Mostrar mensagens com a etiqueta Hospital Militar Principal. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Hospital Militar Principal. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7813: Blogues da nossa blogosfera (42): Coisas da Guiné, de A. Marques Lopes



Coisas da Guiné, o blogue do nosso camarigo A. Marques Lopes (*)... Desde Setembro de 2010. Já lá vão cerca de 70 postes.  O que se pode ver e ler ?  "É conforme me vou lembrando, e vou também pescando algumas coisas minhas que já publiquei ou que outros publicaram em blogues existentes" (incluindo o nosso, Luís Graça & Camaradas da Guiné)... 

Recorde-se que o   A. Marques Lopes, ex- Alf Mil At Inf, CART 1690 (Geba) / CCAÇ 3 (Barro) (1967/69)  tem uma vasta colaboração no nosso blogue, e em especial na I Série (entre Maio de 2005 e Maio de 2005). A actividade operacional das subunidades por onde ele andou (CART 1690 e CCAÇ 3) está aqui bem documentada, em texto e fotografia.


O A. Marques Lopes tem alguns dos melhores postes publicados no nosso blogue... De entre todos quero, mais uma vez,  destacar a história da professora de Samba Culô, morta por ele num ataque à aldeia sob controlo do PAIGC...  Foi uma história que o atormentou durante anos, até pelo menos a 2005, ano que voltou (de novo) à Guiné e a Samba Culo, tendo aí feito as pazes (o luto ou a catarse) consigo próprio e com a memória da guerrilheira abatida (**)...

Vou (re)negociar com o António a publicação, aqui, de uma ou outra das suas novas histórias. Para já, e para "abrir o apetite", tomo a liberdade de publicar a seguir um excerto do poste onde ele conta a sua viagem, em Dakota, de evacuação para o Hospital Militar Principal, ma sequência de graves ferimentos em combate (em 21 de Agosto de 1967, apenas 4 meses depois de ter chegado ao TO da Guiné):

Quinta-feira, 23 de Dezembro de 2010 > 29-Como fui evacuado 


(...) A 21AGO67, fui ferido por uma mina no caminho de SARE BANDA  [, link quebrado,] para BANJARA (A mina da minha vida) [, link quebrado]. Estive uma semana no Hospital de Bissau (HM241) e daí saí para a Base Aérea para ser evacuado para a Metrópole. Foi num Dakota C47.




Fui só com as calças e uma camisa. Foram também outros feridos que entraram no avião. Os bancos que vêem na gravura foram ocupados por uma senhoras, não sei quem eram, nós os feridos, uns cinco ou seis, fomos esticados numas macas no corredor. Ainda disse que não estava assim tão mal e que podia ir numa cadeira. Mas que não, que devia ir numa maca. Lá fui, e quando o avião já estava alto comecei a deitar sangue pelos ouvidos (era o meu ferimento principal), por causa da descompressão. Ninguém ligou mas eu tratei de mim. 

Ao fim de cinco ou seis horas, não sei bem, chegámos ao aeroporto militar de Las Palmas [, nas Canárias,], disseram-nos. Que quem quisesse podia sair para descontrair. Saí e estava cheio de fome, não nos tinham dado nada para comer, nem as "queridas" rações de combate. Vi vários militares e olhei para uma porta que me pareceu a entrada de um bar. Fui até lá e entrei.

Olharam para mim, mas ninguém pareceu espantado, já deviam estar habituados a estas visitas. Pedi uma cerveja e uma sandes. Devorei-as, era a fome. No fim fiquei atrapalhado porque vi que não tinha dinheiro. Nem escudos, nem pesos, muito menos pesetas. Baixei a cabeça e fui-me afastando do balcão até à porta. Ninguém olhou para mim, pareceram-me distraídos. Zarpei para o dakota e estiquei-me na minha maca. Passados tempos o avião arrancou até Lisboa. Ainda agora não sei se fui eu que fui esperto ou se foram eles que me deixaram ir sem me agarrarem para pagar.

Depois de quatro ou cinco, ou cinco ou seis horas, não sei, chegámos ao Figo Maduro. Estava lá os meus pais e a minha irmã, tinham-lhes dito que eu fora ferido e vinha. Choraram e ficaram contentes por me ver de pé. Foi pouco tempo, porque me meteram numa ambulância para ir para a Estrela, o HMP. (...)


____________

Notas de L.G.:

(**) Vd. postes de: 

29 Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXX: A professora de Samba Culo (A. Marques Lopes) 

(...) "Tenho de partir, de voltar a Portugal. Gostei muito de falar contigo, tinha mesmo necessidade de o fazer, já que, naquele dia em que nos encontrámos pela primeira vez, só eu te disse “firma lá!” e tu não me disseste nada. Percebo que nem me quizesses ouvir... E nunca mais dormi descansado até agora. (...)

"Quero pedir-te uma última coisa, que desculpes aquele meu soldado que tentou violar-te quando estavas agonizante. Conseguiste ver ainda que não o deixei fazer isso. Perdoa-lhe, era bom rapaz, um camponês minhoto que para aqui foi lançado e, sabes, é fácil perder a cabeça numa guerra de inimigos fabricados. Talvez o encontres por aí, o teu camarada Gazela matou-o em Jobel e o corpo dele por cá ficou. Deve andar, como tu, no meio desta floresta do Oio. Fala com ele agora". (...)
7 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II (A. Marques Lopes)

" (...) o que mais me impressionou nesta operação foi o seguinte: Samba Culo tinha uma escola; quando lá chegámos, vi escrito no quadro preto, em perfeito português: "Um vaso de flores". Tinha desenhado, a giz, por baixo, um vaso de flores.

