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segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24697: Notas de leitura (1619): "PAIGC A Face do Monopartidarismo na Guiné-Bissau", por Rui Jorge Semedo; Nimba edições, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
É sempre meritório que investigadores guineenses se debrucem sobre a história do seu país, seja antes ou depois da independência, ao mesmo tendo em conta todo o histórico da guerra da libertação. O autor achou que já estava tudo dito quanto ao binómio Amílcar Cabral PAIGC, as resistências sentidas durante a presidência de Luís Cabral no contexto das tradições e de um círculo de interesses instalados na sua órbita de gente manifestamente corrupta e incompetente dentro do chamado Estado "suave" como observou Joshua Forrest, parece-me não ter cuidado da importância dos agrupamentos étnicos que obstaram à criação de uma consciência nacional, e é dentro deste quadro precário que se instituirá o regime de Nino Vieira, com as suas sucessivas intentonas, prisões e execuções. É incompreensível que um livro editado em 2021 omita, coletivamente ao estudo em apreço, bibliografia fundamental. Mais uma dissertação de mestrado com poucochinho.

Um abraço do
Mário



História do PAIGC monopartidário (1974-1990) por Rui Jorge Semedo

Mário Beja Santos

A história do PAIGC tem sido motivo de dezenas de livros de investigação, uma infinidade de ensaios, artigos, entrevistas. Rui Jorge Semedo [foto à direita] propõe-se a investigar a dinâmica política e a organização interna do PAIGC desde que a Guiné-Bissau se tornou independente até aos primeiros alvores de uma abertura ao multipartidarismo, processo que se iniciou, timidamente e controversamente, no início da década de 1990.

A investigação deste escritor, poeta e analista político guienense, intitula-se "PAIGC, A Face do Monopartidarismo na Guiné-Bissau", Nimba edições 2021. Algo surpreende, quer pela bibliografia utilizada, quer pelas entrevistas que o autor fez, estas últimas ocorreram em 2008 e 2009 e a bibliografia proposta no essencial é do século XX, apresenta lacunas incompreensíveis, desde o incontornável trabalho de Julião Soares Sousa sobre Amílcar Cabral, os trabalhos de leitura obrigatória assinados por Joshua Forrest (o seu trabalho mais importante não é citado), Patrick Chabal, Toby Green, Carlos Lopes, António Duarte Silva, Tcherno Djaló, entre outros. Fica-se com a ideia que o trabalho foi preparado alguns anos atrás e não atualizado para a presente publicação. Aliás, é o próprio autor que diz que ele resulta da sua dissertação de mestrado, numa universidade brasileira.

Nesta conformidade de trabalho de mestrado, o autor contextualiza, muito sumariamente o quadro das independências e tece um bilhete de identidade de um partido com duas nações, o seu alegado ato fundacional (sujeito a muitas dúvidas que tenha sido celebrado em 1956, recorde-se que só se começa a falar do PAI em 1960, quando se impôs que os movimentos independentistas tivessem partido e sigla), faz-se referência ao quadro político e militar decorrente do Congresso de Cassasá, a existência de certos conflitos internos, a sua organização como partido único, a sua passagem de opositor revolucionário para um controlo absoluto do poder governativo. Amílcar Cabral sempre anteviu os perigos de concentrar a nova classe política em Bissau, era um defensor da decentralização, como proferiu: “Queremos acima de tudo decentralizar o mais que for possível… Porque é que os ministérios não hão de estar dispersos pelo País? Ao fim ao cabo, o nosso País é um país pequeno… Para que é que havemos sobrecarregar com todo esse peso morto de palácios presidenciais, grande concentração de ministérios, tendo sinais evidentes de uma elite emergente que em breve se pode torna em grupo privilegiado?”.

O PAIGC que entra em Bissau em outubro de 1974 veio para se instalar, a sua elite ocupou os edifícios da administração colonial. Escreve o autor: “O que aconteceu foi apenas a substituição de uma força repressora estrangeira por outra nacional igualmente repressora. Pode-se dizer que não houve conciliação entre o que podemos chamar de projeto independência e uma liberdade efetiva com ações que visem melhorar as condições de vida das populações. E as contradições encontradas, principalmente na implementação de políticas públicas deveu-se a essa ausência limitada de liberdade que se acentuava sobretudo no medo de partilhar poder dentro do próprio partido”.

O autor elenca os preceitos constitucionais e a legitimação do PAIGC como única força política, ressalta a constituição da nova elite guineense, os atos de ajuste de contas com quem quer que lhe se opusesse, e mostra as contradições da Unidade Guiné-Cabo Verde, o rastilho de pólvora que fez eclodir o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, revelam-se as discriminações constitucionais propostas para os dois países, inegavelmente ofensivas para os guineenses. Efetuada a rutura, entra-se num período cesarista encabeçado por João Bernardo Ninho Vieira, vão avultar as crises, logo com Víctor Saúde Maria, em 1984, e temos o tenebroso processo de 17 de outubro de 1985, que levou a prisões arbitrárias e as execuções sumárias de figuras cimeiras do sistema político-militar, com destaque para Paulo Correia. Para o autor é incontestável que o golpe de 1980 produziu o militarismo sobre o partido e o estado, o César foi afastando sistematicamente quem lhe pudesse fazer frente, recorrendo a uma polícia de segurança que a todos intimidada.

Passando para a estrutura organizacional do PAIGC, ela possuí a lógica de um partido único, todas as estruturas eram dóceis e espelhavam o que Nino Vieira deles esperava, desde sindicatos, organização da juventude ou organização das mulheres. Uma das lacunas de análise deste trabalho passa por não dar conta da incapacidade em montar uma rede de influência do PAIGC em toda a sociedade, Joshua Forrest explica claramente que os denominados comités de tabanca acabaram por ser aglutinados pelo sistema tradicional, Luís Cabral tinha imaginado grandes projetos visando aspetos socioeconómicos que acelerassem o desenvolvimento, foram um rematado falhanço, Nino Vieira também não soube fazer melhor, grassava o nepotismo, a ocupação de lugares estratégicos por gente incompetente que se locupletava com dinheiros e mercadorias desviadas. Rui Jorge Semedo esqueceu-se de um trabalho fundamental para analisar o sistema do amiguismo instituído por Nino Vieira quando foi forçado a abrir o mercado. O trabalho “Guinea-Bissau: politics, economics and society”, por Rosemary E. Galli e Jocelyn Jones, Frances Pinter, Londres, 1987, ainda hoje é o documento de referência que evidencia claramente como a classe possidente que gravitava nos círculos de Nino Vieira se apoderou da agricultura e de praticamente todos os negócios.

Surge, entretanto, em 1987, e no exterior, o Ba-fata, Resistência da Guiné-Bissau, apresentava-se como o grupo de pressão e alternativa ao regime de Nino Vieira, será mesmo até ao fim do regime de partido único, o único grupo de pressão constituído e atuante. A partir de 1991, o PAIGC vê-se compelido a autorizar o multipartidarismo, tudo vai começar pela lei constitucional n.º 1/91, de 29 de maio, foi assim que se abriu caminho para as primeiras eleições multipartidárias de julho de 1994, ganhas inequivocamente pelo PAIGC. Só que os conflitos persistiram, o que leva o autor a um conjunto de considerações finais, primeiro os conflitos internos, que perduraram desde a presidência de Luís Cabral até ao exílio de Nino Vieira, derrotado depois da guerra de 1989-1999.

O autor finaliza assim:
“A indagação a fazer é sobre o sentido da mudança e/ou revolução preconizada pelo PAIGC. Ou seja, até que ponto pode ser considerado a Guiné-Bissau um país independente? Ou, nesse caso, a independência pode apenas ser considerada a ausência de forças coloniais? Talvez, observando o cenário que se desenhou desde 1974 a este momento nos levaria necessariamente a considerar que houve apenas uma transição do poder das mãos de uma força repressora estrangeira para as de uma força nacional. A legitimação da repressão como uma prática corrente no período pós-independência tirou do PAIGC a possibilidade de estabelecer interna e externamente uma relação baseada no respeito pelos direitos humanos, por um lado e, por outro, desconstruiu o vínculo que o partido tinha com as massas populares. Além de conflitos e contradições gerados, outro fator determinante são falhas verificadas na gestão da coisa pública, o partido não só retrocedeu na promissora política agrícola e industrial iniciada nos primeiros anos da independência, como também não conseguiu aproveitar, principalmente a partir de 1980, o escasso quadro que o país dispunha para maximizar o desempenho”.

Trabalho modesto, muito incompleto, manifestamente repetitivo do que já se encontra nas mais variadas investigações e pouco apreciador das políticas praticadas, como é o caso da referência que faz à promissora política agrícola e industrial de Luís Cabral, unanimemente condenada por todos a que a estudaram.


António Mamadu Camará, antigo soldado Comando com a sua foto da juventude (Tirada do Jornal Expresso, com a devida vénia)
Aristides Pereira
Nino Vieira
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24688: Notas de leitura (1618): "A Guerra de Moçambique 1964-1974", por Francisco Proença Garcia; Coleção Guerras e Campanhas Militares da História de Portugal, edição da Quidnovi, 2010 (Beja Santos)

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24669: Notas de leitura (1617): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (3) (Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Não hesito em classificar este trabalho como incontornável para o estudo do que tem sido a tentativa de democratização na Guiné-Bissau. Álvaro Nóbrega prima pelo rigor e a independência de juízos, dá-nos um quadro minucioso do funcionamento do Estado e dos avanços e recuos democráticos, é muito cuidadoso a avaliar as questões étnicas e as ligações à terra, disseca a elite política da Guiné-Bissau, o papel político dos militares, a questão fulcral do semipresidencialismo que acaba sempre em presidencialismo, a personalização na vida partidária, a permanente atmosfera de intimidação onde não faltam os espancamentos e até as ameaças veladas. Espera-se que o investigador, que nos dá uma visão em ecrã gigante do que se passou na Guiné entre 1998 e 2008 continue os seus trabalhos, reconhecidamente de grande qualidade.

