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sábado, 29 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24266: Os nossos seres, saberes e lazeres (570): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (100): Veloso Salgado no MNAC – Museu do Chiado: O maravilhamento de obras desconhecidas de amigos franceses (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Vale a pena recapitular as razões da exposição intitulada Veloso Salgado, de Lisboa a Wissant, que já dera exposição no Museu de Boulogne-sur-Mer, foi alvo de alterações em Lisboa decorrentes do uso de peças da doação da neta do pintor, neste acervo apareceu correspondência inédita que revelou uma faceta até hoje desconhecida do bolseiro Veloso Salgado, que foi o primeiro pintor português na Bretanha. Nos ateliês de Paris, enquanto bolseiro, fez amizades com pintores que lhe permitiram produzir imagens luminosas, mas também melancólicas, são reveladoras de uma sensibilidade expressiva do artista para temáticas sociais, mostram uma compreensão do pintor face à paisagem bretã e, fundamentalmente, se no retrato Veloso Salgado é imbatível na observação psicológica, o acervo de obras dos seus amigos permite revelar uma enorme cumplicidade como é percetível em temas como "A terra prometida", a cenografia com que o pintor mostra Jesus, por exemplo. A todos os títulos, uma exposição surpreendente, digna da nossa visita.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (100):
Veloso Salgado no MNAC – Museu do Chiado:
O maravilhamento de obras desconhecidas de amigos franceses (2)


Mário Beja Santos

Atrai-me a pintura de Veloso Salgado (1864-1945), conhecido retratista, paisagista e pintor de grandes espaços (designadamente públicos) enquadrado no movimento da segunda geração naturalista, rótulo que considero insuficiente para alguém que experimentou um pouco de tudo entre o realismo e romantismo até às primícias do modernismo. O MNAC – Museu do Chiado já lhe consagrara uma retrospetiva onde claramente se manifestava, no último período dos seus trabalhos, uma total disponibilidade para transitar para formulações fora do academismo pictórico.

Esta exposição intitula-se “De Lisboa a Wissant”, espraia-se por todo o seu processo artístico e a sua formação, este homem de origem galega formou-se em Lisboa foi professor na Escola de Belas Artes, teve intervenção em grandes espaços decorativos, caso do Palácio da Bolsa, da Escola de Medicina do Porto, da Assembleia da República. Este acervo vem na continuidade da exposição apresentada no Museu de Boulogne-sur-Mer, que revelou detalhes até agora desconhecidos do percurso artístico de Veloso Salgado. A exposição do MNAC foca-se sobre os estudos e a carreira artística de Veloso Salgado em França enquanto bolseiro, entre 1888 e 1895, nela se expõe obras inéditas desse período. Segundo a documentação que o MNAC distribui, a exposição acolhe 70 obras, põe enfoque no seu itinerário francês (Paris, Bretanha e Wissant), desvela a ligação de uma amizade com os artistas Virginie Demont-Breton e Adrien Demont e a Escola de Wissant. É a primeira vez que se dá a público este diálogo de Veloso Salgado com os seus pares franceses.

Prefiro agora ser pouco respeitador do itinerário da exposição, creio que o leitor sabe que estamos a falar do itinerário francês e das amizades de Veloso Salgado com um conjunto de artistas desse país, houve um legado da neta do pintor, Conceição Veloso Salgado, onde se integravam pinturas, documentação (entre ela correspondência) e um núcleo significativo de provas fotográficas. A curadora da exposição, Maria de Aires Silveira, analisou a correspondência trocada com amigos portugueses em França e aquelas amizades que se firmaram em Paris e na Escola de Wissant, no norte da França. A obra escolhida como imagem da exposição é o retrato da criança intitulada “Flor do Mar”, destaca a aprendizagem junto de artistas franceses numa experimentação que vai além do habitual reconhecimento da sua pintura académica, introduzindo uma modernidade inédita no seu percurso artístico e oferecendo uma nova visão da sua produção, isto escreve Maria de Aires Silveira no texto da exposição.

Veloso Salgado partiu para Paris em 1888, já então naturalizado português, ali trabalhou com o mestre paisagista Jules Breton, relaciona-se com a sua filha e genro, o casal de artistas Virginie Demont-Breton e Adrien Demont e integrou o grupo da Escola de Wissant.

“Flor do mar”, Veloso Salgado, 1894. Oferta de casamento à sua mulher
Entre Paris e Wissant, Veloso Salgado realizou o retrato de Virginie Demont-Breton, bem como do marido. São dois retratos poderosos em sensibilidade estética e qualidade técnica. Chama-se à atenção para a expressividade, a observação psicológica da retratada, é pintura de primeira água. Existe uma importante correspondência, amigável e profissional, trocada entre 1896, nos espólios de Veloso Salgado em Lisboa e Porto, e, numa coleção privada, em França. A descoberta destes quadros e o envolvimento do autor com os paisagistas de Wissant são determinantes para uma nova reflexão sobre as obras de Veloso Salgado e o seu percurso artístico.
Veloso Salgado deslocou-se a Wissant em outubro de 1892, onde o casal Virginie-Adrien construíram a casa, o Typhonium, num local considerado a “Terra Prometida” e frequentado por um grupo de paisagistas com afinidades estéticas, como mostra esta bela tela de pintor da Escola de Wissant.
É um esboço de retrato de José Teixeira Lopes, e o que mais prende a atenção do espetador é a dimensão dada por Veloso Salgado ao rosto do arquiteto, o claro-escuro do rosto, a fixação do olhar, um registo subtil que deixa a sensação de que se tinha ido mais longe no naturalismo e havia um claro entusiasmo nas primícias do modernismo. Mas o que prevalece é mesmo uma observação psicológica.
Um quadro da Bretanha, uma luminosidade perfeita e uma conjugação bem clara das pautas do naturalismo
Um quadro melancólico num cemitério bretão
O retrato de Julieta Hirsch, modelo do pintor, uma as obras reveladoras do talento do jovem Veloso Salgado, o que desperta a atenção para além da capacidade e observação psicológica da retratada são os indícios da modernidade, nada comum na época.
“Cabeça de estudo”, Veloso Salgado, 1887
“Jesus”, Veloso Salgado, 1922
“Velhice (Interior de Igreja abandonada)”, Bretanha, pintura de Veloso Salgado, 1890