"E o que nunca mais esquecerei na minha vida: quando atacámos a base, uma jovem dos seus 18 anos ficou com a barriga aberta por uma rajada de G3. E mais (coisas terríveis desta guerra!): o Bigodes, o Armindo F. Paulino (que foi, depois, feito 
prisioneiro pelo PAIGC e que acabou por morrer em Conakri), quis saltar para cima dela. Tive que lhe bater. Esta é uma situação que nunca me sai do pensamento... e da minha consciência.

"Tinham muitos livros em português, que era o que estavam a ensinar aos alunos (miúdos ou graúdos?). Trouxemos também (imaginem!) uns paramentos completos de um padre católico! Lembranças que se me pegaram para toda a vida" (...).

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7211: (Ex)citações (103): Quando um homem tem de se conter para não partir a louça... (Manuel Reis)

1. Comentário de Manuel Reis [, foto à esquerda, Guileje, 1973], com data de 30 de Outubro passado, ao poste P7195, do Joaquim Mexia Alves:


Grande Camarigo:

De acordo com o teu texto.  Fez-me recordar a carta que recebi este semana do Exército Português para ir prestar declarações sobre um camarada, que viveu comigo o tempo de guerra em Guileje e Gadamael, e que sofre de STRESS PÓS-TRAUMÁTICO DE GUERRA.

Há feridas que nunca se curam, se arrastam pelo tempo, sem que para tal as entidades responsáveis façam algo para melhorar a situação: olham para o lado e assobiam.

Este amigo desloca-se ao serviço de Psiquiatria no Centro de Saúde anexo ao Hospital Militar, desde 1986, e os serviços continuam a complicar-lhe a vida no que respeita à ajuda que precisa e merece.

Confessou-me que só a compreensão da mulher e da família mais próxima tem impedido um desenlace mais trágico. Há momentos em que a vida, para ele, deixa de fazer sentido.

Já devo ter sido solicitado para este tipo de declarações mais de 30 vezes, mas agora foi grande a surpresa. Desde 1986 não tiveram tempo nem disponibilidade para resolver um problema, de fácil visibilidade, que se apresenta com contornos de um certo dramatismo.

No dia 9 de Novembro lá me apresentarei, no Regimento de Artilharia Anti-Aérea nº1, para tentar ajudar o amigo e camarada Victor Santos. Terei de me conter, para não partir a louça, já que isso mexe com o meu estado de espírito, as minhas feridas estão controladas mas não debeladas. Como diz o Mexia Alves, a cauterização por vezes é lenta e difícil.

Nestes processos é fundamental a ajuda familiar, mas os convívios e as trocas de ideias sobre experiências vividas em guerra, com os nossos amigos e camaradas, constituem um óptimo complemento no acalmar das dores.

Um abraço amigo.

Manuel Reis
____________

Nota de L.G.:

Último poste desta série > 24 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7171: (Ex)citações (102): Sensatez e rigor no Nosso Blogue (Manuel Marinho / José Belo)

sábado, 30 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5733: História de vida (26): António Marques, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), um sobrevivente nato (Mário Miguéis / Luís Graça)

1. Comentário, ao poste P5698 (*), com data de 24 do corrente, e da autoria de Mário Miguéis da Silva (**):

Caro Marques,

Acabei de chegar a casa e, como já tem acontecido antes, não quis deitar-me sem ler as últimas do nosso querido blogue. Em boa hora o fiz, porque tive a agradabilíssima surpresa e o enorme prazer de te rever ao fim de 39 anos. É verdade, meu caro, da última vez que te vi, estavas deitado, de barriga para cima, no fundo de uma GMC. (***).

Tinhas chegado a Bambadinca, vindo dos lados dos Nhabijões. Essa tua última imagem que me ficou gravada na retina e na memória era a de uma estátua de cera - tal era a tua palidez -, inerte e gelada, como estátua que era. Como se um artista plástico de vanguarda, num golpe de génio, tivesse rematado aquela obra (para mim) macabra, dois grossos fios de sangue saíam-te dos ouvidos e percorriam-te o pescoço até se esbaterem no pó do camuflado.

Quando te olhei pela última vez, o sangue deixara de correr, ou porque todo o teu sangue tinha solidificadoou porque, simplesmente, já não havia sangue para correr. Para mim, estavas morto e bem morto ou, então, andavas lá perto, muito perto. Seria uma questão de horas, talvez minutos apenas.

E, afinal, e FELIZMENTE!, não te deixaste passar para o outro lado.

Confesso-te que estive convencido de que tinhas "batido as botas" até ao ano passado, altura em que, ao ler neste blogue uma crónica ou coisa do género do Luís Graça (o nosso Henriques, em Bambadinca), pude, para meu espanto, concluir que, embora gravemente ferido, tinhas sobrevivido e continuavas "vivinho da silva", residindo para os lados de Lisboa. Para além de surpreso, fiquei, naturalmente, muito satisfeito, com a tua decisão de te manteres entre nós, embora te tivessem dado uma carga mais que suficiente para te passar para a outra margem.