Um abraço do
Mário



Uma soberba investigação sobre uma Guiné-Bissau que viveu a guerra civil, dilacerante (3)

Mário Beja Santos


Álvaro Nóbrega, Doutor em Ciências Sociais e professor universitário, é autor de uma obra de referência "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau (2003)", e na sequência desse primoroso trabalho produziu Guiné-Bissau: "Um caso de democratização difícil (1998-2008)", Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015. Este ensaio, de leitura obrigatória, desvela o itinerário ziguezagueante das instituições democráticas e pluralistas na Guiné-Bissau; o investigador reflete a fundo sobre as condições do nascimento do Estado, após uma prolongada luta armada de libertação nacional, elenca sobre as fragilidades, os erros, a vertigem dos cargos, o nepotismo, a tentação tribal, a Nação firme, mas o Estado volátil; enfim, importa esclarecer se faz vencimento aludirmos a um Estado frágil ou falhado ou supor que haverá outros itinerários, que seguramente requerem imensa coragem, a trilhar para consolidar a democracia e o respeito pelas instituições.

Faz todo o sentido tratar de forma linear o presidencialismo e a personalização do poder. O chefe de Estado africano, de um modo geral, é tentado pela autoridade absoluta, não distingue a independência das instituições, assenta o seu poder em redes de relações pessoais, é um tutor paternal, gere um sistema de recompensas e de punições. Mesmo quando é eleito em eleições vincadamente democráticas é visto como um patriarca, não se vê obrigado em manter os poderes separados, e daí o sem número de dificuldades na coexistência entre presidentes e primeiros-ministros mesmos nos sistemas semipresidenciais. Como já se fez referência, no início do novo Estado da Guiné-Bissau pretendeu-se desvalorizar o papel das autoridades tradicionais e mostrou-se como o tempo se encarregou de tornar os representantes do PAIGC perfeitamente inócuos ao nível da vida das tabancas. E a legitimidade desses régulos foi retomada, até porque há um vazio no Estado na generalidade dos povoados. Não nos esqueçamos que esta obra foi editada em 2015, é só um aviso prévio para se entender o valor da narrativa.

Álvaro Nóbrega recorda os oito presidentes que até então exerceram funções na Guiné-Bissau: Luís Cabral, deposto em 1980, Bacai Sanhá, em 1999, Henrique Pereira Rosa e Raimundo Pereira foram presidentes interinos. Até 2009, apenas dois tinham sido democraticamente eleitos: João Bernardo Vieira (Nino) e Kumba Yalá. Estes dois últimos, se bem que separados pelas gerações e pelo percurso da vida, tinham afinidades no que respeita ao seu carisma pessoal e ao modo personalizado como exercera o poder. Nunca se conformaram ao papel moderador e arbitral constitucionalmente definido, muito fizeram para submeter todas as esferas do poder, ingeriram-se mesmo na vida partidária. Não se resignaram a viver em sistema semipresidencialista, contrapuseram a sua versão do presidencialismo. E aqui vem a necessidade de refletir sobre a legitimidade, tão difícil de resolver num país tão seccionado, étnica e culturalmente. Nino Vieira procurava jogar com o seu passado militar e o mito de grande guerreiro; Kumba não tinha pergaminhos guerreiros, pretendeu valer-se dos seus dotes intelectuais, falava várias línguas, evitava os seus pensamentos alegadamente filosóficos, com um certo espetáculo converteu-se ao Islamismo. Foi sempre patente a difícil coexistência entre presidentes e primeiros-ministros, rapidamente os primeiros invadiam o campo dos segundos. O autor refere entrevistas havidas com políticos guineenses sobre as vantagens deste sistema semipresidencial, face ao mostruário existente há sérias dúvidas do que é mais eficaz, o presidencialismo ou o semipresidencialismo.

Inicialmente o PAIGC apresentava-se como um partido de unidade, com a vida multipartidária surgiram problemas aparentemente adormecidos como as linhagens e os sistemas de clã. E o autor recorda que há dois partidos antigos, o PAIGC e a FLING, a RGB nasceu no exílio como o movimento de resistência ao PAIGC, na contagem que o autor fez em 2008 o número dos partidos ultrapassava os 30, o chefe é o elemento primário, é ele que agrega à sua volta os seus seguidores pessoais. Daí a conceção rigidamente hierárquica do poder, o que se pode traduzir em que um Presidente da República ponha e disponha da nomeação do Primeiro-Ministro ao arrepio das instituições e dos resultados eleitorais ou temendo o primeiro a visibilidade do segundo. Exemplos não faltam como o autor transcreve: No PRS, devido a um clima de suspeição, o seu congresso de 2002 decorreu com as portas cerradas por correntes e cadeados, para que ninguém saísse e ninguém entrasse. À vista de todos há partidos que se lançam no confronto interno, caso do RGB.

Recorda igualmente a exoneração de Carlos Gomes por Nino, as rivalidades no PRS entre os Balantas, partido em que se trabalhou para depor o presidente Kumba Yalá. E Álvaro Nóbrega dá mais exemplos. Há vários temas complexos em cima da mesa, desde a ausência de diferenciação dos programas partidários, as diferenças ideológicas mínimas, a inexistência de discussões sobre as políticas públicas, enfim, quer-se deter o poder como uma volúpia, um sistema de prémios e punições, pelo que se passa rapidamente de euforia ao pleno descontentamento. E há que ter em conta que se analisa um dos países mais pobres do mundo, os cargos do Estado são vistos como a solução para os problemas financeiros de cada um. E quando se é forçado a abandonar o poder há mesmo recusas em perder regalias, que podem ser casas ou carros, Kumba Ialá foi acusado de ter vendido o Bissau Hotel, na Líbia, pouco antes de ser deposto, por dois milhões de dólares.

E Álvaro Nóbrega dirige agora o olhar para uma matéria que lhe é muito cara, a luta pelo poder, como ele observa:
“A luta decorre em múltiplas instâncias. Joga-se na presidência, no governo, no parlamento, nos quartéis, nos tribunais, na própria sociedade civil e ainda numa outra que não é deste mundo cuja influência não se menospreza porque é respeitada a sua ação. A cosmologia africana contempla um mundo povoado por entidades sobrenaturais e pelos espíritos dos antepassados, em que os vivos constituem uma minoria perante a imensidão de mortos que os observam (…) Na política, como nas mais diversas áreas da vivência africana, a magia tem um papel central. A classe política culturalmente ambivalente tende a levar muito a sério as questões do poder dos espíritos. A magia joga um papel importante na política e na luta pelo poder”.

E são elencados alguns exemplos. O tema da justiça e dos direitos humanos é de tratamento obrigatório, há que ter em conta os relatórios da Liga Guineense de Direitos Humanos para perceber que a Guiné é um país de detenções arbitrárias, espancamento de jornalistas, tentativas de assassinato, a intimidação está sempre presente. A sociedade civil é observada, é pequena, o que é para lastimar dado que ela é considerada um dos principais pré-requisitos da democracia e o autor faz um diagnóstico:
“A maioria das associações não tem sustentabilidade para sobreviver fora do quadro dos financiamentos internacionais. Consequentemente, o que determina a sua ação não é o fim social que estabeleceram, mas a disponibilidade de fundos, o que faz com que seja um tipo de associativismo que não existe sem um fluxo continuado de financiamento internacional”.

Álvaro Nóbrega irá ainda fazer referência à liberdade de expressão e de imprensa e à africanização do voto.

Conclui o seu importante estudo relembrando o baixo grau de comprometimento político das elites com a democracia, um Estado com falta de soberania, os exacerbamentos étnicos, a personalização do poder, a colagem dos militares ao poder, e algo mais que acaba de se ver neste texto. A sua investigação termina quando se encetava a eleição do José Maria Vaz, o único Presidente da República que começou e concluiu o seu mandato em conformidade com o ato eleitoral. Nóbrega dirá no final que parecia estar reunido um conjunto de condições favoráveis para a estabilização e desenvolvimento, os doadores tinham voltado. Mas não cabe neste trabalho as novas disfuncionalidades enquanto Estado e democracia.

Oxalá Álvaro Nóbrega continue a trabalhar sobre a difícil democratização da Guiné-Bissau, tal o apuro e o rigor que ele põe nas suas investigações.


Kumba Yalá
O general António Indjai, líder dos militares no golpe de estado de 2012
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Nota do editor

Último poste da série de > 15 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24653: Notas de leitura (1616): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (2) (Beja Santos)

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24334: Notas de leitura (1584): "Onésimo Silveira, Uma Vida, Um mar de Histórias", por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 2016 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Privilegiou-se, deste belo livro em que entrevistador e entrevistado se enlaçam com naturalidade, entrevistador bem informado e um octogenário que procura jogar o jogo da verdade, os temas mais relevantes à luta armada, como ele via o PAIGC, como se sentiu atraído para combatente nacionalista e como se afastou do PAIGC por não aceitar o dogma da fé da unidade Guiné-Cabo Verde. 

Conheceu a fundo o PAIGC e o PAICV, dá-nos uma imagem da história de Cabo Verde após a independência que não pode deixar indiferente qualquer estudioso. Doutorou-se em socialismo africano e deixa-nos comentários valiosos sobre esses líderes com quem conviveu. Não se escusa a fazer confissões íntimas como a que tece sobre Adriano Moreira, não gostou dele como Ministro do Ultramar, considera a sua obra como uma das mais meritórias da Ciência Política, mesmo as medidas que tomou para estimular o ensino universitário e acabar com o regime do indigenato. Para o estudioso é muito importante a análise que ele faz do Partido Único de Cabo Verde e do seu trabalho autárquico. Creio que o leitor irá ficar fascinado com a imagem que este cabo-verdiano dá da sua vida e da sua ligação a uma cultura específica onde o português está sempre presente.

Um abraço do
Mário



Onésimo Silveira, o PAIGC e a unidade Guiné-Cabo Verde (2)

Mário Beja Santos

Onésimo Silveira, Uma vida, Um mar de histórias, por José Vicente Lopes, Spleen Edições, 2016, é de leitura obrigatória por vários motivos, que destaco: temos aqui uma grande angular com olhares sobre a sociedade cabo-verdiana, o papel do PAIGC neste Estado independente, e o contributo de alguém que foi combatente nacionalista, embaixador do seu país e diplomata das Nações Unidas, autarca, poeta, romancista e ensaísta. Quem o entrevista é um jornalista conceituado, José Vicente Lopes, a quem devemos obras de referência tais como Os bastidores da independência, As causas da independência e Aristides Pereira, minha vida, nossa história.

