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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24092: Álbum fotográfico de José Carvalho (4): A CCAÇ 2753, ”Os Barões”, em Mansabá (Parte I)

1. Mensagem do nosso camarada José Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 (Brá, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim e Mansabá, 1970/72), com data de 20 de Fevereiro de 2023:

Caros Editores e Amigos Luís e Carlos,
Desejo que se encontrem bem.
Com o frio e a chuva permaneço mais tempo em casa, menos campo... e lembrei-me de tentar ampliar o meu reduzido e apelidado álbum fotográfico, no nosso blogue.

Selecionei algumas fotos (diapositivos digitalizados) de Mansabá, que pouco ou nada adiantam às fotografias já disponíveis no blogue, sendo somente o autor e a data das mesmas diferentes, mais propriamente obtidas no 2ºT de 1972, no curto período de permanência da CCaç 2753, neste local.
No entanto estas imagens, têm uma numeração que dada a minha pouca amistosa relação com as informáticas, não consigo eliminá-la. Espero que para especialistas não seja obstáculo maior... para o caso de admitirem algum interesse na sua publicação.

Fazendo força para que o objectivo do Luís se concretize e que o nº 900 seja atingido este ano, envio votos de boa saúde.
Abraço amigo do,
José Carvalho


Foto 10 - Placa toponímica de Mansabá, na entrada do lado de Mansoa e creio que a única existente à altura. Parece mais uma placa de final de localidade…
Foto 11 - Pequeno monumento situado logo a seguir à placa toponímica . Ainda uma pequena edificação “fortificada”, cuja utilização na altura não me recordo!
Foto 12 - Vista aérea parcial das instalações militares. Heliporto, quartos dos oficiais, edifício do comando, messe de oficiais e sargentos e enfermaria(?).
Foto 13 - Bomba de gasóleo, que pertencia a José Leal, proprietário da serração e madeireiro, perto de uma das entradas da tabanca. Era igualmente proprietário de uma “tasca” onde servia umas refeições bem apetitosas. Recordo que nesse local se registou um acidente com o rebentamento de uma granada de mão, que provocou alguns feridos.
Foto 13a - Bomba de combustível civil de Mansaba
Foto 14 - Edificações do aquartelamento.
Foto 15 - Abrigo, que dispunha de uma metralhadora pesada.
Foto 15a - Abrigo da pista(?) visto mais próximo
Foto 16 - Foto da antiga serração, situada a cerca de 2 kms de Mansabá, na estrada de Mansoa. Visualizam-se edificações em ruínas, viaturas ligeiras incendiadas, chassis de viaturas pesadas e sucata de maquinaria da serração, abandonada havia algum tempo, depois de atacada e destruída.
Foto 17 – Eu, no meu quarto cinco estrelas, partilhado algumas semanas com o Alf. Mil. Médico Vazão de Almeida e depois esporadicamente com oficiais em trânsito operacional, nomeadamente comandos africanos. As paredes do quarto estavam bem pintadas, com várias imagens do Pato Donald, desconhecendo a identificação do artista…

Fotos e Legendas: © Alf Mil Inf José Carvalho da CCAÇ 2753
Fotos 13a e 15a editadas e legendadas pelo editor

********************

2. Não é meu hábito comentar directamente nos postes que publico, não sendo de minha autoria, mas abro uma excepção já que me sinto "altamente qualificado" para o fazer.

- Foto 10 - Não sei se esta placa foi inaugurada pela CART 2732 ou se foi restaurada no nosso tempo. Esclareço o José Carvalho que o artista tentou fazer aquela diagonal com as cores verde e rubra da Bandeira da Nação, com as tintas que tinha à mão.

- Foto 11 - A fortificação que se vê à esquerda é o "castelo", um abrigo que tinha instalada uma Breda. Manga de tonco quando havia ataques ao aquartelamento.

- Foto 12 - Referindo-me ao meu tempo, que não diferiu muito do vosso, a Messe de Sargentos era lá muito ao fundo, no enfiamento da porta d'armas. Acho que não é visível. Quanto ao resto, tudo bem.

- Foto 13 - Aquele posto de abastecimento era o último grito em evolução técnica. Lembro-me bem dele.
- Chamar "tasca" à "charmosa sala de jantar" do senhor José Leal e da D. Olinda, é no mínimo falta de consideração. José Carvalho, lembras-te do empregado de mesa, o Agostinho?
- O caso da granada foi um lamentável episódio por se tratar de uma brincadeira estúpida com uma granada de mão ofensiva manipulada pelo homem errado, no local errado,na hora errada e no local errado, Passagem de ano 1971/72, de má memória. O caso passou-se dentro da sala de jantar do senhor José. Os 5 sinistrados foram levados em coluna auto, pelos seus camaradas, ao HM 241.

- Foto 14 - Mansabá era mesmo uma "nação". O que tinha de pior eram os vizinhos, que eram ns arruaceiros.


- Foto 15 - Se bem me lembro este abrigo estava colocado à esquerda, logo no início da pista. Lá ao fundo, consegue vislumbrar-se o abrigo do Moínho onde o nosso amigo Melim manejava como ninguém outra metralhadora pesada. Que será feito dele?

- Foto 16 - "Serração", a partir da qual já nos sentíamos em casa.

Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE DEZEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21708: Álbum fotográfico de José Carvalho (3): A CCAÇ 2753, ”Os Barões”, e o K3 (II e última Parte)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24066: Notas de leitura (1556): Em "A Minha Guerra a Petróleo", por António José Pereira da Costa; Chiado Editora, 2019 - "Cerca das 281330AGO71", uma memória de guerra, uma apreciação de um facto (Carlos Vinhal)


Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Mansabá ea lgumas das tabancas (Mansomine, Manhau, Mantida, etc.) desactivadas no tempo da CART 2732 dentro da sua zona de acção, que a Leste, terminava na bolanha de Manhau (Vd. poste P12150, de Ernesto Duarte)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)


N
o meu primeiro comentário no Poste 24063, fiz referência ao infortúnio que atingiu o então Cap Faria Monteiro, comandante da CART 3417, quando pisou uma mina antipessoal ali para os lados de Manhau.

No seu livro "A Minha Guerra a Petróleo", o nosso camarada António José Pereira da Costa, Cor Art Ref, faz referência este incidente nas páginas 159 a 167, porque o Cap Monteiro era, e é, seu amigo. Porque a narrativa está muito pormenorizada e fiel ao acontecimento, pelo menos nas horas difíceis passadas em Mansabá e em que eu e os meus camaradas tivemos a nossa modesta intervenção, não resisti a transcrever aqui no Blogue o capítulo na íntegra. Só espero que o nosso esforço tenha minorado a extensão dos ferimentos sofridos pelo Cap Monteiro.

A propósito, o livro "A Minha Guerra a Petróleo" ainda pode ser adquirido, tendo um custo actual de 14,00€, através da WOOK, por exemplo.
São 187 páginas de leitura interessante complementada com algumas fotos.

CV
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Cerca das 281330AGO71[2]

Este texto não é só mais uma memória de guerra, uma apreciação de um facto que veio ter comigo. Será a maneira como observei algo que sucedeu a outra pessoa e a memória que disso guardei, influenciada por situações que vivi antes e depois. Julgo que este texto pode ser considerado uma homenagem.

Saindo de Mansabá em direcção a nascente encontrávamos três pequenas localidades abandonadas: Mansomine, Manhau e Mantida. No tempo da paz eram servidas pela estrada que seguia para Banjara - esta já a mais de 18 km de distância - e que, na altura em que por ali andei, também já fora abandonada. Não pertencia ao nosso sector. Era apenas algo de que se falava...