Vou terminar este meu comentário por onde deveria ter começado, isto é, por dizer-te quem sou, embora isso seja o mesmo que dizer-te nada, na medida em que eu, na altura, em Bambadinca, não passava de um pobre "pira" com um mesito de Guiné. Tratavam-me por "Silva", esse meu apelido tão raro, era, como tu, furriel miliciano, pertencia ao Serviço de Informações e estava a estagiar na sede do BART 2917, onde a tua CCAÇ 12 estava "hospedada".

Um grande abraço,

Mário Migueis

PS - Embora o Luís Graça já tenha oportunamente relatado o episódio das duas minas anti-carro em causa (a foto do burrinho, cujo condutor morreu, foi, inclusivamente, publicada numa das últimas obras do nosso camarada Beja Santos), espero poder, logo que tal se proporcione, aflorar de novo o assunto, até porque, na sequência dos acontecimentos, fui parar aos Nhabijões, onde passei umas mini-férias. De ti, espero que, no mínimo, nos contes tudo o que o soubeste ter-se passado contigo após a tua evacuação para o hospital militar.



Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas >

Três camaradas da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Junho 69/ Março 71)... Da esquerda para a direita, o ex-Fur Mil At Inf Joaquim Fernandes, ex-1º Cabo Aux Enf Fernando Sousa e o ex-Fur Mil At Inf António Marques... O Fernandes e o Marques foram vitimas de explosão de minas A/C, à saída do reordenamento de Nhabijões, a 13 de Janeiro de 1971, com vinte meses de comissão... O Marques, que esteve às portas da morte (se não fora a evacuação Y para o Hospital de Bissau), esteve dois anos em tratamento e reabilitação no Hospital Militar Principal, para onde foi transferido em 12 de Fevereiro de 1971... É um sobrevivente nato! (LG)

Foto: © Luís Graça (2009). Direitos reservados

2. Comentário de L.G.:

Meu caro Miguéis: Não leves a mal, mas o Marques (Fernando Marques, para a família) não se lembra de ti… Aliás, não se lembra de nada... O que não admira, dadas as circunstâncias em que ele se separou de nós, em 13 de Janeiro de 1971… Entre a vida e a morte, seguiu para o HM 241, em Bissau, onde esteve em estado de coma até ao final do mês… Mais exactamente, 17 dias… Estive ontem ao telefone a recapitular, com ele, estas coisas dolorosas. Ele chegou ao hospital politraumatizado, com lesões muito graves, incluindo o fémur partido… Começou a retomar a consciência no final do mês de Janeiro… Por coincidência, quem cuidava dele era um 1º cabo enfermeiro que tinha estado na tropa com o seu (dele, Marques) irmão mais velho. Foi este homem que fez a ponte com a família, que não sabia de nada. E andava naturalmente inquieta. O Marques escrevia praticamente todos os dias à dua namorada, e hoje esposa, Geni. Ela trabalhava num escritório de uma fábrica de cerâmica, existente na época perto do Hospital Egas Moniz. Alarmada com a falta de notícias, removeu montanhas – juntamente com o irmão mais velho do namorado – para saber dele… O Exército era pródigo em palavras: só costumava dar as notícias fatais. E fazia-o de forma lacónica e brutal.

Em, 12 de Fevereiro, o nosso Marques vem num avião da TAP, expressamente acompanhado com um tenente miliciano médico, de que ele infelizmenmte não se lembra o nome. Esta diligência era habitual, quando o doente estava em perigo de vida…

Recorda-se de ter chegado a Lisboa e ter á sua espera a Geni e a família, o irmão mais velho… Depois foi o longo calvário do tratamento e da reabilitação no Hospital Militar da Estrela e do Anexo de Campolide… Só seis meses depois da mina, é que ele tentou levantar-se da cama… A Geni, uma grande mulher, teve um papel excepcional na sua reabilitação. Poucos acreditaram que ele se safava… Resolvido o problema do foro neurológico, era preciso consertar o fémur… A perna esteva para ser amputada… Os pessoal do Hospital Militar fez milagres…

Ainda em 1971 ou princípios de 1972, o Marques casou-se com a Geni, de quem tem dois filhos, um casal, de 34 anos e 26 anos, respectivamente. E já é avô de 4 netos. Creio que foi também nesta altura que ele tirou a carta de condução, fazendo o exame que não chegou a fazer em Bissau (estava marcado para meados de Janeiro de 1971, mas a mina de Nhabijões estragou-lhe os planos …).

Entretanto, o HMP vai continuar a ser a sua casa durante mais um ano. Aqui fez amizade com um conhecidíssimo DFA, o Patuleia, o Fur Mil Patuleia que em Angola fora vítima da explosão de uma mina. Ficou cego. Ficaram amigos para o resto da vida. O Patuleia é natural do Bombarral, meu vizinho, portanto. Encontrei-o muitas vezes na Repartição de Finanças da Reboleira onde trabalhava. Já está hoje reformado. Já o vi em dois ou três convívios nossos (****) . Esteve, nomeadamente no IV Encontro Nacional da nossa Tabanca Grande, em Monte Real, em Junho de 2009.

O nosso António Fernando Rodrigues Marques, depois deste calvário todo, tornou.se empresário. Largiu o seu emprego de escriturário numa obscura secção dos serviços sociais das Forças Armadas. Com o irmão ou irmãos e com a Geni, foi abrindo lojas de pronto a vestir, a última das quais onde vive. O trabalho ajudou-o a superar as sequelas da guerra...