Já vimos como este combatente nacionalista andou por várias paragens antes de passar a representante do PAIGC no mundo escandinavo. Era frontal, não escondia a sua descrença contra o dogma da unidade Guiné-Cabo Verde. Estamos agora na atmosfera do assassinato, em retrospetiva, Onésimo, que assistiu aos funerais e que dialogou então com muita gente, avalia que Amílcar Cabral e os seus próximos subestimaram os avisos de que havia uma conjura em marcha, houve autêntica leviandade desses sinais premonitórios da conjura, os cubanos disseram claramente o que se estava a preparar. 

É neste momento que o entrevistador pergunta a Onésimo em que medida Cabral era tributário dos cabo-verdianos. Vem a resposta: 

“Precisava dos cabo-verdianos. Desde logo, para justificar a existência do PAIGC enquanto movimento de libertação dos dois territórios. Por outro lado, quando a luta exigiu uma intervenção qualitativa, só os cabo-verdianos e os cubanos é que puderam dar essa contribuição. São os cabo-verdianos que se vão formar sobretudo em artilharia, introduzindo com isso um elemento novo e de valor na guerra contra os portugueses”

A conversa deriva para o projeto de desembarque em Cabo Verde, houve aventureiros, como o Conde Von Rosen que propôs operações com aviões pequenos, chegou-se a discutir a preparação de pilotos, não era para matar pessoas, era para destruir os hangares dos aviões militares portugueses. Na altura da morte de Cabral os soviéticos estavam a preparar pilotos para a guerra na Guiné, mas era uma questão diferente. O plano do conde sueco não foi por diante e internacionalmente não havia qualquer apoio ao desembarque da guerrilha em Cabo Verde.

A conversa regressa aos cabo-verdianos de Conacri, observa pessoas, faz-lhes o retrato, caso de Pedro Pires: 

“Ele é um homem que não faz questão de apresentar ideias originais, mas é um administrador de grande classe, mesmo com ideias políticas que não sejam dele”

Onésimo, que já não é militante do PAIGC, após as exéquias de Cabral regressa a Estocolmo com o sentimento de que o PAIGC precisava de mudar de política, já estavam todos no comprimento de onda de que a Guiné seria independente, mas era óbvio que havia dois problemas, os guineenses não aceitavam o mando dos cabo-verdianos, e o papel dos militares, que enquanto Cabral foi vivo era de plena subordinação ao poder político, irrompeu na luta pelo poder. Cabral tinha uma fórmula para a subordinação dos militares, eles não eram militares, eram militantes armados, foi a consigna que ele criou no Congresso de Cassacá, para expurgar do PAIGC a mentalidade do cabo de guerra. O jornalista enfatiza, volta a Cabral e pretende saber se ele no fundo era guineense ou cabo-verdiano. Onésimo é pronto a responder: 

“Pelo comportamento, Cabral era cabo-verdiano. E foi por ser cabo-verdiano que foi morto pelos guineenses. Os guineenses não viam nele um guineense”.

Como o jornalista observa que também havia cabo-verdianos que se recusavam a ver Cabral como cabo-verdiano, Onésimo dá a sua interpretação: 

“É uma situação estranha, inédita, de um indivíduo que nasce num país, faz uma revolução como cidadão de outro país (aqui Onésimo comete um erro de palmatória, Cabral nasceu em Bafatá e depois foi com a mãe viver para Cabo Verde, onde estudou e de onde partiu para Lisboa para se diplomar como engenheiro agrónomo), Cabral esteve na Guiné, viveu com os guineenses, viu o impacto da intervenção colonial na Guiné, uma situação completamente diferente de Cabo Verde. Mesmo tendo vivido na Guiné, Cabral não viveu a Guiné por dentro e nem podia”

E adianta uma observação que abre um novo ângulo de análise, que mesmo a maior parte do tempo de Cabo Verde é uma experiência são-vicentina, e Onésimo procura dar uma interpretação: 

“Não é por acaso que Cabral se preocupa com a pequena burguesia naquilo que é o pensamento político dele. Na história de Cabo-Verde, a experiência urbana e pequeno-burguesa é mais visível em São Vicente do que em Santiago. A Guiné nem sequer é para aqui chamada. Cabral é dos poucos líderes africanos que se preocupa com o papel da pequena burguesia, porque sabia, no fundo, que ele próprio era um produto da pequena burguesia africana. Tinha tudo para viver tranquilamente e confortavelmente no quadro imperial português. Em vez disso, ele entendia que tinha uma dívida a saldar com os povos de África, a começar pelos seus irmãos da Guiné e Cabo Verde”.

Esboça-se o retrato de muita gente e influenciou a luta, caso de Abílio Duarte. Onésimo afasta-se do PAIGC, conta as reuniões em que esteve, conta como o caluniaram, seria um problema de contas, ao que ele respondeu perentoriamente: 

“Pelas minhas mãos não passava um tostão da ajuda sueca para o PAIGC. Não passava, nem nunca passou”

E explica o que era a ajuda sueca, a conversa retoma a cena internacional onde se movia o PAIGC, havia mesmo a opinião de que Cabral não devia ter ido ao encontro de Paulo VI, pessoas como Vasco Cabral, comunista, temia que os soviéticos ficassem francamente aborrecidos.

Dentro desta entrevista tão agradavelmente movimentada fala-se da tese de doutoramento e de Karl Popper, de Aron e de Sartre. E chegamos ao 25 de Abril e emerge uma nova dimensão, a independência de Cabo Verde, apresenta-nos intervenientes, fala-se do partido de Baltasar Lopes, Onésimo vive aquela tensão que tinha lutado pela independência do seu país e continuava a considerar que a unidade Guiné-Cabo Verde era uma grandessíssima asneira que ainda hoje Cabo Verde estava a pagar a fatura. 

Entretanto, vem investigar para Dacar, a convite de Senghor, assiste próximo e distante o aparecimento de movimentos de independência que serão sufocados pelo PAIGC. Onésimo ingressa nas Nações Unidas, vai para Nova Iorque, depois Angola, Somália, Moçambique, Genebra, cansado pede a desvinculação e volta para Cabo Verde, antes porém fala-nos da cultura norte-americana e depois da diplomacia africana, mais tarde vamos vê-lo como primeiro presidente eleito da Câmara Municipal de São Vicente (1991-2002), será depois embaixador de Cabo Verde em Portugal até 2005, falará longamente do Partido Único em Cabo Verde, foi mesmo convidado para Ministro dos Negócios Estrangeiros por José Maria Neves, é brejeiro a contar histórias como aquela que viveu enquanto embaixador em Lisboa: 

“Tive um funcionário que tinha mulher e amante na embaixada, mas que, por razões de ordem partidária, não resolvia o problema. Uma vez a amante veio ter comigo, para me dizer que estava na disposição de liquidar a rival, se o assunto dela não fosse resolvido. Aquilo era um caso de bigamia mal disfarçada e aconselhei-a a não fazer o que pensava, felizmente o marido acabou por regressar à base".

Onésimo revela-se um conhecedor profundo da realidade cabo-verdiana, a diversidade de cada ilha e a sua poderosa cultura. No termo da entrevista haverá um balanço e vamos vê-lo a falar com a maior das intimidades dos amores dispersos e dos filhos que tem em vários continentes. Considera-se um homem de coragem, relevou amizades, e conta histórias como o apoio que deu a José Leitão da Graça em Dacar, considerados inimigos do PAIGC. 

“Entre o revolucionário, autarca e diplomata, prefiro responder que sou um lutador”

Orgulha-se de ter tido uma vida plena e de continuar a lutar pela liberdade e pela democracia.

Pelo seu desempenho na luta pela independência da Guiné e Cabo Verde, esta longa entrevista é de leitura obrigatória para estudiosos e curiosos.

Onésimo Silveira e Amílcar Cabral em Helsínquia
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24327: Notas de leitura (1583): "Onésimo Silveira, Uma Vida, Um mar de Histórias", por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24327: Notas de leitura (1583): "Onésimo Silveira, Uma Vida, Um mar de Histórias", por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 2016 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
É livro de leitura obrigatória, Onésimo Silveira não só exerceu funções relevantes no PAIGC, como representante na Escandinávia, é um exímio conhecedor da realidade cabo-verdiana e mostra que sempre afrontou com coragem tal dogma da unidade Guiné-Cabo Verde. O entrevistador é José Vicente Lopes, um jornalista com pergaminhos, não há ali uma pergunta que não venha a propósito, sempre cheia de acicate para dar espaço ao entrevistado para prender a assembleia de leitores. Obviamente que aqui se fará uma leitura restrita destas mais de 400 páginas de alguém que, além de combatente nacionalista, tem no seu currículo a poesia, o romance e o ensaio, a diplomacia e a experiência autárquica na Câmara Municipal de São Vicente, alguém privou ao longo da vida com Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade, Olof Palma, Karl Popper, Leopold Senghor e outros destacados líderes africanos. Ninguém que se pretenda informado sobre a vida do PAIGC e a luta de libertação pode dispensar esta leitura, conhecer o olhar de um cabo-verdiano que aspirava pela independência mas que nunca duvidou que havia um fosso profundo entre aqueles dois países que Amílcar Cabral tratava como uma união sagrada.

Um abraço do
Mário



Onésimo Silveira, o PAIGC e a unidade Guiné-Cabo Verde (1)

Mário Beja Santos

Onésimo Silveira, Uma vida, Um mar de Histórias, por José Vicente Lopes, Spleen Edições, 2016, é de leitura obrigatória por vários motivos, que destaco: temos aqui uma grande angular com olhares sobre a sociedade cabo-verdiana, o papel do PAIGC neste Estado independente, e o contributo de alguém que foi combatente nacionalista, embaixador do seu país e diplomata das Nações Unidas, autarca, poeta, romancista e ensaísta. Quem o entrevista é um jornalista conceituado, José Vicente Lopes, a quem devemos obras de referência tais como Os bastidores da independência, As causas da independência e Aristides Pereira, minha vida, nossa história.

