou mais reduzido, pouco depois. Quando tentava recuperar o corpo do Alferes Mama Samba, o Melna[12] foi atingido gravemente nas pernas com estilhaços de uma roquetada e os ossos ficaram a ver-se.

O guarda-costas do alferes estava atrás do Melna, mas só o alferes e outro soldado apanharam com os estilhaços. Depois de atingido, o Melna tirou a carteira onde levava o mapa e a bússola do pescoço e pousou a Kalash. Quando estava a tentar ver o estado em que tinha as pernas, toda aquela zona foi varrida por uma série de rajadas.

Tentámos ir lá, arrancá-los, tirá-los dali, uma, duas, três vezes. Não conseguimos. Na terceira tentativa o capitão Folques foi também atingido numa perna, uma bala perfurou-a de um lado a outro. Demos tudo por tudo, mas não conseguimos chegar lá. A força deles era maior, naquele local.

De todo o pessoal que partiu, quatrocentos e noventa e tal militares com dois guias de Bigene, estávamos ali vinte e nove, porque um dos soldados do Melna também tinha sido atingido gravemente. Conseguimos abandonar o local, comigo em último lugar, a olhar para trás, de vez em quando, com a imagem do Melna, que ainda hoje está na minha cabeça. Ele olhava para nós e voltava a cara para o lado de onde faziam fogo contra nós. E ainda consegui ouvir um grito, pareceu-me de contentamento.

Estavam a apanhar o Melna, pensei. "Apanharam Melna", gritava eu alto. Uma dor cá dentro, no coração, é o que ainda hoje sinto quando me vem à memória a imagem dele, a olhar para nós e para o outro lado, o do inimigo.

Mas para trás ficaram mais três ou quatro feridos que o grupo do Marcelino tinha trazido para aquele local. Não sei quem era o comandante deles, só sei que também lá ficaram.

Continuámos a retirar em direcção à nossa fronteira. Não podíamos forçar muito, porque o Jamanca só podia andar com o apoio de alguém e o capitão Folques, com a perna ferida, também tinha muita dificuldade em andar e estávamos ainda longe de Guidage.

Pedimos apoio à aviação, mas recusaram. Disseram que estavam a voar muito alto, que era difícil localizarem-nos. Quando ouvi a resposta do ar, perguntei ao meu soldado, que transportava o morteiro, se ele tinha ainda alguma granada de fumos de morteiro, para a aviação ver onde nós estávamos. O capitão Folques transmitiu para os aviões que íamos lançar uma granada de fumos. Tomei conta do morteiro e fui eu que disparei, para sinalizar o local a partir do qual os aviões já podiam bombardear.

Uma grande bola de fumo, branca, já tinham visto dos aviões, ouvimo-los dizer. A partir deste momento, o Capitão Folques[13] disse "a sueste do fumo, a sul, a sudoeste e a oeste, arrasar tudo, tudo!" ‘

Vimos bem a potência do bombardeamento e sentimo-la também, enquanto continuávamos a retirar lentamente. Do ar, perguntaram se estávamos a ser seguidos, nós respondemos que não. Então, “Pentágono”[14] disse que estavam a ver uma grande coluna na estrada e que iam destruí-la. A partir desta comunicação, não ouvimos nem mais um tiro atrás de nós. E atrás de nós, já não havia mais ninguém nosso.

Essa granada de fumo ajudou-nos muito, talvez tenha sido a nossa salvação. Não me lembro do nome do soldado que acarretou o cunhete de granadas de fumo, mas lembro-me de ele me responder que eram granadas de morteiro de fumo, quando lhe perguntei "granada de quê?"

Esta conversa aconteceu, depois do grupo estar pronto para a saída. Leva uma ou duas, respondi sem muita certeza. Nunca tinha levado granadas dessas de morteiro, de fumo só usávamos granadas de mão, mas como era uma operação fora do território nacional, talvez viesse a ser útil. Quem adivinhava?

Chegámos junto do arame farpado do aquartelamento de Guidage, entre as 18 e as 19h00[15], mortos de sede e de fome. Em Guidaje não havia nada para comer. Nem medicamentos[16].

Fomos avisados de que partíamos no dia seguinte, às 07h00[17], a corta-mato na direcção da estrada Farim a Binta. O programa era sair de Guidaje, em marcha forçada, a corta-mato, pela estrada de Farim a Binta. Ia ser uma grande volta para quem quisesse ir, ninguém era transportado.

