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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7602: Memórias de Mansabá (12): No coração do Óio, bem perto do Morés (Ernesto Duarte / Carlos Vinhal)

 MEMÓRIAS DE MANSABÁ (12)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte, ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67, com data de 7 de Janeiro de 2011:

Quarenta e tal anos e Mansabá ainda aí estás, com toda a tua força

Caro Carlos
Que a tua vida e a dos teus continue a correr pelo melhor, são os meus sinceros votos, os meus pedidos aos céus.
[...]
Já vi a publicação, está espectacular, gostei de ver, embora quase tudo relacionado com aquele tempo me pareça, um sonho, ou um pesadelo, coisas que pouca diferença fazem, se fosse em Mansabá pedia, parece-me que era o que eu podia fazer, uma menção honrosa, que depois de investigado podia ir a louvor, e digo mais, revi uma montanha de coisas a correr, num segundo, e senti emoção, raiva, alegria e até a saudades, muitas saudades dos que partiram, dos que têm partido ultimamente, muito e muito obrigado Carlos.

Como bom miliciano, como bom homem de Mansabá ao pedir o favor da publicação foi um risco corrido, com plena consciência, era só e mais nada do que poder falar com alguém que fala a mesma língua do que eu, e possivelmente encontrar camaradas do mesmo ano e contar quatro ou cinco coisas que amanhã sejam lidas de outra maneira, que não sejam lidas como a maioria dos nossos contemporâneos as lêem, e que ao lê-las como realidade, como história viva, isto não é pretensão, muito menos falta de humildade, mas desejo que esse alguém, se torne um defensor da paz muito mais convicto, mas por outro lado tenho dúvidas que alguma coisa alguma vez funcione nesse sentido, mas lá vai, não é um alerta é um grito do fundo da alma guerra não, nunca mais.

Às vezes duvido se não está tudo a ser visto com um sinal contrário! Este ano apareceu no mercado uma espingarda e uma pistola metralhadora, aliás vários modelos, funcionando a pilhas, mas exactamente iguais às verdadeiras, em sistemas, em carregadores, e em cadencia de tiro e mesmo com balas plásticas, dentro dos 10 metros tinham uma eficácia muito boa, venderam-se milhões em Lisboa, com paginas na Net explicando tudo, com todo o pormenor.

O teu comentário, eu atrás de mim no OIO, só conheci os Águias Negras, que fizeram Cutia, tinha sido acabada de fazer poucos dias antes da nossa chegada e se em pormenores se a minha memória não falha, sofreram lá um ataque violentíssimo, e ficaram no terreno, mortos os primeiros dois ou três cubanos, e uma bazuca, tendo passado de se dizer que tinham, a confirmar-se que tinham. Chegados a Mansabá tínhamos água boa, tínhamos trincheiras, e aquele barracão com uma cama. Estavam a acabar Manhau, ainda fomos lá ajudar na decoração. Para aí uma semana antes da nossa chegada se tanto, tinham sofrido um ataque violentíssimo, tendem deixado no terreno um morteiro 82 rachado, parecendo que tinha rebentado uma granada dentro do cano, são os assuntos de fala na altura em que nós chegamos. A nossa chegada foi muito melhor com o apoio deles.

Mas aqui também não sei se não os prejudicamos mais do que ajudamos! Nós nunca conseguimos impor o tempo de guerra, as pessoas não compreendem isto, andamos quilómetros e quilómetros sem dar um tiro, sem ver ninguém e num repente, era a loucura. Eles aprenderam com todos os que foram antes e vocês já encontraram tipos não só com o conhecimento do terreno, mas já com muita técnica de guerra e uma principal, levando a luta para o sitio que lhes interessava e aquelas companhias de milícia que nós treinamos, para onde foram ?

Mamboncó, no sentido para Cutia à direita havia uma série de imbondeiros e era a descer um pedaço aí por 64 foram os F não sei quantos penso que do Montijo, pôr ordem na zona, deixando depois lá uns buracos, que no meu tempo foram limpos duas ou três vezes pela artilharia.

O senhor da serração no meu tempo era um fulano de idade, racista com uma criada cabo verdiana, eu gostava muito da tabanca andava sempre por ali e como tal e como eu gosto muito de conversar, conversamos muito, até ao dia em que nós não lhe trouxemos um tractor enorme de Banjara.

Tenho muitas duvidas se com a nossa maneira de ser, não passamos coisas de mais para o outro lado pensando que estávamos a fazer bem e se calhar muitas delas tiveram efeitos contrários, que deus nos perdoe porque a intenção foi sempre a outra.