Ficámos, um dia destes, de almoçar juntos, para continuarmos esta conversa... É uma fantástica história de vida, a do Marques (******). Tenho uma grande admiração e carinho por ele. É um sobrevivente nato. De alguma maneira, ainda não ultrapassei, ao fim destes anos todos, o meu estranho sentimento de culpa por ter sido eu a seguir no 'lugar do morto', uma decisão de lotaria), nesse fatídico dia 13 de Janeiro de 1971, e ter sido justamente o Marques a grande vítima da mina A/C...
__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5698: Tabanca Grande (199): António Fernando R. Marques, ex-Fur Mil da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71)

(...) António Fernando Rodrigues Marques, ex-Furriel Miliciano da CCaç 12 (CCAÇ 2590), Contuboel / Bambadinca 1969 / 1971, [vítima de] rebentamento da mina em Nhabijões em 13 de Janeiro de 1971, onde íamos os dois e onde fiquei gravemente ferido e em perigo de vida. (...)

(**) Membro da nossa Tabanca Grande desde Abril de 2009 > Vd. poste de 16 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4194: Tabanca Grande (134): Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf (Guiné 1970/72)

(...) Posto: Furriel Miliciano
Especialidade: Reconhecimento e Informação
Unidade: C.C.S. - Q.G. (Bissau)
Colocação: Com-Chefe / Rep-Info (Amura-Bissau)
Função: Serviço de Informações Militares (SIM)

Unidades em que estive em diligência:
Bart 2917 / Bambadinca (Novembro 70 a Janeiro 71, incl.);
CCaç 2701 e CCaç 3890 / Saltinho (Março 71 a Outubro 72, incl.)

Outros sítios importantes onde, ao longo da comissão, estive amiúde, em curtas estadias de serviço ou, simplesmente, em trânsito para outros pontos do território: Galomaro, Bafatá, Nova Lamego, Xitole, Xime, Mansambo, Aldeia Formosa (...)

(***) Vd. poste de 28 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5717: Blogpoesia (64): À uma e meia da tarde... Em homenagem ao António Marques, que sobreviveu, dois anos depois, à explosão de um vulcão (Luís Graça)

(****) Vd. poste de 2 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4454: Convívios (140): Castro Daire, agora chão de Bambadinca, 1968/71 (3): Gente feliz, com lágrimas...

(*****) 12 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5099: História de vida (16): Patrício Ribeiro, 62 anos, ex-fuzileiro, empresário, apanhado do clima...

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3496: Hospital Militar Principal: Fazendo mini-caixões antes de ser mobilizado (António Santos)


O actual Hospital Militar Principal, à Estrela, em Lisboa, instalado num antigo convento, nasceu de uma vasta rede de hospitais militares portugueses, criada no reinado de D. João IV por ocasião da Restauração, na década de 1640. Sofreu sucessivos aumentos e remodelações. Em 1961, foi criado o Centro Ambulatório de Doentes e Convalescentes, o famigerado Anexo de Campolide, por onde passaram milhares de camarados nossos , feridos graves, evacuados dos três teatros de operações da Guerra do Ultramar. Esse Centro ocupou as antigas instalações do Aquartelamemnto de Campolide, onde até então funcionava o Regimento de Artilharia nº 1.

Vd. Sítio do Hospital Militar Principal > Instituição


1. Mensagem de António Santos (*):

Camaradas e amigos da tabanca grande e pequena.

Saúde para todos.

LG/CV/VB.

O Luís escreveu no poste 3485 (**), passo a citar:

" É estranho que ao fim de 3 anos e meio de blogue ainda não tenhamos aqui o testemunho, na primeira pessoa do singular, de um camarada que tenha passado pela Estrela", fim de citação.

Eu não estou na pele da primeira pessoa do singular, mas já que o Luís puxou pelo assunto, eu vou contar o que se passou comigo, e de certeza com muitos mais camaradas.

Este é um assunto que tenho evitado contar, por motivos óbvios, porque devem compreender quando se escreve no blogue sobre estropiados, nem calculam o que se passa na minha cabeça, as recordações de muitas das situações que vi e vivi no HMP.

Ainda hoje não sei o porquê de, após o terminus da especialidade de TRMS de Infantaria, me terem enviado para o HMP em diligência. Quando lá cheguei, e talvez pela minha profissão de então (Estofador de móveis, portanto trabalhava com madeira), fui mandado para a carpintaria que na época se situava num local chamado a cerca. Era onde estavam algumas oficinas, esse local ficava mesmo por trás da Basílica da Estrela, esta descrição toda para quem não conhece o local mas, pelo menos, já viu a Basílica na TV.

Portanto, cá o rapaz, querendo ou não, tinha que ver o resultado da guerra, nas deambulações diárias pelo hospital, incluindo anexo e urgências. E embora não fosse propriamente um menino que tivesse vivido em redoma de vidro, aquelas imagens chocavam os mais fortes, eles eram de cadeiras de rodas, de canadianas, (agora), na altura eram muletas, cabeças rapadas cheias de cicatrizes, só entrava nas enfermarias quando tinha que ser, uma vez mandaram que fosse à morgue mudar uma fechadura, etc.