Nos patrulhamentos que realizávamos naquela direcção, marcou-me especialmente a visão do quartel de Manhau, abandonado e destruído. Segundo apurei, fora um destacamento da Companhia de Mansabá, ocupado quinzenalmente por um grupo de combate e um pelotão de milícia com umas condições de vida muito más e para onde era necessário levar tudo, até a água, numa viatura-tanque. Qual seria a vantagem táctica de uma posição com aquelas características? Como tantos outros "quartéis da malta", acabara abandonado e destruído "à granada de mão", por volta de 1966.

Naquela altura, ainda se reconheciam as duas fiadas de arame farpado, agora ferruegnto e quebrado aqui e além, vagamente esticado entre as últimas varas que o tinham suportado. O cavalo-de-frisa ainda se mantinha de pé, mas inútil não chegava a vedar o acesso ao interior da área quadrada, que deveria ter tido cerca de trinta a quarenta metros de lado. No interior, nenhuma construção ou mesmo restos do que pudesse ter sido uma, eram identificáveis com clareza, mas no exterior, o sistema de iluminação continuava bem representado por alguns postes: uns já caídos, outros resistindo às intempéries numa posição quase vertical. Cada poste não era mais do que um tronco de palmeira cravado no solo, ao qual havia sido adossado pela geratriz um "abat-jour" cilíndrico deveras original.

Era constituído por um bidon vazio que tinha sofrido umas pequenas, digamos, adaptações. Uma das tampas - a que ficaria para baixo - fora removida, mas a outra apenas havia sido separada da superfície lateral do cilindro em pouco mais de metade do perímetro. Depois de aberta a geratriz oposta à que fora pregada ao poste, um petromax ficava pendente da face inferior da tampa, no interior do cilindro. Julgo que assim se pretendia preservar o candeeiro dos ventos e das chuvadas, mantendo o perímetro do aquartelamento iluminado. Sempre que um dos Petromax fraquejasse, o "electricista de noite" tinha uma tarefa a cumprir. Considero este abat-jour mais uma prova do "desenrascanço nacional" e do engenho (que não arte) dos Portugueses.

Todavia, o sistema fornecia pouca iluminação para que os defensores pudessem observar a área circundante da posição. Em compensação, o In dispunha de uma visão privilegiada sobre ela, a algumas centenas de metros de distância. Agora, olhar para este "quartel" era contemplar uma espécie de peça de arqueologia militar, que entristecia se procurássemos saber o que levava a que o destacamento fosse construído, sabe-se lá com que esforço, e depois abandonado. Depois deste, era a tabanca de Mantida, onde os militares que guarneciam Manhauiriam buscar laranjas de boa qualidade e correndo os inerentes riscos. Era uma lenda, mas para que tenha surgido é necessário que, pelo menos uma vez, lá tenham ido...

Devo ter ido a Manhau e Mantida duas ou três vezes, mas para além da visão das ruínas do quartel, tenho a imagem de uns dois metros de estrada onde a erva não tinha crescido, passado mais de um ano. Tinha sido ali... segundo se dizia e eu acredito, pois - soube dpois - que, além da mina que vitimara o Monteiro, havia mais três que o furriel de minas e armadilhas tinha detonado.

Eu estava em Bissau com a Bateria Ati-aérea, quando o Joaquim Evaristo me deu a notícia. O Monteiro[4] tinha pisado uma mina anti-pessoal. Há notícias que não podem ser dadas de outra maneira: de modo brutal e com uma frase curta e, como todas do mesmo tipo, de significado imediatamente dedutível. Não sei porquê, mas não fui logo ao Hospital. O Joaquim foi e, pouco tempo depois, só medisse:
- Está sem um pé.

Logo que me foi possível fui ao Hospital e localizei-o. Estava num quarto, deitado na cama com uma perna esticada e a outra erguida e apoiada em algo que se parecia com uma almofada...

Fiquei sem saber o que dizer, mas o silêncio de poucos segundos tornou-se impossível de suportar. Nestes momentos, sabemos que é necessário dizer ou fazer qualquer coisa, mas não temos a ideia do que possa ser. Se calhar, concentramo-nos em nós e no que sentimos, quando deveríamos considerar que o ferido ou o doente grave que ali está é que deverá estar antes de tudo.

Tartamudeei qualquer coisa, nem sei o quê. Depois tentei saber como as coisas tinham sucedido. A estrada abandonada ainda conservava as rodeiras, as marcas dos pneus das viaturas que por ali tinham passado. E foi ao movimentar-se pela área entre rodeiras que encontrou a mina.

Por outras experiências que tive, sei que a surpresa inicial deu lugar ao espanto e à pergunta feita a si mesmo:

- O que sucedeu?

Depois é uma mistura de dor sentida e uma vontade de sair dali, de tudo aquilo que não seja verdade e de um turbilão de perguntas que acabam por se redizir a uma certeza: "Estou gravemente ferido. Isto também me aconteceu a mim".

- A mim? Porquê a mim?

Os outros têm muito que fazer. A nós, nada mais resta do que aguentar a dor e sentir revolta contra a falta de sorte e a irreversibilidade da situação

Dez dias depoi de ter completado 24 anos!...

À chegada dos reforços vindos de Mansabá, os enfermeiros da sua Companhia já tinham garrotado a perna e metido o soro, procedimentos habituais nestas situações. Agora eram sete quilómetros em coluna, de regresso ao quartel, num percurso em que se queria evitar solavancos, sempre excessivos para quem sofre. Porém, nesse dia chovia e, devido à pouca visibilidade, os helicópteros não voavam. Podia ser que as condições melhorassem, mas há dias em que nem os astros ajudam. Cerca das cinco da tarde confirmou-se que o héli não viria e não houve outra solução que não fosse a evacuação, em coluna auto. A espera inglória na enfermaria foi angustiante. Uma tortura que nada justificava. 

Por fim, o pessoal de enfermagem "depositou" a maca numa das viaturas e a coluna partiu em marcha moderada. Seria uma viagem até Mansoa e daí, em ambulância, até ao hospital. Todavia a viagem de Mansoa a Bissau "não estava prevista" e a coluna por ser de quase cem quilómetros, até Bissau, debaixo de chuva intensa. Já tinham passado bastantes horas e o sofrimento físico e psicológico somavam-se, numa aritmética de revolta sem fim, que só terá tido uma paragem pelas seis e meia da tarde à entrada do Hospital Militar de Bissau. Tinham decorrido cinco horas.

Ouvi a descrição do Monteiro e, não podendo ou não sabendo, dizer mais, respondi-lhe que agora "era necessário reagir". No segundo imediato apercebi-me da agressão que tinha cometido. Há coisas que, mesmo que se pensem, não se dizem e o Monteiro fez-mo sentir respondendo-me.
- Reagir? Reagir, reages tu que tens duas pernas. Agora eu só tenho uma...

Fiquei sem palavras. Uns instantes de silêncio depois, despedi-me e deixei o quarto. Além do monte de gaze que marcava agora o fim da perna fiquei impressionado com a cor das gengivas que o ferido apresentava. Brancas. Disseram-me que era do soro que lhe fora ministrado, durante muito tempo. Por mim, penso que era um indício de anemia pela perda de sangue.

Poucos dias depois, voltei com o major Gaspar, nosso amigo e meu segundo-comandante. Ainda estou para saber o que o terá levado a aparecer, naquele dia, com as fitas das condecorações e com o brasão do Regimento de Artilharia n.º 3 (de Évora) sua unidade habitual. Era à tarde e os feridos e doentes tinham sido postos na varanda do hospital, talvez numa tentativa de lhes melhorar a disposição, se tal fosse possível...

