Mostrar mensagens com a etiqueta João Tunes. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta João Tunes. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 19 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P971: Amílcar Cabral e a Cuba de Fidel Castro ou os mortos também se instrumentalizam (João Tunes)

Guiné > Anos 60 > Uma das mais emblemáticas fotos de Amílcar Cabral (1924-1973), fundador e dirigente do PAIGC. Foto: Fonte desconhecida


Texto do nosso camarada João Tunes, de quem a nossa tertúlia já tinha saudades... Eu, pelo menos, já tinha saudades da sua escrita vigorosa, da frontalidade das suas posições, da sua paixão pela discussão de ideias...

João: Boa continuação de férias, em Cabo Verde, camarada! Ou bom regresso a casa, se for caso disso... Como vês, mal ainda abrimos o dossiê cubano e tu já começas a deitar fogo à savana!... Bom, depois de vários textos, da mesma fonte, sobre o papel dos cubanos - foi há 40 anos que chegaram seceretamente à Guiné os primeiros médicos e instrutores cubanos, que vieram dar apoio à guerrilha do PAIGC - , era já chegada a altura de termos também, no nosso pluralíssimo blogue, um ponto de vista crítico sobre o(s) discurso(s) de propaganda dos seus autores: mas essa função de vigilância crítica compete menos ao sobrecarregado editor do blogue do que aos folgados e fogosos camaradas que estão de serviço ao pelotão de piquete.

João: Tu não precisas, naturalmente, de invocar o direito de réplica (pública): está a utilizar, e muito bem, o teu direito de pensar pela tua cabeça e de exprimir, de imediato, os teus sentimentos de indignação contra a tentativa de reles instrumentalização e apropriação (sempre abusiva) de uma figura que a história agigantou e que tu e eu e outros de nós, nesta tertúlia, ainda admiramos e respeitamos, desde a nossa juventude... Falo do Amílcar Cabral, que sempre soube distinguir o povo português e o regime colonialista que ele combateu, de armas na mão... Infelizmente, guineenses, caboverdianos e portugueses ainda o conhecem mal, a ele, ao seu pensamento e à sua acção... Obrigado pelo teu contributo. LG


OS MORTOS TAMBÉM SE INSTRUMENTALIZAM

Caro Luís,

Uma nova dívida, a juntar a tantas acumuladas e por pagar, fica registada para com o teu ciberlabor - dares a conhecer o despacho da Lusa sobre o fantástico discurso de uma celebridade inspirada, Pedro Donia, embaixador de Cuba na Guiné Bissau. Estando então de férias em Cabo Verde, não conhecia a notícia e, sem o blogue, ficaria a leste de tão inspirada e espantosa sacanice política.

A um morto, ilustre ou não ilustre, nem tudo se deve fazer. Direi mesmo que um morto, qualquer morto, exige sempre respeito. Dar pontapés num morto ou fingir endireitá-lo para que funcione como boneco de eco ventríloco de uma qualquer cartilha política, são das piores canalhices entre as que conheço na face negra do comportamento humano, política e intelectualmente falando. E se instrumentalizar a memória de um morto, projectando-lhe comportamentos fora do contexto em que viveu, não é o cú da propaganda, então é aceitar que a política e a diplomacia, segundo certos propagandistas safados, comem mas não defecam.

Amílcar Cabral, assassinado em 1973, hoje, só tem contas a ajustar com a história pelo que fez em vida e por aquilo que lutou na forma como lutou. Especialmente perante a memória dos povos da Guiné e de Cabo Verde cujos destinos invocou como causa da sua vida e marcou indelevelmente. Pela sua inegável envergadura, mais a força do impacto do seu martírio, a figura de Amílcar ainda sofre do efeito da névoa do mito. Um mito construído, a meias, entre os que o diabolizam e o santificam. E um mito é sempre uma redução.

Pela parte que me toca, até porque marcou alguns dos meus anos de juventude como meu camarada de ideais e simultaneamente meu inimigo na guerra, há muito ainda a descobrir nele, a aclarar, a projectar no seu tempo histórico, respeitado o contexto da época em que viveu e lutou. E há, à volta da figura de Amílcar, mistérios, luzes e sombras. Que só o tempo, na sua distância, mais o acesso a fontes documentais podem permitir aos historiadores a missão ciclópica de nos permitirem conhecer melhor Amílcar.

Neste aspecto, muito tenho aprendido com o nosso amigo Leopoldo Amado, cujos talentos de historiador contribuíram para que, cada vez mais, aumente a minha curiosidade em saber de Amílcar o máximo da substância além do mito. Esse mito desesperante que envolve, inevitavelmente, toda a figura de líder que, no caso - tragicamente, não lhe foi permitido fazer a prova suprema do exercício do poder em vitória total, confirmando-se, desmentindo-se ou negando-se (e como a história é fértil em qualquer destas modalidades!). Está para conhecer, em toda a dimensão, os variados talentos de Cabral na sua panóplia de intervenções - como chefe militar, como político, como diplomata, como pensador político e ideológico, como intelectual sofisticado, como planificador, como homem de Estado antes de ter um Estado mas projectando-o como herança política.

Também desconhecidos são os seus inevitáveis pontos negros no exercício do poder guerrilheiro nas condições em que travou a guerra (e, decerto, os terá). Para dissecar está igualmente a génese da utopia de Cabral na unidade Guiné-Cabo Verde, a qual, vista à distância, tende a surpreender pelo seu aparente absurdo como a praxis depois demonstrou.

Particularmente, um dos pontos mais misteriosos e fascinantes na figura de Cabral, tem a ver com a forma real como ele desenhou a sua luta no quadro geoestratégico e se movimentou no xadrez de apoios e alianças numa época da guerra fria mais quente. E - mera suposição minha - desconfio que, neste domínio, muitas surpresas estão reservadas aos historiadores face a alguns clichés adquiridos, nomeadamente o de que foi um peão dos soviéticos ou dos cubanos. E quando os arquivos soviéticos e cubanos forem abertos aos historiadores, quiçá apareçam surpresas sobre a forma, e as variações no tempo, como soviéticos e cubanos apoiaram Amílcar e o PAIGC e se esse apoio foi sempre leal, incondicional e desinteressado. Ou se, pelo contrário, houve dedos de aliados enfiados, objectiva ou subjectivamente, nos gatilhos das armas que o abateram.

O discurso do embaixador Pedro Donia, instrumentalizando a memória de Amílcar ao garantir que, se vivo, estaria hoje ao lado do ditador Fidel Castro (1), o homem que transformou Cuba numa Ilha-Prisão, é uma peça rasca e indigna de propaganda. E por ter a cumplicidade interessada de Carlos Gomes Júnior, mais os projectos comuns guineenses-cubanos, não aquece nem arrefece, porque de perfídia não passa. Muito menos a memória respeitável dos combatentes cubanos que caíram no combate pelo PAIGC, altera um pau de fósforo na questão.

Não conheço qualquer prova que garanta que Amílcar seria inevitavelmente um ditador e amigo e aliado de ditadores e de ditaduras. Pedro Donia não as apresentou, diminuindo Cabral por via da instrumentalização política, fazendo silogismos de pacotilha. Da mesma forma, no meu caso, não tenho garantias de que Cabral, se vivo, estaria hoje a insurgir-se contra a resistência à democracia cubana, contra as prisões arbitrárias em Cuba, nomeadamente das dezenas de jornalistas condenados a mais de vinte anos de prisão política por teimarem em escrever diferente das versões e dos delírios paranóicos de Fidel Castro. Uma ou outra projecção são delírios, tanto mais se tivermos em conta como o mundo mudou desde 1973 até aos nossos dias.

Mas como Pedro Donia existe, Carlos Gomes Júnior também, é bom que saibamos das suas músicas. Razão principal do meu sincero agradecimento por nos teres dado a conhecer esta peça. Usando, se o permitires, o direito a pública réplica.

Abraços para ti e restantes tertulianos.

João Tunes

_________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P956: Antologia (48): Félix Laporta, o primeiro cubano a morrer, num ataque a Beli, em Julho de 1967

(...)

Se Cabral fosse vivo estaria ao lado de Fidel, diz embaixador de Cuba em Bissau
RTP -Informação

O embaixador de Cuba em Bissau afirmou que, se o fundador das nacionalidades cabo-verdiana e guineense, Amílcar Cabral, fosse vivo, estaria "com toda a certeza, a lutar contra o imperialismo" ao lado do presidente cubano, Fidel Castro.Pedro Donia discursava numa cerimónia organizada pelo Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) destinada a celebrar o 40º aniversário da chegada à então província portuguesa da Guiné dos primeiros seis "internacionalistas" de Cuba, que ajudaram o "movimento libertador" na luta pela independência nacional (1963/74)."Os ideais de independência e autodeterminação e de luta contra o imperialismo de Amílcar Cabral, tal como se apresentou perante Fidel Castro em meados dos anos 60, manter-se-iam hoje bem vivos se fosse vivo. E, se fosse vivo, estaria, com toda a certeza, ao lado do líder cubano", afirmou o diplomata (...)

sexta-feira, 7 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P943: Lápide do BCAÇ 2884, o batalhão do João Tunes no Pelundo (A. Marques Lopes)



Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Pelundo > Abril de 2006 > Obelisco mandado erigir pelo BCAÇ 2884 cuja CCS esteve no Pelundo (1969/70). Ao lado, o jipe do Xico Allen. Foto acima: lápide com os seguintes dizeres "BCAÇ 2884 à Pop Pelundo. Dez. 70".

Fotos: © A. Marques Lopes (2006)

As duas fotos foram-nos enviadas, em 29 de Maio último, pelo A. Marques Lopes, juntamente com fotos de Có ou do que resta de Có (1), e a seguinte legenda: "Para lembrar... Eu e o Allen passámos por aqui, a caminho de Canchungo [Teixeira Pinto]. Para quem lá esteve se lembrar daquilo... como está"...

Ora quem esteve no Pelundo, nesta unidade, foi o nosso camarada João Tunes, como alferes miliciano de transmissões. Ele já aqui nos falou da porrada que apanhou do comandante, porrada essa de que se orgulha, já que ela veio na sequência da desobediência a uma ordem absurda, arbitrária, exorbitante, numa típica situação de uso e abuso de poder... O resto da história é já conhecida: por se recusar a dar um estalo num cabo de transmissões, desobedecendo à ordem do tenente coronel, o João Tunes acabou por ir parar ao sul, a Catió, sendo colocado noutra CCS, noutro Batalhão... Sabemos quem, no final, saiu pela porta grande, com louvor com distinção...

Compreensivelmente, o João sempre fez questão ignorar, olimpicamente, o número do seu Batalhão (2), tanto o primeiro como o segundo.