Esta obra faz parte de um conjunto de trabalhos marcados pela melancolia, resta saber que mensagem insere o pintor através de uma igreja que parece ter sido vandalizada ou simplesmente abandonada, domina a tela a postura de um velho, talvez em oração, talvez derrancado pela tempestade que ali passou, Veloso Salgado enche a tela de luz, talentosamente põe no sénior o ponto focal da obra, rodeado do mistério das interrogações a que não podemos responder.

A viagem prossegue e vamos bater à porta de outra exposição.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24241: Os nossos seres, saberes e lazeres (569): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (99): Veloso Salgado no MNAC – Museu do Chiado: O maravilhamento de obras desconhecidas de amigos franceses (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 22 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24241: Os nossos seres, saberes e lazeres (569): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (99): Veloso Salgado no MNAC – Museu do Chiado: O maravilhamento de obras desconhecidas de amigos franceses (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Trata-se de uma surpreendente revelação de uma faceta desconhecida de Veloso Salgado. Esta exposição foi apresentada na Temporada Cruzada Portugal-França, no Museu de Boulogne-sur-Mer, em França, no ano passado. Tudo começou com a doação da neta de Veloso Salgado de um acervo de centenas de peças e de uma correspondência que revela grandes amizades deste mestre do retrato e da paisagem tanto com artistas portugueses, caso de Teixeira Lopes e Ventura Terra como com um conjunto de artistas franceses com quem manteve relações afetuosas toda a vida, tendo mesmo integrado o Grupo da Escola de Wissant no norte da França. Veloso Salgado tornou-se um reconhecido artista na zona de Lille. No seu legado, encontraram-se obras destes pintores, agora patentes ao público. Promete-se continuar, até para fazer referência a outros eventos que se podem visitar no MNAC - Museu do Chiado.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (99):
Veloso Salgado no MNAC – Museu do Chiado:
O maravilhamento de obras desconhecidas de amigos franceses (1)


Mário Beja Santos

Atrai-me a pintura de Veloso Salgado (1864-1945), conhecido retratista, paisagista e pintor de grandes espaços (designadamente públicos) enquadrado no movimento da segunda geração naturalista, rótulo que considero insuficiente para alguém que experimentou um pouco de tudo entre o realismo e romantismo até às primícias do modernismo. O MNAC – Museu do Chiado já lhe consagrara uma retrospetiva onde claramente se manifestava, no último período dos seus trabalhos, uma total disponibilidade para transitar para formulações fora do academismo pictórico.
Esta exposição intitula-se “De Lisboa a Wissant”, espraia-se por todo o seu processo artístico e a sua formação, este homem de origem galega formou-se em Lisboa foi professor na Escola de Belas Artes, teve intervenção em grandes espaços decorativos, caso do Palácio da Bolsa, da Escola de Medicina do Porto, da Assembleia da República. Este acervo vem na continuidade da exposição apresentada no Museu de Boulogne-sur-Mer, que revelou detalhes até agora desconhecidos do percurso artístico de Veloso Salgado. A exposição do MNAC foca-se sobre os estudos e a carreira artística de Veloso Salgado em França enquanto bolseiro, entre 1888 e 1895, nela se expõe obras inéditas desse período. Segundo a documentação que o MNAC distribui, a exposição acolhe 70 obras, põe enfoque no seu itinerário francês (Paris, Bretanha e Wissant), desvela a ligação de uma amizade com os artistas Virginie Demont-Breton e Adrien Demont e a Escola de Wissant. É a primeira vez que se dá a público este diálogo de Veloso Salgado com os seus pares franceses.

Abertura da exposição, com peças do seu ambiente familiar e doméstico
Retratos do jovem artista. Ele começou a trabalhar com o seu tio desde os 10 anos na Litografia Lemos (situava-se na rua Ivens), frequentou a partir de 1878 a Academia Real de Belas Artes, chamou a atenção dos seus professores, caso do escultor Simões de Almeida. Distinguiu-se pela sua profunda capacidade de observação psicológica, a exposição exibirá o Retrato de Julieta Hirsch, que foi seu modelo, uma obra pontuada por uma modernidade incomum na época.
Veloso Salgado
O Éden-Hotel, chalé de férias de Veloso Salgado e onde viveu a sua neta Conceição

A sua neta, Conceição Veloso Salgado legou ao MNAC o acervo concentrado na casa de família, em Lisboa, na rua da Quintinha e no chalé de férias, em Colares. Trata-se de uma importante coleção composta por 400 peças, abarca pintura, desenho, escultura, joalharia, medalhas, mobiliário e um significativo acervo de fotografias do século XIX. Assim se abriu a perspetiva de estudar a correspondência de Veloso Salgado com os artistas franceses seus amigos, correspondência que revela uma cumplicidade e uma profunda amizade que durou toda a vida. Coube a Maria de Aires Silveira, conservadora do MNAC este estudo que permitiu avançar tal rede de contactos.
“Casas pobres”, pintura de Adrien Demont, 1890
Fernand Stiévernart, “Pôr-do-sol”, 1895
Veloso Salgado, “Preto e rosa”, 1872