A conversa foi curta e eu8 procurei ficar calado. O nosso amigo, talvez por ser mais velho, parecia ter maior capacidade de diálogo, mas, ao fim de alguns minutos, o silêncio acabou por surgir. O Monteiro disse, de repente e num tom que parecia subtil, mas que comportava uma crítica muito amarga e contundente:

- O meu major está muito bonito, com as condecorações!

Com o sol já baixo, ficou-me a imagem do major Gaspar com os olhos marejados, a dizer, como se se justificass:

- Calhou. Isto não é nada. Já estavam postas nesta camisa quando a vesti hoje.

Não arranjo melhor expressão para descrever a nossa saída da varanda: "Fugimos"

E chegou a véspera da evacuação para Lisboa.

De novo, o major e eu fomos ao hospital. O jantar já fora distribuído há muito e os corredores estavam desertos e escuros. Eu tinha para mim que seríamos recebidos com frieza, se não mesmo com agressividade. Porém, ao entrarmos no quarto, fomos saudados com alegria e boa disposição. Era a saída da Guiné, o retorno à "Metrópole" e à família. Era o fugir dali, um lugar onde não pertencia, para um sítio onde poderia reencontrar os seus, aqueles que havia deixado pouco mais de dois meses antes.

Fiquei surpreendido por falarmos com certo à-vontade e eu, já não me lembro a propósito de quê, disse qualquer coisa como:

- Pois é, a vida está má!

O Monteiro tratou-me pela alcunha e comentou:

- Boa piada PK! Boa piada! Olha, que até o meu coto se ri!... - e, agarrado à perna, abanava-a com as mãos.

Foi então que concluí que uns produtos daqueles que tiram as dores e dão boa disposição, talvez euforia, deveriam ter andado por ali, misturados na sopa ou mesmo em todo o resto do jantar.

O Gaspar, por seu turno, aproximou a orelha do coto entrapadíssimo e, pedindo-lhe que ligasse o transmissor, comentou a qualidade da música que estaria a ouvir.

Mais uma vez fiquei sem saber o que dizer. Não me lembro se saí por minha iniciativa, por não poder suportar o surrealismo daquela cena, ou se fui levado pelo final da visita, decretado pelo meu segundo-comandante, para meu alívio, confesso.

A partir daqui e ao longo da minha vida, fui recordando duas situações que desenterrei na memória e que envolviam pernas, as pernas do Monteiro. Uma ainda na Academia e outra já quando éramos oficiais.

Nunca tive grande jeito para um qualquer desporto em especial. Contudo, um dia descobri o basquetebol. Achei-o curioso, mas cedo concluí que deve ser dos jogos de bola mais difíceis de praticar. Ou seria "o árbitro" que me perseguia? Certo é que, sempre que eu tocava na bola fazia falta, "por passos". E não havia maneira de aprender a técnica. E aquela regra é tão apertada, convenhamos!...

Apesar disto, não desisti e resolvi aprender com o Monteiro. E uma das coisas que ele me ensinou foi que, ao receber a bola com ambas as mãos, eu deveria escolher um "pé-eixo" que, a partir daí não poderia mexer. Era como se estivesse soldado ao chão. Pelo menos, foi o que entendi. Acabei por desistir da aprendizagem, mas mantive o gosto pela modalidade, graças às indicações do meu improvisado mestre.

Recordei também a cena na Sala de Oficiais da Escola Prática de Artilharia para onde o nosso curso de tenentes tinha sido enviado para o Curso de Promoção a Capitão, que, depois, não valeu. Mas isso já são questões laterais. Uma manhã, no rádio da sala passava "Les Champs-Elysées", na voz de Joe Dassin. Bela melodia e letra curiosa e bem construída Andávamos pelos nossos vinte e dois a vinte e cinco anos e fôramos musicalmente educados na música europeia. Tínhamos cinco anos de francês, no ensino secundário, e numa música como aquela era fácil encontrar encanto. Imediatamente constituimos uma libha de seis ou sete bailadores com as mãos apoiadas no ombros do que nos ficava ao lado. Depois, em sincronismo, atirávamos alternadamente a perna direita para a esquerda e a perna esquerda para a direita, ao rítmo da música, uma gajice própria dos jovens que éramos, apesar de já todos termos um ano de África, em Angola, em Moçambique ou na Guiné para onde partíramos três e só dois haviam voltado. Naquela idade, ainda tínhamos uma certa garridice que permitia enfrentar o futuro com certo ânimo e confiança, mesmo tendo já adquirido uma certa (má) experiência da vida e sabendo que os tempos que se avizinhavam tinham tudo para ser de provação. A dada altura alguém comentou:
- Olhem só para isto! Os futuros comandantes das companhias de Artilharia que irão para o Ultramar!...

O grupo desfez-se, de imediato. Caíramos em nós. No fundo, éramos oficiais respeitáveis e conscientes dos nossos deveres e não podíamos permitir-nos a brincadeiras como aquela...

Depois da evacuação para Lisboa, tive notícias dispersas do Monteiro, até nos encontrarmos na AM na celebração dos trinta anos do nosso curso. Nessa altura, disse-me que era professor. "Professor", mas com P Grande. Por mim pensei:

- Ainda bem! Nem outra coisa era de esperar de um Homem da minha geração!

Mem-Martins, 10 de Agosto de 2018

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Notas do autor:

[2) - Esta é a maneira de referir nas comunicações militares ou em documentos escritos, algo que sucedeu cerca das 13 horas e 30 minutos do dia 28 de Agosto de 1971. Fica assim constituído o chamado "grupo data-hora".

[3] - Naquele tempo, nas unidades tipo Regimento da Metrópole, havia um "electricista de dia" nomeado por escala.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24048: Historiografia da presença portuguesa em África (354): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Caminhamos para o fim da vida deste Conselho de Governo, que teve a faculdade de ser marcadamente consultivo mas onde houve o exercício deliberativo, os serviços do governador acabavam por ter em linha conta certas apreciações na análise da legislação, reconhecendo a pertinência das observações dos conselheiros. Enfatiza-se que faltam muitas atas, mesmo de muitos anos, fica-nos, no entanto, a sensação de que é possível ir tomando o pulso à evolução das mentalidades, estas atas são reconhecidamente úteis por muitas das observações que aqui se tecem, já chegámos ao mandato de Arnaldo Schulz, não se fala declaradamente da guerrilha, usa-se uma linguagem apaziguadora, "no quadro atual das dificuldades que a Província atravessa". Vou tentar ver se é possível encontrar toda esta documentação na Biblioteca Nacional, é um acervo auxiliar, mas inescapável, para quem pretende estudar a vida da Colónia, até à sua independência.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (8)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Insiste-se na advertência que os dois tomos existentes na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa têm importantes lacunas, o que naturalmente dificulta a apreciação geral do percurso da instituição, sem prejuízo das tais tomadas de posição que nos ajudam a entender as preocupações do governador ou seu representante, os diretores e chefes de serviço da Administração e o conjunto de vogais representativos de interesses. Obviamente que é indispensável compulsar o que aqui se diz e se dá por deliberado com o constante no Boletim Oficial da Guiné e na imprensa. Depois de um longo período de ausência de Diogo de Mello e Alvim, segue-se a sua exoneração e a nomeação de Álvaro da Silva Tavares, que curiosamente, noutras funções, já pertencera a este Conselho de Governo. Em 14 de fevereiro de 1957, no período antes da ordem do dia, Mário Lima Wahnon, comerciante, dirige-se ao novo governador:
“Eu li no jornal da terra que esta visita de V. Ex.ª à região dos Fulas e Mandingas foi coroada de muito êxito. Entre as grandes manifestações da população há uma que eu soube com prazer: - é que pediram a V. Ex.ª a instituição de escolas primárias naquelas localidades. Neste Conselho há já alguns anos venho defendendo este ponto. A instrução pública não corresponde às necessidades da população. De facto, a grande população islamizada da Província não tem uma escola para aprender o português. É, pois, com muito gosto que peço a V. Ex.ª que seja considerada na medida do possível a instituição de escolas naquelas regiões”.