Guiné > Região do Cacheu > Pelundo > Dezembro de 1969 > O Alf Mil Tunes ao volante do jipe MG-70-86. A seu lado, creio que era o capelão da CCS do BCAÇ 2884...

Foto: © João Tunes (2005).
_________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXV: Do Porto a Bissau (22): As ruínas de Có (A. Marques Lopes)

(2) Vd. post de 25 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXI: Pelundo: Nº do batalhão ? Não sei, não me lembro (João Tunes)

(...) Já tenho pensado (pouco...) nesta coisa de não me lembrar no nº do meu Batalhão do Pelundo e nem sequer do outro, o de Catió. Acho que foi um filtro qualquer de rejeição que se me meteu na memória depois de lá voltar. Prefiro que assim seja, que esquecer-me dos gajos porreiros com que me cruzei naquela guerra de merda, obrigando-nos a sermos camaradas mais que irmãos (...)
Logo a seguir, avivámos-lhe a memória e ele até nos ficou grato por se ter safo dessa maldita amnésia: vd. post de 27 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXVI: BCAÇ 2884 (Pelundo, 1969/71), o primeiro batalhão do João Tunes

(...) Obrigado por finalmente teres avivado a minha memória, lembrando-me o número do meu Batalhão do Pelundo. É isso, BCAÇ 2884, sob comando desse Tenente-Coronel de pacotilha Romão Loureiro (antes da Guiné, o tipo havia feito a maior parte da sua carreira "militar" na União Nacional, tendo chegado a Presidente da Câmara de Viseu... e foi fazer aquela comissão para poder ascender a Coronel, mas [...] sabia tanto de guerra como eu sei da cultura de alcagoitas) (...)
No chão manjaco o nosso camarada apeendeu a apreciar a superioridade da sociedade e da cultura dos manjacos: vd. post de 7 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLIII: Respeito pelos manjacos, se faz favor! (João Tunes)

(...) Muito do que aprendi com o major Pereira da Silva sobre os manjacos foi-se nas brumas da memória (não tomava apontamentos, só me restavam os olhos e os ouvidos que as garrafas entornadas da 'chicória americana com álcool' iam deixando em lucidez entaramelada). Mas aquele homem, lembro-me dos seus bigodes de sábio e a sua bóina mal metida no seu cocuruto de oficial intelectual, era não só um poço de cultura como um óasis de saber, aprender e ensinar naquela guerra de merda (...).

domingo, 18 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P880: Os nossos (des)encontros do 10 de Junho (João Tunes)

Mensagem do João Tunes, com data de 14 de Junho de 2006:

Caros amigos e camaradas tertulianos,

Um enorme peso na consciência que não consijo alijar, nem com juros de remorso, obriga-me a, também por dever de lealdade, partilhar convosco o meu penitente mea culpa. Aqui vai: Faltou-me coragem guerreira suficiente (ou seja, fui-me abaixo das canetas, eufemismo para designar um vaipe de cobardia) para partilhar a vossa estimada companhia na efeméride gloriosa do 10 de Junho lá na nossa Praça do Império.

Mas, embora esfarrapadas, não deixo de invocar dois arremedos de desculpas:

1ª) Já não sei onde me para o raio da boina. Quiçá, foram ratos turras que a roeram. Garantido é que não lhe sei do paradeiro. Às tantas, o mais certo, é nem sequer a ter guardado. Ou talvez ela se tenha ido na bruma do tempo por míngua de naftalina de saudade.

2ª) Temi ir e entusiasmar-me e, dando-mo no gosto, desatar a desfilar Avenida da Liberdade abaixo no próximo 1º de Dezembro em honra saudosa dos desfiles restauracionistas do tempo da Dona Vera Lagoa. Que alívio...!!!

Contando com a vossa compreensão, abraços para todos os estimados terulianos.

João Tunes

terça-feira, 6 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P852: Guileje: um homem cercado de arame farpado (João Tunes)

Texto e foto: © João Tunes (2006)

Caríssimos,

Junto foto do meu arquivo referente a uma das alturas em que estive em Guileje, datada de Maio de 1970 (1). Em primeiro plano, a rede de protecção em arame farpado. Atrás, abrigos e porta de armas. Vêm-se ainda os telhados, da esquerda para a direita, da caserna, do refeitório e do posto de transmissões. Talvez interesse ao trabalho do Pepito [da Ad - Acção para o Desenvolvimento]...

Abraços.
João Tunes (2)

___________

Notas de L.G.

(1) Alf mil transmissões da CCS do BCAÇ 2884, Pelundo, 1969/70; transferido em 1970 mais para a CCS, de outro Batalhão, sito em Catió.

(2) Vd. post de 6 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXII: Os sitiados de Guileje

(...) "Ia para passar uma semana em Guileje, como fazia quase todos os meses, para tratar de problemas com as transmissões e trocar os códigos das cifras da criptografia. E, daquela vez, seria companheiro de viagem do Tenente Aparício. E uma ida a Guileje era sempre uma emoção, pelo risco e por rever os camaradas martirizados e isolados bem junto da fronteira com a Guiné-Conacri. Para mais, com o aviador mais marado da Guiné" (...).

segunda-feira, 5 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P849: Os que lutaram contra a guerra, mesmo fazendo-a, também fazem parte da nossa história (João Tunes)

Texto do João Tunes, com data de 1 de Junho de 2006:

Caro Luís,


Este blogue é, também, uma caixa de surpresas. Não só pelo que vamos recordando e sabendo, também pela forma viva e fraternal como reconstruímos a camaradagem forjada nos tempos de guerra (agora mais alargada, vencendo as barreiras da quadrícula ou das épocas diferentes em que por lá passámos). E as surpresas não ficam por aqui, pois, entre tantos que fomos, acabamos por nos reencontrar de outros caminhos, outras ocupações, o que, provavelmente, não aconteceria sem este ciber-quartel.

Já disse da minha surpresa no (re)encontro com um antigo colega profissional (o camarada António Levezinho). Estivemos em simultâneo a trabalhar na mesma empresa para aí uns trinta anos, julgo que nunca nos cruzámos, não nos supúnhamos ex-combatentes no mesmo tempo e na mesma guerra e até fomos embarcados no mesmo Cruzeiro conhecido como Niassa. E acabámos por repor este laço comum, via blogue, permitindo-me sabê-lo de boa saúde e disposição no seu retiro algarvio. O que muito me alegra.

Agora, fiquei banzado ao ler o Post nº 823 do camarada Jorge Cabral. Não pelo seu conteúdo, que assino por baixo. Sem espinhas. Mas porque ele disse que me conhecia da recruta na EPI em Mafra e alude a um amigo comum, também recruta, o João Resende. Primeiro, o Jorge mostra ter muito melhor memória que eu (o que não é difícil, diga-se). É que depois de dar voltas e mais voltas quer às suas fotografias publicadas do tempo na Guiné (talvez por causa dos disfarces com os roncos fulas ou mandingas) quer às da actualidade (talvez pela marca do tempo passado), não consigo reconstituir a sua esbelta e marcial figura nos tempos em que convivemos (esporadicamente) no casarão de pedra onde aprendemos a marcar passo. Talvez numa qualquer oportunidade de abraço ao vivo, a minha memória se recomponha.

Mas o Jorge Cabral, falando de nós e do nosso camarada Resende, acaba por trazer a lume um aspecto que julgo ainda não abordado e que falta na história da guerra para ela ficar composta. Ou seja, da luta anticolonial desenvolvida no interior das Forças Armadas por militares antifascistas (sobretudo, entre milicianos) e que acabariam por contaminar os oficiais do quadro de média e baixa patente que, depois, deu no que se sabe.

Como se sabe, muitos cadetes milicianos iam para Mafra depois de terem enfrentado o regime nas lutas estudantis e alguns deles estavam ali precocemente, sem os deixarem concluir os seus cursos, por terem sido punidos com a expulsão da Universidade. Daí que, quando fui enfiado em Mafra, em 1968, a maioria esmagadora dos cadetes tinha já convicções mais ou menos consolidadas contra o regime e contra a guerra colonial. Claro que havia os apolíticos e um ou outro que até aderia ao militarismo. Mas patriotas convictos e convencidos da justeza da guerra, contavam-se pelos dedos e acabavam por fazer figuras algo excêntricas nos sentimentos dominantes e nas conversas. Eram os que chamávamos de chicos e fachos que, por regra, acabavam por ficar isolados. E alguns mudaram posteriormente de posição quando da experiência concreta na guerra, o que pude também constatar em diversos casos.

A chegada do João Resende (referido pelo Jorge Cabral) a Mafra mudou muito as coisas. Ele foi com o curso concluído de engenharia química e tinha sido o líder estudantil no Porto (onde o conhecera e onde com ele acamaradara nas brigas contra os fachos). Era, pois, um veterano e organizado militante contra o regime, com grande capacidade de organização e bom conhecedor das regras conspirativas, mais um grande poder carismático aliado a uma profunda modéstia. Com ele, muito mudou em Mafra. A oposição à guerra evoluiu, entre os cadetes, dos desabafos soltos para uma organização estruturada de denúncia e combate à guerra colonial.

Se, desse grupo, não lembro o Jorge Cabral, lembro-me de outros antigos dirigentes e activistas estudantis, nomeadamente o engenheiro António Redol (filho do escritor Alves Redol) que havia sido Presidente da Associação de Estudantes do Técnico e o Miranda Ferreira, economista e activista nas lutas de Económicas. Éramos um grupo restrito, como se impunha, mas lá fomos mexendo. Nos fins-de-semana, tínhamos as nossas reuniões conspirativas em Lisboa, em casa da mãe do Redol, durante a semana fazia-se o que se podia - contactos com quem revelasse consciência anticolonial, umas tarjetas contra a guerra espalhadas à noite pelas casernas, pinchagens nos corredores ("Abaixo a Guerra Colonial!"), apelo a que se ouvissem as emissões da Rádio Voz da Liberdade (em Argel), etc.

Entretanto, eu saí de Mafra (quando o Resende lá chegou eu já tinha feito a recruta e estava a tirar a especialidade) e o Resende por lá continuou por mais tempo. E com bons resultados, pois num dos posteriores juramentos de bandeira deu-se o célebre protesto dos cadetes milicianos através de, no momento do juramento, perante a generalada e as famílias dos cadetes, ter havido um colectivo, alargado e simultâneo descuido de se carregar na patilha e deixar cair os carregadores da G3 no chão, coisa que foi uma realíssima bronca.