O tipo mal acabado que estava em Mansabá em 65 e que eu me lembre era o Barata, não me lembro de mais nenhum, os outros sargentos eram bem acabados.

Carlos quanto a publicação de fotos, tu és o técnico eu só digo obrigado.

Vou parar mas volto, digo já faço alguma confusão com os palcos, eram todos muito iguais e naquele tempo as máquinas que tinham flash eram outras e havia quase sempre muita pressa.

Claro, quanto ao escrever mal, já não tenho idade para me preocupar muito, só me fica o respeito por vocês.

Um grande Abraço
Ernesto Duarte


2. Segunda mensagem de Ernesto Duarte, esta com data de 9 de Janeiro de 2011:

Herói, um fulano de coração grande que está no sítio errado na hora errada

Boa noite Carlos

Eu não jurei que vou encher a tua caixa de correio, até porque eu rebentava primeiro, mas como a língua Portuguesa é muito traiçoeira e mais quando não se sabe lidar muito bem com ela, que é o meu caso, gosto muito mais de números, mas como bom militar, que horror, mas como tipo de Mansabá, cá me vou adaptando.

Eu fui não sei quantas vezes, ponho-me residente em Mansabá, a Cutia, mas muitas e muitas vezes, passava-se aquela ponte, junta a uma ex serração, que levámos às costas, subíamos para Mamboncó por uma coisa chamada estrada, com tanto buraco ou tanto alto, nunca soube bem o que era, andava-se aquele pedaço, relativamente bom, Alto de Mamboncó ao fim descíamos por outro campo, que de estrada não tinha
nada.

Eu não acredito em heróis, heróis são fulanos muito homens, muito humanos, com grande espírito de sacrifício, abnegação, amor ao próximo, e um grande coração, e estando no sitio errado na hora errada, o que aconteceu com todos os que foram ao Ultramar. Estiveram no sitio errado na hora errada, para mim são todos heróis, ou Homens Grandes.

Eu falei naquele pedaço de caminho, eu sei que a Guiné infelizmente está cheia deles, mas aquele para quem passou pelo OIO conhece bem e pode avaliar o esforço gigantesco que era escoltar colunas por aquele espaço de estrada. E algumas colunas de abastecimento para Farim e Bafatá com muitas e muitas viaturas. E o trabalho mais importante até talvez fosse não ser soldado, mas sim o comer lama e encharcados e na outra sol de queimar, comendo pó e mais pó e eles quais formigas movimentando-se constantemente para a frente para trás, onde era preciso empurrar, empurrar muito para tirar do buraco ou subir o alto, pôr paus, tirar, paus, segurar, segurar para não se voltar, disparar onde fazia falta e no fim sorriamos uns para os outros, até talvez brincássemos, mas o nosso prémio ninguém nos podia dar, mas também ninguém nos podia tirar, era a nossa satisfação, a satisfação de termos cumprido, não cumprido com A, B ou C mas com nós próprios, uns com os outros, sabíamos que estávamos sós, até talvez nessas alturas não nos revoltássemos muito, mas o grupo sentia uma muito, muito boa satisfação colectiva.

Não te queria assustar, queria e quero dizer que tu, que vocês, não estão no sitio errado, na hora errada, antes pelo contrário, estão no sitio certo, na hora certa mas meteram ombros a uma obra muito grande, para nós podermos falar, contar episódios que pesam no fundo das nossas almas, e a possibilidade de encontrar camaradas que foram amigos e encontrar novos camaradas, novos amigos, que por um capricho do destino, só numa época diferente, deram os mesmos passos, ao ponto de se poder dizer que se confundem, mas com aquela parte que eu acho maravilhosa, a alegria de ser solidário a satisfação de auxiliar, uma satisfação que muitos lhes podem dar, dizendo obrigado, mas que se matem que se esfolem, ninguém lha pode tirar é vossa, e dentro da vossa simplicidade e humildade, sintam a pleno o seu sabor.

Já me esclareci totalmente penso eu.
Vou passar mais umas duas semanas fora.

Um abraço e até um amanhã, depois, depois,
Ernesto Duarte


3. Comentário de CV:

Caro Ernesto, que bom tenhas entrado na tertúlia, porque és da geração a quem a minha muito deve.
Apenas 5 anos nos separam, mas parece uma eternidade, e é numa guerra como foi aquela.

Vocês deixaram-nos a papinha feita, como que um tapete vermelho por onde circulávamos com mais (relativa) segurança, apesar das dificuldades que nos eram impostas pelos possíveis e inesperados encontros com o IN que partilhava aquela parcela de estrada. Mamboncó foi para nós um local fatídico, onde perdemos dois camaradas, o Manuel Vieira e o Espírito Santo Barbosa*, além dos mais de 20 feridos que tiveram de ser evacuados, naquele dia 6 de Dezembro de 1971, a pouco mais de um mês de a CART 2732 terminar a sua comissão de serviço.