Obra aliciante, questões bempostas e a propósito, espicaçando o entrevistado, dando o máximo de fluência à narrativa: logo sobre a infância, a exaltação que faz da mãe, o que reteve do ambiente familiar e social, o Liceu Gil Eanes, os professores e colegas. E depois vem para Lisboa, uma vida de boémia, um estudante que não o foi, o regresso a Cabo Verde, de onde segue para S. Tomé, Angola e depois o retorno a Portugal. Recorda a influência que nele teve Mário António de Oliveira em Luanda, acaba desterrado no Luso, vão vindo à flor da conversa os nomes dos intelectuais cabo-verdianos da sua geração e igualmente dos mestres, como Manuel Lopes.

Passa por Portugal, mas já escolheu outro destino, o exílio. Na Argélia trabalha com Abílio Duarte e Dulce Almada na representação do PAIGC. Fascinado pelo sistema político chinês, viaja para a China, fica horrorizado com o que viu, ali permaneceu dois anos, fala detalhadamente do nacionalista angolano Viriato da Cruz que ali teve um fim trágico e a conversa deriva para o problema do dogmatismo em Angola, como observa Onésimo:

“Muitas das desgraças que aconteceram a Angola, decorrem da forma radical e intransigente como os seus líderes encaravam a realidade, o seu processo histórico. Veja o Viriato da Cruz. Apesar da sua importância para a independência de Angola, só muito recentemente é que o seu nome foi resgatado. A mesma coisa acontece ao Mário de Andrade, que também morre no exílio porque não tinha lugar em Angola independente. No entanto, ele foi o primeiro presidente do MPLA, juntamente com o Viriato da Cruz. Isto põe um problema de transcendência histórica, normalmente o de saber se os melhores pensadores são sempre os melhores dirigentes”.

E da China parte para a Suécia, onde vai viver dez anos, trabalhando e estudando, fazendo um doutoramento sobre o socialismo africano, e encarregando-se de representar o PAIGC. Faz amizades com líderes africanos e conta histórias: 

“O Nyerere, estando em Estocolmo, mandava o embaixador telefonar-me para a gente se encontrar. Eu era correio das mensagens que Cabral lhe mandava. O Nyerere tinha uma admiração profunda por Cabral. Uma vez, o PAIGC estava com problemas financeiros, Cabral mandou-me e ao Vítor Saúde Maria a Dar-Es-Salam, o Nyerere não hesitou, sacou logo um cheque de 3 milhões de dólares”

E faz realmente referências a Senghor, Sékou Touré e Kenyatta.

Quando morre Domingos Ramos, em 1966, Onésimo escreve a Cabral, será o princípio de uma estreita cooperação, é chamado a Conacri e passa formalmente a representar o PAIGC na Suécia, o que lhe vai dar acesso a contatos com os governantes escandinavos, logo Olof Palme, que admirava profundamente Cabral. 

A entrevista centra-se, depois, no PAIGC e em Cabral, com quem ele diz nunca ter tido problemas, foi sempre um relacionamento com total abertura, podia-se discutir com o líder do PAIGC qualquer assunto. Refletindo sobre o passado, ajuíza alguns aspetos em que Cabral não fora feliz na medição dos cenários, por exemplo:

“Hoje, eu vejo que ele esteve o tempo todo numa situação difícil. Conhecia Cabo Verde, mas não tão profundamente como se poderia pensar. Tinha que dialogar com toda a gente, recorrendo, por vezes, a uma linguagem padrão, que nem sempre deu resultado. O seu desaparecimento foi uma tragédia. Mas também me interrogo se ele teria sido capaz de evitar todos os dramas que a gente vê na Guiné”

E o entrevistador questiona se seria só na Guiné ou também em Cabo Verde, para Onésimo seria sobretudo na Guiné.

O relacionamento de Onésimo com o PAIGC estende-se até ao assassinato de Cabral, segue-se a rutura, a causa do rompimento foi a unidade Guiné-Cabo Verde:

“Já nessa altura punha-se a recusa de discutir o problema da unidade. Mas mais do que possa parecer à primeira vista, nós eramos uns tantos, dentro do PAIGC, que não estávamos de acordo com a unidade orgânica entre a Guiné e Cabo Verde. Vendia-se, diplomaticamente, uma imagem dessa unidade como se ela existisse já, quando eu entendia que ela tanto podia dar resultados como não podia”.

 E dá exemplos de discussões tensas em Conacri, estiveram envolvidos vários interlocutores, é citado o caso de Osvaldo Lopes da Silva. Onésimo chegou a dizer a Luís Cabral: 

“Eu estou lá fora a vender um quadro que eu não sei bem muito o que é, e por causa disso não me sinto bem, a vender uma unidade que vocês têm como adquirida, mas que, do meu ponto de vista, não está adquirida. A unidade da luta é uma coisa, mas a unidade da governação é outra. Após a independência dos países o quadro de pertença terá de ser uma coisa diferente. Com o agudizar da situação, acabei por me ir embora”.

Lembra que os cabo-verdianos em Conacri se agrupavam, que estava envenenado o ambiente da luta. Numa reunião de quadros em que participaram Nino Vieira, Osvaldo Vieira, Chico Té, Vítor Saúde Maria, José Araújo, Pedro Pires, Abílio Duarte, Osvaldo Lopes da Silva, Amílcar Cabral denunciou gente que estava a criar divisão no partido por causa da unidade Guiné-Cabo Verde, uma coisa que, para ele, era sagrada. O mais acusado dos agitadores era Momo Turé, e Cabral tinha procurado mostrar-lhe reconhecimento e agradecimento por ele ter sofrido muito no Tarrafal. É aqui que Onésimo profere uma declaração que está hoje comprovadamente sem fundamento: 

“É através desse mesmo Momo Turé que a PIDE dá o grande golpe de morte ao PAIGC”

Decorrente desta denúncia, Momo Turé e João Tomás Cabral foram levados para a prisão, terá sido nesta prisão, conjuntamente com Aristides Barbosa, que se planificou o assassinato de Cabral, diz Onésimo. Observo eu que é uma maneira simplificada de procurar encontrar o móbil e o quadro dos figurantes do assassinato, importa não esquecer que estiveram envolvidas centenas de pessoas e dentro dessas centenas dezenas interferiram diretamente no quadro conspirativo. Aqueles três divisionistas não tinham estatuto para levar tão vasto plano por diante, mas compreende-se que Onésimo ao fazer esta declaração procure encontrar alívio e explicação para uma charada que continua sem resposta plausível, desapareceram pessoas e documentos, agora qualquer um de nós pode dizer o que lhe apetece, sabe-se que a PIDE não interferiu e não há comprovantes de que Sékou Touré também tenha ajudado à festa.

A entrevista ciranda os acontecimentos do assassinato e fala-se de Sékou Touré, Onésimo assiste ao funeral de Cabral, tem lugar uma receção do presidente da Guiné Conacri, ele diz que o PAIGC cometeu erros graves. 

“Na lógica dele, devia haver dois partidos, um da independência da Guiné e outro da independência de Cabo Verde. Por causa disso, fiquei com a impressão de que Sékou Touré tinha sido influenciado pelos indivíduos que tinham assassinado Cabral. Segundo ele, a divisão entre guineenses e cabo-verdianos tenha minado o PAIGC por dentro. Fiquei também com a sensação de que o Sékou Touré não tinha vertido uma lágrima pela morte do Amílcar. Encontro estranho, quase como falar em corda em casa do enforcado. Por maiores que fossem os problemas do PAIGC e da luta, aquele não era o momento para aquele suplício, sabendo ele que o Luís era amigo do Amílcar. O certo é que no meio da confusão que se seguiu à morte de Cabral, a polícia guineense, com o auxílio dos soviéticos, atuou imediatamente. E a conclusão: nenhum cabo-verdiano sabia que se ‘complotava’ contra Cabral, ao contrário de todos os guineenses em Conacri, que estavam a par. Quando o Cabral foi assassinado, havia uma casa em Conacri onde estavam os mutilados de guerra e quando souberam que Cabral tinha sido morto, indivíduos sem pernas, nem braços, aos gritos, davam saltos de contentamento, viram na morte de Cabral a sua libertação. A cena destes indivíduos a pularem de contentamento dá ideia dos recalcamentos criados pela luta, atesta o nível de contradições que o PAIGC, enquanto movimento de libertação, já tinha gerado no seu próprio interior”.

(continua)

Onésimo Silveira e Amílcar Cabral em Helsínquia
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24316: Notas de leitura (1582): Revisitar o livro "Memória", de Álvaro Guerra (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24280: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte VI: Sexo, álcool e amuletos... A maldição ou a premonição do Amílcar Cabral ?..."Só nós somos capazes de destruir o Partido" (Boké, Guiné-Conacri, finais de 1970)


Guiné-Bissau (sic) > PAIGC > s/l > Março-abril de 1974 > Mulher com criança /Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 29 - Life in the Liberated Areas, Guinea-Bissau - Woman with child - 1974.tif

Fonte: Wikimedia Commons > Guinea-Bissau and Senegal_1973-1974 (Coutinho Collection) (Com a devida vénia...) . Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)






1. A seguir à invasão de Conacri por tropas portuguesas e forças da oposição ao governo de Sékou Touré, em 22 de novembro de 1970 (Op Mar Verde), Amílcar Cabral (AC) reuniu as cúpulas do PAIGC em Boké, na Guiné-Conacri, próximo da fronteira sul com o território da então Guiné Portuguesa, em data que não podemos precisar mas sabemos, pelo testemunho de Luís Cabral (LC) ("Crónica da Libertação", Lisboa, O Jornal, 1984, 464 pp.), que foi ainda em 1970, por volta do final desse  ano. (*)

AC aproveitou para fazer o balanço da "bárbara agressão do inimigo contra a capital da República da Guiné", segundo o relato do seu mano, LC (pág. 373).