Quem cair, caiu. Seja quem for, fica no local. Se não vai aguentar, então é melhor não arriscar. Quem quiser ficar em Guidaje tem que saber que não há comida. E outra coisa mais, para quem quiser ficar aqui: não sabemos quando sairá de cá, nem em que meios o fará, porque a estrada está como um campo de milho, só que não tem milho, tem minas. Já muitas vidas ficaram nesta estrada, a picá-la. E de avião, também não sabemos quando vai haver, porque já foram abatidos 3 ou 4 nesta área! Então, quem quiser ficar, pode ficar, mas têm que ter muita paciência até quando houver possibilidade de os retirar. 

Foram estas as palavras que todos ouviram. O aviso correu depressa, à volta de todo o arame farpado e ficou a noite para cada um pensar na sua vida.

Logo de manhã, ainda antes das 06h00, começámos os preparativos. Viu-se logo quem queria arriscar, quem estava decidido. Agora, não era hora de falar, se ia ou não ia.

Chegada a hora, partimos, decididos, não me lembro de olhar para trás, na direcção da estrada entre Farim e Binta.

O objectivo da etapa era Binta. A certa altura o calor começou a apertar e ainda era de manhã. As baixas começaram a surgir, sem ataques armados, alguns afrouxaram a marcha, um ou outro caiu. Era para aí meio-dia quando o major Almeida Bruno mandou fazer um alto para o pessoal descansar um pouco. Trinta minutos, mais ou menos, depois, recomeçámos a marcha. Falar do calor que fazia, não adianta. Toda a gente da Guiné sabe como é. A marcha forçada estava a ser difícil para alguns colegas, até o guia se foi abaixo.

A partir de um dado momento, o comandante 
[Almeida] Bruno e eu fomos para a frente, eu a abrir a coluna, o nosso major em segundo, o segundo guia era o terceiro homem, sempre a andar sem parar, com a estrada ainda longe. Quando chegámos com o pôr-do-sol[18] ao local que queríamos atingir, ouvi o comandante pedir pelo rádio, na ponte, os cavalos[19] para nos virem buscar.

Quando chegou a primeira viatura, pensei que íamos embarcar. O major disse “Amadu, vamos andando”, chegou a segunda disse o mesmo. Nessa altura, eu disse para mim, “se eu sabia, ficava para trás”. Cada viatura que chegava, o nosso comandante mandava passar para trás de nós, sempre a dizer “Amadu, vamos andando”. Eu estava muito cansado, mesmo muito.

Quando voltou uma viatura sem ninguém ele disse que agora era a nossa vez, que já não havia ninguém para trás. Fomos dos últimos a entrar em Binta. Atrás de nós cerca de quarenta homens arrastavam-se ainda na estrada, foram chegando durante a noite. Alguns colegas nossos tinham voltado para trás para ajudar os atrasados. Aproximavam-se do portão e faziam sinal às sentinelas. Quando chegámos a Binta entrámos logo na LDG.

Na lancha soubemos o que tinha acontecido com dois soldados nossos, que tinham ficado em Bigene e não participaram na operação. Um, do grupo do Marcelino da Mata, não foi porque estava bêbado e o outro, dos Comandos, porque se queixava de fortes dores de cabeça.

O que aconteceu com eles? Quando a lancha se estava a deslocar de Ganturé para nos vir buscar a Binta, ninguém sabe como ou porquê, o soldado do Marcelino, o Abdul Raman disparou o lança-roquetes. O disparo atingiu-o e desapareceu na água[20]. O outro, o Malan Baldé, o das dores de cabeça, que ia ao lado, foi atingido por estilhaços nas duas vistas e ficou cego.

Com todo o pessoal embarcado, iniciámos a navegação de manhã[21]. Todos calados, pensando em nada. Quando chegámos ao Cacheu, horas depois, ainda estávamos em silêncio. Mandaram-nos saltar do barco e aproveitámos para nos abastecermos no mercado do Cacheu. Eu comprei um grande peixe. Depois, destino Bissau.

Chegámos à tarde. Com as viaturas ali, à nossa espera, foi um trabalho pequeno tomar os lugares e rolar para o quartel. Quando chegámos a Brá, fizemos o costume, entregámos as armas e os equipamentos. Disseram-nos para estarmos no quartel no dia seguinte, para conferirmos quem tinha ficado para trás, no território do Senegal, quem tinha sido ferido, quem tinha ficado no nosso território, no Ingoré, em Barro, em Binta, em Farim.