Veloso Salgado, enquanto bolseiro do Estado português, trabalhou em Paris onde fez conhecimento e nasceu amizade com Viriginie Demont-Breton e Adrien Demont, Félix Planquette e Fernand Stiévenart, tudo aparece confirmado nos quadros que constavam da sua coleção. Foi assim que se descobriu na dita correspondência, as interações de Veloso Salgado com outros artistas, também bolseiros portugueses em França, caso do escultor Teixeira Lopes e do arquiteto Ventura Terra. Nesta exposição comprova-se o interesse de Veloso Salgado pela captura de cenas bretãs, ficam evidentes as suas ligações com o grupo de paisagistas da Escola de Wissant, no norte da França e com artistas praticamente desconhecidos em Portugal. A exposição permite, deste modo reatualizar o estudo do percurso artístico de Veloso Salgado e a sua cumplicidade com estes artistas franceses.
Trabalhando na Bretanha, Veloso Salgado deixou-nos imagens luminosas da região, anos depois a sua obra vai transmitir sentimentos melancólicos e místicos, caso do quadro Velhice. Despedimo-nos hoje com a promessa de continuar a falar de Veloso Salgado e de outro acervo do MNAC, mostrando uma obra dessas relações afetuosas que estabeleceu e onde é incontestável a sua mestria no campo de observação psicológica.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24225: Os nossos seres, saberes e lazeres (568): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (98): Vestígios soltos de dias felizes, custa apagá-los sem haver partilha (Mário Beja Santos)

terça-feira, 28 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"


Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade).

Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus (tribunal da  Santa Inquisição ), ao fundo, e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito. O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira


1. Estamos a publicar uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.),  mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

São textos que ele foi buscar ao seu "baú", à sua antiga página na ENSP/NOVA onde ensinou e investigou, durante quase quatro décadas, ajudando a formar médicos de saúde pública, médicos do trabalho, médicos de clinica geral e familiar, administradores hospitalares, gestores de serviços de saúde, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, técnicos de higiene e segurança no trabalho, educadores e promotores de saúde, engenheiros, mestres, doutores, etc.... 

A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

O nosso editor, que está no Norte até à Páscoa por motivos de força maior, manda dizer que " espera, ao menos, que a leitura destes textos desperte algum interesse, tenha algum proveito para os nossos leitores e suscite alguns comentários (críticos)"...




Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de très dias fedem"

4. Hospital, pobreza e caridade

4.1. "Mal por mal antes cadeia que hospital"


Hospital e prisão estão sempre associados a lugares tenebrosos onde mais tarde ou mais cedo se vai parar e onde, aparentemente, se apagam as diferenças sociais:

  • "Na cadeia e no hospital todos tempos um lugar";
  • "Quem de puta faz cabedal vai acabar na cadeia ou no hospital";
  • "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer".

Mas mesmo assim, "mal por mal, antes cadeia que hospital" (Quadro X). Mas o que é o hospital ?

Historicamente, é uma criação da cristandade da Alta Idade Média;

Etimologicamente, é um termo que vem do baixo latim hospitale (lugar onde se recebem pessoas que necessitam de cuidados, alojamento, hospedaria), do latim hospitalis (relativo a hospites ou hospes, hóspedes ou convidados) (Graça, 1996).

Na Europa medieval, que irá ser profundamente marcada pela:

 (i) terrível fragilidade da condição humana,;

 (ii) pobreza absoluta e  

(iii) escatologia cristã, 

esses hóspedes eram originariamente não só os doentes pobres mas qualquer pessoa necessitada de qualquer outro tipo de cuidados (alojamento, alimentação, abrigo, protecção, ajuda, conforto, assistência, etc.): não só os enfermos, os incapacitados, os deficientes, os velhos, os pobres, os vagabundos como também os peregrinos e os viajantes.

Na Alta Idade Média, o hospital confundia-se com a albergaria ou o hospício (do latim hospitiu, alojamento, hospitalidade, também derivado de hospes). Em geral, ficava junto às catedrais ou aos mosteiros, em conformidade com as instruções dos concílios ecuménicos de Niceia (325) e de Cartago (398).

Com;

(i)  a progressiva cristianização do império romano (édito de Milão, em 313, que concede liberdade de culto aos cristãos);

(iii)  transformação do cristianismo em religião de Estado (em 380);

(iii) e  sobretudo a divisão do império (em 395), as invasões dos bárbaros e o fim do império romano do Ocidente (em 476),

 irão surgir, em Constantinopla, diferentes tipos de estabelecimentos com funções assistenciais, que depois se generalizam a toda a cristandade do Ocidente, na Alta Idade Média, com o desenvolvimento do monaquismo, o movimento das Cruzadas e as peregrinações, com particular destaque para a peregrinação a Santiago de Compostela (Rosen, 1960; Graça, 1996):

  • Xenodochia (albergarias para os estrangeiros, os peregrinos, os viajantes e todos aqueles que, em trânsito ou viagem, necessitassem de alojamento ou assistência);
  • Nosocomia (hospitais ou enfermarias que prestavam cuidados aos doentes ou enfermos pobres);
  • Gerontochia (estabelecimentos geriátricos, ou , pelo menos, destinados ao acolhimento de idosos);
  • Ptochia (hospícios ou albergues para os pobres que não fossem doentes);
  • Lobotrophia (locais destinados aos leprosos ou doentes vítimas de epidemias);
  • Orphanotrophia (orfanatos);
  • Brephotrophia (locais destinados a receber e a criar as crianças abandonadas ou sem família).
De um modo geral, as instituições de assistência criadas pelo império romano do Oriente, sob o impulso do cristianismo, tinham regulamentos próprios, além de um corpo de pessoal com funções de administração e de direcção técnica. O código justiniano, publicado em 534, contem já uma série de cláusulas sobre a administração hospitalar:

  • em termos jurídicos, os estabelecimentos hospitalares são vistos como uma parte distinta do património geral da Igreja, estando sob a tutela administrativa e religiosa do bispo;
  • a responsabilidade pela manutenção e conservação do seu património é, entretanto, atribuída à figura de um provedor, em geral nomeado pelo bispo, pelo fundador do estabelecimento ou pelos seus herdeiros (Imbert, 1958).