[O João Resende foi, mais tarde, parar ao quartel de Chaves e depois mobilizado para Moçambique. Então, desertou mas não saiu do país, passou à luta como militante clandestino. No meu regresso da Guiné, ele bateu-me à porta diversas vezes, irreconhecível no seu disfarce de clandestino (ele actuava na região de Lisboa), ficávamos noite fora a conversar e conspirar, depois dormia em minha casa e abalava cedo na manhã seguinte até uma próxima visita, deixando-me boas molhadas de material clandestino para ler e distribuir. E foi, graças a ele, que li bem cedo o Rumo à Vitória de Álvaro Cunhal, numa edição integral e clandestina. Assim como uma versão a stencil do Luuanda do Luandino Vieira, então preso no Tarrafal e com os livros proibidos. Poucos meses antes do 25 de Abril, foi apanhado pela PIDE e selvaticamente torturado (imagine-se o que era a PIDE caçar um desertor e militante clandestino!), não tendo passado muito tempo de prisão nem sido julgado porque, entretanto, deu-se o golpe. Por isso, desde a sua prisão até ao 25 de Abril, claro que eu, quando me deitava, sabia da alta probabilidade de ser acordado a meio da noite com visitas inesperadas e desagradáveis.]

Julgo, caro Luís, que esta parte, a luta contra a guerra pelos militares antifascistas e anticolonialistas, é uma parte não pouco importante na nossa história e na história da guerra. Pouco ou nada conhecida, para mais. Outros camaradas de muito mais saberão e talvez se disponham a ajudar a abrir o livro.

Quanto ao camarada Jorge Cabral, o reconhecimento fica para quando da oportunidade do estudo visual e ao vivo. Vamos lá ver como funciona a minha fraquíssima memória. Um grande abraço, entretanto.

Outro abraço para ti, camarada e amigo Luís, outros tantos para todos os estimados tertulianos. Com os pedidos de desculpa por tanto me aturarem (calma, eu prometo já uma pausa mais ou menos prolongada!).


João Tunes

sexta-feira, 2 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P836: Empada: os Gã Martins, vítimas da onda de terror da primeira metade dos anos 60 (Leopoldo Amado)

Guiné-Bissau > Regiãod de Quínara (Buba) >
Empada > Abril de 2006 > "O Semi-Internato de Empada"
instalado nas velhas casernas da tropa...
Foto: © Inês / Xico Allen (2006)


Caro Luís,

Com a devida autorização do Leopoldo, envio a resposta dele ao meu mail e com autorização de publicação (julgo de interesse para todos pois refere-se à época da pré-luta armada desencadeada pelo PAIGC que, para nós, é a pré-história das nossas histórias).

Abraço.
João Tunes


Caro Tunes,

1. Muito agradeço as tuas simpáticas palavras. Quanto ao nosso jantar, relembro-o com saudades, tal a profundeza das questões que nele abordamos e que ainda agora me interpelam. Conversas dessas são certamente úteis, quanto mais não seja, para, através da partilha, aprimorarmos os modestos conhecimentos e igualmente darmos vazão à necessidade que se impõe de aprofundarmos a camaradagem.

2. O meu avô, tanto quanto sei, foi preso e fuzilado numa altura em recrudesceu por toda a Guiné a violenta repressão da PIDE sobre os nacionalistas guineenses. Numa noite ­- conta a minha mãe e tios meus -, que após as tropas terem cercado a Casa Grande da herdade Gã Martins e terem revirado toda a casa na sequência de uma minuciosa revista, levaram o meu avô fim de prestar declarações no aquartelamento local.

3. Passadas semanas, comunicaram a minha avó a morte repentina do meu avô na prisão, tendo os Gã Martins solicitado os restos mortais sem que, todavia, tivessem obtido qualquer resposta da parte do Comandante Militar local.

4. Como um soldado português - que assistiu ao fuzilamento do meu avô - resolveu confidenciar a minha avó que o marido teria sido fuzilado e enterrado numa vala comum na companhia de vários guineenses, entre os quais o seu amigo e enfermeiro, Anselmo de Carvalho.

Numa atitude concertada, os Gã Martins apresentaram-se enlutados (com indumentária preta) defronte ao Palácio do Governo (1) em Bissau (meu avô tinha uma prole que em muito supera uma equipe de futebol, incluindo suplentes), tentando expor a sua indignação e, em vão, exigir que se fizesse justiça. Simplesmente, foram admoestados por elementos da PIDE que, trajados à paisana, os advertiram a abandonarem o local.

5. É evidente que o meu avô não foi julgado, assim como centenas de outros guineenses que, na época, foram alvos das terríveis vagas de repressão que a PIDE protagonizou na Guiné após tal Pindjiguiti (2), tal o convencimento de que, à partida, era mister abafar qualquer tentativa de subversão e divisão da pátria portuguesa, tanto mais que a própria PIDE local, através de um municioso trabalho de investigação policial, baseado sobretudo em interrogatórios coercivos, tinha logrado reconstituir os objectivos imediatos do Movimento de Libertação: dar início a luta armada.

6. Sobre a defesa da minha Tese, a mesma foi adiada para Setembro ou Outubro próximos. Informarei atempadamente os membros da Tertúlia e informo, desde já, que terei todo o prazer em poder contar com a vossa honrosa presença, tanto mais que a sessão é pública.

PS: Pode-se partilhar este E-mail com mais colegas e amigos, pois não conseguii enviá-lo.

Um abraço amigo
Leopoldo Amado
___________

Nota de L.G.

(1) Os cinco governadores que abarcam este período sinistro (e pouco ou nada conhecido), antes e depois do massacre do Pijiguiti, em 1959, dos acontecimentos no norte de Angola, em 1961, do recrudescimento do nacionalismo entre os guinéus, do início da luta armada sob a liderança do PAIGC (1963) e da política de terra queimada até ao consulado de Spínola (1968), são:

Álvaro Rodrigues da Silva Tavares (1959-1962);
António Agusto Peixoto Correia (1957-58);
António Augusto Peixoto Correia (1959-1962);
Vasco António Martinez Rodrigues (1962-1965);
António Schultz (1965-1968)

Fonte: Lista de Governadores da Guiné Portuguesa > Wikipedia

(2) Vd. também a versão do nosso amigo e camarada Mário Dias: post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)

Guiné 63/74 - P835: Empada: quem matou ou mandou matar o avô materno do Leopoldo Amado? (João Tunes)

Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > 2005> A antiga casa do chefe de posto. Escreveu o Lepoldo em post anterior: "O meu avô, Victor Vaz Martins, pai da minha mãe, era ali agricultor e comerciante, tendo mesmo chegado a desempenhar as funções de chefe do posto administrativo localuma figura muito conhecida não só em Empada, mas igualmente em Cubisseco, Dar-es-salam e outras localidades circunvizinhas de Empada. Porém, Victor Martins morreu em 1962, após ter sido preso e acusado pelas NT de prestar apoio e colaboração ao PAIGC. Soube-se mais tarde que fora fuzilado e enterrado numa vala comum, com muitos outros guineenses, todos acusados de subversão" (...).
Foto: © José Teixeira (2006)


Camarigo Leopoldo,

1. Desculpa meter-me em conversa alheia, mas não queria deixar de registar o prazer que senti em ver-te voltar à escrita e conversa na nossa tertúlia. Para mais, nesta fase em que andas sobrecarregado a ganhares para o rancho e aprontares essa magnífica tese de doutoramento prestes a rebentar e que me deste o privilégio de permitir a sua pré-leitura (a dissertação e apreciação será em Julho ou em Setembro?) sobre a guerra na Guiné (vai ser um ronco de todo o tamanho, pela inovação, rigor e pelo distanciamento que permitirá, estou certo, pelo menos a todos que lá estiveram, uma nova visão global, abrangente e mais clara sobre o terrível período de 1963-74).

2. Pela minha parte, muita luz já trouxeste à minha memória e meu entendimento sobre uma guerra que tanto marcou (e ainda marca) os nossos povos. Inesquecível o longo papo que tivemos há uma semana (até sermos expulsos das Amoreiras para poderem arrumar a mobília e fecharem o Centro...!!!) sobre a figura complexa, multifacetada, genial e única de Amilcar Cabral (o guineense tantas vezes tratado como caboverdiano...). Como desfizeste, com dados, facetas e revelações, tantos estereótipos cristalizados nos mitos (o do bom Cabral e o do mau Cabral, até o do Cabral que seria um bom teórico, diplomata e político mas não um chefe operacional) e que simplificam uma figura de tamanha dimensão, complexidade e abrangência.

E alguma luz me trouxeste ainda sobre as razões fundas da trama compexa e divisionista, sobretudo nas componentes geoestratégicas da fase da guerra fria, que desembocou no seu assassinato. Percebendo também melhor, como disse o Pepito, como é possível que Alpoím Calvão se pavoneie agora pela Guiné, com casa em Bolama, com reverências diversas para com este amigo do povo da Guiné. E a facilidade que teve a PIDE, através do comerciante de armas Zóio, de comprar rapida e directamente, sem qualquer entrave, à URSS as 2.000 Kalachnicov para equipar, como equiparam, os invasores de Conacri (isto em 1970!), na Mar Verde e em que um dos objectivos era precisamente o assassinato de Amilcar Cabral (adiado, pelo fracasso das informações da PIDE, para 1973).

3. Percebo e respeito o teu pudor na forma breve como passaste a breve referência à figura do teu avô, Victor Vaz Martins. Ficámos, pelo menos, a saber que foi preso pelas NT, fuzilado e mandado para uma vala comum por simples suspeita de simpatia para com o PAIGC. Mas nada disseste sobre o seu julgamento juridicamente assistido. Que não deve ter deixado de ter sido efectuado, como mandava a lei e a civilização cristã, cumprindo todas as garantias exigidas pelas comunidades nacional e internacional. E eu não quero imaginar que as NT (que eram mais minhas que tuas) tenham feito algo de semelhante ao que o PAIGC fez aos guineenses, comandos e não comandos, das NT. Pode lá ter sido!

4. Finalmente, a defesa da tua tese de doutoramento é em sessão pública? Se sim, tens alguma coisa contra que os camaradas (camarigos) que puderem e estejam interessados a ela assistam?

Grande abraço do
João Tunes

____________

Nota de L.G.

(1) O Leopoldo Amado, historiador guineense, é doutorando em história contemporânea pela Universidade de Lisboa com uma tese sobre guerra colonial 'versus' guerra de libertação (o caso da Guiné, 1963/74), a ser apresentada apresentada e discutida em provas públicas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, muito proximamente (no 3º ou 4º trimestre de 2006). Estamos todos muito ansiosos pela chegada desse dia... Pelo menos eu, o HumberTo Reis e o João Tunes já aqui manifestámos o nosso interesse e vontade em estarmos presentes nessa acto solene (e público)para levarmos ao Lepoldo um abraço fraterno da nossa tertúlia, de solidariedade, de apoio, de admiração e de júbilo!