Estrada Mansoa - Mansabá > Zona de Mamboncó por onde passava um dos corredores de acesso ao Morés

Fur Mil Nunes, Soldado Barbosa* e Fur Mil Vinhal

Unimog 404 ao serviço da CART 2732 consumido pelas chamas após ter sido atingido por fogo IN em 06DEZ71 na zona de Mamboncó

Mansabá fica na confluência de importantes itinerários, a saber: para Leste, Bafatá; para Oeste, Bissorã; para sul, Mansoa e para Norte, Farim

Mansabá era, no tempo da CART 2732, um quartel modelar onde havia segurança e o mínimo de conforto para várias centenas de homens, graças aos camaradas que antes de nós por lá passaram.

Atenta à foto que abaixo publico e verifica as alterações efectuadas, nomeadamente na zona superior direita da foto onde eram as Casernas, Bar e Refeitório dos Praças, Cozinha, Depósito de Géneros, Arrecadação de Material de Guerra e outras instalações.


 Vamos dar por finda a nossa conversa que é só do interesse dos mansabenses ou de quem por lá passou.

Um abraço para ti com votos de boa saúde
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7586: Panfletos de Ação Psicológica (2) (Ernesto Duarte)

Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7466: Memória dos lugares (118): Destruição do Mercado Central Bissau (2) (Nelson Herbert)

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3727: Fauna & flora (5): Coluna de Macacos Kom dizimada na estrada de Cutia para Mansabá. (Jorge Picado)

O babuíno da Guiné (mais conhecido na Guiné-Bissau por macaco Kom)

1. Mensagem do Jorge Picado
, ex-Capitão Miliciano (engenheiro agrónomo, na vida civil)... Conta aqui como na região do Oio os soldados africanos do Pelotão de Caçadores Nativos 61 (qual a etnia predominante?) fizeram um 'massacre' de babuínos.



Caro Luís e Camaradas

Acerca deste assunto tenho também uma "triste" lembrança dos meus tempos em Cutia. Como o camarada António Costa refere ter tido "contacto" com macacos-cães em Mamboncó, eu tive um "encontro", numa das muitas escoltas que efectuei nessa estrada, precisamente por essa zona.

Não posso precisar o dia, mas foi um daqueles em que saímos de Cutia para Mansabá afim de receber a coluna que íamos escoltar até Mansoa. Eram ainda só as viaturas militares, as duas primeiras com soldados africanos (que julgo seriam do Pel Caç Nat 61) e eu, invariavelmente na terceira com pessoal da CCaç 2589, seguindo-se as restantes, quando por alturas da zona (não "aldeia") de Mamboncó rebenta um tiroteio de G-3 à minha frente. Mas que valente susto me pregaram aqueles guineenses...e tudo para ver quem conseguia matar mais macacos.

Um grande bando, adultos, jovens e muito jovens (alguns pela mão talvez de fêmeas), atravessaram a estrada, que naquele local era ladeada por revestimento arbóreo relativamente denso, mesmo à frente do início da coluna e os soldados africanos não estiveram com meias medidas. Atiraram a matar, de rajada e tudo, incitando os condutores a passarem por cima deles, ao mesmo tempo que saltavam dos Unimogs e atiravam com os mortos e feridos para cima das viaturas.

O choro dos feridos, grandes ou pequenos, era nitidamente humano. Posso garantir que os mais pequeninos gemiam nitidamente como os nossos bébés. E eu que tinha os meus filhos ainda bem pequenos, lembrava-me bem desses gemidos e choro...Fiquei bastante traumatizado e nem quis olhar para "os troféus" que os soldados exibiam. Sei que lhes passei uma descompostura, mas eles nem ligaram.

Para eles aquilo ia servir para duas coisas. Ganharem dinheiro com a venda de alguns, nomeadamente aos...que estavam em Mansabá (não te assustes que não eram vocês, Carlos) e para uma melhor refeição preparada pelas suas mulheres.

Porém, o pior para mim, foi ao fim da tarde quando se me apresentaram algumas dessas mulheres, que quase garanto vinham acompanhadas pelo Alf Semião (Alô Vítor Junqueira, vê se confirmas isto com o teu vizinho), para me presentearem com uns pedaços daquela carne cozida, salvo erro, com massa. Encontrávamo-nos na nossa "messe" ao ar livre para o jantar, possivelmente. Vocês não calculam o sacrifício que fiz para comer dois ou três pequenos pedaços, para "garantir a amizade com que era distinguido". E os gemidos ainda a soarem aos meus ouvidos...