Como se não chegasse para pôr o bom do militar a bater mal, o meu trabalho principal na carpintaria era fazer caixas, caixões em miniatura para as pernas que os cirurgiões iam cortando. Quando tocava o telefone com origem na medicina, era certo, só havia 2 perguntas, 90 ou 1.20, isto em centímetros, e dependia por onde o cirurgião cortava.

Passados que foram 2 meses e meio de HMP, fui mobilizado para a Guiné. Não foi, não é fácil recordar situações destas.

Um alfa bravo, para todos.

AS
SPM 2558
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. os postes do nosso amigo e camarada António Santos (Recorde-se que ele foi, na outra incarnação, Sold Trms, Pel Mort 4574/72, Nova Lamego, 1972/74, é membro da nossa Tabanca Grande desde 15 de Maio de 2006; mora em Caneças, mas é (ou era...) um puto reguila, alfacinha):

11 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3439: Falando sobre o seu amigo Gregório (António Santos)

23 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3089: Antropologia (7): As tabuinhas das escolas corânicas: tradutor de árabe, precisa-se (A. Santos / Luís Graça)

31 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2393: Álbum das Glórias (36): O meu Racal TR 28-B2 (António Santos, Pel Mort 4574, Nova Lamego, 1972/74)

7 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1821: Armamento do PAIGG (2): Mísseis terra-terra Katyusha ou foguetões 122 mm (A. Santos)

23 de Maio de 2007> Guiné 63/74 - P1781: Ambulância do PAIGC, de fabrico soviético, capturada pelo Marcelino da Mata, em Copá (A. Santos)

20 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1448: Os quatro comandantes da CCAÇ 2586 (A. Santos)

12 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1422: A derrocada do Leste e a mina que desgraçou o meu amigo de infância André, da CCAV 3864 (A. Santos)

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)

22 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1103: Breve historial do BCAÇ 1911 e do BCAÇ 1912 (A. Santos)

21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1097: Imagens chocantes do cemitério de Bambadinca (A. Santos)

4 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P934: Da Casa da Mariquinhas do Gabu à Senhora Malária que me atacou seis vezes (A. Santos, Pel Mort 4574)

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P900: O 25 de Abril em Nova Lamego (A. Santos, Pel Mort 4574/72)

21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P892: Memórias de Nova Lamego com o Pel Mort 4574/72 (A. Santos)

29 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXI: Os cagaços de um periquito a caminho do Gabu (A. Santos, Pel Mort 4574/72)

8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXIV: Nunca digas jamais (António Santos, Pel Mort 4574/72, Nova Lamego)

(**) Vd. poste de 20 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3485: Gloriosos malucos das máquinas voadoras (13): Os MAN - Mecânicos de Material Aéreo e o outro lado da guerra (João Coelho)

(...) "O João Coelho, que é um leitor atento e apaixonado do nosso blogue, e membro da nossa Tabanca Grande, é daqueles camaradas das Força Aérea que, nunca tendo estando em serviço na BA 12, Bissalanca, Guiné, esteve perto de nós, dos nossos feridos graves, recambiados para Lisboa, para esse outro inferno que era (imagino!) o Hospital Militar Principal, à Estrela, mais os seus anexos...

"É estranho que ao fim de 3 anos e meio de blogue ainda não tenhamos aqui o testemunho, na primeira pessoa do singular, de um camarada que tenha passado pela Estrela" (...)

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3485: Gloriosos malucos das máquinas voadoras (13): Os MAN - Mecânicos de Material Aéreo e o outro lado da guerra (João Coelho)

Foto do João Coelho (ou Manuel João Coelho), membro da nossa Tabanca Grande, Especialista MMA, 3ª/63, AB1, Terceira - Açores:

Fonte: Blogue dos Especialistas da BA12, Guiné 1965/74 (Com a devida vénia ...)

1. Mensagem, com data de 7 de Janeiro de 2008 (*):

Felicitações pelo excelente blogue!

Voluntário na Força Aérea, de 1963 a 1966, fui colocado no então AB 1- Aeródromo Base n.º 1 no Aeroporto da Portela, em Lisboa, de 1964 até final do tempo de tropa.

Escapei à mobilização para África, mas tornei-me, com outros camaradas, testemunha de episódios que poucos conheceram. Refiro-me à chegada dos aviões de evacuação, DC-4, Skymaster e DC-6, dos Transportes Aéreos Militares, que traziam para Lisboa, os feridos e acidentados da guerra.

Os vôos normais desembarcavam os passageiros a par dos aviões civis, no estacionamento frente ao Terminal... os de evacuação chegavam à noite, por vezes de madrugada, e eram deslocados para a placa no interior do AB1, longe dos olhos da população.

Como Cabo Especialista MMA (Mecânico de Material Aéreo) fazia parte da equipa que recebia o avião: reboque com tractor, ajuda na abertura da porta e colocação da escada de saída, para além de outras tarefas.

Este momento de abertura era sempre de tensão, a porta abria-se e saía um bafo terrível, mistura de suor, éter, sangue, restos de comida, as macas sobrepostas, os feridos de todos os tipos... rebentamento de minas, amputados, cegos, queimados, cacimbados, feridos à bala, com estilhaços.