Textos do Leopoldo Amado já aqui publicados:


22 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXVII: O Justo foi fuzilado (Leopoldo Amado / João Parreira)

16 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXIV: Fala-se em 11 mil fuzilados (Leopoldo Amado, historiador)

26 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVIII: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - III (e última) Parte

25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVII: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLI: Um hino ao amor (Leopoldo Amado)

17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLXIX: os periquitos e a prostituta de Bolama (Leopoldo Amado)

25 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXIX: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia

quarta-feira, 31 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P826: A legenda do capitão comando Bacar Jaló (João Tunes)

Texto do João Tunes:

Caro Luís,

Muito me impressionaram as imagens trazidas pelo nosso camarada Marques Lopes sobre os "restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram".

Dei conta do meu grito de indignação partilhada no meu blogue e conclui assim:

"Um país que não respeita os corpos dos mortos que mandou combater por ordem do governo da pátria, ou do governo do raio do império, permitindo dar a dignidade do luto pelos seus, é um país sem vergonha perante os vivos porque despreza os seus mortos."

Fazendo o meu percurso de dor e repulsa pelo abandono, através das imagens, reparei que a lápide do "lendário Capitão Comando João Bacar Jaló" (tombado no tempo em que ainda estava na Guiné, tendo-lhe deus - o deus da guerra - poupado, desta forma piedosa e antecipadora, a ignomínia de ser fuzilado, sem julgamento, pelo PAIGC e no pós-independência, isto se não tivesse podido fugir e voltar a estar sob as ordens de Alpoim Calvão e Spínola no MDLP e a participar na rede bombista) se apresenta não só com melhor aspecto de conservação, como é diferente, nas inscrições, das dos restantes camaradas mortos em combate, por acidente ou por doença.

Quanto à conservação, entendo as razões aventadas - terá por lá família que a cuide e lhe dê lustro. Quanto à inscrição, já não entendo a falta, para mim incompreensível, da usada nas outras lápides do PELA PÁTRIA.

Talvez o camarada Marques Lopes tenha indagado das razões e possa esclarecer se a lápide é a original ou não terá sido, para que se compreenda a sua diferença, refeita posteriormente em trabalho de reescrita histórica. Mera curiosidade, já que nada adianta ou atrasa quanto à sorte do Bacar Jaló que, neste momento, tanto lhe fará quais os dizeres da sua lápide funerária.

Também fiquei perplexo por, nas legendas das imagens das lápides, o camarada João Bacar Jaló ter tido direito ao epíteto honroso de lendário com que foi distinguido, no blogue, em realce relativamente aos outros nossos camaradas tombados e com os restos para ali abandonados. Que lendas teve este camarada que o diferenciem, na sorte e na missão, dos outros camaradas? Além da lenda do mistério da lápide diferente, o que se alude ou sugere? Combateu mais e melhor que os outros? Foi generoso e humano para com os prisioneiros? Terá sido o Che da contra-guerrilha?

É que das lendas de Bacar Jaló nada sei. Sei apenas que foi um valoroso e impiedoso guerreiro. Apenas me encontrei com ele e os seus guerreiros ou em trânsito ou quando ele se albergava momentaneamente nos quartéis onde estive ou então (isso, várias vezes) em Bissau, na messe de oficiais, quando ele entrava lustroso dos galões novos e arrastando atrás de si uma multidão de esposas bem ataviadas, provocando a debandada enojada da maior parte das esposas dos oficiais metropolitanos ali a tomarem chá e jogarem canasta e que não queriam tais misturas.

E quantos oficiais ao serviço do PELA PÁTRIA olhavam de imediato para o relógio, metiam logo fim ao king ou ao bridge e zarpavam para o cumprimento imediato das obrigações militares no Estado Maior, antes que o Jaló se lembrasse de abancar na mesma mesa?!

Será esta a lendaque referes? Mas, se foi, isto não é lenda, viram os meus olhos, repetidamente e então fazendo-me rir que nem um perdido pelo insólito (mas não era por mal, os copos bebidos é que já eram - sempre - em demasia) e que a terra, se não for o mar ou o ar, há-de comer.

Desculpa as minhas curiosidades. Que são, apenas, isso mesmo.

Grande abraço para ti e saudações camaradas e amigas para todos os estimados tertulianos.

João Tunes


Comentário de L.G.:

João:

(i) O teu olho clínico não deixa escapar nada. E ainda bem, que alguém exerce essa função de vigilância (crítica) sobre os nossos dizeres, a forma e o conteúdo. Claro que se não trata aqui, como no goulag ou na caserna do antigamente, de vigiar e punir. A nossa paixão é a da verdade e do rigor. Felizmente que, não sendo um partido revolucionário ou contra-revolucionário, não sendo um movimento social, nem sendo uma corporação, não sendo sequer um grupo jantarista e excursionista, a nossa tertúlia (virtual) não precisa de comissário político, ideólogo, líder, professor, educador, animador sócio-cultural, pai, mãe ou outras figuras que tais. Liberdade de escrita, liberdade de crítica: eis o nosso lema (implícito na nossa prática bloguista).

(ii) Dito isto, tens toda razão: o adjectivo lendário aplicado ao Bacar Jaló é tão excessivo como a ideia do Marques Lopes me mandar condecorar no 10 de Junho com cruz de guerra com palma e tudo!... Que grande amigalhaço!...

A verdade é, segundo consulta ao meu dicionário etimológico, lendário deriva de lenda, e este vocábulo por sua vez vem do latim medieval legenda que queria significar "vida de santo"... Imagina só!

(iii) Eu não sei se o Bacar Jaló era ou não era em vida um bom muçulmano, mas santo é que eu não posso dizer que ele era (pelo menos, santo da minha devoção), a avaliar, de resto, por testemumnhos como o teu e o do Jorge Cabral (este, para mais, tinha de o gramar como hóspede em Fá Mandinga)...

(iv) Para abreviar razões, e poupar o meu e o teu tempo: O raio do adjectivo saltou-me do saco lexicográfico, por puro automatismo. Lapsus linguae ou acto falhado, eis a questão ?

(v) Pensando bem, sou capaz de inclinar-me mais para a interpretação psicanalítica: eu, tropa-macaca, tão pacifista como tu, tão suspeito de ser do contra como tu - ao ponto de me apodarem de camarada sov - também tinha as minhas fraquezas (humanas), quiçá, as minhas fantasias sadobelicistas... E até um dia tive, por uma fracção de segundo, o desejo secreto de comprar uma Kalash aos gajos dos comandos africanos, acabados de chegar do triste safari de Conacri... Imagina como é o psiquismo de um gajo!... Felizmente que o meu lado solar, racional, diurno, se impôs ao hemisfério lunar, romântico, irracional, nocturno, na outra fracção de segundo em que eu confrontei o desejo com a realidade... Preferi comprar 10 garrafas de uísque com os 500 pesos que me pediam pela bela Kalash...

(vi) É óbvio que o Jaló não merece o epíteto. Chamar-lhe lendário (logo, santo) era pô-lo no Olimpo dos guerreiros e mandar o resto dos nossos camaradas, insepultos, para a miserável vala comum... Era tirar-lhes, como tu insinuas, sugeres ou até afirmas, o resto de dignidade que é devida a um morto pela Pátria, um morto, qualquer morto...

(vii) Depois desta autocrítica mal amanhadas, espero que me releves a falta... de leviandade. Prometo ter mais cuidado com o verbo.

(viii) Escusado será dizer-te que é sempre um prazer ler-te e (re)ver-te mesmo à distância de muitos bytes (ou baites), enquanto a gente não se mete nas nossas tamanquinhas e reserva aí um lugar numa esplanada à beira Tejo para a prova real do blogue, fora nada... Um abraço caloroso. Luís.

terça-feira, 30 de maio de 2006

Guiné 63/74- P819: Confissões de um pacifista: A minha paixão pela bela Kalash (João Tunes)

Guiné > Canjadude > 1974 > Posto de controlo do PAIGC, vendo-se um grupo de guerrilheiros armados com duas armas míticas e temíveis: a Ak 47 ou Kalash e o LGFog RPG-7.

Fonte: João Carvalho / Wikipédia > Guerra do Ultramar (2006) (com a devida vénia...)

Texto do João Tunes:

Caro Luís e restantes estimados tertulianos,

Reconheço que os meus últimos textos foram veementes e tanto que até pode ter parecido que estava zangado ou sofrendo de um pico do apanhanço. Nada disso.

Mas para não me fixarem pelo mau feitio com que vim ao mundo e o mundo me deu razões para assanhar, sinto-me na obrigação de aliviar agruras e crispações, contribuindo com um texto alegre e bem disposto, a modos que ligeiro e de boa digestão, contribuindo modestamente para a concórdia e fraternal convívio desta estimadíssima tertúlia em que cada qual tem a nobreza de pensar pela sua cabeça sem necessidade de meter tapa-chamas no escape do pensamento, sabendo que a razão se encontra algures entre todas as razões. O que não evita, pelo contrário, a boa disposição neste quartel aprumado já com a caserna a deitar por fora mas sempre com a porta de armas franqueada para que mais um qualquer velho e reformado guerreiro abanque na parada, na messe, no bar, numa guarita de sentinela, no campo de tiro ou onde lhe aprouver na guerreira gana.

Assim, falo-vos hoje de um tema bem disposto e que se prende com a minha última leitura. Que tem a ver com um assunto que, julgo, em todos está a memória bem agarrada - uma espingarda. E julgo que tema mais alegre não haverá no mundo, mesmo que saído de um premiado criativo do humorismo. Por mim, falar em espingardas dá-me vontade de rir (não de atirar!). Fico bem disposto, tornando-me mais sociável e brincalhão ao som do lembrado símbolo tá-tá-tá-tá. Enfim, sou um pacífico e um pacifista, com um gosto discutível, como todos os gostos, pelo tá-tá-tá-tá. Sou não, ERA, mas isso fica mais para o fim.

Certo é que as espingardas matam. E, em certas circunstâncias, até matam muito. Noutras vezes (as mais das vezes?) até matam quem não devem e estão em mãos que deviam estar quietas e não a disparar. Mas, já antes das espingardas, era assim. A guerra e a morte são mais velhas que as espingardas. As espingardas, culpa única, vieram foi ajudar a ganhar ou perder guerras justas ou injustas. E a melhor de todas as espingardas o que acrescenta, às outras não tão boas, às guerras e à morte, é matarem ainda mais e ainda melhor que as outras espingardas, permitindo, infelizmente, mais guerras e mais mortes. Além de terem um tá-tá-tá-tá diferente, um som personalizado e que fica melhor no ouvido, uma marca sonora que a distingue na fidalguia da qualidade. Até podendo ser, caso talvez de perfídia estética, uma coisa bonita de se ver e agradável no mexer. Em caso extremo, se for verdade que a guerra comporta muito de sexualidades reprimidas ao serviço de um grupo, uma espingarda nas mãos até terá o seu toque erótico, um género de sucedâneo prolongado de um pénis mortífero em erecção sempre pronta, uma volúpia na dialéctica entre a vida e a morte, coisa que dizem os entendidos, o acto sexual também será.