Também confesso que nunca ouvi a expressão "cabrito pé de rocha". E já agora para terminar, quando o Vítor Junqueira nos deu a conhecer uma história do Alf Semião, lembrei-me de contar este acontecimento, mas como eles são médicos, a ideia que me ocorreu tinha a ver com um assunto do foro, digamos, clínico. Como não saiu logo, por falta de tempo, quando ia para a reproduzir, parei, porque era um tanto ou quanto melindrosa

Jorge Picado

__________

Notas de vb:

Último artigo da série

domingo, 11 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3722: Fauna & flora (4): Tudo o que sabemos sobre o macaco-kom (Jorge Teixeira-Portojo / António J. P. da Costa)

1. Mais informações em resposta ao pedido da Maria Joana Ferreira da Silva, investigadora portuguesa que está a fazer, no Reino Unido, a sua tese de doutoramento sobre o macaco-cão da Guiné (*):


(i) Jorge Teixeira (ex-Fur Mil, Guiné, 1968/70):

Caro Luís:

Uma vez provei um pouquinho de carne que me disseram que era de macaco. Na realidade só sei isso. Creio que foi assado pelo pelotão fula da artilharia.

No Cantanhez, ali para os lados do cruzamento de Camaiupa, onde fiz algumas emboscadas e no tempo em que eram possíveis os reabastecimentos por terra para Cufar, avistei alguns macacos. Muitas vezes sentavam-se na picada. E voavam por entre as árvores, provocando-nos um cagaço tremendo. Mas não sei que raça eram.

O nosso cabo Valadares, e o furriel Mendes, da CCS do BART 1913, adoptaram um macaquito, mas era um sagui. Do qual o Furriel André tem uma estória engraçada, no tempo em que ele viveu no quarto deles. Com o dito sagui tenho uma foto com ele no meu ombro.

É tudo que eu sei sobre macacos.

Um abraço de amizade. Espero que já estejas de boa saúde. Eu já estou a 90%
Jorge Teixeira

(ii) Cor Art António Pereira da Costa (ex-Cap Art CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)

Por mim lembro-me de que na estrada Cutia - Mansabá havia um lugar que se chamava Mamboncó, ao qual chamávamos a Aldeia dos Macacos. Era uma aldeia abandonada devido à guerra e com muitos mangueiros onde os macacos-cães tinham inteira liberdade. Às vezes saíam à estrada asfaltada e iam à frnte das colunas mais de 1 Km, a correr. Pelo Google Earth creio que Mamboncó hoje foi reocupada.

Viviam em grupos da ordem dos 10 -15, entre adultos e pequenos.

Creio, sem confirmação, que os manjacos os comiam. Nunca vi matar nenhum e não creio que os comêssemos.

Lembro-me que as mascotes dos quartéis eram os saguis. Creio que os macacos-cães não se habituavam ao cativeiro. Os campos de mancarra (amendoim) e de abacaxi era protegidos dos macacos por miúdos que os afugentavam para não estragarem as culturas.

Lancei um campo de minas naquela aldeia. Os macacos desenterravam-nas com extrema perícia e chupavam na pontinha do elemento iniciador. Eram minas minúscula que pareciam uns tinteiros antigos. Nunca nenhum accionou nenhuma. Não sei o que é cabrito pé da rocha. Nunca detectei o uso de macacos para fins religiosos. Só numa operação à Ponta Varela encontrei un pequeno "pagode" com algo parecido, mas eram ratos do campo. Alguns naturais comiam animais que outros abominavam como os pelicanos. Em Cacine, o pescador senegalês comia pelicano e gostava, embora o pessoal Nalu dissesse que sabia a peixe.

Há uma curiosidade. É que a guerra criava regiões protegidas para os animais. Nem nós nem o PAIGC íamos caçar a certas zonas e os animais expandiam-se, como no Quitafine (extermo SW da Guiné) Aí o caçador Alfa Bá (civil marido da Mariama) vindo de Cacoca caçou porcos-espinhos, muito saborosos, javakis (porco de mato) cabras de mato e até um pangonlim enorme que é um bicho muitagiro!...

É tudo o que me lembro. Pergunte que se me lembrar digo.