Além disso, o hospital bizantino estava já organizado por serviços, em função do sexo e da patologia e, seguramente, melhor equipado em termos de pessoal (médico e de apoio) que o seu sucedâneo do Ocidente cristão medieval (Rosen, 1963).


4.2 A doença como 'punição e expiação' e o hospital como 'instituição totalitária'


Curiosamente, há um ditado (provavelmente velho... e "os ditados velhos são evangelhos"!) que nos vem lembrar que, apesar do dever de caridade e de hospitalidade, "o hóspede e o peixe aos três dias fedem", isto é, cheiram mal, estão a mais, tornam-se um fardo.

Não haverá porventura nada de mais cruel, na literatura da administração hospitalar, do que esta insinuação de que, sendo o doente um "hóspede", ele é sempre um encargo e, em última análise, é indesejável. E também não há discurso sobre a humanização do hospital que possa resistir ao efeito corrosivo e perverso desta ideia da doença como punição e expiação.

Médicos e enfermeiros falam muito da atitude regressiva do doente, em geral, e do doente hospitalizado, em particular. A infantilização seria um dos traços característicos da chamada psicologia do doente. Ora, a regressão foi, desde sempre, um mito criado e alimentado pelo próprio sistema hospitalar. Sabemos que nem todos os doentes são infantilizantes, nem todos os doentes se deixam infantilizar. Há doentes "difíceis", "reivindicativos", que exigem ser informados, no dia-a-dia, sobre o seu estado de saúde e o tratamento que lhe está a ser administrado, etc. Trata-se de um atitude que tem muito a ver com o status (social, económico e cultural) do doente.

A relação material de dependência, provocada pela doença, não deve ser confundido com regressão. Esta, sim, seria um produto do sistema hospitalar: 

"A desapossessão do doente em relação à sua identidade, a expropriação do seu corpo entregue à ciência e aos médicos, o mito do saber ao serviço do doente, o mito da solidariedade social fazem do doente um ser submisso, infantil e em estado de regressão" (Grasset, 1975: 217).

Tais noções (regressão e infantilização) serviriam, sobretudo, para ocultar a imposição de um modelo de comportamento, o da submissão do doente ao pessoal e à instituição hospitalares, o que põe o problema da permanência, mesmo no hospital dos nossos dias, de traços da total institution (Goffman, 1967; Walton, 1988).

Segundo Goffman (1975), as instituições totalitárias vêm quebrar as fronteiras que separam habitualmente os três campos de actividade fundamentais do indivíduo, a casa, o trabalho e o lazer:

  • em primeiro lugar, as pessoas estão colocadas sob uma única e mesma autoridade (por ex., o director do hospital psiquiátrico, o capitão do navio da marinha mercante, o comandante do aquartelamento militar, a madre superiora do convento, o reitor do seminário, o director do estabelecimento prisional);
  • em segundo lugar, cada fase da actividade quotidiana desenrola-se, para cada indivíduo, numa relação de grande promiscuidade com um elevado número de outros indivíduos, submetidos às mesmas regras, procedimentos, deveres e obrigações (caso do recluso no estabelecimento prisional, do recruta na unidade militar, do idoso no lar de terceira idade, ou do doente crónico, moribundo ou terminal, acamado no hospital de retaguarda ou na ´clínica da morte’);
  • em terceiro lugar, todos os períodos de actividade são regulados segundo um programa estrito, isto é, todas as tarefas estão "encadeadas", obedecem a um plano imposto "de cima" por um sistema explícito de regulamentos cuja aplicação é assegurada por pessoal técnico ou administrativo (guardas prisionais, prefeitos, vigilantes, médicos, enfermeiros, sargentos e oficiais, etc.);
  • finalmente, as diferentes actividades assim impostas são por fim reagrupadas segundo um plano único e racional, concebido expressamente para responder ao fim ou missão oficial da instituição (custódia dos doentes mentais inimputáveis, tratamento psiquiátrico do doente esquisofrénico, reinserção social do jovem delinquente, recuperação do doente acamado, formação militar do recruta).

O traço essencial destas "instituições totalitárias" seria a aplicação ao indivíduo dum tratamento colectivo (e, nalguns casos, coercivo) de acordo com um sistema burocrático que cuida de todas as suas necessidades

Para a generalidade dos doentes, a hospitalização é sentida com um misto de culpa e de obrigação:
  • culpa, por um lado, de estar doente, representando um encargo para os outros (a família, a empresa, a sociedade, o Estado, os médicos e os outros profissionais de saúde, etc.);
  • obrigação, por outro, de se curar o mais rapidamente possível, de ser um doente colaborante, complacente, bem comportado, etc.

Estes dois sentimentos variam também em função da classe social e do sistema de saúde: quando o doente se sente, se reconhece e se assume como um utente, consumidor ou cliente, naturalmente que ele está em melhores condições para negociar, numa base mais equitativa. 

 De qualquer modo, o poder dos profissionais assenta, históica e culturalmente, sobretudo neste duplo sentimento de obrigação e de dependência (Graça, 1996).