É novamente debatida a questão dos abonos a funcionários civis e militares, o padre Cruz do Amaral, em 20 de fevereiro, põe à votação uma mensagem sobre o significado profundo da visita de Isabel II a Portugal, dizendo que a Guiné comunga no mesmo entusiasmo por uma política que tem a sua consagração na velha aliança anglo-lusa; abrem-se mais créditos, desta vez para sustentas os preços das especialidades farmacêuticas, concedem-se bolsas de estudo, subsídio à autarquia de Bissau para o asfaltamento das ruas e abastecimento de água e energia elétrica à cidade e também crédito para equipamento hospitalar. O padre Cruz do Amaral aproveita o ensejo da visita de Álvaro Tavares à Costa do Ouro, agora Estado do Gana, onde se deslocara como Embaixador de Governo às festas da independência do país, para proferir o seguinte voto:
“À natural alegria de o vermos regressado a esta Província e ao seio deste Conselho, juntamos a satisfação de o sabermos investido daquelas altas e excecionais funções com que o Governo na Metrópole quis distinguir a pessoa de V. Ex.ª. Desde o dia 6 de março corrente que um país estruturalmente africano nasceu para a independência e liberdade. À volta do berço deste nascimento se reuniu a maior parte das nações do mundo. Mas nenhuma como Portugal tinha o direito de ali estar presente, pois fomos nós, os portugueses, os primeiros a levar àquelas paragens o lume vivo da civilização e os primeiros a erguer nas trevas do continente negro um fasto luz que ainda se não apagou.”

Todo o novo contexto de independências começa a ser objeto de ponderações e avisos, e no Conselho há sempre uma voz que empresta convicção ideológica ou tece advertências, oiça-se um comentário no momento exato em que a Guiné Conacri passou a ser um Estado independente, quem assim fala diz-se representante dos interesses da população indígena da Guiné:
“Felizmente para nós, portugueses, não temos problemas políticos a resolver nas nossas províncias ultramarinas, ao passo que os povos oriundos de grande parte dos territórios estrangeiros deste continente se encontram hoje sublevados contra os respetivos países dominadores, as populações do nosso Ultramar continuam vivendo em paz e sossego, com absoluta calma e na melhor harmonia. Isto só demonstra a justeza dos elevados princípios de ordem política, económica e social, que informam a nossa administração ultramarina e o caráter fundamentalmente humano e cristão da nossa ação civilizadora em África.
O atual clima político no continente africano impõe-nos o dever de estarmos atentos e enfrentar os acontecimentos sem hesitações e com a maior objetividade. Qualquer afrouxamento no ritmo da nossa ação administrativa no Ultramar poderia ser interpretado como um recuo. Nós não queremos que os demais povos africanos, sobretudo os dos territórios estrangeiros vizinhos dos nossos, que hoje são independentes ou gozam de plena autonomia administrativa, procurem diminuir-nos ou amesquinhar-nos com a acusação de sermos os próprios responsáveis pelo estado de atraso em que durante longo tempo vivemos em relação aos demais países africanos mais adiantados, e por isso mesmo devemos intensificar a nossa ação administrativa ultramarina promovendo medidas tendentes ao desenvolvimento económico e social dos nossos territórios africanos, assegurando aos indígenas um nível de vida mais elevado e criando-lhes um ambiente suscetível de concorrer para a satisfação das suas mais prementes necessidades morais e materiais.”


É pouquíssima a documentação existente referente ao mandato do Capitão-Tenente Peixoto Correia como Governador. Em 18 de junho de 1964, o Brigadeiro Arnaldo Schulz preside pela primeira vez ao Conselho, Mário Lima Wahnon é eleito vice-presidente, Teixeira da Mota torna-se o representante da Guiné no Conselho ultramarino. Prossegue naturalmente a rotina, caso do Regulamento da Assistência Médica e Medicamentosa do Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e da Indústria da Província da Guiné, abole-se a designação de Sindicato Nacional que passa para Caixa Sindical. O novo governador anuncia o início dos trabalhos na nova estrada asfaltada Mansoa-Mansabá, prevendo-se o seu prolongamento até o Gabu. O vogal Artur Augusto Silva tece considerações sobre o papel das Missões que tinham passado pela Guiné e destaca duas como bastante relevantes: a Missão de estudo e combate às tripanossomíases e a Missão geoidrográfica da Guiné.

Quando se trata de analisar o Orçamento para 1965, Schulz usa da maior prudência falando das verbas do Plano Intercalar de Fomento:
“Não podemos esquecer que as verbas do Plano de Fomento são obtidas através de empréstimos que é necessário pagar, bem como os respetivos juros, daí a necessidade de que o dinheiro empregue no fomento produza, pelo menos, o capital e os juros indispensáveis ao pagamento das prestações que nos são impostas. E como o desenvolvimento dos sucessivos planos de fomento implica novos empréstimos, aumenta progressivamente a nossa dívida e consequentemente o aumento do quantitativo das prestações a pagar; ou os investimentos dão o rendimento necessário à satisfação de tais encargos ou são as escassas receitas da Província a fazer-lhes face e caminharemos para uma asfixia financeira que não nos irá permitir fazer nada mais durante muitos anos”. E adverte mesmo que não se pode consentir que as verbas do Plano de Fomento tapem as lacunas existentes no Orçamento da Província, e deixa a recomendação que todos os serviços se devem esforçar por cobrar receitas por forma a dispor-se de maior verba. Ponto curioso é que esta apreciação virá a conhecer uma inversão radical com o seu sucessor, a quem aliás o Governo Central irá conceder meios que Arnaldo Schulz jamais obteve.

(continua)

Álvaro da Silva Tavares, Governador da Guiné (1956-1958)
António Augusto Peixoto Correia, Governador da Guiné (1959-1962)
Arnaldo Schulz, Governador da Guiné (1964-1968)
Bissau, Avenida Marginal
Balantas em festa, imagem da atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24028: Historiografia da presença portuguesa em África (353): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (7) (Mário Beja Santos)

domingo, 13 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23780: Blogoterapia (306): Comando de Agrupamento N.º 16 (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)



1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 10 de Novembro de 2022, falando-nos da sua Unidade:


Comando de Agrupamento N.º 16

É verdade que já lá vão mais de 58 anos que tudo isto se passou, no entanto, ocupamos o precioso espaço deste ainda resistente blog, dirigido pelo Luis e pelos seus dedicados colaboradores, que continua a descrever algumas passagens da guerra colonial na então província da Guiné, e claro, seguindo sempre o princípio de que esperamos ter aprendido algo com o dia de ontem, porque amanhã é a coisa mais importante da nossa vida e oxalá chegue a meia-noite de hoje limpa e sem problemas, porque é perfeito quando ela chega e se coloca nas nossas mãos. Sim, mais agora nesta avançada idade.