Um Ab do
António Costa
________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anterioers desta série:

10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3714: Fauna & flora (1): Pedido de apoio para investigação científica sobre o Macaco-Cão (Maria Joana Silva)

11 de Janeiro de 2009 > Guiné 63774 - P3720: Fauna & flora (2): Os macacos-cães do nosso tempo (Luís Graça / J. Mexia Alves)

11 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3721: Fauna & flora (3): Mais histórias de macacos (Henrique Cabral / Luís Faria)

sábado, 31 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2906: Estórias de Jorge Picado (3): Cutia, II Parte (Jorge Picado)



Jorge Picado,
ex-Cap Mil,
CCAÇ 2589 e CART 2732,
Guiné 1970/72




1. No dia 24 de Maio de 2008, recebemos esta mensagem do camarada Jorge Picado, com algumas palavras ainda sobre o nosso Encontro Nacional e com a segunda parte do trabalho que ele intitulou como Cutia.

Caro Carlos
Antes de mais quero felicitar-te - e ao Mexia Alves também - pelo excelente trabalho que desenvolveram para que o III Encontro tivesse aquele explendor. Passei um dia magnifico na companhia de tantos camaradas, quase todos desconhecidos para mim, mas que fazem parte da Grande Família Guineense.

Obrigado igualmente por destacares a foto do nosso convívio, que também já tinha arquivado à parte.

Assim que tiver disponibilidade podes crer que darei um salto até Matosinhos.

Seguem então umas palavras sobre a emboscada, que o destino determinou que não ocorresse, pois caso contrário que de certeza não se podia realizar agora esta troca de mensagens.

Jorge Picado
ex-Cap Mil


Guiné> Região do Oio> Destacamento de Cutia, situado na estrada Mansoa/Mansabá.
Foto: © César Dias (2008). Direitos reservados.


Guiné> Região do Oio> Vista aérea do Aquartelamento e Tabanca de Mansabá
Foto: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.

2. Destacamento de Cutia (Parte II)
Por Jorge Picado

Tal como prometi, vou tentar alinhavar algumas palavras sobre certos factos que se passaram após o Natal de 1970.
No entanto, antes de prosseguir, quero aqui deixar um esclarecimento.

No III Encontro realizado no passado dia 17 de Maio na Quinta do Paul – gostei muito de ter abraçado ao fim de quase 37 anos três camaradas (*) com quem partilhei 52 dias de estadia nas Terras do Oio entre Mansabá e o Rio Cacheu, bem como conhecer todos os restantes – comentava-se, num dos muitos grupos que se iam formando e entre outras coisas, que era preciso ter cuidado com a precisão com que por vezes se escrevia no blogue, talvez com recurso a meras recordações, o que a esta distância temporal podia ser ficção.

Concordo plenamente. Por isso quero desde já afirmar que ao citar por exemplo, números concretos quanto a horários, faço-o, porque são aqueles que constam das parcas anotações existentes na pequena agenda de bolso que mantenho e foram lá colocados, quando me encontrava no terreno. Estes, dos horários das colunas, tem apenas a precisão de quartos de hora, mas estão lá. Por isso devo citá-los. Aliás, já nas minhas notas sobre a emboscada do Infandre (1), transcrevi precisamente aquilo a que chamei hieróglifos e procurei depois traduzir.

Quando não tenho a certeza, mas apenas uma ideia, deixo sempre expressa a dúvida ou assinalo com (?). Nesses casos, ficarei muito contente que outros confirmem ou corrijam.

Por julgar que de facto só se deve transmitir algo de que se tenha uma relativa certeza, para quem não se documentou enquanto lá esteve, é que, apesar de ter passado por tantas localidades como referi na minha apresentação ao blogue, tenho muito pouco para contar.

Passemos então aos factos sobre Cutia.

Em virtude das decisões tomadas pelo COMCHEFE de prosseguir com a melhoria (alargamento e asfaltamento) do itinerário para Farim, que à data, creio chegava ao Bironque, foi activado o COP 6, reforçados os meios estacionados em Mansabá (com a colocação de Paras, CAV – viaturas Panhard(?) e não sei se mais), além de 1 CCAÇ colocada no K-3 comandada pelo Cap Mil Cupido (natural e ainda residente em Mira, meu conhecido e do mesmo curso do CPC) e ao mesmo tempo reorganizadas as Forças estacionadas em Cutia, razão pela qual eu aí fui colocado.

A missão de que fui incumbido foi a de proteger as colunas de viaturas civis que transportavam o pessoal, maquinaria e todo o tipo de material necessário à execução de tal empreitada, entre Mansoa e Mansabá.

Assentei arraiais neste Destacamento no dia 27 de Novembro de 1970 - uma sexta-feira, mas não 13 – e iniciei a nova actividade sobre rodas logo pelas 7 horas de domingo, 29, indo a Mansabá para a partir daí efectuar a primeira das 24 escoltas a colunas que realizei levando-a a Mansoa. Aqui formei nova coluna com as máquinas e viaturas vindas de Bissau, escoltando-as até ao seu destino em Mansabá, para depois regressar a penates ao princípio da tarde.