Quadro X— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o hospital, a loucura, a misericórdia e a caridade

 

Objecto

Provérbio

Albergaria Hospital

  • "A mandar nunca ninguém foi ao hospital"

  • "Demandar e urinar levam o homem ao hospital"

  • "Doente que inspirra, fora do hospital"

  • "Mal por mal, antes na cadeia do que no hospital"

  • "Mal por mal antes cadeia que hospital e antes justiça que misericórdia"

  • "Na cadeia e no hospital só os amigos verás"

  • "Na cadeia e no hospital todos temos um lugar"

  • "Na cadeia, no jogo e na doença se conhecem os amigos"

  • "Na prisão e no hospital vês quem te quer bem e quem te quer mal"

  • "O homem que vive na taberna acaba por morrer no hospital"

  • "O hóspede e o peixe aos três dias fedem"

  • "Obra meninal põe o patrão na cadeia e o mestre no hospital"

  • "Os hóspedes  duas alegrias dão: quando chegam e quando se vão"

  • "Peregrinos, muitas pousadas, poucos amigos"

  • "Quando pobre come frango, um dos dois está doente"

  • "Quem de puta faz cabedal vai acabar na cadeia ou no hospital"

  • "Quem quiser comer arroz sem sal vá para o hospital"

  • "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer"

Caridade Misericórdia

  • "A caridade bem entendida começa por nós"

  • "A caridade dos outros connosco é gostosa; a nossa para os outros é custosa"

  • "A misericórdia dada é duas vezes abençoada"

  • "Caridade de rico é mania de dinheiro"

  • "Dar esmola não empobrece"

  • "Deus manda ser bom, mas não manda ser parvo"

  • "É preciso cuidar dos pobres, antes que eles cuidem de nós"

  • "Esmola a Mateus, esmola aos teus"

  • "Foi-se embora a caridade e ficou a carestia"

  • "Irmandade de Nossa Senhora Não-te-rales"

  • "Ir com alguém às obras de misericórdia"

  • "Junta-se o Hospital com a Misericórdia"

  • "Mais vale ser invejado do que misericordiado"

  • "Mãos generosas, mãos poderosas"

  • "Misericórdia não deve negar-se a quem pede" (Séc. XVI)

  • "Não dá quem tem dá quem quer bem"

  • "O que cair da mão dá-o a teu irmão"

  • "Os pobres têm tempo"

  • "Ouvir missa não gasta tempo, dar esmola não empobrece"

  • "Quem dá aos pobres, empresta a Deus"

  • "Quem  e reparte e não fica com a maior parte ou é burro ou no partir não tem arte"

  • "Quem  e torna a tirar ao Inferno vai parar"

  • "Quem deu dará, quem pediu pedirá"

Louco Loucura

  • "Ao doido doideiras digo"

  • "Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro"

  • "Com o Diabo no corpo"

  • "Com mulher louca, andem as mãos e cale-se a boca"

  • "Cristo curou cegos e aleijados mas não malucos"

  • "De doido,  pedrada ou palavrada"

  • "De poeta e de  louco, todos têm um pouco"

  • "É preciso ser doido para trabalhar aqui"

  • "Quem de doidice adoece tarde ou nunca guaresce"

  • "Mal que não tem cura chama-se loucura"

  • "Não há louco sem acerto, nem sábio sem loucura"

  • Nem todos os doidos estão nas palhas"

  • "O tempo tudo cura, menos velhice e loucura"

  • "Para maluco maluco e meio"

  • "Três coisas se querem atadas: loucos, negócios e papéis"

    

4.3. "Dar aos pobres é emprestar a Deus"


Não havia, no entanto, uma clara distinção entre o cuidar dos corpos e o cuidar das almas. Segundo a mentalidade cristã da época, a doença, o sofrimento, a pobreza e a morte estavam submetidas à vontade divina (como já vimos anteriormente, na
Parte I):

A assistência aos enfermos e aos demais "pobres de Cristo" era, por sua vez, considerada como uma virtude cristã e como uma manifestação da misericórdia de Deus. Em termos metafóricos, diríamos que a caridade era vista então como uma espécie de certificado de alforro: "Dar aos pobres é emprestar a Deus" (Quadro X), ou seja, quantas mais boas obras amealhasse na terra, mais garantias tinha um cristão de alcançar o céu e, com ele, a salvação eterna.

A caridade (sob a forma da esmola) representava um investimento seguro que não punha em causa a "ordem natural das coisas":


Por fim, é bom não esquecer que - mesmo se às vezes "caridade de rico é mania de dinheiro" - Deus nosso senhor "manda ser bom, mas não manda ser parvo". Ou por outras palavras: "Quem dá e reparte e não fica com a maior parte ou é burro ou no partir não tem arte".

É com base neste ethos cristão, que se vão fundar milhares de hospitais e outros estabelecimentos similares, ao longo de séculos, de Constantinopla a Lisboa. Não admira, por isso, que o hospital cristão medieval vá ser estruturado, até na sua própria arquitectura e na sua organização espacio-emporal, como a casa de Deus, um lugar onde, mais do que curar a doença, se cuida sobretudo da salvação da alma. Daí os primitivos hospitais em França adoptarem a designação de Hôtel-Dieu, como o de Paris, fundado no Séc. VII (Imbert, 1958).

Nos finais do Séc.XV, surgem entretanto as primeiras misericórdias portuguesas Esta designação advém do facto de serem instituições, com o estatuto de confrarias e irmandades, que se propunham realizar as obras de misericórdia. De acordo com a tradição cristã e a interpretação do Evangelho segundo São Mateus, essas obras eram em número de catorze: sete espirituais e sete corporais, incluindo o curar dos enfermos (Graça, 1997)(Quadro XI).




Quadro XI - As catorze obras de misericórdia

(i) Sete espirituais

  • A primeira he ensinar os simprezes
  • A segunda he dar bom conselho a quem o ped
  • A terceira he castigar cô caridade os que erram
  • A quarta he cõsolar os tristes descõsolados
  • A quinta he perdoar a quem nos errou
  • A sexta he sofrer as jnjurias cõ paciençia
  • A setima he Rogar a ds pellos viuos e pellos mortos

(ii) Sete corporais
  • A primeira he remir captiuos e visitar os presos
  • A segunda he curar os enfermos
  • A terceira he cubrir os nus
  • A quarta he daar de comer aos famintos
  • A quinta he daar de beber aos que ham sede
  • A sexta he daar pousada aos peregrinos e pobres
  • A setima he enterrar os finados
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Fonte: 
Compromisso da Misericórdia de Évora (1516), cit. por Graça (1997)


A partir do início do Século XVI, assiste-se em Portugal a um movimento de concentração dos hospitais e demais estabelecimento assistenciais até então existentes, tendo o poder real um papel absolutamente decisivo nesse movimento.