Lamento decepcionar os decepcionáveis, mas não falo da nossa querida G3 (bem boa e grata espingarda!), a nossa noiva de comissão fardada, a noiva com que nos casaram á força (tirando o caso dos chicos), a companhia que não nos faltou. Falo, antes, da espingarda automática (a chamada espingarda de assalto), infelizmente rival da nossa querida G3, a espingarda mais apreciada, usada e difundida no mundo - a famosíssima Kalachnikov, por vezes tratada carinhosamente pelo terno diminutivo de Kalach. Ou, respeitando a nomenclatura oficial, pela burocrática designação de AK-47 [em que AK é a abreviatura de Espingarda de Assalto Kalachnikov e 47 refere o ano do início da sua produção na ex-URSS (ainda com o Pai dos Povos em forma quanto a saúde, mando e despotismo)].

O certo é que a Kalach é unanimemente, independentemente de a usar ou ser por ela alvejado, considerada a maravilha máxima, em tecnologia, em concepção, em eficácia e na beleza das linhas, entre as espingardas jamais dadas ao mundo desde que, ao mundo, a Kalach veio parar. Vejam que até Bin Laden, que nas escolhas não parece ser parvo, não dispensa sentar uma Kalach ao colo das saias quando aparece naqueles vídeos para assustar os americanos e o resto do mundo. E não haverá guerreiro ou guerrilheiro, contra-guerrilheiro também, que não gostasse de ter uma Kalach para combater. Ainda é assim e ininterruptamente desde que apareceu a sua primeira versão em 1947 por mor de decreto presidencial do Zé dos Bigodes e génio de um obscuro inventor (até à Perestroika, a sua identidade era secreta por ser considerada segredo de Estado).

Nunca escondi a minha curiosidade, admiração e inveja, uma espécie de fascínio castrado por nunca lhe ter pegado, desde que me foi dado ouvi-la e vê-la do outro lado, o lado dos patriotas guineenses. Porque quanto à Kalach, fotos à parte, só lhe conheci o tá-tá-tá-tá muito próprio. Para acalmar esta minha obsessão, tenho procurado, persistentemente, saber mais e mais sobre o nascimento, vida e obra da Kalach.

Finalmente, um livro encheu-me as medidas, tanto que me esgotou o interesse por tudo quanto seja espingarda (o que já não era sem tempo, bolas, sempre foram 37 anos a pensar no raio de uma espingarda!). Agora sim, livre da obsessão e no sortilégio da Kalach posso, finalmente, sentir-me livre e solto para me dedicar a grandes e boas causas - contra a exclusão social (fazendo corpo de combate com o Presidente Aníbal), a ajuda aos pobres (talvez militando num Confissão com capela aberta), a defesa do ambiente, a luta contra o tabagismo (tentando fumá-los todos para que não sobre um que seja e faça mal ao meu semelhante, activo ou passivo), a homofobia, o racismo e a xenofobia, o fim da violência doméstica mais a pública, a luta contra a gripe das aves e tudo quanto seja a boa conservação e melhoria da saúde pública. Causas assim ou parecidas. Boas causas. Só boas causas. Com o terminar súbito e dorido da paixão para com uma espingarda. O que um livro consegue, deus nosso!

O livro a que me refiro é uma pequena autobiografia do inventor da Kalachnikov (*), recentemente editada em Portugal, o qual, para não destoar, se chamava Kalachnikov também. Isto é, a espingarda chamou-se Kalachnikov porque o seu autor assim se chamava. A vida do sujeito, ainda vivo e activo (contando 83/85 anos), teve uma trajectória interessantíssima, tirando a parte balhelhas como o homem pensa a política e o mundo de hoje, pois ajuda a entender o prodígio e a odisseia de um sargento autodidacta ter concebido aquilo que os sábios, cientistas, engenheiros, ali ou noutra parte do mundo, nunca chegaram - a maravilha da espingarda leve, fiável, segura, resistindo a todas as poluições, bonita, fácil de desmontar e de fabricar, uma espécie de anjo da morte e da guerra (1).

Como disse, vencido o amor enciumado e tortuoso (enquanto traição à nossa querida G3) pela bela Kalach, não quero mais saber de espingardas. Agora sim, serei o pacífico e o pacifista perfeitos. Tentarei, pelo menos.

Toda a paz e harmonia para todos os estimados tertulianos. E nada de guerras ou espingardas, são os meus votos de termo (2).

Um abraço grande para ti, camarada e amigo Luís, nosso ilustre Comandante.
_________

(*) Kalachnikov, autobiografia do inventor da mais famosa metralhadora do mundo, Mikhail Kalachnikov (com Elena Joly), Ed. Terramar.

Notas de L.G.:

(1) Sobre o autor, vd. artigo, em português, na Wikipedia > Mikail Kalshnikov e sobre a própria AK-47

Ver também, o site oficial russo da Ak 47, em inglês.


(2) Sobre este tópico, vd. posts dos nossos tertulianos:

17 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XX: "Foi você que pediu uma kalash?" (David Guimarães)

(...) "Pois, é verdade, aquele matraquear esquisito das Kalashnikov... Nas emboscadas nunca se sabia onde estavam elas, se à frente se por detrás de nós. Só quando já se tinha experiência de guerra conseguíamos distinguir bem [o som da kalash]...Era um estampido bem diferente das nossas G3... Mas, afinal, quem não sentiu isso?!" (...)

29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXX: A professora de Samba Culo (A. Marques Lopes)

(...) "Está a ficar noite e tenho três horas para chegar a Bissau. Cinc, prépare le jeep, nous en allons tout de suite. Sabes, professora, porque é que o meu condutor se chama Cinco? Nasceu no dia 5 de Maio e é o quinto filho de sua mãe, que decidiu dar-lhe esse nome tão significativo. Não, não te preocupes que ele não percebeu nada da nossa conversa, além do crioulo só sabe francês, pois frequentou apenas uma escola em Dakar. É que, professora, nasceu há 23 anos, muito depois daquele dia em que tive de te abrir o ventre com uma rajada de G3 por te ver empunhar a Kalash que tinhas pendurada no quadro da escola. Ele não estava aqui entre os teus meninos. Se tivesse estado, saberia falar e escrever português, com certeza. Sei que foste uma boa professora. Vi que escrevias no quadro as palavras com o desenho correspondente para os teus alunos identificarem bem em português os objectos do seu dia-a-dia. Vi os livros por onde aprendiam a ler, vi os cadernos de redacção e de cópias. Está descansada, não matei nenhum deles, garanto-te. Devem estar por aí, cidadãos do teu país" (...).

sábado, 27 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P806: O 'turra' Luandino Vieira recusa Prémio Camões (João Tunes)

Luandino Vieira, escritor angolano, nascido em Vila Nova de Ourém, em 1935. Prémio Camões da Língua Portuguesa 2006.

Foto: Editorial Caminho (2006) (com a devida vénia...)


1. Desafiei há dias o João Tunes para escrever um pequeno texto sobre a atribuição do Prémio Camões de Língua Portuguesa 2006 ao escritor angolano, de origem portuguesa, Luandino Vieira, o terceiro atribuído a um escritor africano... O prémio, no valor de 100 mil euros, é patrocinado em partes iguais pelos ministérios da cultura de Portugal e Brasil... Luandino Vieira, um reinventor da língua portuguesa (sem o qual possivelmente não teria sido possível o aparecimento de um Mia Couto, moçambicano, ou de Ondjaki, angolano) é hoje praticamente desconhecido por parte dos nossos jovens.

Recorde-se que em 1965, em plena guerra colonial, e quando o escritor estava preso no Tarrafal, foi-lhe atribuído o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Autores pelo seu livro Luuanda, facto que foi considerado uma grande afronta pelo regime de Salazar, o que levou ao assalto e destruição da sede daquela Sociedade por legionários e por pides e à sua posterior ilegalização. Recordo-me perfeitamente destes acontecimentos: Estávamos em plena guerra colonial. Em 1965, eu tinha 18 anos. Aos 22, em 1969, eu estava na Guiné. (LG)

Eis a resposta, célere, do nosso sempre bem informado, acutilante, frontal, João Tunes:

"Quanto ao repto sobre um texto sobre o turra Luandino Vieira e o seu Prémio Camões, aqui vai ele (em exclusivo para o nosso blogue):

"Um Turra, chamado Luandino Vieira, que também foi e é escritor, foi premiado com o Prémio Camões, o Poeta Maior da expansão do nosso Império. O Turra não aceitou o Prémio dado pelos Tugas. Ou os Turras são ingratos ou os Tugas atrasaram-se na reparação dos estragos feitos em 1965 quando o Turra estava no Tarrafal e a Pide dos Tugas destruíu a Sociedade Portuguesa de Escritores.

"Um grande abraço e outros tantos para todos os estimados camaradas tertulianos".
João Tunes

Sobre a recusa do prémio, vd. também post do João Tunes, no seu blogue Água Lisa 6, de 25 de Maio de 2006.


2. O que disseram os jornais (LG):

"Luandino Vieira: o resistente

"José Luandino Vieira, ou melhor, José Vieira Mateus da Graça, nasceu em Portugal em 1935 e foi aos três anos para Angola. Envolvido em movimentos nacionalistas, é preso pela PIDE em 1959 e depois em 1961.

"É no Tarrafal, prisão em Cabo Verde para onde é transferido em 1964, que descobre Guimarães Rosa, o escritor que mais o influenciou. A maioria da sua obra é escrita antes de 1975, ano em que regressa a Luanda, depois de passar por Lisboa.

"A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1961), Luuanda (1963), No Antigamente, na Vida (1974) e Nós, os do Makulusu (1975) são algumas das suas obras mais conhecidas.

"As suas ideias obrigaram-no a passar mais de dez anos no Tarrafal e a ter residência fixa depois de libertado, em 1972. Vinte anos depois, diria ao escritor Agualusa, a propósito da guerra em Angola: 'Hoje de manhã vi, no meio de um tiroteio infernal, um homem a atravessar a rua numa cadeira de rodas. É isto que nós somos, um país de cadeira de rodas no meio dos tiros.'