Apesar de durante o período que decorreu até 3 de Fevereiro de 1971 (quando a CCAÇ 2589 realizou a última coluna escolta Mansabá-Mansoa 15H) ter deixado algumas vezes o comando do Destacamento ao Alferes mais graduado durante ausências que nunca excederam 2 dias seguidos, apenas falhei uma escolta no dia em que fui ao dentista ao HM de Bissau, tendo regressado a Mansoa já depois da coluna ter saído para Mansabá.

Confesso que ao efectuar esta última coluna foi com grande satisfação que, comungando com a alegria do pessoal da CCAÇ ao despedir-se daquelas paragens – já que iam aguardar em Mansoa a sua retirada para Bissau a fim de serem recambiados para as suas terras de origem –, também eu me despedi de Cutia e Mansabá onde acreditava não mais colocar os pés. Puro engano e ingenuidade deste vosso camarada de Tabanca, que julgava ser possível, só lá porque tinha 1 ano de mato, arranjar uma colocaçãozita em qualquer secretária das muitas existentes em Bissau, mas que pelos vistos se destinavam aos predestinados… Porém isso já são outras estórias…

Nestas colunas muitas vezes também se incorporavam forças da CART 2753 e, excluindo as dores de cabeça – pelo menos para mim – que os condutores civis me davam por não cumprirem as normas de manterem uma certa distância entre eles e nunca perderem a ligação com a viatura que vinha na sua retaguarda, decorreram sem que houvesse qualquer facto digno de nota, com excepção da realizada no dia 28 de Dezembro que era para se realizar em 27.

Quando a 21 de Dezembro realizei a escolta Mansabá-Mansoa 07H – 12H, para levar a coluna onde viajava todo o pessoal das obras que ia passar o Natal a Bissau, logo me foi determinado que no domingo, 27, estaria pela manhã em Mansoa para pegar na coluna de regresso. Devia trazer forças condicentes com o número de viaturas que seria maior que o normal. Assim, quando às 7 horas de 27 já nos encontrávamos sobre rodas prontos a arrancar, fomos surpreendidos pelo operador de serviço às transmissões que aos berros, dada a distância, nos avisa de que o movimento estava cancelado, por ordem de Mansoa. Confirmando via rádio tal facto, sou informado que por nova ordem de Bissau a coluna seria no dia seguinte, devendo apresentar-me em Mansoa às 15 horas.

Cumprindo ordens – para mim e para todo o pessoal foi um domingo de desfrute e ataque às bazucas de cerveja – a 28 lá estava em Mansoa a enquadrar a coluna. Na realidade maior do que o habitual – seriam perto de 20(?), quando o normal rondaria a dúzia – e com viaturas ainda mais velhas, para arrastar mais a progressão.

Desta vez não dispúnhamos de protecção das Panhard, como por vezes acontecia. Na frente coloquei três Unimog, os dois primeiros com pessoal do Pel Caç Nat e o terceiro, onde me colocava com 1 Secção da CCAÇ. Parámos em Cutia para deixar elementos da população e reordenar o combóio.

Seguindo, passámos o carreiro, a zona de estrada desmatada (tinha-o sido logo após 12 de Outubro) e entrámos no concelho de Mansabá, cujas bermas se mantinham com a vegetação natural, isto é, com o capim no auge do seu desenvolvimento, quase na berma.

Por norma fazia estes percursos a maior parte do tempo de pé e costas para a frente de modo a vigiar o atraso das viaturas da retaguarda, dando indicações ao condutor, para afrouxar ou acelerar conforme o comportamento das mesmas.

Eis se não quando sinto a viatura a parar, sem que ordenasse. Viro-me e vejo as outras duas viaturas, lá à frente, paradas e vazias. O pessoal deitado nas bermas ou melhor, numas pequenas valetas. Secou-se-me a boca. O pessoal africano sempre tão descontraído… fora das viaturas? Não tinha havido tiros aos macacos – como noutra ocasião tinham feito e depois saltaram em andamento e tudo para apanhar os feridos e mortos – então porquê?

Salto também para a estrada. Dou ordem para efectuarem a segurança e avisar o resto da coluna para manter o afastamento entre as viaturas (talvez das poucas artes guerreiras que tinha fixado nas aulas de Mafra, além evidentemente das respeitantes à Manutenção Militar). Corro pela berma esquerda para contactar com o furriel da frente. Nem sequer me passava pela cabeça qual a causa por não ouvir tiros, tal o nervosismo que de mim se apoderou!