E depois a confusão da saída das macas, levanta à frente, baixa, baixa atrás, aguenta, segura!...o despacho e presteza das enfermeiras-páras que, por vezes, acompanhavam o pessoal, o ar pálido/horrorizado das madames da Cruz Vermelha, com as suas capas cinzentas, e que com os seus belos penteados eram um anacronismo ali, pese a sua boa vontade.

Nestes vôos eram particularmente difíceis os que vinham da Guiné. A viagem era mais curta, tínhamos a sensação de que alguns daqueles desgraçados tinham ferimentos ainda frescos: camuflados rasgados, ligaduras empapadas em sangue, um ar esgazeado mostrando a surpresa, a incredulidade face ao sucedido.

Recordo-me, como se hoje fora, de uma noite em que chegaram dois aviões quase em simultâneo. Não havia capacidade de transporte para o Hospital da Estrela e anexos, de tanta gente, as ambulâncias não chegavam e lá vieram os autocarros da Academia Militar para transportar os feridos que pudessem viajar sentados.

Tenho dois amigos, açorianos como eu - Ponta Delgada, S. Miguel - ambos furriéis milicianos, que estiveram na Guiné, julgo que a partirde 66 até 68 ou 69. Um, o Tibério Branco, andou por Catió e Buba, tanto quanto recordo, o outro, Álvaro Lemos, em Aldeia Formosa.

Os dois contavam, no regresso, como tinha sido a vida deles naquele território e, anos depois, já com o país independente, visitei a Guiné: Bissau, Nhacra, Bafatá, Cacheu e, na carrinha que percorria a estrada, olhando em redor, para aquela vegetação, as bolanhas, os rios e as jangadas, as tabancas - numa delas a inscrição numa parede "Viva o Benfica" - pensei neles, nos meus amigos de adolescência, no seu sacrifício. E nalguns colegas que morreram na guerra em África: o Martins, o Norberto, o Amaral, o João Manuel Cordeiro e outros cujo nome esqueci.

Ao mesmo tempo interrogava-me: se eu tivesse vindo aqui parar, teria conseguido, será que aguentava isto?

Um abraço e continuação do bom trabalho

Manuel João B. Ferreira Coelho

2. Comentário de L.G.:

Fiz questão de voltar a publicar esta mensagem do nosso amigo e camarada João Coelho que foi poupado à guerra do Utramar mas não aos seus horrores, ao espectáculo deprimente dos feridos graves que chegavam, nos aviões dos TAM, quase às escondidas, a caminho do Hospital Militar Principal, na Estrela.

Decidi, por outro lado, recuperar essa mensagem, inserindo-a nesta série Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras. Pilotos, Especialistas Melec, Especialistas MMA e e tantas outras categorias de especialistas da Força Aérea que eu nem sei descodificar (Marme, Opc, etc.), todos eles cabem nesta expressão, que eu quero que seja bem-hmorada mas também solidária, honrosa e generosa, de Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras...

Não faço distinção entre camaradas do ar, terra e mar... Estive fisica e emocionalmente mais próximo de uns do que de outros, mas também usei a LDG e também agradeci aos deuses o bendito heli que veio, várias vezes, com as enfermeiras pára-quedistas, fazer evacuações Ypsilon, nas matas do Xime ou do Corubal, em operações em que participei...

O saudoso capitão Zé Neto, o nosso primeiro bloguista ou tertuliano a deixar-nos, por traição do seu coração que deixou de bater, costumava contar-me com graça, que havia, na Guiné, três ramos das Forças Armadas (**), começados por Ch: (i) a tropa de choque (o Exército); (ii) a tropa de chique (a Marinha); (iii) e a tropa de cheque (a Força Aérea)... São/eram velhos estereótipos que hoje apenas nos fazem sorrir, e que não retiram nada à nobre condição dos homens (e de algumas mulheres) que fizeram a guerra da Guiné, nos rios e braços de mar, no ar e na terra, com a G-3, com a caneta, com a pica, com o estojo de primeiros-socorros, com o heli, com a LDG...

O João Coelho, que é um leitor atento e apaixonado do nosso blogue, e membro da nossa Tabanca Grande, é daqueles camaradas das Força Aérea que, nunca tendo estando em serviço na BA 12, Bissalanca, Guiné, esteve perto de nós, dos nossos feridos graves, recambiados para Lisboa, para esse outro inferno que era (imagino!) o Hospital Militar Principal, à Estrela, mais os seus anexos...

É estranho que ao fim de 3 anos e meio de blogue ainda não tenhamos aqui o testemunho, na primeira pessoa do singular, de um camarada que tenha passado pela Estrela...

Onde estás, camarada Marques, grande herói, que foste projectado comigo por uma brutal mina anticarro, na nossa velhinha GMC, em Nahbijões, em 13 de Janeiro de 1971, e que depois conheceste o pesadelo dos hospitais militares, o de Bissau e o de Lisboa, e onde também fizeste amizade com o meu amigo Patuleia e teu vizinho de cama, futuro dirigente da ADFA, e que continua a ser hoje, para mim, um dos exemplos mais tenazes e surpreendentes da capacidade humana de lutar contra o infortúnio e contra as marcas horrorosas da guerra...