"Vive em Portugal desde o início dos anos 1990" (Fonte: Público, 27 de maio de 2006)

3. Obras de Luandino Vieira publicadas, em Portugal, pela Editorial Caminho :

Nosso Musseque (1.ª edição, 2003) «Outras Margens», n.º 13

A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1.ª edição, 2003) «Outras Margens», n.º 18

Nós, os do Makulusu (1.ª edição, 2004) «Outras Margens», n.º 26

João Vêncio: os Seus Amores (1.ª edição, 2004) «Outras Margens», n.º 29

Luuanda (1.ª edição, 2004) «Outras Margens», n.º 36

No Antigamente, na Vida (1.ª edição, 2005) «Outras Margens», n.º 39

Macandumba (1.ª edição, 2005) «Outras Margens», n.º 43

Velhas Estórias (1.ª edição, 2006) «Outras Margens», n.º 51

quinta-feira, 25 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P793: O limpo e o sujo, nós e os pides (João Tunes)

Caro Luís,

Se me dás licença, apenas 3 pontos (ou prespontos):

1 - O teu texto que eu comentei não foi o mesmo que apareceu no blogue (este é muito mais extenso e documentado). Publicaste uma nova versão do teu texto e o comentário que fiz à sua versão reduzida que foi a que me enviaste. Se o texto que eu tivesse lido fosse o que posteriormente publicaste não teria feito o mesmo comentário. Seria outro ou nenhum.

2 - O comentário que publicaste do Pepito não se referia ao meu texto que publicaste mas a um outro que enviei sobre o assassinato de Amilcar Cabral que (ainda?) não publicaste. Aliás o meu texto comentado pelo Pepito vinha agarrado com o meu mail. Assim, a bota não joga com a perdigota.

3 - Não concordo absolutamente nada se entendi bem o teu raciocínio de separares as NT da nefanda PIDE. Não acho que estivéssemos assim tão longe. Toda a acção militar suportava-se no trabalho de informações e infiltração operada pela Pide. Assim, o Fragoso Allas foi companheiro de armas de Spínola e cada um de nós o foi do agente da Pide local. Objectivamente, foi assim.

E por isso achar não alinho na estória das tropas limpas e dos pides sujos. O barco foi o mesmo (se calhar, no mesmo Niassa em que fizemos viagem também lá iam alguns dos prestimosos agentes). Tendo lá estado e beneficiado do trabalho sujo da PIDE, eu fui, também, camarada de armas dos pides. Como dos comandos africanos e dos milícias.

Eu, como ocupante, tive a sorte de regressar vivo à sede do Império, os colaboradores guineenses com os ocupantes lá ficaram e lá as pagaram. De uma forma miserável e inaceitável, mas pagaram. Quanto aos pides por aí estarão a beneficiar de reformas como funcionários públicos pelas razões de impunidade que todos conhecemos. Para mim, estas são as únicas diferenças. Se para lustro das nossas velhas fardas, quisermos separar o nosso trabalho limpo do trabalho sujo, quando esta distribuição de papéis fazia parte das regras do jogo, pela minha parte eu não sacudo a lama que me cabe como quinhão.

João Tunes


Comentário de L.G.:

Peço desculpa da trapalhada que às vezes é a publicação, não por ordem de chegada mas de actualidade editorial dos mensagens que me chegam. No caso que mencionas, de facto não bata a bota com a perdigota, como dizes tu e diz o Zé Povinho. Àparte as dificuldades (no fundo, a incompetência) para pilotar este barco, já tão grande, há ainda o facto de os tertulianos usarem um ou outro dos dos meus dois endereços de e-mail, o de casa e o do local de trabalho. Enfim, isto não deveria servir de desculpa: tenho de estar mais a tempo à ordem lógica e cronológica das mensagens e dos posts.
Um abração.

Guiné 63/74 - P792: Todos camaradas, mas uns mais do que outros? A propósito do assassínio de Amílcar Cabral (João Tunes)

Texto de João Tunes, de 23 de Maio último:

Caro Luís,

Julgo que a lista dos fuzilados pelo PAIGC que lutaram, ao nosso lado, pelo Portugal do Minho a Timor, não se deve esgotar nos actos pós-independência.

Porque os crimes contra a humanidade nunca prescrevem. Houve mais fuzilados pelo PAIGC sem julgamento decente. E, na minha opinião, eles devem entrar na lista que porfiamos em recordar para memória futura e homenagem retroactiva.

Em 1973, os mandos de Portugal (comando militar e PIDE) conseguiram o feito de assassinarem Amílcar Cabral, o turra-mor. Foi uma operação urdida com sucesso (ao contrário da Operação Mar Verde). Nesta operação, a PIDE conseguiu infiltrar o PAIGC e explorando os ressentimentos de alguns combatentes guineenses contra os seus camaradas caboverdianos, levou a bom termo a sua missão: Amílcar caiu em Conacri, fuzilado sem julgamento e pelas balas de combatentes ressentidos, preparados e pagos pela PIDE ao serviço de Portugal.

E só por uma unha negra, o sucessor de Amílcar, Aristides Pereira, não foi entregue em Bissau, então nossa, provavelmente para o competente e juridicamente assistido julgamento. Amílcar Cabral foi assassinado mas daí pouco se passou. Nada mau, como saldo. Acontece que os nossos aliados, os nossos infiltrados, ao nosso serviço, ao serviço de Portugal do Minho a Timor, nossos camaradas portanto, falhado o clímax da operação (a liquidação de todos os caboverdianos, o controlo do PAIGC pela facção guineense e a sua integração na Guiné Melhor), foram apanhados pelo aparelho de segurança interna do PAIGC e fuzilados (sem julgamento). Terão sido 50 (cinquenta) esses nossos camaradas em missão de infiltração e aniquilamento que caíram sob as balas da justiça revolucionária, iníqua porquanto não precedida de julgamento segundo as regras da civilização cristã e ocidental que espalhámos pelas sete partidas.

Segundo depoimento de Mário Pinto de Andrade (que, em tempos, publique no meu blogue) terá sido Vasco Cabral (dirigente do PAIGC e homem de Estado da Guiné-Bissau, falecido há pouco tempo e que não era caboverdiano nem familiar de Amílcar) que investigou a conspiração, a desmantelou e depois assassinou todos esses nossos queridos e saudosos camaradas. No mínimo, seria injusto não lhes recordar, pelo menos, os nomes e a missão em que tombaram.

Julgo de elementar justiça que os nomes destes nossos 50 camaradas fuzilados sem julgamento (talvez o Leopoldo, o Jorge e o Pepe nos ajudem a encontrar a lista dos seus nomes), renegados do PAIGC mas combatentes por Portugal, se juntem, na mesma homenagem e recordação, à lista dos comandos, outros militares, milícias e agentes e informadores da Pide caídos em fuzilamentos selvagens na pós-independência às mãos dos mesmíssimos facínoras e gente com aversão a julgamentos juridicamente assistidos.

Ou uns são mais camaradas que outros? Por mim, nem pensar.

Abraços com saudações patrióticas do
João Tunes

quarta-feira, 24 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P788: Fazer a catarse antes de vestir a toga de juiz (João Tunes)

Mensagem de João Tunes:

Caro Luís,

Claro que não foi crítica, muito menos crítica dirigida à tua estimada pessoa. Mas mexe-me com os nervos certo desnivelamento que, por razões afectivas e emocionais, se faz, faremos todos, entre crimes e crimes.

E a denúncia justa, se proporcionada, aos fuzilamentos dos Comandos Africanos muitas vezes é acompanhada de uma louvação e choro patriótico como se eles tivessem sido nobres e leais guerreiros, cumpridores da Convenção de Genebra. Ora, o que fazia um Comando Africano quando apanhava um irmão guineense do PAIGC que lutava pela pátria de um e de outro? Levava-o incólume e seguro a julgamento?

Não concordo com ajustes de contas, mas não foi mais que isso (um ou outro inocente terá pago pelo pecador, pois claro). Reprovável, inaceitável, mas não se deve condenar de ânimo leve e lágrimas exaltadas como se eles, por serem dos nossos, fossem clones do Beato Nuno Álvares Pereira, meu padroeiro dos tempos de Infantaria. E se queremos ter moral para julgar, julguemo-nos a nós, denunciemos os criminosos de guerra que foram nossos camaradas, contemos as vítimas que brutalizámos e, por acção ou por omissão de repulsa e denúncia, ajudámos a brutalizar (eu incluo-me no rol).

Façamos essa catarse antes de vestirmos toga de juízes. Porque quem fez o mal, ou com ele se calou, não deve fazer a caramunha. Fui mais claro?

Sobre o turra (agora desencantado) Luandino já meti post no meu blogue. Podes transcrevê-lo, se te aprouver. Assim como estes textos.

Grande abraço.
João Tunes

Guiné 63/74 - P787: E os patriotas guineenses, torturados e assassinados em nome de Portugal? (João Tunes)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões > 1970 > Pessoal da CCAÇ destacada no reordenamento de Nhabijões (da direita para a esquerda: os furriéis milicianos Sousa, Reis e Henriques.

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).


1. Comentário do João Tunes à lista dos comandos africanos fuzilados pelo PAIGC (1):

Caro Luís,

Muito bem. Totalmente de acordo. Um dia virá também a lume a lista dos patriotas guineenses torturados e assassinados pelo Exército Colonial Português (incluindo pelos Comandos Africanos) e pela PIDE, os turras, sem cumprimento de qualquer espécie da Convenção de Genebra.

Nada tenho contra dar-se primazia ao nosso choro. Mas enquanto não fizermos o simétrico, a aplicação do Evangelho será sempre parcial, será um Evangelho dos nossos e pelos nossos.

Abraços para ti e todos os estimados tertulianos.
João Tunes


2. Comentário ao comentário de João Tunes:

João:

Eu fui talvez o primeiro a falar, no blogue, dos crimes dos comandos africanos e dos tugas, na Guiné… Não direi nossos crimes, porque essa coisa da responsabilidad colectiva, enquanto povo, é uma monstruosidade jurídica: de facto, uma coisa são os alemães, outra foi o nazismo; uma coisa são os espanhóis, outra coisa foi o franquismo; uma coisão são os russos, outra coisa o czar da Rússia; uma coisa são os portugueses, e outra os Teixeira Pinto, os Alpoím Galvão, os Pides, etc.; uma coisa são os guineenses, e outra os assassinos de Amílcar e os pelotões de fuzilamento do Cumeré...

Por outro lado, nem tu nem eu nem os membros da nossa tertúlia se identificam com os pides, com administração colonial ou com certos elementos do exército colonial que, na Guiné, cometeram crimes de guerra e crimes contra a humanidade...Mesmo assim é precisos dizer onde e quando e por quem foram praticados: os crimes (Wiriamu, por exemplo, em Moçambique) têm texto e contexto...

Eu não vou esquecê-los, ignorá-los, branqueá-los, desculpá-los, muito enaltecê-los... Além disso, não sou cristão…

Vi, como muitos outros viram, em Bambadinca, o Uloma, um graduado felupe da 1ª Companhia de Comandos Africanos, a pavonear-se com a cabeça de um desgraçado de um camponês da região a norte do Enxalé (2)...

Ouvi o Seco Camará, guia e picador das NT no Xime, contar estórias macabras, em primeira mão. O José Carlos Mussá Biai deve ainda lembrar-se dele, ou talvez não: teria sete anos quanmdo ele morreu na Ponat do Inglês...