Chegado à frente e à fala com o furriel fico estupefacto com o que vejo. Uma cratera com o diâmetro da faixa alcatroada impedia-nos o avanço. Uns bons metros mais à frente, outra. Depois, outra (**).

Começo a ficar cada vez mais apreensivo, para não dizer outra coisa. Os camaradas compreendem naturalmente como me quero expressar aos momentos vividos naquela altura. Nem sequer tive a frieza de raciocinar que durante os longos minutos que se passaram, ainda não tinha sido disparado qualquer tiro!!! Só pensava no que estaria para vir… e, afinal, não vinha nem veio nada.

Entro imediatamente em contacto com Mansabá. Transmito-lhe o que se passava. Peço reforços…e até o helicanhão e mantenho-me em contacto permanente com eles.

Entretanto mantinha tudo em guarda e à defesa… não fosse o diabo tecê-las, sem compreender ainda bem o que se passava e com toda a coluna civil nervosa.

Conferenciando com o furriel e um alferes que entretanto se chegou à frente, começámos a serenar, uma vez que o IN não aparecia e decidimos que o Sapador fosse pesquisando o capinzal, para saber da sua viabilidade de passagem apeada de modo a poder-se observar o que estava para a frente, relatando tudo para Mansabá, que já satisfizera os meus pedidos e enviava Panhard e Páras, entre outros.

A estrada mais para a frente descrevia uma ligeira curva para a direita e então, com a progressão apeada, ao mesmo tempo que se fazia avançar as viaturas meio por fora da estrada, contabilizaram-se 5 crateras no total, num percurso de 2 a 3 centenas de metros ou talvez mais…

Verdadeiramente só respirámos de alívio com a chegada dos camaradas de Mansabá e do helicanhão que, depois de bater toda zona envolvente, nos comunicou não ver sinal de presença de IN e regressou a Bissau.

Deixámos então a coluna aos cuidados do pessoal de Mansabá e regressámos a Cutia, eram 18h45m, mas como já tinha aí ordem do meu Comandante para me apresentar em Mansoa, o pessoal teve de fazer mais umas horas extras para lá me colocar.

Tendo relatado verbalmente a ocorrência, dei então conhecimento ao Comandante de que no final da tarde do dia anterior tínhamos escutado – em Cutia –, fortes rebentações relativamente perto, vindas do Norte, que nos alertaram porque julgámos serem de ataque a Mansabá, mas como via rádio nos responderam negativamente e mais ninguém referia qualquer dificuldade, esquecemos o sucedido.

Concluíram que teria estado montada uma emboscada para apanhar a coluna que deveria ter sido efectuada na manhã do dia 27, mas chegado ao fim da tarde sem que tal ocorresse, tiveram de fazer rebentar as minas colocadas na estrada e abortar a emboscada.

Não sei se isto foi comunicado ao COMCHEFE, mas naturalmente que teria sido, só sei que no dia seguinte, 30 de Dezembro, arranquei de madrugada para Cutia às 5h30m indo de seguida efectuar a segurança (próxima?) aos trabalhos de capinação e restauro da estrada até às 15h30m, actividade repetida (segurança à capinação), no dia 2 de Janeiro de 1971 (depois de ter deixado uma coluna em Mansabá) e no dia 3 das 6h30m até às 15 horas.

Uma vez explicados os 5 enormes buracos com cerca de 2 a 2,5m de diâmetro e 60 a 80cm de profundidade, ao longo de 200 a 250m a que o tertuliano Carlos Vinhal se me referiu, não posso terminar sem acrescentar o seguinte:

i) – nos dias que se seguiram à ocorrência, inclusive enquanto se fez a capinação, não me lembro de qualquer reconhecimento efectuado no terreno para verificar rastos da emboscada;

ii) – quando mais tarde, já no CAOP 1 em []Teixeira Pinto, depois de ter contado o sucedido ao meu camarada de quarto, o Cap Art do QP Borges, certo dia aparece-me com um Perintrep ou seria Supintrep(?) acabado de chegar onde vinha esquematizada a emboscada, tal como constava de documentos apreendidos numa posterior operação de assalto ao Morés, efectuada por diversas forças entre as quais a CCMDS e CCPáras, fiquei atordoado. O poder de fogo dessa emboscada era fortíssimo, incluindo posições de Canhão s/r, várias metralhadoras pesadas, além dos vulgares RPG 7 e Kalash. Ainda gostaria de saber onde existirão esses documentos, para alguém confirmar;

iii) – por outro lado e tendo-se realizado 15 escoltas até ao Natal, sem qualquer anormalidade, como é que sabiam que a 16.ª se realizava no dia 27, ainda por cima ao domingo? Como uma emboscada daquela natureza não podia ser montada dum momento para o outro, i.e. a partir por exemplo do momento em que tivessem conhecimento da nossa saída de Cutia – até porque saíamos muitas vezes para ir somente a Mansoa abastecermo-nos – ou do arranque da coluna de Mansoa, como adivinharam que era naquele dia que havia coluna e daquela importância? Não podia ser por mero acaso. Tinham obviamente de ter bons informadores… e certamente em Bissau.