_______

Notas de L.G.:

(*) Originalmente publicado em 10 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2425: O Nosso Livro de Visitas (1): Manuel João Coelho, Cabo Especialista da FAP (Aeroporto da Portela)

(**) Vd. poste de 4 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P933: Pensamento do dia (2): as três tropas (Zé Neto)

(...) O Zé Neto escreveu-me há dias a protestar, e com razão, por lhe mandar a correspondência para o SPM errado... Aproveitou para se queixar das mazelas do corpo e da alma. Ele tem sido um herói, resistindo estoicamnente à tentação do cigarro... Mas agora vem a factura: o organismo a libertar-se da nicotina, os sintomas da síndroma da abstinência, etc.

(...) "Continuas a usar o meu endereço inicial da Clix, o tal dos poucos megas, embora em tempo oportuno eu te tivesse pedido para mudar para este, ou seja, para js.neto@clix.pt".

Mas o bom humor vem felizmente ao de cima neste homem - o nosso veterano - com quem tive o privilégio, há dias, de falar, pelo telefone, permitindo-me conhecê-lo um pouco melhor.

Diz o Zé:

"Agora que a poeira já assentou quero apenas dizer-te que fiz três comissões em África e sempre convivi com a dura realidade das três tropas, a saber: Tropa de Cheque (a FA e seus subsídios), Tropa de Chique (a Marinha e as suas vaidades) e a Tropa de Choque (os Zés da macaca). Tenho, nas minhas memórias, passagens de rir e chorar que vivi com essa gente. Pela minha parte não valem as cinco ou seis batidas no teclado que estou a gastar com eles.

"Já vai longa a birra.

"Um abração do
Zé Neto"

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3380: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (10): Quanda a guerra era com os copos... ou o elogio do Tosco, em Lisboa (Jorge Félix)

Jorge Félix
Ex-Alf Pilav Helis,
BA 12, Bissalanca,
1968/70,
hoje residente em Vila Nova de Gaia



1. Mensagem do Jorge Félix, com data de 27 de Outubro corrente:

Caro Carlos:

Se achares que o texto que segue pode ser postado ficarei satisfeito. Parece que ainda ninguém falou nesta vertente da Guerra.


2. Aquelas noitadas...

por Jorge Félix

Em 1969 a noite de Lisboa, tinha que ser à noite, escondia uma guerra que vou tentar recordar. Destaco três nomes: O Comodoro, o Café Gelo e o Tosco.

O Comodoro tinha a particularidade de receber o que de melhor tinha a Política de então. Da parte da tarde recebia os Velhos e de noite recebia a malta mais nova. (ponto final). Nos meus 20 anos aprendi muito no ninho dos Ballets Rose.

O Gelo vendia whisky a cinco escudos. Frequentado por Colonialistas, era o local onde se emborcava até mais não, mas onde se tinha que ter muito cuidado com o que saía da boca. Encerrava muito cedo.

O Tosco, meus amigos, o Tosco... era o local que mais fazia lembrar a ZOPS [zonas operacionais] de qualquer colónia em guerra.

Não eram pedidas evacuações pois já tinham sido evacuados. Só não havia tiroteio porque todos já eram vítimas. Ali só se matavam as mágoas, os desgostos, as vergonhas, as incapacidades...

No Tosco ninguém era bonito, todos se sentiam desfigurados.O Tosco era uma casa com gajas, pretas, mulatas e brancas (haviam brancas ?), que faziam de conta que percebiam de emboscadas e quadrícula, para na primeira volta da picada cravarem uma Taça.

No Tosco, apesar das meninas, o ambiente era de guerra. Era a Guiné , era Angola, era Moçambique, num tosco local, reunidos num só , a mostrarem as suas entranhas. Estranho, era palavra que não existia no Tosco. Tudo era possível, até falar de Deus...

No Tosco, ria-se muito, às vezes chorava-se. Havia muito barulho, havia música, havia como que por artes mágicas, silêncios sepulcrais. Até parece que alguns, sem o admitirem, nestas alturas sentiam medo.

No Tosco, apareceram os primeiros apanhados pelo clima.

O Tosco era muito pequeno e recebia gente muito grande. Do Exército, da Marinha e da Força Aérea, mas ninguém reparava. Ninguém reparava que todos eram deficientes. O choque pós-traumático ainda não tinha sido inventado.

No Tosco não havia lugar para certos gajos que nos ficavam a espreitar à saída.

O Tosco ficava na rua Conde Redondo, a meio da subida, onde o eléctrico proveniente da Estrela descarregava a lotação esgotada de deficientes das FA. Uns em cadeiras de rodas, outros de canadianas, outros às cavalitas, outros ...

Aqueles que alguma vez assistiram a este desembarque nunca o poderão esquecer. Mas se a chegada ao Tosco era dantesca, imaginem como era a partida.

Vou ficar à espera de alguém que queira acrescentar algo que me tenha escapado. Testemunha viva é um dos Conchas, músico que na altura era o proprietário e contratava as piquenas que nos iam aturando.

O Tosco recebia todos os dias umas dezenas de estropiados que faziam tratamento no Hospital da Estrela e tinham um mínimo de mobilidade.

Assisti a estes encontros no mês de Julho de 1969, altura em que também estive a ser observado pela medicina aeronáutica em Lisboa.

Parecido com o Tosco não havia mais nada.

Na Avenida da Liberdade, ali a 400 metros, ninguém sabia que existiam estes antros.

Felizmente que já não há razão para manter o Tosco activo.