É sobretudo a partir de D. João II (1455-1495) e, portanto, já em plena época dos Descobrimentos, que surgem as grandes instituições de assistência, sob a forma de hospitais gerais: Lisboa (1492-1504), Coimbra (1508), Évora (1515), Braga (1520), Goa (1520-1542), etc. em resultado da própria concentração do poder político e económico na figura do rei.

O Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, é o exemplo mais paradigmático dos grandes hospitais que se constroem na época.

Contrariamente ao seu congénere medieval, o hospital dos Séculos XVI e seguintes é monumental e sobretudo urbano, reflectindo as novas necessidades e problemas de saúde de uma população que tende a concentrar-se nas cidades com o declínio do feudalismo, o desenvolvimento do modo de produção artesanal, a expansão do comércio marítimo e a complexificação do tecido social (em particular, das camadas populares).

A arquitectura do hospital renascentista, por outro lado, reflecte a ideia de magnificência do príncipe e de ostentação da caridade.

Às misericórdias caberá, posteriormente, a responsabilidade pela administração hospitalar, durante um período de mais de quatrocentos anos (desde meados do Séc. XVI até ao período de 1974/76). Daí talvez o sentido de provérbios como estes:

(Continua)

Referèncias bibliográficas a publicar no fim da série

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Nota do editor:

(*) Vd. postes de:



Último poste da série Manuscrito(s) (Luís Graça):

26de março de  2023 > Guiné 61/74 - P24170 : Manuscrito(s) (Luís Graça) (219): Na despedida da Terra da Alegria: à minha querida 'mana' Nitas, Ana Ferreira Carneiro Pinto Soares (Candoz, 1947 - Porto, 2023)

sábado, 11 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24136: Os nossos seres, saberes e lazeres (560): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (93): Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Ir visitar a Academia Militar e não conhecer a Bemposta, o palácio da rainha viúva D. Catarina de Bragança, a Biblioteca da Academia e a Capela Real dedicada à Nossa Senhora da Conceição, é como ir a Roma e não ver o Papa. Aqui se descreve muito abreviadamente que a Bemposta conheceu modificações de tomo desde o falecimento de D. Catarina em 1705, encerra um monumento nacional, é sede da Academia Militar, quem entra pela Gomes Freire terá que ficar assarapantado com aquela massa de edifícios agora sem préstimo, e depois passa a outro espaço, já estamos na Bemposta e numa entrada com largo átrio com impressionante azulejaria de Jorge Colaço, subindo a escadaria é um momento de emoção com a permanente evocação dos alunos da Escola que morreram em combate, em diferentes conflitos, tocante homenagem, estão ali alguns dos nossos camaradas tombados na Guiné; e mudamos de espaço, estamos na área do comando da Academia, outrora os aposentos e os salões da rainha viúva, novo itinerário até ficarmos embasbacados com uma biblioteca, seguramente uma das mais preciosas de Portugal, um espaço onde magnificamente se expõem livros de diferentes séculos e se guardam verdadeiros tesouros; e, por fim, a Capela Real, mesmo vendo-se à vista desarmada que há para ali uns danos, uns repasses que vão exigir a competente cirurgia estética, é um templo soberbo que gera no visitante a sensação, depois das obras dos finais do século XVIII de que não há nada de mais impressionante em cenografia na pintura de uma casa de Deus como neste Paço da Bemposta.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (93):
Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (2)


Mário Beja Santos

Na companhia do organizador da visita, o nosso emérito confrade, Coronel Morais da Silva, vamos visitar a Biblioteca da Academia Militar e a Capela Real do Paço da Bemposta. Acolhimento esfusiante, juntou-se o diretor do Museu Militar, as bibliotecárias multiplicam-se em comentários, escrevinhei tudo num caderno, não sei exatamente o que aconteceu, acredito que meti o bloco de notas numa sacola, vinha cheia de papelada, entrei esbaforido num autocarro no Campo dos Mártires da Pátria, sei que quando cheguei a casa o caderno tinha desaparecido. Felizmente que no site da Academia Militar se dá uma excelente nota introdutória a esta preciosidade, não me esquivo a dizer que está entre as mais belas bibliotecas que conheço.

Tem cerca de 40 mil títulos, correspondendo a cerca de 200 mil volumes, espalha-se por dois polos diferenciados, a Bemposta, onde se encontra a maior parte do acervo documental histórico, e o da Amadora, onde são disponibilizadas as publicações mais recentes e direcionadas a apoiar os alunos.