Difícil para ambos  era compreender "a traição de muitos dos principais colaboradores do presidente Sékou Touré" (sic) (pág. 374). Naturalmente o AC não revelou,  aos seus  colaboradores mais próximos,  as tremendas dificuldades  (económicas, politicas,  sociais, etc.) por que estava a passar a Guiné-Conacri nem ele alguma vez denunciou a natureza ditatorial do regime de Sékou Touré. Obviamente, não iria cuspir na sopa nem dizer mal dos seus hóspedes.... e aliados. Amílcar Cabral (e o seu estado-maior) estava nas mãos do "camarada" Sékou Touré (em relação ao qual, de resto, havia um temor reverencial, visível na maneira como o LC se  referiu a ele da primeira vez que o conheceu, à distância, chegando na sua viatura presidencial ao aeroporto da capital).

Mas não deixou, o AC,  de avançar com a sua própria teoria espontânea  sobre os riscos que estava a correr o próprio PAIGC, cujas sementes de destruição não eram exógenas (ou seja, vindas do exterior) mas endógenas (geradas a partir de dentro), insistindo repetidas vezes que "só nós" (sic) (...) "estávamos em condições de destruir o Partido" (pág, 375). Uma premonição, quiçá, do seu próporio assassinato dois anos mais tarde, em Conacri, a 20 de janeiro de 1973, e onde a participação do Sékou Touré, como autor moral,  está  ainda por esclarecer, bem como a de dirigentes do PAIGC como o Osvaldo Vieira, primo do 'Nino'.

E contou, o AC, para gáudio geral da audiência,   a história ou a fábula do bode que, numa pequena terra se havia celebrizado pela sua extraordinária capacidade de procriação, até ao dia em que o presidente do município local se apressou a comprá-lo e instalá-lo num estábulo-modelo, promovendo-o a "bode municipal"...

A partir daí, bem comido e melhor dormido, o bode desinteressou-se totalmente das cabras. Quando o seu antigo proprietário, indignado, lhe pediu explicações, face às reclamações do seu novo dono ( o presidente do município). o bode limitou-se a responder, cinicamente: "Agora sou funcionário público." (pág. 376).

A mensagem que o AC quis transmitir  aos seus "generais", depois da prova de fogos  que fora, para todos aqueles que  lá estavam, a invasão de Conacri e a tentativa de derrube do regime, era clara: ninguém nos destrói,  a partir de fora, a começar pelos "tugas", se continuarmos de mãos dadas a certar fileiras... Mas nós podemos destruir-nos uns aos outros...

Foi nesta reunião de Boké que apareceu, pela primeira vez, a figura do Partido-Estado. Foi criado o Conselho Superior de Luta no seio do qual era eleito o Conselho Executivo da Luta (pág. 377). Foi também nesta reunião que passaram a fazer parte das Forças Armadas, "as forças regulares - o Exército Popular, a Marinha Nacional e, mais tarde, a Aviação Militar" (pág. 378). Por seu lado, "a Guerrilha e a Milícia foram juntas numa única organização, as Forças Armadas Locais (FAL)", cabendo a sua direção ao Comité Nacional das Regiões Libertadas (sic).

E chegamos ao ponto que nos interessa. No final da reunião, o AC punha mais uma vez o dedo na ferida, manifestando as suas reiteradas preocupações com a "vida pessoal dos quadros e dirigentes do Partido" (pág. 378).

Escreve o irmão, LC:

"Sei bem quanto era doloroso para o Amílcar ter de abordar sempre esta questão delicada cuja origem nascia do comportamento de alguns dos dirigentes da luta" (Negritos nossos)...

E o LC exemplifica, com algum prurido, duas condutas altamente perniciosas para um partido que se pretendia "libertador": 

(i) "o consumo exagerado da bebida alcoólica" (pp. 378/379); 

e (ii) a prostituição, o assédio sexual, a poligamia (pp. 380/383), 

e (iii) implicitamente a cultura do "cabra-macho"... (Claro que ele nunca usa as palavras prostituição, assédio sexual e cabra-macho..).

As questões do álcool e do sexo eram extremamente incómodas e até fracturantes num  "partido revolucionário", de inspiração marxista, como o PAIGC, que se queria frugal, puritano, impoluto. 

Os dirigentes e os quadros sabiam quem eram os visados pelas palavras de AC. Um deles seria o Osvaldo Veira, grande apreciador da "água de Lisboa", acrescentamos nós. 

No caso do álcool, LC conta que havia dirigentes que se davam ao luxo de ter os seus "furadores" privativos (!) para extraírem o vinho de palma, bebida que rareava no mato tal como as bebidas alcoólicas que eram importadas (e disputadas em Conacri).

A questão da "violência sexual" (outra expressão que nunca é usada, por falso moralismo) era outro grave problema que já vinha de trás. Diversos "senhores da guerra" haviam sido denunciados, julgados e condenados à morte, em Cassacá, no I Congresso do PAIGC, em fevereiro de 1964, acusados de brutais abusos sexuais e atrocidades para com a população, e nomeadamente para com as  raparigas e outras mulheres jovens (mas também contra os que os que se opunham a estas práticas horrendas). LC só volta a referir a persistência deste problema por ocasião da reunião de Boké, em finais de 1970.  Isto significa que ele nunca fora resolvido ao longo daqueles anos todos...

"Todos os homens normais gostam de mulheres, dizia ele [ o Amílcar Cabral] (...). No auge do seu desespero em ter de abordar esta questão uma vez mais, o Amílcar acrescentou, elevando ligeiramente a voz: 'Se pensam que são mais machos do que nós, estão enganados, se quiserem podemos ir ao quarto ao lado e fazer a experiência! Temos as nossas mulheres, a nossa família, e sabemos a responsabilidade que nos cabe nesta fase da vida do nosso povo`".(...) (pág. 382).

O que estava em causa era a cultura, então dominante no seio do PAIGC, do "cabra-macho", de peito feito às balas, de "peito vermelho", aguerrido, corajoso, mas também violento, machão, predador sexual...

Umas terceira preocupação do AC (e do LC) era o uso e abuso de amuletos, já abordado nas pp. 166/167. LC revela que os dirigentes do PAIGC, no mato, "tinham sempre um combatente muito jovem, que transportava,  num saco, os variados amuletos a que cada um tinha direito, dada a sua condição de chefia" (pág, 166). 

No caso do 'Nino' Vieira, por exemplo, não se deslocava no mato em situações de combate,  sem o seu arsenal de amuletos, e de pelo menos dois ajudantes (!),  que os carregavam, além de um bigrupo reforçado,  segundo o testemunho (suspeito) do Bobo Queita (que não gostava dele, e ainda mais depois do golpe de Estado de 14 de novembro de 1940).    [ In: Norberto Tavares de Carvalho, "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita". Edição de autor, Porto, 2011. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes. p. 197.)

O AC, de formação católica, filho de ex-padre e professor primário (todavia, sexualmente muito promíscuo, com muitos filhos de várias mulheres), não apreciava também estes "aspectos menos racionais" do comportamento dos seus homens... Mas teve que engolir este e muitos  outros sapos (como, por exemplo,  a "mutilação genital feminina" praticada pelos povos "islamizados" da Guiné: não me lembro de ele alguma vez se ter pronunciado, ou pelo menos escrito, sobre este problema, ele que, de resto,  era pai de duas meninas, filhas de uma portuguesa... que foi alegadamente o "amor da sua vida").

"O amuleto - mezinho, como lhe chamávamos - era uma fraqueza que foi transformada em força pelo Partido" (pág. 166). Quando ainda não havia armas para se defenderem, "o Amílcar entregava-lhe(s) o dinheiro necessário para mandar fazer o mezinho - algumas citações do Corão, escritas em caracteres árabes" (...), amuleto que depois era "cuidadosamente forrado de cabedal, e que tinha a virtude de reforçar no combatente a confiança em si próprio, trazendo-lhe a confiança psíquica indispensável ao bom cumprimento da sua missão (pág. 167).

Umas páginas à frente, LC conta a história caricata de um grupo de estrangeiros, o sociólogo sueco Rolf Gustavson e uma equipa de cineastas e fotógrafos franceses, constituída por Michel Honorim, Giles Caron e Michel Carbeau" (pág. 385). Os franceses vinham do Biafra e queriam ver cenas de guerra e sangue...

Isto passa-se entre Farim e Jumbembem, quase nas barbas das NT. Face ao risco de serem apanhados por uma emboscada das tropas portuguesas, LC deu ordem à escolta, comandada por Bobo Queita, para fazer uma "retirada forçada" até à fronteira... Não tendo nada de interessante para filmar (nem sequer umas tabancas em ruínas, carbonizadas pelo napalm dos colonialistas... ), "o chefe da equipa francesa disse em voz alta que éramos um bando de mentirosos" (sic).

Apesar da desculpa do cansaço físico e da tensão acumulada, o LC é obrigado a ameaçar confiscar-lhe as películas há utilizadas. Resultado: 

"Do documentário que devia ser feito das filmagens de Michel Carbeau, pelo realizador Michel Honorim, chefe da equipa, nunca tivemos notícias" (pág. 387). 

Restou o fotógrafo Gilles Caron que terá feito, mesmo assim, algumas belas imagens dos sítios por onde passou...

Destes (e doutros nomes que andaram pelas "áreas libertadas" a documentar a luta do PAIGC) há escassíssimas referências na Net: vd. Journal of Film Preservation, 77/78, october 2008.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24261: Palavras fora da boca (3): As nossas santas ingenuidades... A propósito da violència do PAIGC nas "áreas libertadas" (Luís Cabral / Luís Graça / António Graça de Abreu / António Rosinha / Cherno Baldé)


República da Guiné > Conacri > c. 1960  > Dirigentes do PAIGC, junto ao Secretariado Geral: da esquerda para a direita:  (i) Osvaldo Vieira, (ii) Constantino Teixeira, (iii) Lourenço Gomes e (iv) Armando Ramos. 

O Osvaldo Vieira (1938-1974), também conhecido como "Ambrósio Djassi" (nome de guerra), terá morrido, de doença,  dizem,  por complicações pós-operatórias, em  31 de março de 1974 (não num hospital da ex-URSS, mas na base do PAIGC, em Koundara, Guiné Conacrii), e  sobretudo com a terrível suspeita de ter estado implicado na conjura contra Amílcar Cabral... Era primo do 'Nino' Vieira... Ironia(s) suprema(s):  repousam os dois, o Amílcar e o Osvaldo, lado a lado, na Amura; e o seu nome (e não o de Amílcar) foi dado ao Aeroporto Internacional de Bissau, em Bissalanca...