Continuando, vamos descrever o que foi o nosso Comando de Agrupamento, que era uma “unidade coordenadora de acções de logistica e de combates, sobretudo na organização e nos pormenores das operações militares na zona do Oio e do Cacheu” a que pertencíamos, sendo o primeiro Agrupamento a chegar àquela então província, quase quando do início da guerra de guerrilha que pelo menos naquela época, dois grupos armados desenvolviam no norte e que levaram à independência do seu território.
Assim, este Comando de Agrupamento, embora sendo um comando desarmado, dava ordens que podiam matar pessoas ou destruir aldeias consideradas inimigas. Foi constituído no Regimento de Infantaria n.º 1, na então vila da Amadora, sob o comando do Tenente-Coronel de Infantaria José Augusto Henriques Monteiro Torres Pinto Soares. (antigamente era assim, as pessoas que se diziam nobres tinham 7 e 8 nomes, e nós, os tais que diziam que era “carne para canhão”, tínhamos 2, o máximo 3, onde muitos de nós por lá ficaram, chamando-se António, Manuel, Joaquim ou José, cujo segundo nome era simplesmente, Jesus).

Continuando, como Chefe de Estado-Maior teve o Major de Infantaria António Coelho da Silva, sendo mais tarde substituído pelo Major de Artilharia Raul Pereira Baptista, e este Agrupamento adoptou a Divisa de “Juntos Venceremos”. Os oficiais foram para aquela província todos de avião e nós soldados, cabos, sargentos e milicianos, embarcámos no dia 23 de Maio de 1964, no cais de Alcântara em Lisboa no navio de carga “Ana Mafalda”, porque era o único que naquela época podia encostar ao cais do Rio Geba em Bissau, onde chegámos no dia 30 desse mesmo mês e ano.

Não havendo espaço para nós no Quartel General, ficámos instalados em tendas, numa parte deserta ao norte do cais, onde a sobrevivência se tornava um pouco difícil, sem latrinas e água potável, e com a presença contínua dos malditos mosquitos, junto de pântanos e lama, e onde já lá estava acampado um Batalhão composto por militares de combate, (esses sim, sofreram), que tinha chegado uns dias antes de emergência, desviados para a Guiné, porque o seu destino era Angola.

E que nos davam suporte no alojamento, com direito a uma marmita cheia de café negro feito de água fervida e turva do pântano e um biscoito pela manhã e duas embalagens de ração de combate por dia, iniciando-nos no normal “tráfico de influência entre companheiros combatentes”, onde os biscoitos eram moeda de troca por cigarros. Mais tarde, por mensagens recebidas, tivémos conhecimento de que houve neste acampamento um suicídio de um militar que infelizmente, talvez desanimado e deprimido, não suportou estas condições de alojamento.

Adiante… Duas semanas depois, quando ainda nos encontrávamos em Bissau, já instalados no Quartel General, o Agrupamento assume a responsabilidade da Zona Norte/oeste, que abrangia os sectores dos Batalhões instalados em Bula, Farim e Mansoa, que anteriormente dependiam do Comando Territorial, assim como todos os Comandos de Batalhão.

Assim, organizados dentro da maior desorganização que por lá havia, instalámo-nos em Mansoa no final do mês de Julho de 1964, na tal Zona Norte/Oeste, na região do Oio, no entanto, ainda instalados em Bissau, já o Agrupamento tinha criado o sector de Mansabá, onde no início as tropas portuguesas tinham ordens para assumiram uma postura defensiva, limitando-se a defender territórios onde ainda não havia muita barafunda, no entanto, essas operações defensivas algumas vezes foram devastadoras para as nossas forças, que eram regularmente atacadas fora das áreas povoadas por uns guerrilheiros agressivos, e aí sim, havia mortos e feridos.

Mais tarde com o desenrolar de frequentes combates, entre Outubro e Novembro, já no ano de 1965, o Agrupamento criou o sector de Teixeira Pinto, na região do Cacheu, porque por lá também já havia aqui e ali alguma insurreição e havia notícias de que pela noite havia colunas de mulheres guerrilheiras, que transportavam armas e munições vindas da fronteira, protegidas pelos grupos de guerrilheiros e que os reabasteciam, e claro, era necessário incrementar a zona operacionalmente, onde começaram as primeiras operações navais anfíbias, que foram instituídas para superar alguns dos problemas de mobilidade inerentes às áreas pantanosas.

Entretanto e com o correr do tempo, e as normais tropas portuguesas sendo constantemente fustigadas em ataques contínuos, foi criado um Grupo de Comandos em Bissau, treinado quase especificamente para esta guerra de guerrilha, composto por muitos africanos mas, pelo menos no seu início, eram comandados por militares europeus, e assim, juntamente com os próprios Comandos de Fuzileiros e tropas Paraquedistas como forças de ataque, eram frequentemente chamados para socorrer ou para combater ao lado das normais forças de combate portuguesas, onde alguns por lá ficaram mortos e enterrados no lodo dos pântanos para sempre.

Mas continuando, a actividade operacional foi mais direccionada, especialmente para as regiões do Morés, Mansabá, Bissorã e Olossato, que começaram a ser constantemente fustigadas por ataques dos guerrilheiros que recebiam apoio dos países vizinhos, utilizando corredores específicos de que só eles tinham conhecimento, onde se refugiavam e recebiam treino específico de guerrilha, assim como material de combate já mais moderno. Nesta zona, principalmente no Morés, periódicamente já actuava em cenário de combate um avião que voava de Bissau, lançando bombas, incendiando aldeias suspeitas, assim como as forças especiais de combate entretanto criadas e já acima mencionadas.

Todas estas povoações acima mencionadas eram visitadas por nós ou pelos nossos companheiros “cifras” no fnal de cada mês onde levávamos aos comandos das forças ali estacionadas, o tal material classificado de cifrar, cujo código era modificado todos os meses, viajando ou em colunas militares ou na avionete do correio e aí sim, “éramos um militar na guerra, mas desarmado”.

Depois… passámos dois longos anos naquele cenário de uma guerra terrestre de guerrilha, onde como acima já explicámos, éramos o “Cifra”, um soldado desarmado, onde a disciplina de um campo de batalha não era lá muito eficaz para a nossa sobrevivência, onde um pequeno descuido ou desleixo, onde os ataques ao aquartelamento que ajudámos a construir, as emboscadas, minas ou fornilhos, nas viajens de fim de mês, podiam a qualquer momento fazer com que a nossa alma nos abandonasse, na procura de uma qualquer galáxia distante.

E onde uma tijela de arroz ou um naco de pão era mais importante do que uma ração de combate, onde os campos abandonados da plantação de arroz, se transformaram em pântanos perigosos, onde as notícias recebidas nas mensagens que pela mão nos passavam, descrevendo o volume e o ruído do fogo inimigo, nos trazia a todos nós estarrecidos, onde só talvez, o excesso de álcool nos dava algum miserável conforto.

Fomos sobrevivendo e, finalmente ao fim de dois longos anos, embarcámos de regresso à metrópole, no dia 13 de Maio de 1966, no navio “Uige”, que estava ancorado ao largo no rio Geba em Bissau, sendo transportados em lanchas do cais ao navio, onde tal como muitos companheiros, continuando com o excesso de álcool, agora já dentro do navio, roubou-nos a recordação da partida e do cenário de onde o rio Geba desaguava, no tal “oceano que para nós estava longe do mar” e, ainda hoje não sabemos se o Geba, tal como o Mansoa, eram rios ou canais de água salgada.