Esta belíssima construção constituiu-se inicialmente de um fundo de obras que pertencia à Academia Real de Fortificação, Artilharia e Desenho, fundada em 1790, no reinado de D. Maria I. Já Escola do Exército, é atribuída à Biblioteca, em 1839, um avultado número de obras provenientes dos depósitos das livrarias conventuais e outras. Até 1894, a Biblioteca esteve alojada em quatro pequenos compartimentos e um sótão. Nessa altura, sob a direção do coronel Vasconcelos Porto, procedeu-se a uma intervenção monumental, e assim se chegou a este espaço dotado de magnificência, possuidor de uma galeria à volta, quem delineou a obra tinha um elevado sentido de equilíbrio e harmonia, para já não falar da impressão de magnificência que oferece ao visitante. E tudo bem cuidado, apraz dizer. A Biblioteca guarda alguns tesouros bibliográficos, do século XVI ao XIX, como é o caso da obra de 1514 – Ars Arithmetica, de Juan Guijarro Silíceo. Impossível que estas imagens não tentem o leitor a uma visita.
Ficam aqui alguns pormenores de tão requintado espaço, prossegue a visita espiolhando os espaços interiores que antecedem uma importante exposição didática sobre a Academia, afinal há muitas estantes que não são visíveis à vista desarmada, móveis imponentes e seguramente que o recheio não fica atrás, aqui fica uma amostra.
Para que o leitor ainda fique mais acicatado à visita, as amáveis bibliotecárias deixaram fotografar obras raríssimas, do tal acervo que se estende do século XVI até ao século XIX, é só para ver, ou em casos de estudo, de folhear com a mão enluvada.
Da muito esclarecedora exposição permanente, olhei para este objeto como boi para palácio e nem o facto da legenda dizer tratar-se de um sextante foi suficiente para eu ficar de boca aberta, assim que vi, até me arrepiei, o sextante foi inventado pelo glorioso Almirante Gago Coutinho, dentro da minha santa ignorância tomei o objeto como uma mina, imagine-se, perdoem-me os bem dotados de conhecimentos da navegação aérea.
Mudamos agora de edifício, por ali vai o coronel Morais da Silva a abrir caminho, vamos ser recebidos na Capela Real da Bemposta, quem vê fachadas como esta não pode imaginar que no interior está um tesouro nacional.
Entra-se na capela e a pintura de Giuseppe Trono atrai instantaneamente o visitante, isto independentemente de todos os cromatismos faiscarem e um tanto desnortearem quem por ali anda. Então os tetos, o da Capela do Santíssimo Sacramento, alusivo à transfiguração de Cristo no Monte Tabor, ou a pintura do teto da capela-mor representando Nossa Senhora da Conceição, rainha de Portugal. Alguém tem o cuidado de explicar ao visitante que este espaço sacro, a capela privada, tem dois momentos distintos, antes e depois do terramoto de 1755. Já li que afinal de contas os danos do terramoto não foram tão assustadores como alguns pintam, mas na verdade, nesta capela há dois gostos, sente-se perfeitamente o que era arte da Contrarreforma e numa segunda fase o Barroco e o Rococó, com a sua componente muito mais sensitiva, com pormenores altamente decorativos. D. Catarina fora educada de modo austero e quando regressou a Portugal aceitou viver num espaço marcadamente sóbrio, onde não faltava boa azulejaria, tapeçaria e mobiliário, a própria capela tinha um gosto severo que os senhores da Casa do Infantado alteraram profundamente. A Capela Real foi dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Começando pela fachada principal, sofreu alterações para lhe dar sumptuosidade e todo o seu interior ganhou uma certa presença cenográfica.

É uma igreja-salão, com uma única nave, mais alta e larga que a capela-mor. A única capela lateral, que podemos designar por autónoma, é a Capela do Santíssimo Sacramento, esta é uma riqueza, a sua pintura é dedicada à história do livro bíblico do Êxodo, é no teto que está representada a transfiguração de Cristo no Monte Tabor. Apraz lembrar ao visitante que silhares de azulejaria nos corredores e dependências merecem a atenção, não é por puro acaso que somos a maior potência mundial em azulejaria.
As pinturas da capela têm merecido a atenção dos investigadores e recentemente duas peritas italianas desenvolveram um estudo sobre a pintura de Giuseppe Trono, na Capela Real. Coube-lhes demonstrar que o autor da pintura do altar-mor, onde se pode ver a família real, que durante bastante tempo foi atribuído a Thomas Hickey foi, na verdade, obra de trono, a pintura que goza inequivocamente de originalidade, é um verdadeiros programa político-religioso, em baixo à direita temos a família real, à esquerda imagens de gente assistida e com destaque a virgem contemplando o Santíssimo Coração de Jesus, cujo culto estava bastante desenvolvido entre nós a partir dos finais do século XVII. Quanto à Nossa Senhora da Conceição, não nos esqueçamos que a coroa régia lhe foi doada. Também estas duas investigadoras assinalar o cruzamento estético e de artes plásticas entre a Basílica da Estrela e a campanha de obras que se concentrou nos anos de 1980 do século XVII, daí sentirmos na pintura a presença de Pedro Alexandrino, que trabalhou nos tetos da capela-mor, na nave e na Capela do Santíssimo Sacramento.
É um órgão de nos cortar o fôlego, impecavelmente mantido, não me importava de vir aqui ouvir um concerto com esta envolvente de tão extraordinária pintura.
Imagem da Capela do Santíssimo Sacramento
A renovação artístico-arquitetónica da Capela da Bemposta concluiu-se em 1793, por isso, à saída e no final desta inesquecível viagem, encontramos, como se pode ver na última imagem, uma tarjeta comemorativa, e traduzindo o latim pode ler-se: “Ao Supremo Condutor das coisas e à Virgem Mãe concebida sem mácula de origem, este templo construído com belíssimo trabalho de arte, para sempre, doce monumento de religião consagrou João, Príncipe do Brasil, da gente lusitana esperança e desejo para a salvação. 1793”.

E aqui me despeço da Academia Militar, plenamente convicto que a qualquer hora aqui regressarei com imenso entusiasmo.
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Notas do editor

Poste anterior de 4 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24117: Os nossos seres, saberes e lazeres (558): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (92): Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24132: Os nossos seres, saberes e lazeres (559): Um estranho convite para uma visita à RDA – República Democrática Alemã (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

sábado, 4 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24117: Os nossos seres, saberes e lazeres (558): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (92): Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Começou a viagem pela rua Gomes Freire, ao gosto de conhecer o espaço do que foi a Academia Militar foi-se inculcando aquela medonha sensação que toda aquela estrutura onde se formaram oficiais, onde viveram os cadetes, tiveram aulas, fizeram ginástica, usufruíram de espaços de convívio, é território em quase abandono, sem préstimo, fica-nos a impressão de que estão ali milhões e milhões de valor que podiam servir para concentrar serviços da instituição, andamos a falar em economia circular, combate aos resíduos e desperdícios e temos ali aquele imenso gigante num quase abandono, agonizante. Impunha-se conhecer a outra parte e o nosso confrade, o Coronel António Morais da Silva ajudou a escancarar as portas, visitou-se a Bemposta a preceito, ali morreu a rainha em 1705, tem impressionante histórico porque foi pertença da Casa do Infantado, instalação de general napoleónico, residência de D. João VI, por aqui passou a Corte de D. Pedro IV, a Biblioteca é uma construção fulgurante, majestosa, sábia em aproveitamentos vários, e a harmonia da Capela Real deixa-nos sem fôlego. Como aqui se contará.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (92):
Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (1)