Recorde-se que o "estado-maior" do PAIGC instalara-se em Conacri em maio de 1960. A foto deve ser do ano de 1960, já que em janeiro de 1961 Osvaldo Vieira e Constantino Teixeira faziam parte do grupo de futuros históricos comandantes, mandados por Amílcar Cabral para a  Academia Militar de Nanquim, na China, para receber treino político-militar. Uns meses antes, em agosto de 1960. Amílcar Cabral em pessoa tinha-se deslocado a Pequim para negociar o treino dos quadros do PAIGC na Academia Militar de Nanquim.  

No grupo de quadros do PAIGC que vão nesse ano para a China incluem-se, além dos supracitados Osvaldo Vieira e Constantino Teixeira, os nome de João Bernardo Vieira ['Nino'], Francisco Mendes, Pedro Ramos, Manuel Saturnino, Vitorino Costa [irmão de Manuel Saturnino],  Domingos Ramos [irmão de Pedro Ramos e amigo do nosso Mário Dias], Rui Djassi, e Hilário Gomes.

Foto (e legenda): Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral  > Pasta: 05222.000.084 (adapt por Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2018, com a devida vénia...)


1. Seleção de comentários ao poste P24232 (*)... A questão da "violência" (policial ou militar) no TO da Guiné, antes, durante e depois da guerra, dá pano para mangas... Mas está longe de estar (bem) documentada no nosso blogue (Pijiguiti, Samba Silate, Cassacá, chão manjaco, Conacri, Boé, Bambadinca, Cumeré, Porto Gole...).

É um tema "delicado", para não dizer "tabu" e "fracturante",  para um blogue de antigos combatentes. Está mal documentada de um lado e do outro do conflito.

Por exemplo, do lado do PAIGC:  "A luta foi difícil, mas nunca pensei em abandonar. Quanto aos desertores, a lei do Partido exigia que fossem executados… Era a lei militar” (p. 67) (**, disse  Bobo Keita  no livro de Norberto Tavares de Carvalho, "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita /Edição de autor, Porto, 2011, 303 pp., posfácio de António Marques Lopes) .

Nas suas memórias ("Crónica da Libertação", Lisboa, o Jornal, 1984) (memórias que vão até ao assassinato do líder do PAIGC, em Conacri, em 20 de janeiro de 1973), Luís Cabral também não esconde que o Partido (sic) resolveu graves conflitos internos com execuçóes sumárias e públicas, como por exemplo, em  fevereiro de 1964, em Cassacá (pág. 190).  sobre

Nem esconde também a violência que era exercida sobre as populações civis sob controlo do PAICC (mas também sobre combatentes e até dirigentes), como no caso do Morés, em fevereiro de 1966. Violència nas suas diversas formas (incluindo a violència sexual)...

 Violência essa que escapa à "santa ingenuidade" de todos os observadores estrangeiros ocidentais  que são convidados a "visitar as áreas libertadas", dos nórdicos (suecos, noruegueses, holandeses) aos italianos e franceses... para não falar dos oriundos dos países "não-alinhados",  os do "bloco soviético", sem esquecer os da China e de Cuba...Todos (a começar pelos médicos cubanos, talvez os mais cínicos)  levavam "vendas nos olhos" ou "óculos cor de rosa", como é normal em situações de conflito em que  se polarizam as posições... Ontem como hoje, a verdade é sempre a primeira grande vítima dos conflitos armados... 

Claro, neste caso, nem o governo português de então nem o Amílcar Cabral convidavam observadores independentes (a começar pelos jornalistas) para ver o que se passava no "terreno"...  Mas ambos sabiam da enorme importância que tem/tinha a "propaganda"... E nessa matéria Amílcar Cabral era uma mestre: foi muito mais hábil que os nossos "cabos de guerra", do Arnaldo Schulz ao António Spínola, para não falar do Bettencourt Rodrigues (que foi mais um erro de "casting")... De qualquer modo, temos que ter em conta a conjuntura histórica, geopolítica, da época, muito mais favorável ao discurso anti-colonialista e anti-imperialista...

(i) Tabanca Grande Luís Graça:

"O Amílcar Cabral era bom de mais", dizia o Osvaldo Vieira...

(...) Apesar da receção calorosa que ele e os cineastas italianos (***)  tiveram no Morés, o Luís Cabral (LC) não deixa de experimentar um sentimento de isolamento e desconforto: 

“Quando eu decidia mandar chamar um ou outro camarada que conhecia bem, ficava com a sensação de que ele não estava à vontade, parecia ter medo de qualquer coisa” (pág. 262).

LC irá constatar, algum tempo depois, que a “disciplina rigorosa” que prevalecia na base, por alegadas razões de segurança, implicava também o recurso (frequente) a “castigos corporais”, a única maneira de prevenir a deserção de populações e guerrilheiros.

LC ficou impressionado com uma cena que observou, de um grupo de um dezena de homens e de uma mulher com o filho ao colo. Os homens tinham as mãos inflamadas das palmatoadas que acabavam de receber, castigo de que escapara a mulher por causa da criança (uma vez que a tinha de transportar).

LC terá ficado indignado, argumentando que o AC nunca aprovaria o uso de “castigos corporais”, prática que associava ao colonialismo

O Osvaldo Vieira “insistia que a nossa gente não compreendia outra linguagem e que o Amílcar era bom de mais” (sic)… e que não se agissem assim, com dureza, quer em relação aos combatentes, quer em relação à população, nos casos de infração às regras estabelecidas, “estavam perdidos” (sic) (pág. 265). (Negritos nossos)

É uma delícia, esta explicação, a do Osvaldo Vieira, deitando por terra o “mito” das “regiões libertadas”…

19 de abril de 2023 às 13:08

(ii) Antonio Graça de Abreu:

Afinal a "disciplina rigorosa" exercida pelo PAIGC sobre a população pobre das "regiões libertadas": Palmatoadas, mãos a sangrar, violência primária sobre um humilde povo que apenas desejava pão e dignidade, e viver em paz!

Posso imaginar o sofrimento de Amílcar Cabral, resguardado na outra Guiné-Conacri, distante das "regiões libertadas". No aparente conforto, no seio dos seus correligionários, em Conacri. Se Cabral não foi ingénuo, morto pelos seus próprios homens, em Conacri, foi o quê?

19 de abril de 2023 às 14:38

(iii) Cherno Baldé:

Eu li o livro "Crónicas da libertação" do Luós Cabral em 1989, precisamente quando estava de férias em Lisboa, mas, se a memória não me falha,  o cenário que o LC descreveu foi de um grupo de pessoas (civis) que eles encontraram amarradas com cordas, estando alguns com os membros inchados e que ele teria mandado desamarrar e, tendo confrontado o caso as pessoas presentes no local, disse que ninguém teve coragem de indicar quem tinha sido o mandante que, tudo indicava, seria o Comandante Osvaldo Vieira que reinava em chefe absoluto na zona Norte. 

No fim, o LC afirmava, no livro, que ainda não tinha chegado o tempo para se falar de todas as verdades da luta do PAIGC. O livro tinha sido publicado em 1984, salvo erro.

Levar a cabo uma guerra como o fez o PAIGC por mais de 10 anos não é uma brincadeira de crianças nem de ingénuos ou inocentes, por isso e para que a luta não resultasse num redondo fracasso, foi preciso combinar a "bondade" do Amílcar Cabral com a dureza vs crueldade do Osvaldo Vieira e no final, esta última acabou por prevalecer, da mesma forma como acontece com todas as boas intençóes. 

Como disse um filósofo inglês do século XIX , "Tentem fazer o bem e as forças do mal prevalecem"

19 de abril de 2023 às 16:46
 
(iv) António Rosinha:

António Graça de Abreu, a maioria dos dirigentes dos partidos ganhadores das primeiras independências dos anos 60 em África, ou se liquidaram uns aos outros, ou escaparam a atentados, sendo eles a matar os outros.

Os que foram assassinados, tal como Amílcar Cabral, não foi por serem "ingénuos". Eles apenas arriscaram, deram o peito às balas, só que Cabral arriscou mais que qualquer outro.

Pela sua condição de ser visto como um cabo-verdiano pelos guineenses, que facilmente ficou "desarmado" quando Spínola pôs em prática a política da Guiné para os guinéus, foi com muito risco consciente que ele corria, tanto que ele mencionou as traições a que estava sujeito, dentro do próprio partido.

Mas sobre Cabral e outros "não indígenas" das ex-colónias portuguesas que optaram por formar os tais partidos ganhadores, tiveram a sua lógica anti-colonialista e simultaneamente anti-salazarista, mas haveria muito a escrever sobre eles, mas seria também muito chato.

20 de abril de 2023 às 00:59 

(v) Tabanca Grande Luís Graça:

Cherno, só agora, em 2023, li o livro do Luís Cabral, "Crónica da Libertação", edição de "O Jornal", Lisboa, 1984, 464 pp. Livro brochado, uma encadernação horrível, que se desconjunta toda. A editora já não existe, o livro é difícil de encontrar, a não ser talvez nos alfarrabistas e, claro, nalgumas bibliotecas públicas.

A cena da violência contra um grupo de população civil na "base central" do Morés encontra-se descrita nas pp.265/270. Isto passa-se por ocasião da visita, à região Norte, do realizador italiano Piero Nelli, na 1ª quinzena de fevereiro de 1966: vd. pp. 259/270. (É o autor do filme "Labanta, Negro!", premiado no Festival de Veneza desse ano.)

O Osvaldo Vieira (OV) era o responsável da Frente Norte (pág. 259). O comissário político da Inter-Regiáo do Norte era o Chico Mendes, membro do Bureau Político (tal como o Luís Cabral, LC (pág. 260). O Osvaldo trabalhou na Farmácia Moderna (diretor técnica, a dra.Sofia Pomba Guerra) (pág. 260). O Inocèncio Kani (IK), o futuro assassino de Amílcar Cabral (AC), era o "responsável da base" (pág. 267): encontrava-se pela primeira vez com o LC, tendo mostrado "um comportamento um tanto reservado". 