Tony Borie
Novembro de 2022

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23742: Blogoterapia (305): A Boina (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)

sábado, 1 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23658: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (98): Em Mansabá havia 2 geradores Lister que trabalhavam alternadamente, em turnos de 4 horas (Carlos Vinhal, ex-fur mil art, MA, CART 2732, Mansabá, 1970/72)


Guiné > Região do Oio > Mansabá > CART 2732 (1970/72) > 12 de Novembro de 1970 Ataque do PAIGC... Enfermaria militar atingida por munição de canhão sem recuo. A CART 2732 foi render a CCAÇ 2403.

Foto: © Carlos Vinhal (2010) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Brasão da madeirense CART 2732 (Mansabá, 1960/72)


1. Comentário do Carlos Vinhal ao poste P23654(*)  e em resposta ao pedido formulado no poste P23647 (**):

Estive há pouco a falar com o meu camarada da CART 2732, João Malhão, responsável pela manutenção dos geradores e da "rede elétrica" de Mansabá, que me confirmou haver no nosso tempo 2 geradores Lister que faziam turnos de 4 horas. Das 9 às 11 da manhã estavam ambos parados.

Contou também que numa altura em que um deles esteve inoperacional, o nosso comandante exigiu que aquele que ficou em serviço cumprisse escrupulosamente as ordens da Engenharia, 4 horas de funcionamento com 4 horas de descanso.

Quanto ao fornecimento de energia, seria só para o aquartelamento onde se incluía, para além das instalações militares e perímetro do arame farpado, o Posto Administrativo, a Enfermaria civil e a casa do Administrador.

Fora do arame farpado apenas se alimentava a casa do senhor José Leal, um civil metropolitano que vivia com a família numa casa contígua no exterior do arame farpado, que explorava madeira e que tinha uma sala de jantar onde quem podia ia de vez em quando saborear os apetitosos petiscos da D. Olinda.

Diz o Malhão que em determinada altura recebeu ordens para ligar a energia a uma casa onde morava uma senhora que teria alguma importância. Seria a casa da professora? Pergunto eu.

Embora não estivesse na Guiné na altura da independência, tenho quase a certeza que a Engenharia não recolheu nenhum destes geradores. Para quê? Deixámos lá coisas muito mais valiosas.

Carlos Vinhal
Fur Mil Art
CART 2732
Mansabá, 1970/72


30 de setembro de 2022 às 12:19



Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Mansabá, a sudeste de Farim. Pertencia à cirscunscrição de Mansoa. Era posto administrativo.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 29 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23654: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (97): os geradores militares: contributos para a história da eletricidade no território (Manfred Stoppok / José Nunes / Eduardo Estrela / Fernando Gouveia / António J. Pereira da Costa / Carlos Silva / Cherno Baldé / José Colaço / Magalhães Ribeiro / Valdemar Queiroz / Manuel Gonçalves / Luís Graça)

(**) Vd. poste de 27 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23647: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (96): Os geradores nos quartéis também forneciam eletricidade para a população civil? (Manfred Stoppok, investigador alemão, a fazer um estudo sobre a história da energia elétrica na Guiné-Bissau, 1890-2020)

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23352: Historiografia da presença portuguesa em África (321): Grande polémica (2): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Permanecem muitos pontos de interrogação quanto às razões fundadas que poderão ter levado à extinção da Liga Guineense, instituição declaradamente republicana, outrora reconhecida como muitíssimo útil e que passa a ser tratada como uma entidade demoníaca por se ter oposto aos planos perpetrados pelo Capitão Teixeira Pinto para submeter os indígenas de Bissau. Como ficou demonstrado, Abdul Indjai saqueou e destruiu por anos a economia dos Papéis e dos Grumetes da ilha. Não se conhece melhor documento que rebata as teses triunfalistas pró-Teixeira Pinto que o opúsculo escrito por Luís Loff de Vasconcelos, conceituado escritor cabo-verdiano que seguramente teve acesso a depoimentos que a versão oficial silenciou.
É inaceitável que a História da Guiné Portuguesa deixe na penumbra uma investigação determinante para se perceber não só o caráter da campanha de pacificação mas pelo facto de se dever atribuir o sucesso da mesma a um saqueador que foi régulo e déspota tão turbulento que pela segunda vez foi levado ao exílio.
Respeitando o contraditório, vamos ver agora as teses que se opõem.

Um abraço do
Mário



Grande polémica (2):
Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai


Mário Beja Santos

Em "A presença portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", por Armando Tavares da Silva, Caminhos Romanos, 2016, a versão das depredações praticadas pelo chefe de quadrilha Abdul Indjai e os seus irregulares e as responsabilidades do capitão Teixeira Pinto distinguem-se literalmente das acusações apresentadas por Luís Loff de Vasconcelos. Aliás, Tavares da Silva dá-nos um quadro curricular mais alargado do que o do publicista cabo-verdiano. Logo em 1906, o Governador Almeida Pessanha vê-se obrigado a refrear Abdul Indjai, este tinha servido de auxiliar na campanha do Churo. O mercenário senegalês tentara várias vezes atacar o Oio, fora sempre repelido, a sua gente de guerra fazia razias, servindo-se do nome do Governo. Em abril, Abdul é preso e o seu bando disperso, é enviado para S. Tomé. No ano seguinte, o príncipe real D. Luiz Filipe de visita a S. Tomé, concede permissão para Abdul regressar à Guiné, e este participará nas campanhas de Badora e Cuor, conta o revoltoso régulo Infali Soncó. Ao lado do Governador Oliveira Muzanty, Abdul e os seus irregulares participam nas operações, põe o régulo revoltoso em fuga e Abdul irá ser nomeado régulo do Cuor, suscitando inúmeras queixas. Em 1912, o Capitão João Teixeira Pinto chega à Guiné como Chefe de Estado-Maior, irá dedicar-se à ocupação e pacificação da província. Dá prioridade à ocupação das regiões de Mansoa e Oio, parte disfarçado em inspetor da Casa Soller, atravessa a região, sugere ao governador Carlos Pereira que se recorra a grumetes ou a irregulares. Pede-se a colaboração da Liga Guineense que mostra indisponibilidade e Teixeira Pinto aproveita-se de Abdul Indjai e dos seus irregulares, pretende atacar o Oio num flanco e o administrador de Geba, Calvet de Magalhães, atacará pelo outro.

Tavares da Silva descreve minuciosamente as operações no Oio e o pedido de paz das gentes da região de Mansabá, são presos vários revoltosos, dá-se como submetidos os Balantas do Oio. Calvet de Magalhães tem uma progressão mais acidentada, mas também chega a bom porto. O êxito das operações leva à concessão de medalhas e louvores. Pouco depois de Carlos Pereira ter deixado a Guiné começam a surgir notícias que atribuem atrocidades a Abdul e aos seus quadrilheiros no Oio. A Legação Britânica na Guiné enviara uma nota para o ministro em Lisboa informando-o do aventureiro Abdul e dos seus 400 indígenas senegaleses, que praticariam terríveis barbaridades, massacres, roubos e raptos. Troca-se inúmera correspondência entre as autoridades mas as queixas não cessam. Chega novo governador, Andrade Sequeira, que nomeia uma comissão para ir ao Oio apurar as atividades de Abdul e dos seus homens. É neste tempo que se dá o massacre do Pelotão de Polícia Rural do alferes Pedro e Teixeira Pinto segue para Bissorã e Mansoa, correm operações em Cacheu, no seu relatório ao Governador, Teixeira Pinto não deixa de observar que a revolta dos indígenas era proveniente não só do seu espírito de guerreiro mas ainda e principalmente da sua falta de educação. Temos novas queixas contra a gente de Abdul, vêm do tenente António José Teixeira de Miranda, comandante do posto de Mansabá. Mas Andrade Sequeira nomeia Abdul tenente de 2.ª Linha. Seguem-se as operações para submeter os Balantas, Abdul Indjai colabora e Teixeira Pinto pede ao governador a nomeação do chefe de quadrilha para régulo do Oio. Depois de uma pausa em Lisboa Teixeira Pinto regressa à Guiné e temos agora a Campanha de Bissau que irá levar Luís Loff Vasconcelos a escrever acusações demolidoras. É escusado procurar transparência nas argumentações utilizadas se era ou não evitável a guerra na ilha de Bissau. A Liga Guineense opunha-se tenazmente e tinha razões de sobra, o seu espírito republicano era definido por uma elite de mercadores profissionais liberais e contavam com a simpatia de gente cristianizável e em vias de alfabetização, os Papéis e os Grumetes, pedia-se tolerância e prudência, o imposto de palhota começara a ser pago e o armamento em posse dos régulos inquietos eram armas de pedreneira, argumentavam. E a operação é decidida, mesmo havendo vozes discordantes no Conselho Administrativo.