Jorge Félix

3. Comentário de L.G.:

Obrigado, Jorge, pelo teu texto que é simplesmente antológico. Quando o último dos bloguistas postar o último poste, e nós decidirmos (ou alguém por nós decidir...) fechar o blogue, eu guardarei religiosamente o teu escrito. Por que ele é um verdeiro hino, de glória, de ternura e de humanidade, à noite lisboeta dos anos 60 onde, apesar de tudo, havia pequenos e inusitados espaços de liberdade, de afecto, de camaradagem. Não conheci o Tosco. Fico, depois de te ler, com uma intolerável, insuportável pena de nunca ter entrado no Tosco, de nem sequer ter ouvido falar do Tosco. Voyeurismo de sociólogo...

Infelizmente, também não encontrei nenhuma referência ao Tosco no Dicionário da História de Lisboa ou no Dicionário de História de Portugal (vd. as entradas Cafés, Prostituição, Tabernas, Tertúlias..). Objectos menores de temas menores para historiadores e sociólogos...

Do Café Gelo, e das suas tertúlias, sabe-se alguma coisa, por que era frequentado por literatos e artistas ligados ao surrealismo, por exemplo, gentes de outras guerras que não eram as nossas. Acabou ingloriamente, como muitos outros cafés, tabernas, bares e outros espaços públicos de Lisboa, catedrais do convívio, do lazer e da boémia, engolidos pela gula dos especuladores imobiliários, pela voracidade da banca, pelo desamor dos autarcas, ou muito simplesmente pela modernização que impôs a segregação sócio-espacial. Fomos expulsos do centro para a tristes periferias, as Porcalhotas, os Barreiros, os Montes Abraão...

Do Comodoro, também tenho uma vaga lembrança. Dos bares e cabarés da Praça da Alegria, ainda conheci um poucochinho. Mas do Tosco, meu Deus, ali no Conde Redondo... não, nunca ouvira falar! Imperdoável, Jorge!!!

Talvez o outro Jorge, o Cabral (o único, o autêntico, o verdadeiro, o nacional,o nosso..., que era um alfacinha de gema e um noctívago inveterado depois do seu regresso a penates, em 1971), te possa dizer algo mais sobre a geografia, a sociologia, a anatomia e a fisiologia da vida nocturna de Lisboa, ou mais especificamente sobre portos de abrigo como o Tosco (*), ali no Conde Redondo.

A verdade é que a guerra produziu uma desvairada fauna humana. Lisboa, capital do império, era então a grande cidade do export-import: exportava, para África, carne para canhão, e acolhia depois gente sofrida, ferida no corpo e na alma, estropiada, cacimbada, apanhada do clima, doente, revoltada, inadaptada, abandonada... Antros como o Tosco (como tu o qualificas) tiveram o seu papel, a sua função, o seu lugar: tinha que haver um lugar qualquer na cidade para os perdidos & achados da noite...

Isto não é dito por um qualquer de nós, bloguistas: é dito por um dos nossos glorios malucos das máquinas voadoras, o nosso Alf Mil Pilav Jorge Félix, que pilotava helis Allouette III, e que um belo mês do ano de 1969 estava em Lisboa, no 'estaleiro', a fazer exames de medicina aeronáutica (um luxo que não era, como o nome indica, para todos).

Concordo, entretanto, com o teu veredicto. Se a guerra acabou (e acabou mesmo, Jorge ?), já não há razões válidas para manter o Tosco activo. Acabou a guerra. Morreu o Tosco. Viva, apesar de tudo, a memória do Tosco e dos camaradas por lá passaram! (Sem esquecer as piquenas que nos aturavam e cuja função era despejar, nas nossas e delas taças e copos, as garrafas de champagne do Poço do Bispo e de uísque de Sacavém).

PS - Não é verdade, Jorge, que a gente não tenha já feito (ou tentado fazer) incursões por estes lados mais ínvios, mais intimistas, mais delicados, da guerra: os copos, o sexo, as tainadas, as loucuras, a solidão, o vazio das férias, a inadaptação do regresso... A nossa história também está por aí espalhada (e espelhada) na noite, nos copos de uísque marado e nas noites de amor barato, a começar por Bissau (**).

____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

7 de Julho de 2008 >Guiné 63/74 - P3028: Eu, o Jorge Cabral, o António Graça de Abreu e... o Levezinho, no velho/novo Maxime, com os Melech Mechaya (Luís Graça)

5 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3025: Os nossos regressos (7): Perdido, com um sentimento de orfandade, pelos Ritz Club, Fontória, Maxime, Nina... (Jorge Cabral)

13 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCC: Estórias cabralianas (8): Fá Mandinga no Conde Redondo ou o meu Amigo Travesti

(...) Na década de 80, dava aulas nocturnas numa Escola na Duque de Loulé e costumava descer a Avenida para tomar o Metro. Eis que uma noite, me vejo perseguido por um Travesti que me grita:- Meu Alferes! Meu Alferes! Alferes Cabral!... Tomado de terror homofóbico parei, negando conhecer a criatura, de longas pernas e fartíssimos seios. (...)

(**) Vd. alguns dos postes desta série, Estórias de Bissau:

(11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

19 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2290: Estórias de Bissau (14) : O Pilão, a menina, o Jesus e os pesos que tinha esquecido (Virgínio Briote)

6 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

19 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2556: Estórias de Bissau (16) : O Furriel Pechincha: apanhado ma non troppo (Hélder Sousa)

Vd. ainda:

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação (Vitor Junqueira)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)