LC também conheceu dessa vez o Simão Mendes, enfermeiro no tempo colonial, responsável da saúde (que viria a seguir num bombardeamento à base).

Numa visita à base, o OV diz ao LC que ali teve que se impor "uma disciplina rigorosa, para neutralizar o mal que o inimigo podia fazer-lhes, partindo dos vários quartéis da região"...

É nessa visita, já depois das filmagens da fracassada emboscada, em 11/2/1966 (cito de cor), às NT na estrada Mansoa-Mansabá (que estava a ser alcatroada) e que fora preparada para "italiano ver e filmar"), o LC deu conta da existència de um pequeno grupo de civis que tinham sido maltratados:

(...) "Num pequeno largo da base, estava o Inocèncio e mais alguns camaradas de um lado, enquanto que do outro vi aproximadamente uma dezena de de homens e uma mulher com o filhinho no braço" (pág. 265).  

OV explicou "que se tratava de prisioneiros, apanhados quando se dirigiam aos quartéis inimigos da região" (sic).

"Olhando com mais atenção para os homens, verifiquei que tinham as mãos inflamadas", chamando a atenção do OV para isso. 

"Respondei que a lei estabelecida na inter-reiáo era essa e que a a mulher só tinha escapado porque tinha de carregar o filho e não podia por isso receber as palmatoadas" (sic).

O LC diz que ficou "muito impressionado com esta cena" e esperou a oportunidade para falar com o OV. Ele estava "absolutamente seguro" de que o AC "nunca daria o seu acordo a tal forma de proceder" (pág. 265)...

O OV "insistia que a nossa gente não compreendia outra linguagem e que o Amílcar era bom de mais", e que "estavam perdidos" (...) "se não agissem com dureza" tanto em relação aos combatentes como á população civil...

Na pág. 268, LC conclui que "a disciplina em Morés era (...) imposta em grande parte pela força"... e que o responsável da base, o IK, era criticado, por todos, pela sua dureza, "que muitas vezes chegava a atingir a malvadez"... Mas ele beneficiava da "confiança total" do OV... (pág. 268)...

Enfim, chega de citações, Cherno, e tira as tuas conclusóes. (Nada disto, claro, transparece no filme, de propaganda, do camarada Piero Nelli.)

19 de abril de 2023 às 22:48
 
(vi) António Graça de Abreu:

Também fui ingenuamente ingénuo. Eis a Prova, escrito há quarenta e sete anos::

Pequim, 25 de Outubro de 1977

Nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras, secção portuguesa, o camarada Fu Ligang trabalha na mesma sala que eu, na mesa mais pequena, à minha direita. É uma espécie de meu secretário. O Fu estudou português em Macau, numa leva de 60 ou 70 jovens chineses que em 1964 a República Popular enviou quase secretamente para Macau, a fim de estudarem a língua de Camões.

O Fu Ligang adquiriu excelentes conhecimentos de português. Teve um professor que nunca esqueceu com o nome de Júlio Pereira Dinis. Responsável e trabalhador -- creio que é membro do Partido Comunista da China --, hoje de manhã perguntou-me:

“Então, camarada António, está a gostar de viver em Pequim, está satisfeito com a China que veio encontrar”?

Assumindo os meus antecedentes meio comunistas, na versão meio maoista, ainda com meia convicção política, respondi-lhe mais ou menos nos seguintes meios termos:

“Sim, vim encontrar um país a crescer, um povo simpático e tenho boas condições de vida e de trabalho aqui em Pequim. Depois, estou a dar o meu pequeno contributo para ajudar a construir o socialismo, para a criação do homem novo, para a construção de uma sociedade mais justa e de um mundo melhor”.

O Fu Ligang ouviu o meu discurso impassível, um levíssimo sorriso a aflorar nos lábios e, passados uns longos segundos, olhou-me pelo canto do olho e disse-me, em excelente português:

“O camarada é ingénuo.”

E não houve mais conversa. Durante o resto da manhã debruçámo-nos sobre os textos a traduzir e a corrigir.

O Fu deve ter razão. Nestes meus quatro anos de Pequim, vou tentar entender e digerir a minha ingenuidade.

20 de abril de 2023 às 13:34

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Itálicos / Negritos: LG] (****)
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(****) Último poste da série > 26 de abril de  2023 > Guiné 61/74 - P24252: Palavras fora da boca... (2): "Prós insultos não há contemplações nem indultos"... e também: "Quem não tem poilão, acolhe-se à sombra do chaparro"... Proverbiário da Tabanca Grande, 5ª edição revista e aumentada

quinta-feira, 30 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24178: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte V: O "making of" do "Labanta, Negro!", um filme italiano, de Piero Nelli (1926-2014), a preto e branco, de estética tardo-neorrealiista, e que serviu que nem uma luva à propaganda do PAIGC

"Labanta, Negro!" > Fotograma, 38m 28 s > A despedida do realizador italiano Piero Nelli


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 30m 58 s > 11 de fevereiro de 1966 > 6h30 > Partida para a emboscada às obras da TECNIL na estrada Mansoa-Mansambá


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 31m 21 s >  A preparação da emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 32m 06s >  A preparação da emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 32m 58s >  A emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 30m 31s >  Panfleto, manuscrito, convidando os militares portugueses  à deserção: "Amigo desconhecido: Com este papel podes estar seguro do teu bom acolhimento em caso de deserção". Assinado: PAIGC.


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 37m  21s > "Quartel-General do Norte"> 13 de fevereiro de 1966 > As despedidas...  À  italiana?

Fotogramas do documentário de Piero Nelli (1926-2014), "Labanta, Negro! " (Itália, 1966, 38' 43''). O filme ganhou o prémio do melhor documentário do ano no Festival de Veneza. Filmado a preto e branco, nas zonas controladas pelo PAIGC  (no Oio), na então Guiné portuguesa, de 2 a 15 de fevereiro de 1966, é um documentário de estética tardo-neorrealista, que o partido do Amílcar Cabral soube explorar habilmente como "arma de propaganda".  

Segundo a CECA (2014, pág. 372) (*), "o ano de 1966 foi considerado pelo PAIGC como o ano da informação, tendo desenvolvido uma intensa e bem orientada campanha de propaganda 'visando esclarecer a opinião pública mundial com testemunhos irrefutáveis'. Para tal estiveram no Boé e em Quitafine vários jornalistas e cineastas africanos, franceses, americanos, ingleses, italianos, holandeses e soviéticos que produziram artigos e filmes - documentários sobre aspectos da luta e do nível de realizações sócio-económicas do PAIGC, que mais tarde deram origem a publicações nas editoras francesa 'Maspero'
e americana 'Africa Report«, entre outras".

Por lapso, a CECA não menciona a visita desta equipa italiana, à região do Oio, o que nos parece lamentável... No nosso blogue, já tinha havido duas anteriores referências a este filme, talvez o mais famoso dos que se fizeram durante a guerra  (**).



"Labanta,Negro!" > O filme serviu objetiva e intencionalmente a propaganda do PAIGC:  foi apresentado pelos autores como um "diário de paz e de guerra" (sic), filmado entre 2 e 15 de fevereiro de 1966, tendo por protagonistas os guerrilheiros da "província portuguesa do ultramar" da Guiné Cabo-Verde (sic, como se fora um só território)... O documentário (que não tem qualquer perspetiva crítica, é claramemnte "engagé", deliberadamente "militante" ou "não independente") foi, além disso, acolhido pelo Comité de Descolonização da ONU, reunido em Argel, de 16 a 21 de junho de 1966, "como prova testemunhal sobre a situação" da colónia da Guiné Cabo-Verde (sic).

Edição (e legendagem): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Continuação da publicação de notas avulsas de leitura do livro "Crónica de Libertação", de Luís Cabral (**):

O documentário "Labanta, Negro!", filmado na região do Oio, entre 2 e 15 de fevereiro de 1966, por dois cineastas italianos 

No início de 1966, Luís Cabral (LC) está em Dacar, é o responsável pela supervisão da Frente Norte, cabendo-lhe a missão de tentar melhorar as difíceis relações do Senegal com o PAIGC, ao tempo em que os homens de Amílcar Cabral (AC) ainda não tinham “livre trânsito” no pais de Senghor, estando acantonados apenas em Dacar e em Ziguinchor.

É então contactado pelo cineasta italiano Piero Nelli, que queria fazer um documentário sobre a “luta de libertação”. Vinha acompanhado do seu operador de câmara Eugenio Bentivoglio (pág. 259).

LC, depois de contactar o irmão, AC (não fazia nada sem o seu consentimento) e o Osvaldo Vieira, comandante militar da Frente Norte, dirigiu-se à base do Morés, acompanhado dos dois italianos. Eram três dias de viagem, com cambança (sempre perigosa) no rio Farim…

Ali, no Oio, era o chão dos oincas, “mandingas e islamizados” (sic) (pág. 260), com uma forte tradição de resistência contra o colonizador: recorde-se as “campanhas de pacificação” do capitão Teixeira Pinto, o “capitão-diabo”, em 1913-1915, por exemplo.

Em 1962, “o ano da grande repressão” (sic), as populações do Morés, cercadas pelas tropas coloniais, e sem armas para se defenderem, tiveram de se refugiar no Senegal. A “base central” do Morés era, por isso, mítica para o PAIGC (e de algum modo também para as tropas portuguesas).

A base, que o LC conhecia pela primeira vez, “estava situada num terreno irregular, onde pequenas saliências aqui e declives ali ofereciam uma certa proteção contra os bombardeamentos” (pág. 261).

O Morés estava rodeado de “oito quartéis” do inimigo, um dos quais Farim, apenas separado pelo rio do mesmo nome. Chico Mendes era o comissário político. Osvaldo Vieira o comandante militar da região (e aquele que LC conhecia melhor, dos tempos de Bissau: desde a adolescência, trabalhava na Farmácia Moderna, de que era diretora técnica a dra. Sofia Pomba Guerra, conhecida opositora do regime salazarista). O Inocêncio Cani, de etnia bijagó, o futuro “matador” de AC, era o responsável pela base. LC encontrou-se com ele pela primeira vez. Notou que, em relação a ele, LC, o Cani mostrou “um comportamento algo reservado” (pág. 261). Também conheceu nessa altura o Simão Mendes, “responsável da saúde” (pág. 262), que viria, nesse ano, a ser vítima mortal de um bombardeamento da base.