Os números dos desaparecidos não batiam certo[22], iam mudando. Depois do 25 de Abril ainda apareceu um soldado, Aba Coné, um balanta, que tinha sido ferido com o alferes Melna, com os estilhaços da mesma roquetada.

Três dias depois[23] de Cumbamori, o comandante deu-nos uma semana de descanso. No dia combinado, quando cheguei ao quartel a ordenança do comandante Bruno disse-me para eu estar no gabinete dele, às 10 horas.

 − Não sabes por que é que me mandou chamar?

Não sabia, mas disse que tinha mandado chamar mais oito homens e mostrou-me a lista. Eram todos meus amigos.

Chegada a hora, concentrámo-nos no gabinete do major Bruno, ansiosamente à espera, ninguém sabia de quê.

Era para nos comunicar que dois tenentes e seis alferes iam dirigir duas companhias. O tenente Jamanca ia ser o comandante de uma companhia de Fulas. E os alferes eram o Demba Chamo Seca, o Ali Sada Candé, o Braima Baldé[24] e eu, Amadu Bailo Djaló

Para a outra companhia iam três oficiais, o Tomás Camará, o Vicente Pedro da Silva e o João Uloma, o felupe. Dois furriéis, um dos quais o Hélder Pereira[25], da CCaç 18, com vários louvores, iam ser integrados na companhia do Tomás Camará.

Duas companhias comandadas por oficiais dos comandos africanos: a CCaç 20, comandada pelo Tenente Tomás Camará iria para Gadamael Porto. A CCaç 21, uma companhia quase só constituída por militares de etnia fula, comandada pelo Tenente Jamanca, iria ficar sediada em Bambadinca.

Três dias depois, embarcámos para Bolama e, passadas duas semanas, o General Spínola atribuiu aos quadros das duas companhias a Medalha de Lealdade e Mérito[26], em cobre. E poucos dias depois, fomos chamados a Bissau, para sermos graduados: o Tomás Camará em tenente e eu em alferes.

Depois de voltarmos a Bolama, esperava-me novo destino. Bambadinca [a CCAÇ 21]. (**)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. ] 



Lisboa > 2009 > Da esquerda para a direita, o cor inf 'comando' ref Raul Folques e o ten general 'comando' ref Almeida Bruno (1935-2022)  (os dois primeiros comandantes do Batalhão de Comandos Africanos da Guiné, e ambos Torre e Espada) e o nooso saudoso grã-tabanqueiro Amadu Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015).

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2015). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do autor e do editor ("copydesk") Virgínio Briote:

[1] Nota do editor: designação oficial do que veio a ficar conhecido por Batalhão de Comandos Africanos. A unidade foi criada em 1 Abril 1973, tendo a sua organização sido aprovada pelo Ministro do Exército, em despacho de 21 Fevereiro 1973.

[2] Nota do editor: Ganturé, porto no rio Cacheu que servia Bigene onde se encontrava o comando do COP.

[3] Ataque de morteiros e foguetes, disparados do lado de lá da fronteira.

[4] Nota do editor: Guidaje estava praticamente isolada. A guarnição era composta por cerca de duas centenas de homens da CCaç19 e do PelArt24. Junto ao aquartelamento havia uma pequena tabanca. As entradas pelo sul estavam praticamente cortados, com as vias de acesso semeadas de minas.

A própria FAP estava limitada, uma vez que nos primeiros dias de Maio, um T-6 e dois Dornier 27 tinham sido abatidos por mísseis.

Calcula-se em cerca de seiscentos o número de homens que o PAIGC tinha na zona, comandados por Francisco Mendes “Chico Té” e Manuel dos Santos “Manecas”. O PAIGC abastecia-se a partir de uma base em Cumbamori, Senegal.

Segundo o relatório, na tarde de 19 de Maio de 1973, cerca de 450 homens do Batalhão de Comandos da Guiné, divididos em três agrupamentos (efectivos de uma companhia), embarcaram em lanchas da marinha e subiram o Cacheu até Bigene, onde desembarcaram ao final do dia. À meia-noite começaram a deslocar-se para Norte e entraram no Senegal por volta das seis da manha do dia 20.

[5] Nota do editor: a ordem de progressão era o Agrupamento “Bombox”, comandado pelo capitão Matos Gomes, o agrupamento “Centauro” pelo capitão Raul Folques e o agrupamento “Romeu” pelo capitão António Ramos e onde seguia o Major Almeida Bruno. Informação de “Guerra Colonial”, de Aniceto Afonso e C. Matos Gomes.