Mário Beja Santos

Por aqui já se andou, entrada pela Gomes Freire, para conhecer a Academia Militar, como ela foi e praticamente deixou de o ser. Tem longo historial: foi Escola do Exército entre 1837 e 1910, Escola de Guerra entre 1911 e 1919, Escola Militar entre 1919 e 1920, manteve o mesmo nome de 1920 a 1938, ano em que passou a Escola do Exército até 1959, e nesse ano nascia a Academia Militar. Visita com constrangimento, na companhia de um ilustre confrade do nosso blogue, o coronel António Morais da Silva, vou fazendo perguntas quanto aos edifícios e ao seu abandono visível, não entendo como todo aquele equipamento pode estar no mais completo abandono, independentemente de haver manutenção, visitou-se o que era possível visitar, e acordou-se em nova itinerância, a Bemposta, ultima residência da rainha viúva de Inglaterra, Catarina de Bragança, ao que parece a filha dileta de D. João IV, levou como dote uma fortuna, tinha que ser assim, precisávamos como pão para a boca de um aliado poderoso que fizesse frente à hostil Espanha, o tratado de paz ainda vinha longe quando Catarina partiu para Londres e se supunha dar continuação à dinastia dos Stuart, o que não aconteceu. Anos depois de viúva, foi decidido regressar, tomou a decisão de comprar o terreno (tão extenso, que mais tarde se separou aquela enorme parcela que é hoje o Hospital de D. Estefânia), tem hoje os seus limites atuais entre as ruas Gomes Freire, D. Estefânia, Jacinta Marto e Escola do Exército, a fachada principal do edifício do paço está virada para um largo, o Paço da Rainha. D. Catarina regressara a Lisboa em 1693, andou por vários palácios até que em 1699 adquiriu uma propriedade para ali construir a sua residência definitiva e pessoal. Mal sabia que depois da sua morte esta residência iria passar para a Casa do Infantado, D. João V concedeu-a ao seu irmão, o Infante D. Francisco; sofreu enormes estragos com o terramoto de 1 de novembro de 1755, fez-se a reconstrução; foi poiso de tropas napoleónicas, aqui se instalou o quarte general do general Delaborde, virá a ser palco de acontecimentos marcantes da história do liberalismo em Portugal, residência de D. João VI, aqui se instalou a Corte de D. Pedro IV; e em 1850, D. Maria II promulga um decreto que destinava o palácio à instalação da Escola do Exército, instituição fundada em 1837 pelo Marquês de Sá da Bandeira, general Bernardo de Sá Nogueira Figueiredo.

O rol de alterações, obviamente, é de uma extensão que deixa o visitante atabalhoado, quem por ali andar às cegas terá dificuldade (senão impossibilidade, de detetar no interior as marcas do início do século XVIII). Por fora é outra coisa, basta ver as sucessivas gravuras de diferentes épocas, manteve-se o sóbrio da fachada, apostou-se no que há de mais magnificente na escadaria e na fachada principal que leva à Capela Real. Há estudos sobre a residência régia, a riqueza dos materiais, os têxteis e os belíssimos azulejos. Na primeira visita mirei e fotografei o admirável conjunto que Jorge Colaço concebeu para a entrada do que é hoje a Academia Militar. Nesta visita à Bemposta, bem me deliciei com o património azulejar do espaço por onde a rainha teve aposentos e salões de receção.

A Academia Militar editou livro sobre D. Catarina de Bragança e o Paço em 2005, por ele me procurei guiar.

Capela e Paço Real da Bemposta, 1910, fotografia de Joshua Benoliel
Carlos II de Inglaterra e Catarina de Bragança na Old Somerset House - Escola Inglesa (séc. XVII)
Azulejaria na Sala do Conselho, tendo ao fundo imagens de alunos que foram Presidentes da República
Como se pode ficar indiferente a tão alta qualidade azulejar? Mas há mais, numa divisão contígua à Sala do Conselho (construção já da Academia) há um silhar de azulejos azul e branco que corre à volta de toda a divisão; na Sala do Conselho, são painéis com albarradas datados de finais do século XVII e inícios do século XVIII.

O citado livro fala de um vasto conjunto de alterações, havia um tanque de mármore no jardim que hoje se encontra em S. Pedro de Alcântara. A instalação da Escola do Exército exigiu uma nova disposição interna dos espaços como se escreve no citado livro: “O corpo principal do conjunto da Bemposta ficou destinado para a instalação dos serviços administrativos e logísticos daquela instituição, de espaços dignos para a receção das visitas oficiais, bem como de outros espaços indispensáveis ao apoio na formação dos alunos, a exemplo do que aconteceu na Biblioteca. Com o passar dos tempos, foi também possível proceder à constituição de um pequeno núcleo museológico de modo a preservar as memórias da Escola.”

É neste sentido que vale a pena deambular por esses espaços, outrora áulicos, agora com a dignidade necessária para acolher quem visita o gabinete reservado ao oficial general que comanda a casa, foi por ali que eu andei a bisbilhotar.
Está feita a visita, o senhor general teve a deferência de oferecer café a quem lhe bateu à porta, ainda há muito para ver, talvez o mais espetacular, a Biblioteca e a Capela Real, é o percurso a seguir.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24097: Os nossos seres, saberes e lazeres (557): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (91): A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto (Mário Beja Santos)