Sobre o Seco Camará escrevi eu (3): "Tenho mais dificuldade em me curvar perante a memória do Seco Camará, mandinga do Xime, embora reconheça que ele foi um valoroso e competente guia e picador das nossas tropas, durante anos. Mas também foi um homem para os trabalhos sujos da guerra: ele próprio me confessou um dia, com aquela autoridade e candura africanas de homem grande, que nos anos da política de terra queimada, da repressão brutal às populações do Xime que simpatizavam com (ou apoiavam) a guerrilha, ao tempo do Governador e Comandante-Chefe, General Arnaldo Schultz, entre 1964 e 1967, ele próprio era encarregue pelo capitão tuga do Xime para matar, à paulada, em pleno mato, os elementos suspeitos, capturados... No regresso ao quartel, o capitão, manga de bom pessoal, pagava-lhe um sumol (sic)"...

Tê-lo-ei desculpado ou desculpabilizado ? E esse capitão, manga de bom pessoal, por onde pára ? E o capitão do capitão, o tenente-coronel, o general, não sabiam de nada ? "O coitado do Seco Camarà, peça insignificante da máquina de guerra colonial, foi ao mesmo tempo um tenebroso carrasco e uma pobre vítima, como muitos outros guinéus, e nomeadamente dos pertencentes aos grupos étnicos islamizados... Morreu ingloriamente em Novembro de 1970, nesta operação que eu aqui evoco e em que participei [Op Abencerragem Candente]. Recordo-o, ainda hoje, com o seu inseparável cachimbo e o seu ar de cão rafeiro... Nunca saberei se algum se sentiu português. Sei apenas que foi um bravo soldado, e eu não posso julgá-lo com bases nos meus valores ou princípios éticos"...

Calma aí: contra o relativismo cultural, posso e devo pronunciar-me quando há suspeitas ou indícios de crimes de guerra ou crimes contra a humanidade ou violação dos direitos humanos (como a mutilação genital feminina, por exemplo). Que fique claro: nestas matérias a minha tolerância é zero... Mas nada não me impede de tentar pôr-me na pele do outro, compreender, perceber...

Ouvi, por outro lado, algumas estórias ao Abibo Jau e outros homens grandes da CCAÇ 12 sobre os anos de terror (3)... São testemunhos, eu não estava lá... Mas seria bom ouvir e registar o que se passou nesses anos em que a população guineense foi diabolizada, em que alguns grupos étnicos (balantas, beafadas, mandingas...) passaram a ser estigmatizados como turras ou potenciais aliados do inimigo... Ouvi, não vi, o que não é a mesma coisa...

Sobre este tópico (que é doloroso, para todos nós, e que ainda nos divide...), já foram publicados diversos posts (4). De qualquer modo, temos que ter serenidade, luxidez e espeírito de tolerância para falarmos destas coisas... Que fique clara a minha posição: nunca se tome a parte pelo todo; a grande maioria dos combatentes, de um lado e de outro, no difícil contexto daquela guerra, tiveram um comportamento que, à falta de melhor adjectivo, eu diria civilizado... (LG)

PS - Aproveitei para pedir ao João Tunes um comentário, no nosso blogue, sobre a recente atribuição do Prémio Camões 2006 ao turra Luandino Vieira, o escritor angolano, de origem portuguesa, autor de Luuanda ou de A Vida Verdadeira de Domingos Xavier ... O Prémio Camões, no valor de 100 mil euros, é o maior galardão literário dedicado à literatura portuguesa.
________

Notas de L.G.:

(1)Post de 23 de Maiod e 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

(2) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

(...) "Recordo certa vez que o Uloma (um colossal corpo sem espírito à força de tanta mensagem/massagem de espírito de corpo e de comando-máquina-de-guerra!...) se deixou fotografar, como um verdadeiro predador, exibicionista, imponente, boçal e triunfante, com um dos seus sangrentos e macabros troféus de caça, no regresso de um raide a território IN, a norte do Rio Geba, no regulado do Cuor. (Julgo que esta cena se passou no final de um operação de vários dias em que a 1ª CCA actuou na região a norte do Enxalé, de 30 de Outubro a 7 de Novembro de 1970, às ordens do BART 2917; de qualquer modo, foi antes da invasão de Conacri).

"À falta de caça grossa, tinha atirado sobre um pobre camponês, porventura balanta ou beafada, que cultivava, desarmado, o seu arroz na bolanha… Cortada a cabeça, rente ao pescoço, de um só golpe de catana, atara-lhe um pano branco que ligava a boca ao esófago, à laia de pega"…

(3) Vd. post de 25 de Abril 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)

(4) Vd. posts de:

30 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVI: Guerra limpa, guerra suja (1)

"O João Tunes acaba de publicar, no seu blogue, um post com o título Guerra limpa, guerra suja, em relação ao qual pede o feedback da nossa tertúlia. Com a devida vénia, passo a transcrever aqui o seu conteúdo, aguardando que este suscite os comentários dos nossos tertulianos. O assunto é delicado mas não podemos ignorá-lo ou escamoteá-lo. Um dia teríamos que falar disto, mesmo que fosse incómodo ou doloroso... L.G" (...).

30 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVII: Guerra limpa, guerra suja (2)

"Resposta do Marques Lopes ao João Tunes:

" (...) É verdade que a PIDE tinha esse principal papel, e eu assisti, em Bafatá, ao início da tortura de um prisioneiro por essa polícia e por um capitão de informações. Revoltei-me e fui-me embora, quando vi meter o homem num bidão de água até ele gorgolejar.

"Em Geba, os alferes que estávamos tivemos que nos afastar um dia (o Maçarico viu e que conte, o Luís Graça conhece-o) quando o capitão (que até morreu lá) e o primeiro-sargento deram tal enxerto de porrada a outro prisioneiro que este se borrou todo e se mijou.

"Em Barro, sei de um alferes que, duma só vez, matou dez elementos da população civil controlada pelo PAIGC" (...).

4 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIX: Guerra limpa, guerra suja (3)

"Texto de Luís Graça:

"(...)Também tenho outros revelações tenebrosas que os meus soldados (fulas) me contavam, nas noites longas que passávamos no mato, em operações, em emboscadas, em patrulhamentos ao Mato Cão (Rio Geba Estreito, para protecção da navegação civil, os barcos da Casa Gouveia que iam e vinham de Bafatá), em tabancas de autodefesa, aqui e acolá...

"Revelações da guerra pura e dura, em 1963, 64, 65, no tempo do Schultz, que terá sido uma verdadeira política de terra queimada e de genocídio (é a minha interpretação: nunca saberemos a extensão disto; há documentos da tropa que continuam secretos; além disso, branqueávamos os relatórios...)" (...).

28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos

"Excertos do Diário de um Tuga (L.G.):

"Nhabijões, 20 de Dezembro de 1969

" (...) Os balantas foram, segundo o testemunho insuspeito dos meus soldados (fulas), as maiores vítimas da repressão colonial nesta década. Seis anos depois (é difícil confiar na memória dos africanos que não usam calendário, mas isto ter-se-á passado em 1963, depois do início oficial da guerra), Samba Silate (cuja população terá sido parcialmente massacrada pela tropa ou pela polícia administrativa de Bambadinca, não posso precisar) e Poidon (regada a napalm pela força aérea) ainda despertam aqui trágicas recordações: evocam o tempo em que todo o balanta era suspeito aos olhos das autoridades militares e administrativas, presumivelmente coadjuvadas pela PIDE (Tenho dificuldade em explicar aos meus soldados, que não falavam português quando os conheci em Contuboel, o que é isso, o que é essa sinistra polícia…)" (...).

quarta-feira, 17 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P768: Ainda sobre os fuzilados... ou comentário ao texto do Jorge Cabral (João Tunes)


Guiné > Cartaz de proganda do Exército Português > Nós, os nossos e os outros... Foto: © A. Marques Lopes (2005)

Texto do João Tunes:

Camaradas Luís, Jorge e restantes tertulianos,

Só posso agradecer a oportunidade de poder ter lido o texto sereno, culto e frontal do nosso camarada Jorge Cabral.

O texto do camarada Jorge levanta umas quantas questões que me atrevo a comentar. Mais para conversar que para contrariar. E, se licença me é dada, aqui vai disto. Com toda a consideração para com o camarada Jorge, restantes tertulianos, sem meter em gaveta o meu modo próprio de pensar e que, humildemente, sujeito ao contraditório.

O camarada Jorge coloca, entre várias, uma questão interessantíssima vivida pela experiência convivial de todos nós, onde quer que tenhamos estado a cumprir o serviço militar no exército colonial. Refiro-me ao tribalismo versus consciência nacional na formação do povo da Guiné-Bissau.

Sabe-se que este processo, como demonstra ainda a experiência após-guerra, é longo por natureza, sobretudo pela altíssima concentração de etnias diferentes e muitas delas rivais num espaço delimitado pelas potências coloniais (provavelmente, se a Guiné-Bissau sobrou para Portugal, isso se deve à desvalorização que a França atribuiu àquele problemático e pobre pedaço).

Por outro lado, a potência ocupante (Portugal), acelerou o processo de unificação diferenciada (os fulas mantiveram-se na supremacia de aliados) para integrar a categoria de Província Ultramarina, evoluindo assim da anterior concepção colonial tout-court de conquista e ocupação e que gerou, na estratégia de alianças, a tradição da cooperação militar e repressiva portugueses-fulas. E o proteccionismo colonial-ultramarino sempre manifestado para com os fulas foi mitigado para retirar argumentos de mobilização, via rivalidade étnica, ao PAIGC que, enquadrado sobretudo por caboverdianos, tiveram os balantas como seu suporte principal de revolta. E um aspecto do nivelamento étnico próprio do colonialismo da fase da guerra, sobretudo exercitado por Spínola e pelos Chefes da PIDE, centrou-se na exploração do factor de máxima divisão comum, ou seja, contrapor o bom povo da Guiné, o da Guiné Melhor, ao mando caboverdiano instalado no PAIGC.

E isto, esta unificação perante um inimigo comum que ameaçava a supremacia de portugueses, fulas, balantas, mandingas, etc, julgo, foi o melhor que o colonialismo português, na fase da guerra colonial, conseguiu, incluindo o assassinato de Amílcar Cabral. Nunca mais que isto, como todos observámos nos vários chãos onde estivemos no terreno. E a estratégia militar portuguesa, evoluindo a partir da aliança exclusivista pró-fula, exprimiu-se na separação estanque entre os chãos das diversas etnias, delimitando áreas de conflito, concorrência e rivalidades. Que, do ponto de vista da ocupação militar, não foi, reconheça-se, obra pequena. O grosso do problema da construção, naquele mosaico étnico, de uma consciência nacional, sobrou sempre, para o PAIGC. Difícil, sempre a desafiar o impossível, como ainda hoje constatamos. Sobretudo problemática quando a autoridade do Estado se corrói e se gasta no cancro das suas impotências e atavismos de regressão tribalista.