Apesar da receção calorosa que ele e os cineastas italianos tiveram no Morés, o LC não deixa de experimentar um sentimento de isolamento e desconforto: “quando eu decidia mandar chamar um ou outro camarada que conhecia bem, ficava com a sensação de que ele não estava à vontade, parecia ter medo de qualquer coisa” (pág. 262).

LC irá constatar, algum tempo depois, que a “disciplina rigorosa” que prevalecia na base, por alegadas razões de segurança, implicava também o recurso (frequente) a “castigos corporais”, a única maneira de prevenir a deserção de populações e guerrilheiros.

LC ficou impressionado com uma cena que observou, de um grupo de um dezena de homens e de uma mulher com o filho ao colo. Os homens tinham as mãos inflamadas das palmatoadas que acabavam de receber, castigo de que escapara a mulher por causa da criança (uma vez que a tinha de transportar).

LC terá ficado indignado, argumentando que o AC nunca aprovaria o uso de “castigos corporais”, prática que associava ao colonialismo. O Osvaldo Vieira “insistia que a nossa gente não compreendia outra linguagem e que o Amílcar era bom de mais” (sic)… e que não se agissem assim, com dureza, quer em relação aos combatentes, quer em relação à população, nos casos de infração às regras estabelecidas, “estavam perdidos” (sic) (pág. 265).

É uma delícia, esta explicação, a do Osvaldo Vieira, deitando por terra o “mito” das “regiões libertadas”…

Nas páginas 262-264, LC descreve, com algum detalhe e sentido de humor, as peripécias das filmagens do futuro documentário italiano “Labanta, Negro!”…

O Pierro Nelli (1926-2014) era um “antigo partisan das guerrilhas antifascistas”, na Itália de Mussolini e da ocupação nazi. Tivera conhecimento da luta do PAIGC, “ocasionalmente”, em Dacar. E estava agora entusiasmado com o que via nas florestas do Oio, e “altamente emocionado” pelo interesse e carinho com que o recebiam nesta visita. Viria a tornar-se “um admirador do nosso Partido” (pág. 262).

LC explicou-lhe que “na nossa terra não tínhamos montanhas para nelas instalar bases de guerrilha”… e que o Amílcar, seguramente (en)levado pelo “mito “ da Sierra Maestra, da ilha de Cuba, “dissera desde o início da luta que as nossas florestas seriam as nossas montanhas” (pág. 262).

De qualquer modo, ao deslocar-se na floresta o duo italiano tinha sempre alguém que ia à sua frente a assinalar ou remover os obstáculos, um tronco caído, uma cova mais funda, uma pedra, um ramo de árvore mais inclinada…

No plano de filmagens estava incluída uma sequència de guerra: “o encontro com as forças inimigas ia ser filmado, na estrada Mansoa-Mansabá, cujos trabalhos de alcatroamento avançavam com muita dificuldade, sob a protecção do exército colonial”.

Os cineastas ficaram a cem metros da estrada. Chegaram antes do romper do dia. Ficaram instalados “de maneira a ter bem claro na objectiva da câmara o ângulo onde deviam actuar os nossos camaradas já emboscados” (pág. 263).

A tropa, “apoiada com carros de assalto” (sic) (deveriam tratar-se de simples autometralhadoras Daimler, coisa que o LC não sabia distinguir), chegou primeiro que os operários, os técnicos e as suas viaturas (a empresa deveria ser a TECNIL onde, mais tarde, em 1977 irá trabalhar, como topógrafo, o nossso camarada António Rosinha).

Por inexperiência ou azar (para não dizer “nabice”), o operador de câmara ficou virado para oriente, donde vinham os primeiros raios de sol: 

(…) “Os reflexos desta perfurante luminosidade na objetiva da câmara cinematográfica fez com que ela fosse localizada pelo destacamento inimigo alguns segundos antes dos primeiros tiros da emboscada cuidadosamente preparada pelos nossos combatentes” (pág. 263).

Face ao intenso fogo que, de imediato, se desencadeou, de um lado e do outro, os cineastas tiveram que se retirar “precipitadamente” do local, “só tomando o fôlego quando se sentiram fora do alcance das armas inimigas” (pág. 264).

Na precipitação da retirada, o realizador perdeu o seu magnetofone, mas um dos guerrilheiros voltou depois ao local para o recuperar.

O aparelho registara os sons dos tiros produzidos durante a confrontação. E o operador também “registara imagens ao acaso, durante a retirada”, inadvertidamente, com a câmara ligada… É uma das sequências mais notáveis do filme de 38 minutos: “uma sequência plena de vida e de arte”, acrescenta o LC.

O operador de imagem, Eugenio Bentivoglio, não se cansava, já no regresso à base, de falar do medo, “la grande paura”, que experimentara, o maior de toda a sua vida, enquanto o realizador se mostrava mais calmo: pertencente a uma geração mais velha, conhecera a guerra e os seus horrores.

E num comentário, algo “naif” mas não menos fanfarrão, o LC (que nunca foi grande combatente, diga-se de passagem) acrescenta: a seu lado (do Piero Nelli), e ainda debaixo de fogo, “o comandante Joaquim Furtado (…) chamava a sua atenção para a beleza dos patos selvagens que esvoaçavam a alguns metros do lugar onde passavam, afastando-se do perigo iminente que vinha do lado da estrada” (pág. 264).

No dia seguinte, e para despedida do LC e dos seus amigos italianos, tudo acabou em bem, com um “grande comício” em que tomaram a palavra o Osvaldo Vieira e o Chico Mendes (tido por grande orador).

O Piero Nelli “chorou” ao deixar o Morés, garante o LC. E mais disse: que com o seu filme, o realizador italiano “ ia procurar ser o mais fiel possível, para transmitir ao espectador europeu que, como ele, nada sabia sobre a nossa luta, os sentimenmtos que vivera tão intensamente no nosso pais “ (pp. 266/267).

E arremata o LC:

 “Parece que conseguiu. O seu filme, ‘Labanta Negro’, título de um poema do cabo-verdiano Dambará (***), poeta das ilhas, recitado em Morés por um dos alunos, foi premiado com o Leão de Ouro do Festival de Veneza, como o melhor documentário do ano” (pág. 267).

Visto à distância de mais de meio século, parece ser um vulgar filme de propaganda, de estética tardo-neorrealista, que já não faz chorar ninguém…O realizador é incapaz do necessário distanciamento afetivo e do espírito crítico que deve ter o cinema documental… E a voz “off” do narrador, monocórdica, parece a de um (mau) locutor de serviço.

2. 
 O filme "Labanta Negro" (1966) (38' 44'')  em italiano, com falas em crioulo, está disponível no You Tube, na conta Archivio Audiovisivo del Movimento Operaio e Democratico, desde 21/03/2019.

Ficha técnica: Labanta Negro! 

Cópia integral: https://goo.gl/Q7PCy2 

Realização: Piero Nelli. 

Produção: Reiac Film, Itália. 

Ano: 1966. 

Duração: 38' 44''.

Aconselha-se a ver o documentário com as legendas em italiano, que são geradas automatiocamente (vd. definições). E uma vez que a narração é muita rápida, é preferível optar por uma reprodução mais lenta).

Sinopse (adapt. do italiano por LG): 

Em crioulo "Labanta, Negro!" (1966) significa "Levante-te, negro!". O filme, pensado como um diário, quer ser um testemunho da luta pela independência da colónia portuguesa da Guiné, a partir dos "territórios já libertados" (caso do Morés, por exemplo), onde a guerra e a actividade militar coexistem com a criação das primeiras estruturas de uma sociedade civil africana que se organiza na floresta, nas aldeias, nas savanas. 

O filme mostra, entre outras coisas, as "aldeias destruídas pelos bombardeamentos portugueses"  e os restos de um avião, um T6,  abatido em 1963 . 

Algumas sequências são dedicadas a uma reunião do PALGC, onde Luís Cabral intervém sobre a "luta de libertação"; também é registrado o depoimento de Osvaldo Vieira, comandante do Exército do Norte. As imagens de um confronto com uma patrulha portuguesa na estrata de Mansoa-Mansabá, em 11/2/1966, e do posterior regresso dos guerrilheiros à base do Morès (uma dramática sequência entre os minutos 30 e 34) encerram o documentário. 

Este documentário foi recebido pelo Comité de Descolonização da ONU, reunido em Argel, como prova testemunhal sobre a situação da "província ultramarina portuguesa" da "Guiné Cabo Verde" (sic).

No texto acima, seguimos as memórias do Luís Cabral para sabermos algo mais sobre o "making of" do filme, que teve na altura algum sucesso e contribuiu bastante levar a luta do partido de Amílcar Cabral (AC) ao conhecimento do público europeu, nomeadamente em Itália.  O filme teve alguma projeção, ao ganhar o prémio para o melhor documentário no Festival Internacional de Cinema de Veneza de 1966.
___________

Notas do editor:

(*) Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014), pág. 372.

(**) Vd. postes:



(***)  Kaoberdiano Dambará era o pseudónimo literário do poeta, escritor e advogado, cabo-verdiano,  lcenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, Felisberto Vieira Lopes (Santa Catarina, Santiago, 1937 – 2020), 


(...) Vieira Lopes/Kaoberdiano Dambará é uma personalidade marcante, única e incontornável da literatura e da advocacia cabo-verdiana. Escolheu-se aqui homenageá-lo apresentando as publicações onde ele assina com o pseudónimo poético revolucionário, escritas em fases marcantes da sua vida: Noti (1964), fase de euforia e de engajamento na luta pela independência; e A saída da Crise não é pelo Anteprojecto da Constituição (1980), fase de desencanto e de combate ao regime de partido único instaurado no país com a independência. (...)

(...) "Noti": Livro de poemas em crioulo, edição do Departamento da Informação e Propaganda do Comité Central do PAIGC, França 1964, com introdução de Ioti Kunta (pseudónimo de Jorge Querido), é uma das obras poéticas mais representativas da poesia engajada na luta de libertação da Guiné e Cabo Verde. (...)