iv) – pela terceira vez – na Guiné – a sorte tinha-me acompanhado, reforçando a crença que se tinha apoderado de mim, de que ao nascer já trazemos todo o percurso de vida inscrito no BI, como se fora uma fita de tempo com todos os passos marcados, ainda que a desconheçamos. Passei a acreditar que a vida está predeterminada e o que tiver e quando acontecer, acontecerá. Para mim, não há volta a dar-lhe, como se costuma dizer;


Parte de Carta Militar com a estrada Cutia-Mansabá, com os pontos A e B assinalados como locais prováveis de montagem da emboscada abortada.

v) – finalmente e à distância de 36 anos procuro localizar no mapa (que anexo) a zona da emboscada, partindo apenas de 3 pressupostos: a designação de Mamboncò e a recordação de que a estrada plana descrevia, do lado Norte das primeiras crateras, uma curva ligeira para a direita. Assim na quadrícula superior esquerda da folha 1/50.000 MANBONCÒ, está traçada a estrada que ia para Mansabá e, depois do limite dos concelhos começava a zona não capinada. Aí deparo-me com duas possíveis localizações, antes da antiga povoação de Mamboncò e que considero como mais prováveis. São essas as posições A e B. Praticamente equidistantes de Cutia e Mansabá (a 6 ou 7 quilómetros) e entre 2 pontões (1 a Sul e outro a Norte logo depois de Mamboncò) onde seria fácil criarem dificuldades aos reforços enviados de ambos os aquartelamentos e muito perto dos locais de refúgio, quer a Oeste (Santambato/Morés) quer a Este (Sara/Canjambari). Inclino-me mais para o ponto B, por ser aquele da zona mais plana, já que o A se encontra entre duas curvas de nível (dos 20 e 30 metros) muito próximas.

Um abraço
Jorge Picado
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Anotações de Carlos Vinhal:

(*) - Jorge Picado refere-se a Vitor Junqueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 2753, Inácio Silva, ex-1.º Cabo da CART 2732 que também esteve destacado no COP 6 em funções administrativas e a mim próprio que com o Jorge participei numa perigosa peregrinação a
Fátima, como ele ironicamente sita.

(**) - Da História da Unidade CART 2732, Capítulo II, Fascículo VI Período de 01DEZ70 a 31DEZ70, página 16:
Dia 28 - Encontrados 5 buracos na estrada alcatroada em MAMBONCÓ 3E6.74, feitos por explosivos, com cerca de 2 a 2,5m de diâmetro e 60 a 80cm de profundidade, ao longo de 200 a 250 metros.

Ainda da História da Unidade CART 2732, Capítulo II, Fascículo XVIII Período de 01DEZ71 a 31DEZ71, página 34:
(um ano depois, sensivelmente no mesmo local)

Dia 06 - Pelas 11h15m 1 GCOMB REF 1 SEC+1 SEC/PEL MIL 253, efectuou coluna auto a MANSOA a fim de transportar militares.
No regresso, em MAMBONCÓ 3F2.56, foi emboscado por GR IN estimado em 50 elementos, armados de RPG, granadas de mão, armas automáticas ligeiras e morteiro 82, durante 20 minutos.
O IN instalado a 2 metros da estrada; alguns elementos armados de RPG saltaram à estrada a fim de alvejarem as viaturas.
1 GCOMB do Destacamento de Cutia saiu em socorro imediato. De Mansabá saiu igualmente 1 GCOMB em socorro. NT reagiram pelo fogo de todas as armas pondo o IN em fuga. A Artilharia da MANSABÁ e a FAP apoiaram as tropas emboscadas a pedido das mesmas.
As NT sofreram 1 morto, 11 feridos graves evacuados para Bissau, 9 feridos também evacuados, 8 feridos ligeiros.
1 Unimog 404 destruído e 1 Unimog 411 parcialmente destruído
OBS:-1 dos feridos graves acabou por falecer no HM 241.
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Notas de CV:

(1) - Vd. poste de 3 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2807: Estórias de Jorge Picado (1): A emboscada do Infandre vivida pelo CMDT da CCAÇ 2589 (Jorge Picado)

(2) - Vd primeiro poste da série Cutia, de 24 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2881: Estórias de Jorge Picado (2): Cutia, I Parte (Jorge Picado)