Desenrolam-se as operações em maio de 1915, Teixeira Pinto leva um fraquíssimo contingente regular, os irregulares de Abdul, é apoiado pelo régulo mandinga Mamadu Sissé e pelos Futa-Fulas de Alfa Mamadu Seilu. Não houve mistério na argumentação trocada sobre quem e porquê mandou prender os dirigentes da Liga Guineense, teria havido um prisioneiro que confessara às gentes de Abdul e quem dirigia a resistência e fornecia cartuchame eram figuras ligadas à Liga.

Tavares da Silva dá um amplo desenvolvimento às queixas de Andrade Sequeira sobre o comportamento dos auxiliares. Temos que admitir que mesmo na hipótese de haver excessos na argumentação de Luís Loff sobre as pilhagens e destruições dos quadrilheiros de Abdul, não havia relação sustentada quanto às responsabilidades da Liga Guineense, entretanto entredita e depois extinta. Houve inquestionavelmente movimentações de diferentes interesses para amnistiar ou incriminar os Grumetes, Andrade Sequeira é enérgico, manda sair da ilha os quadrilheiros de Abdul. O comportamento do governador é dúbio, informa o ministro que no atual momento político seria inexequível aniquilar de vez Abdul, havia que o desarmar. Vasco Calvet de Magalhães envia um documento a Andrade Sequeira biografando Abdul, é arrasador, escravizava os prisioneiros e diz mesmo: “Abstenho-me de me ocupar também das barbaridades que lhe deixaram praticar em Bissau e que são do domínio público, não faltando testemunhas dos factos entre os quais o de ter enterrado gentes vivas, etc.”.

E começam as acusações a Teixeira Pinto. Quanto às atrocidades, permitira, tudo vem perfeitamente documentado na obra de Tavares da Silva, e inclusive as inquirições que foram ordenadas fazer a Brito Capello, em dado passo já se insinua práticas administrativas irregulares, tudo acabará arquivado quer porque o governador Andrade Sequeira deixa a Guiné quer porque Teixeira Pinto morre em combate em Moçambique.

E assim chegamos a 1919 e à campanha contra Abdul Indjai, régulo do Oio. O Secretário-geral Caetano Barbosa informa o novo Governador Oliveira Duque das prepotências praticadas pelo chefe de quadrilha. Abdul ainda entrega armas, por exigência do Governo, mas a situação na região, mormente em Mansabá, era de nítido mal-estar entre as populações. Abdul comete o erro de querer oferecer resistência, será preso e deportado para a cidade da Praia, onde irá falecer.

A despeito de inúmera documentação existente, permanecem mistérios que só uma investigação mais apurada permitirá desvendar: quanto à fundamentação da extinção da Liga Guineense, instituição criada por republicanos; se existiram conivências de alguns dos seus membros com os revoltosos Papéis e Grumetes da ilha de Bissau; se Teixeira Pinto se permitiu a fazer vista grossa das atrocidades e pilhagens praticadas pelo chefe de quadrilha e os seus irregulares; como foi possível encontrar justificação por manter este praticante de barbaridades como régulo que agia por conta própria, saqueando, escravizando, fazendo coleta de impostos, armado até aos dentes. É uma investigação muito incómoda para este período colonial: o heroico capitão Teixeira Pinto teve de se socorrer de um chefe de quadrilha e notório criminoso; não são evidentes as ligações entre a Liga Guineense e a rebelião dos régulos da ilha de Bissau; é politicamente insustentável na segunda década do século XX uma potência colonial se apoiasse num bandido sanguinário para fazer ocupação e pacificação. Há que sair deste mar de trevas e procurar apurar o rigor da verdade.

Luís Loff de Vasconcelos
Abdul Indjai
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23337: Historiografia da presença portuguesa em África (320): Grande polémica (1): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23274: (In)citações (205): Os nossos livros são as memórias da nossa vida e da nossa passagem pela guerra da Guiné (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 16 de Maio de 2022:

O Zamith Passos, de há cinquenta e dois anos é um homem e um amigo que eu estimo e considero especialmente. Ele como furriel e eu como alferes, comandámos o 2.º pelotão da CCaç 2616, o melhor que pudemos, conjugando as experiências e conhecimentos de um e do outro.
Depois de anos sem contactos pela turbulência da vida, há alguns anos que nos reencontramos como velhos amigos e camaradas para lembrar as longas caminhadas pelo Chinconhe, pela Bolanha dos Passarinhos, outros locais arborizados, quentes e húmidos, pelo bar de sargentos e oficiais e outros locais que nunca esqueceremos.

Ele tem sido o organizador, nos últimos anos, dos almoços da Companhia. Convocou mais um que se realizou no passado dia 7 de Maio, na esplanada de um restaurante em Lisboa, na Zona da Expo/98, com boas vistas sobre o rio Tejo. O anterior, em que não pude estar presente, foi antes da pandemia em 2019 e estiveram presentes mais de cinquenta pessoas, entre ex-militares e familiares. Este ano havia somente 30 comensais, alguns foram morrendo, como o Paulo Fragoso, vítima de covid (meu grande amigo. Trocamos muitas mensagens e telefonemas), outros estão adoentados, outros menos sociáveis e mais recolhidos pelos três anos deprimidos, em que temos vivido.

Entre os camaradas, esteve também o General Pezarat Correia, distinto militar do 25 de Abril, do Conselho de Revolução, com obras relevantes editadas, de índole histórico e político-militar, doutorado pela Universidade de Coimbra, convidado por ter sido o Major de Operações do Batalhão 2898, a que pertencia a nossa companhia.
Gostei de me ter distinguido com um grande abraço, quando, através do Zamith Passos me identificou, não por feitos militares, mas por ter lido um artigo do livro "Cartas de Amor e de Dor" da escritora Marta Martins Silva, que ele prefaciou em que me dá um elogio tão grande, que eu só consigo justificar pela amizade e camaradagem pelos militares que comandou.

Buba > Eu e o Zamith Passos
Um abraço entre camaradas
Aspectos do convívio


Prefácio de Pedro Pezarat Correia no livro “Cartas de Amor e de Dor”, de Marta Martins da Silva; pp 17 e 18:

É nas cartas de alguns graduados, oficiais e sargentos milicianos, como Lobo Antunes, Francisco Baptista, Beja Santos, Graça de Abreu, Bação Leal, que aquela tomada de consciência é mais expressiva. A correspondência de Bação Leal tornou-se icónica: “Estou farto deste carnaval de cadáveres […] a única porta é o suicídio”. Não se suicidou, mas viria a morrer em operações em Moçambique. Francisco Baptista, quando em Março de 1970 embarcou para a Guiné, ia já “plenamente convencido da inutilidade dessa guerra”[2] António Graça de Abreu faz uma premonição reveladora de uma consciência avançada: “Aí em Portugal é que o PAIGC vai ganhar a guerra”. O contributo da luta dos movimentos de libertação para o que viria a ser o 25 de Abril, que ainda não está suficientemente estudado, é incontroverso.