[6] Nota do editor: na chamada “Grand Route” do Casamance, que estava em construção. As NT tinham os objectivos marcados nas fotografias aéreas referenciados a sul desta estrada em construção.

[7] Nota do editor: passaram autocarros e viaturas da construção civil de uma empresa francesa. Ao agrupamento “Bombox”, quando começou o bombardeamento da aviação, surgiu, num Peugeaut 404, um engenheiro francês, que, de olhos arregalados, se viu rodeado de negros. O Capitão Matos Gomes mandou-o desaparecer. Estava iminente o ataque à base.

[8] Nota do editor: o agrupamento do Capitão Folques tinha ficado a sul da base enquanto o “Bombox” atacou a norte. Por volta do meio-dia o Major Almeida Bruno deu ordem ao “Bombox” para sair do local e mandou avançar o agrupamento “Centauro”, do Capitão Folques, para se intrometer entre o “Bombox” e o PAIGC, numa manobra de ruptura do contacto. Seguiu-se o combate e a confusão. Dois agrupamentos de Comandos Africanos, mais o PAIGC e mais forças do Exército do Senegal, praticamente com fardamento e armas idênticas, todos pretos excepto quatro brancos, engalfinhados aos tiros e quase à bofetada. Daí o grito Comandos para se orientarem. E, como a confusão já era pouca, surgiu o grupo do Marcelino da Mata, que veio aos apitos e aos gritos e a pegar fogo ao capim, onde as NT tinham juntado os foguetões capturados na base de Cumbamori, que, aquecidos pelo incêndio, seguiram como torpedos pela bolanha.

[9] O Exército do Senegal trouxe guerrilheiros do PAIGC em viaturas e apoiou-os contra nós, com canhões sem recuo e auto-metralhadoras. O comandante daquele sector senegalês, um Major chamado Djawara, contactou com o Major Bruno no posto de comando, que o nosso comandante tinha montado numa pequena vila senegalesa, e pediu-lhe para irmos combater para trezentos metros a Sul, onde ele dizia que passava a fronteira, ninguém sabia se passava se não. Já depois de 1974 tive conhecimento que o Presidente do Senegal, Shenghor, disse ao General Spínola em Paris que o tal major tinha sido abatido no decorrer dos combates.

[10] Soldado da 1ª CCmds. Um mês depois de ter acabado a comissão, solicitou a prorrogação. Esta era a 1ª saída depois de reintegrado.

[11] Demba Chamo Seca.

[12] Nota do editor: os corpos do Alferes Melna e os de outros Comandos, foram recuperados pelas NT e trazidos para Guidage, onde se encontram enterrados.

[13] Tínhamos no ar o Capitão Baptista da Silva, numa Dornier a fazer PCV.

[14] Indicativo da patrulha aérea.

[15] Nota do editor: de 19 Maio 1973.

[16] Guidaje estava cercada, não era reabastecida há algum tempo. Os feridos acumulavam-se num abrigo, com as feridas a gangrenarem. Cheirava a carne podre, a sangue coalhado e o ar parecia de um jazigo. Foi nesse abrigo que o nosso Capitão Folques e os outros Comandos feridos ficaram a aguardar as evacuações. Nem ligaduras havia.

[17] Nós tínhamos que sair rapidamente de Guidaje. Com os efectivos do Batalhão de Comandos, o número de militares deveria andar perto de seiscentos homens dentro do aquartelamento. O que podia ser um desastre para nós se a povoação fosse atacada, que era o que esperávamos. Não havia tempo para recuperar. O comandante decidiu seguir a corta-mato na direcção de Binta. Soubemos mais tarde que ainda pensou seguirmos directamente ao Cufeu, para atacarmos uma base de lançamento de Strella, localizada pela aviação. Segundo ouvi dizer parece ter sido a primeira ideia que lhe veio à cabeça e terá mesmo dado ordem para nos dirigirmos para Cufeu, mas nós já não andávamos, arrastávamo-nos. Ainda chegámos às proximidades do local, mas nós não estávamos em condições para o assalto. Finalmente, o comandante mandou seguir para Binta, até à estrada Farim – Binta – Barro. E foi aí, que fomos recolhidos em viaturas e transportados para a LDG, comandada por um 1º Tenente chamado Bilreiro.

[18] Nota do editor: de 20Mai73.

[19] Viaturas.

[20] Nota do editor: não há registo do óbito deste militar, sequer “desaparecido em acção” ou “corpo não recuperado.

