Carlos,
Envio-te este texto por achar grande demais para comentário, se não for esse o entendimento dos editores, faz-me o favor de o remeteres para os comentários ou pura e simplesmente ignorá-lo.
Um abraço,
BSardinha
2. O ESCRITO QUE NÃO QUERIA TER ESCRITO
por Belarmino Sardinha
Vi no blogue, li e ponderei a leitura do belo texto apresentado por um amigo do escritor Mário Cláudio (*) e assinado por este, e é sobre esse texto que quero pronunciar-me.
Tenho pelo escritor Mário Cláudio uma forte admiração e reconheço-lhe a importância na vida de todos nós, trazida pela arte da palavra escrita ou dita através das representações teatrais das peças de que é autor.
Tenho pela pessoa de Rui Barbot Costa o respeito e admiração do ser humano que sempre me pareceu existir na pessoa com quem falei, poucas vezes, mas as suficientes para me aperceber da pessoa que tinha na minha frente. Nunca abordámos o serviço militar obrigatório ou a guerra, desconhecia mesmo que tivesse estado na Guiné.
Porém, o facto de o admirar enquanto escritor e ser humano, leva-me a não deixar passar a sua narrativa (de ficção), não despida de um sentimento generalizado de acontecimentos praticados, ou mandados praticar por um hipotético militar, não só por achar que não corresponde inteiramente à verdade -estando eu enganado e sendo real a sua dimensão carecem de uma melhor fundamentação-, mas por nos tornarem a todos indirectamente culpados.
Vi fotografias publicitadas pelo regime, tinha eu 11 ou 12 anos, onde as coisas aconteciam de forma generalizada mas em sentido contrário. Eram fotografias de interesse do regime para levarem à indignação e possibilitarem alimentar a guerra durante os anos que se seguiram, mas diziam respeito apenas e só a Angola. Não vi fotografias dessas vindas de Moçambique ou Guiné, antes ou durante os anos de guerra nestes locais.
Temos no blogue o relato de um ex-militar que serviu na Guiné, mas viu matarem-lhe um irmão deficiente e o pai. Voltamos a falar de Angola.
Existem fotografias com cabeças cortadas e espetadas em paus, tiradas por um ex-militar fotógrafo, em Angola, estão publicadas em livro e foram alvo de um artigo de imprensa.
O contrário também aconteceu, é certo, em menor número se não mesmo pontual ou selectivamente, mas uma vez mais em Angola. Embora não possa afirmar não ter havido, não conheço nenhuma referência a Moçambique ou Guiné, com excepção de um texto publicado no blogue onde foi descrito a morte dos guias. Não pondo em duvida, ninguém mais se pronunciou ou corroborou esta situação.
Estou em crer que o texto de ficção do escritor Mário Cláudio mais não pretende que alertar e a salientar os excessos que acontecem em qualquer guerra, quando o descontrole emocional e humano ressaltam em situações nem sempre possíveis de controlar, não quero acreditar que está a dar relevância a actos condenáveis cometidos por pessoas de má índole, não só porque é dar-lhes uma importância que não merecem como, uma vez mais, não foram/são, felizmente, a generalidade.
Não podemos ignorar que alimentámos uma ou três guerras durante 13 anos e que estas situações aconteceram nos anos iniciais. Após isso, pugnámos por um princípio generalizado de respeito, se é que existe respeito quando se prende, interroga, tortura e humilha fruto da guerra. Este aspecto dava para muitas outras extrapolações mesmo sem guerra.
Acredito que a narrativa ficcionada do escritor Mário Cláudio em nada faz eco com aqueles que, sem qualquer vivência ou conhecimento de causa não se coíbem de se pronunciarem apelidando de assassinos todos os que foram para a guerra cujo objectivo era só o de matarem e cortarem as cabeças aos pretos.
É bom separarmos as águas. O texto apresentado a frio, sem um conhecimento de quem o escreveu, a razão porque o escreveu ou o tipo de obra a que se destina pode levar a interpretações desajustadas.
Não me compete, nem é esse o meu propósito, fazer a defesa do autor que dela não necessita para nada, mas o meu conhecimento da pessoa custa-me compará-lo a um qualquer político de vão de escada em angariação de votos para uma qualquer eleição, muito mais quando ele próprio, em Bissau ou em outro qualquer lugar da Guiné fez também parte da guerra.
Este é mesmo o escrito que não queria ter escrito, mas de acordo com as disposições e interesses do blogue "Luís Graça e Camaradas da Guiné", devemos contar as nossas vivências e dar a nossa opinião, para memória futura, deixando aos historiadores a recolha do que interessa efectivamente para que possam dar-lhe forma, corpo e vida.
Um abraço
Belarmino Sardinha
[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.] (**)
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Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 4 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6672: Para o livro de ouro do Capitão Garcez, um inédito de Mário Cláudio
(...) Chega-me a mensagem de um que andou com o Capitão Garcez nas lutas africanas, e transcrevo dele este bocado, “Há muitíssima confusão, o que favoreceu o mito. Vamos pensar. Mas eu não pretendo branquear-lhe a memória, muita atenção, o tipo era um homicida que descobriu, na guerra colonial, a sua coutada, e que se realizou na tortura, no massacre e na matança. A prova está em que nenhum de nós confraternizava com ele, e havia um como que acordo tácito, entre a malta, nesse sentido. Estou a avistá-lo, ainda, sempre isolado, absorvido nas bolinhas de fumo, que atirava para o ar, com aquele rosto de querubim, mas que, se analisado à lupa, apresentava-se destituído de qualquer sentimento. Por que haveria eu de o desculpar? Mas o que ninguém negará é que as cabeçorras dos pretos, espetadas nos paus, a bordejar a picada, funcionavam como um truque da psico, para demonstrar aos rebeldes, convencidos, pelas igrejas evangélicas, de que Deus os conservava invulneráveis às balas, que não beneficiavam do dom da imortalidade e que não eram menos mortais do que nós. Se isto não escusa as atrocidades, é natural que lhes dê, no entanto, uma certa razão, e uma razão patriótica, que constituia aquilo que, na circunstância, se desejava do sujeito. Quem se adiantaria, se não o Garcez, para executar o trabalho sujo, desempenhado sem luvas, e a que não se furtava, por o considerar imprescindível, talvez, e não tanto porque lhe apetecesse?” (...)
(**) Vd. poste anterior desta série > 4 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6673: Controvérsias (89): Ainda e sempre Guileje, Gadamael, Guidaje... "A vida é curta, a arte é longa, a ocasião fugitiva, a experiência enganadora, o juizo difícil",como diria o Hipócrates (Aforismos, Séc. IV/V a.C.) (Luís Paiva)