Cada um de nós, na sua quadrícula, no seu chão, vivemos essa experiência de salamização da Guiné. Uns com fulas, outros com mandingas, outros com manjacos, outros com balantas, por aí fora. Talvez parecendo, na nossa percepção vivida, que os guineenses eram uma totalidade da etnia das tabancas em que servimos militarmente, a que nos calhou como companhia.

E foi nesse contacto, um contacto parcialíssimo pela natureza multi-étnica da Guiné, em que encontrámos os nossos amigos e camaradas guineenses que connosco apostaram, de vontade, à força ou por necessidade, no serviço pelo Exército Colonial, pela parte do ocupante. E, inevitável, a camaradagem do mesmo lado da barricada numa guerra, seja ela qual for, gera afectos e solidariedade. Como não entender isto?

No entanto, nada do que se reconhece, e tão respeitável que é, não diminui a base o problema: fomos ocupantes e tivemos, no terreno, colaboradores na ocupação. E muitos, quase todos, saímos da Guiné com o afecto que se reparte com os amigos. Os daqui e os de lá.

Feita a leitura simétrica, do ponto de vista do PAIGC, pode-se iludir que a leitura sobre o comportamento dos nossos amigos tivesse de ser forçosamente a oposta à nossa? Ao fim e ao cabo, não admitimos sequer que o indigno, reprovável, inaceitável, tratamento dado pelo PAIGC aos nossos amigos, sobretudo os vergonhosos fuzilamentos no após-independência, não foi assim tão diferente (terá mesmo sido pior?) do tratamento que aplicámos, quando fomos metralha e lei, durante a ocupação militar colonial, pelas nossas Forças Armadas e pela PIDE, aos capturados nas hostes do PAIGC e populações por eles controladas - ou se passavam para nós, mudando de campo, ou eram torturados, aprisionados e muitas vezes assassinados.

Porque não se lhes reconhecia causa e qualidade de militar inimigo, eles eram os turras, apenas turras, por isso marginais à aplicação da Convenção de Genebra. E todas as inflamadas celebrações que agora oiço à nossa histórica aversão e abolição da pena de morte, ao fuzilamento sem julgamento, ao acto em si de matar, faltaram, faltaram-nos, no momento talvez mais certo por ser o mais pedagógico e de legado civilizacional - terem sido feitas, essas mesmas celebrações, quando capturámos turras, lhes chegámos a roupa ao pelo ou, na maior parte das vezes, os entregámos aos esbirros da PIDE e à sua sanha assassina.

Mas, nessa altura, tínhamos o diáfano manto que nos cobria por sermos nós a autoridade. E o mando, sobretudo quando exercido por mão militar, não conjuga bem com o sentido de justiça e do património civilizacional? É mesmo. Pois é, ontem como depois. Ontem, os do PAIGC eram os outros. Hoje, continuam sendo nossos, os que de nos fizemos amigos no convívio e na camaradagem forjadas a combater os outros. E só nos pode indignar que os outros tenham sido patifes com os nossos. Ainda a diferença entre os nossos e os outros?

Emoção respeitável esta, mas emoção. A razão, ainda distante, talvez faça, um dia, o resto - o que falta para o equilíbrio da apreciação histórica, entendendo, então, porque estivemos ali e o que fizemos ali. E, sobretudo, porque nos custa tanto de lá sair, ou seja, tirar do aperto ao pescoço os nós dos laços das circunstâncias e das marcas da nossa juventude gasta lá, entre bolanhas e tabancas.

E hoje, velhos ou para lá caminhando, a saudade aperta, das terras e das gentes, sobretudo dos amigos, principalmente dos amigos distantes, ficando com a lágrima mais fácil, mas nem sempre a mais justa na sua repartição equilibrada pelos caminhos da memória. Lá chegaremos, confio eu. Senão, alguém lá irá ter (por nós).

Abraços amigos para todos os camaradas tertulianos.
João Tunes

sexta-feira, 12 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P748: Vítimas e carrascos, amos e servos, sacanas e traidores (João Tunes)


Guiné-Bissau > Região Leste > Secytr L1 > Bambadinca > Missirá : Pelotão de Caçadores Nativos nº 54, em 1970. Tugas e nharros eram pessoas, tem um rosto, tinham um nome...

"Na 1ª fila da direita para esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Mário Armas; o terceiro é o 1º cabo Capitão; na 2ª fila da direita para a esquerda: o primeiro é o soldado Amarante; o segundo é o soldado Bulo; o quinto é o furriel miliciano Inácio; o sexto é o 1º cabo Tomé; o nono é o soldado Samba; na 3ª fila da direita para a esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Sousa Pereira; o quinto é o alferes miliciano Correia (comandante de pelotão); o sétimo é o 1º cabo Monteiro; o oitavo, africano, é o soldado Pucha (era guerrilheiro do PAIGC, foi capturado e ficou no nosso exército)"

Foto e legenda do © Mário Armas de Sousa (2005)

Texto do João Tunes:
Caro Camarada e Amigo Luís,

Claro que aceito todos (repito: todos) os argumentos e sensibilidades que se exprimiram e venham a exprimir sobre o drama dos guineenses que, tendo lutado pelo lado colonial, no exército colonial, em que também eu servi, nós todos servimos, foram vítimas, no pós-guerra, de ajustes de contas entre guineenses. Mas, como não há almoços grátis, aceito todos os argumentos e sensibilidades esperando que as minhas tenham lugar na formatura (1).

Concordo com o argumento que assenta no raciocínio de que o exército colonial devia ter protegido, em plano de absoluta igualdade, todos os que o serviram. Da única forma que podia ter sido viável - trazê-los para a Sede do Império (extinto). Como, aliás, se fez relativamente aos pides. Até porque, falando de escumalha, não encontro medida para achar que um pide fosse melhor rês que um guineense que traiu o seu povo, lutando pelo lado do ocupante, o nosso lado, o lado pelo qual combatemos. Pois que um torturador e assassino impune, um homem que fez profissão da tortura e do desmando, também renega a sua pátria - a da humanidade, do direito e da civilização. Nisso, não o considero melhor que o guineense que lutou pelo Império e contra a Guiné.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > 1969 ou 1970 > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba. No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (salvo erro), vê-se o Furriel Miliciano Tony Levezinho, ao meio, ladeado pelo 1º Cabo Branco (à sua direita) e pelo 1º Cabo Alves (à sua esquerda) (LG).
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).

Devíamos ter trazido todas as nossas porcarias próprias dos ocupantes que fomos. Recolhendo o nosso lixo mais o lixo que ajudámos a criar, multiplicar e acumular. Se trouxemos de volta militares culpados (embora sem culpa formada) de crimes de guerra, mais outros culpados de invasão de países estrangeiros tentando executar em terra alheia golpes de estado, se trouxemos impunes violadores de bajudas, se trouxemos vaidades com os nossos roncos, se trouxemos essa persistente distinção entre NT e IN, se trouxemos um falar em que se mantém o termo turra para aqueles que combatemos e nos combateram, se até Spínola trouxemos e ainda o fizemos Presidente, se trouxemos a eterna incapacidade de entender que fizemos uma guerra que perdemos e em que cada um alguma coisa de si ali inutilmente perdeu (pelo menos, parte da sua juventude), se nunca apurámos se todos os peitos medalhados com cruzes de guerra e torres e espadas o foram por valentia cometida por homens leais na guerra ou se têm, á mistura, alguns peitos inchados de crime e de abusos, se trouxemos os pides e outros mais, se trouxemos essa forma atávica de olhar os guineenses de cima para baixo e ainda se ouve falar deles como sendo simpáticos bárbaros que sem nós não passam, devíamos ter trazido, e protegido, todos os que nos serviram (como nós servimos, acreditando ou não na bondade do projecto imperial). Porque as pessoas decentes não deixam lixo em casa alheia, trazem-no para depositar nos seus contentores caseiros, suportando-lhes o mau cheiro, inclusivé um que é super pestilento - o da traição ao seu povo.

Afinal e talvez, no essencial, estejamos todos de acordo. Pelo menos no repúdio quanto às execuções sumárias, esse macaquear de justiça dos vencedores guerreiros, iníqua, cruel e desumana, de que foram vítimas os traidores da Guiné e nossos companheiros de barricada colonial. Porque é uma vergonha que nos deve envergonhar. Nem menos. Pior, abandonando-os ao ajuste de contas, cometemos, nós outros - os coloniais, uma dupla sacanice - servimo-nos da sua traição de sacanas, depois deixámos os sacanas à mercê do destino pior que se reserva aos sacanas (morder o pó da vingança). Daí até se transformar um sacana, o melhor que seja entre os melhores sacanas, porque abandonado pelo amo a quem serviu em troca de pré e rancho, em herói ou patriota de pátria ocupante (o que é, como identidade, um anacronismo), além do silêncio conveniente com os nossos muitos milhares de sacanices e dadas em desconto para o rol inimputável das contingências da guerra, vai um passo, digamos, de grande (demasiado) tamanho, com alguma desfaçatez e uma mão bem cheia de hipocrisia insuflada de duplicidade moralista.

E, perante um tal eventual convite a salto, se para ele fosse convidado, que não foi nem é o caso, eu não me mexo, fico aqui a ler-vos com toda a atenção e consideração, concordante ou discordante, mas quieto, em sentido. A ver o batalhão passar. Mas sem dar um cêntimo para esse peditório.

Abraços para ti e para todos os estimados camaradas tertulianos.
João Tunes

Uma versão ligeiramente diferente deste texto foi publicada no Água Lisa (6)
___________

Nota de L.G.

(1) Sobre este tópico (directa ou indirectamente com ele relacionados), já foram publicados diversos posts no nosso blogue. Eis uma lista indicativa:

11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

4 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIX: Guerra limpa, guerra suja (3)

21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXI: O juramento dos guerrilheiros do PAIGC

8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)

10 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXVIII: A sanha revolucionária e os meus Jagudis (A. Marques Lopes)10 de Fvereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXV: Uma dívida que Portugal nunca pagou aos seus soldados africanos (Mário Dias)

11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXII: Os ajustes de contas do PAIGC: o caso do Candé de Quebo (Zé Teixeira)

15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCV: A última noite em Canjadude (CCAÇ 5) (João Carvalho)

6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCIV: Panfleto de propaganda, em crioulo, do PAIGC: Irmãos...(1970)

4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)

6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)

9 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXVI: A RTP1 e os 'Órfãos de Pátria': a montanha pariu um rato (José Martins)

10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLII: O poilão dos fuzilamentos em Bambadinca (David Guimarães)