[21] De 21 Maio 1973. Esperámos algumas horas em Binta. O Major Bruno e os Capitães Matos Gomes e António Ramos viajaram para Bissau, de helicóptero, para se reunirem com o General Spínola. Em Binta não havia comida para nos darem, foi a própria população que nos matou a fome.

[22] Nota do editor: os números oficiais apontam para nove mortos em combate, onze feridos graves e vinte e três ligeiros.

[23] Nota do editor: 4 Junho 1973.

[24] Braima Baldé pertencia à família real do Corubal. Era uma pessoa muito reservada. Incorporado em 1960, pertenceu à B.A.C. e esteve destacado no esquadrão de Bafatá. Por feitos em combate recebeu o prémio Governador da Guiné. Em 1969 para além dos africanos ex-Comandos foram convidados outros que se tinham destacado em combate. Braima fez o curso de quadros, em Brá, sob a orientação do Capitão Barbosa Henriques. Terminado o curso, como furriel graduado, esteve em Fá Mandinga, na formação da 1ª CCmds Africanos, de que o Capitão graduado João Bacar Djaló foi o nosso comandante. Era 1º sargento quando participou na operação “Ametista Real”, em Cumbamori, Senegal. Ao Braima calhou-lhe ir no agrupamento onde ia o Major Almeida Bruno. Foi muito falada, na altura, a história de que Braima Baldé pode ter salvado a vida do nosso comandante quando o Major Bruno, ao avistar um grupo de militares, tê-los-á chamado, pensando que eram militares nossos. Eram páras senegaleses. O Braima apercebeu-se, gritou-lhe que se abaixasse, e, segundos depois, começaram a ser alvejados com rajadas. No regresso, já em Guidaje, o major tirou os galões de um alferes europeu e colocou-os nos ombros do Braima Baldé. Quando se deu o 25 de Abril, o PAIGC começou por lhe atribuir um cargo numa secretaria em Bambadinca. Depois executou-o, em 1975, em dia e local que ninguém disse.

[25] Hoje Tenente-Coronel.

[26] Nota do editor: em Ordem de Serviço nº 34, de 23 de Agosto 1973, do CTIG, o Brigadeiro Comandante Militar louvou o Alferes Graduado Comando Amadu Bailo Djaló, da 1ª CCmds Africanos: “porque em todas as operações e acções em que tomou parte, se revelou sempre um combatente exemplar, muito valente, corajoso, determinado e de elevado espírito de sacrifício e abnegação. Militar de elevado espírito de missão, responsável e muito generoso é de inteira justiça realçar o seu excepcional comportamento na operação “Ametista Real”, onde comandou o seu grupo de combate com competência, serenidade, muita coragem, agressividade e estoicismo. Por tudo quanto se nota, é digno de ser apontada a sua conduta como de verdadeiro Comando, sendo-lhe conferido o presente louvor como público testemunho das suas extraordinárias qualidades de chefe militar e de combatente.”

[27] O pai do Alferes Carolino Barbosa era comerciante no sul da Guiné e tinha sido morto pelo PAIGC.

[28] Nota do editor: de 11 Julho a 11 Agosto 1973 e de 21 Novembro a 16 Dezembro 1973.
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Militres  do Batalhão de Comandos da Guiné mortos em Cumbamori, Senegal, durante o assalto à base IN, Operação Ametista Real’, 19 Maio 1973.

  • Anso Baldé, Soldado, 1ª CCmds; 
  • José Vieira, Soldado, 1ª CCmds; 
  • Pedro Melna, Alferes Graduado, 2ª CCmds;
  • Mama Samba Baldé, Alferes Graduado, 3ª CCmds:
  • Saliu Sané, Soldado, 3ª CCmds;
  • Becute Tungué, Soldado, 3ª CCmds;
  • Carlos Intchama, Soldado, 3ª CCmds;
  • Armando Beta Santa, Soldado, 3ª CCmds:
  • Mama Samba Embaló, Soldado, 3ª CCmds;
 Fonte: Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp. ) 
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4359: Tabanca Grande (143): Amadu Bailo Djaló, Alferes Comando Graduado, incorporado no Exército Português em 1962 (Virgínio Briote)

(**) Último poste da série > 14 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23525: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (11): "Se eu de ti me não lembrar, Jerusalém", poema de Luís Jales de Oliveira (ex-fur mil trms, CCAÇ 20, 1972/74)

Vd. também poste 18 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23364: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (5): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte IV: Op Ametista Real, de 17 a 21 mai73, destruição da base de Cumbamori, no Senegal