[2] - Francisco Baptista, alferes miliciano, foi integrar a CCAÇ 2616 em Buba, que pertencia ao meu Batalhão, o BCAÇ 2892 com sede em Aldeia Formosa, no qual eu era oficial de operações, onde substituiu um alferes morto em operações, o que me permite confirmar inteiramente as situações que ele relata.

Agosto de 2021
Pedro de Pezarat Correia


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Os mortos sozinhos na capela (quem rezava por eles?)

Francisco Baptista embarcou para a Guiné a sentir-se "politicamente derrotado pois estava plenamente convencido da inutilidade dessa guerra", pelo que os dois anos de comissão foram-lhe muito penosos. "Antes da minha partida, tinha bem a noção das mortes que ocorriam nas três frentes da guerra, pois, pouco tempo antes, tinha estado durante três meses no Quartel-General de Lisboa, para onde eram comunicados diariamente os mortos. Os mortos da Guiné, um, dois, três, por dia - por vezes mais -, eram sempre em maior número. Tendo em conta o número de mortos, fiz um cálculo e, segundo as leis da probabilidade, achei que teria mais hipótese de regressar com vida do que o seu contrário, mas com cálculos ou sem eles os transmontanos que eu conheci não fugiam à guerra, pelo contrário; os rapazes que tinham emigrado, a salto, para a Europa, vinham todos à inspecção militar e a "dar a tropa", conforme expressão deles, muitas vezes já casados e com um grande prejuízo financeiro", começa por dizer Francisco Baptista.

As probabilidades estiveram efectivamente do lado de Francisco, que partiu para a Guiné no dia 19 de Março de 1970, no navio Alfredo da Silva, integrado na Companhia de Caçadores 2616 do Batalhão de Caçadores 2892. Ele voltou com vida, mas nem todos tiveram essa sorte. "Os momentos mais difíceis para mim, como para os outros, eram a morte de camaradas. Foi difícil, ainda dói, a morte do Albano, tão bom camarada, a morte do furriel Ferreira, éramos amigos, a morte de dois soldados milícias africanos, ao meu lado, sendo eu o responsável por essa força de combate", partilha.

Era impossível não sentir, mesmo quando - e foi o caso de Francisco - se nasceu nuyma aldeia do interior, "com costumes ancestrais onde a morte era tão natural como a vida". "Lembro-me de ir desde criança, ainda antes mesmo da idade escolar, aos funerais dos meus primos aina meninos, muitas vezes a ajudar a levar as urnas para o cemitério. Com dez anos assisti à morte do homem que mais amei, o meu avô paterno, lembro-me de tudo, da da minha mãe e das outras mulheres à volta da cama dele, da minha avó paterna a rezer orações antigas, que só ela conhecia, da respiração ofegante dele e do estertor da morte. O meu avô, o meu grande amigo, quis-me dizer como morre um homem, para eu saber enfrentar a morte com coragem. Na minha memória afetiva guardo esse dia com saudade mas sem mágoa, e com a mesma naturalidade como outros dias que passei com ele a regar a horta, ou à noite, nos serões da lareira". Mas na guerra a morte não era tão natural.


Texto de Francisco Baptista publicado no livro "Cartas de Amor e de Dor, de Marta Martins da Silva, pág. 262

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O último semestre da CCaç 2616, em Buba, foi um tempo malfadado. Todos os tipos de azares e desgraças, aconteceram. Além dos habituais ataques de armas pesadas ao aquartelamento, que dado os abrigos e valas existentes, não representavam grande perigo, houve toda a sorte de acontecimentos funestos. A Companhia sofreu com tudo isso quatro mortos e cerca de 20 feridos, alguns graves.

Em abono da verdade um morto e muitos feridos pertenciam a um Pelotão doutra Companhia do Comando de Aldeia Formosa que estava a reforçar a nossa. Este acidente foi provocado por uma granada de lança-granadas-foguete que depois de se lhe retirar a segurança para a introduzir na arma, com alguma inclinação a um metro e pouco do chão podia explodir. Foi isso que aconteceu junto à arrecadação do material provocando a morte imediata dum soldado e ferimentos, alguns muito graves, em cerca de quinze outros camaradas. Essa granada, penso que fabricada no Braço de Prata, teve poucos meses de utilização pois terá provocado outros acidentes noutros quartéis.

Houve de tudo, desde minas anti-pessoais e anti-carro a reencontros com a guerrilha no mato a três acidentes graves com diferentes tipos de granadas.
Este rol de desgraças penso que começou quando o Albano morreu e dois amigos dele ficaram gravemente feridos com a explosão de uma granada de mão.
Deste acidente penso que terá havido duas versões pelo que me abstenho de contar qualquer delas. Foi um acidente infeliz como houve tantos na Guiné.

Muitas armas e material explosivo, por vezes pouco seguro, deficiente instrução militar. Meses de relativo relaxe em que parecia que a guerra já tinha acabado, alternados com dias agitados por disparos e rebentamentos. Meses dum sol tropical escaldante alternados com meses de aguaceiros sem fim. A maior parte dos camaradas confinados durante quase dois anos a viver no aquartelamento, sem possibilidade de poderem gozar férias. Tudo isto criava condições propícias a todo o tipo de acidentes.

O Albano era pescador de Setúbal tal como os outros dois camaradas. Era discreto, diligente, trabalhador, popular entre todos os militares do quartel. Era um tipo de homem capaz de se relacionar com todos os outros, acima ou abaixo da sua escala hierárquica ou social, sem fazer concessões a ninguém. Só homens superiores conseguem ter este comportamento, porque para lá dos seus conhecimentos literários, técnicos ou artísticos, conseguem ter a visão correta da miséria e da grandeza dos seus semelhantes.

Tendo a idade da maioria de todos nós revelava já ser um homem mais maduro. A isso não seria alheio o facto de já ser casado e ter duas filhas e como tal ter tido cedo responsabilidades que obrigam um homem a crescer.

Lembro-me do seu corpo estar depositado na pequena capela do quartel a aguardar transporte para Bissau. Penso nisso, no choque que a sua morte provocou em todos e apesar disso na solidão de morte do seu corpo, sozinho na capela, abandonado por todos. Olho para o monitor do computador e parece que me revejo a passar próximo da capela, que ficava ao lado da estrada que levava ao cais, em frente à messe de oficiais, a pensar que o meu comportamento e o dos outros não estava a ser correcto em relação o Albano.

Vinha-me à memória a morte dos meus avós e do meu padrinho, velados em casa sempre com tanta gente à sua volta, toda a aldeia, parentes e amigos das terras próximas a entrar e a sair para nos cumprimentar e rezar pelos morto. Lembrava-me principalmente do meu avô materno Francisco, um homem calmo, meigo, amigo de tratar da horta, e de ir à "venda" beber um copo com os amigos. Para mim foi o melhor homem que alguma vez conheci e sempre ouvi os maiores elogios acerca dele, bom homem e um lavrador dos melhores.

Assisti à sua morte, recordo tudo, desde o quarto em que estava deitado, às rezas antigas, que não conhecia, que a minha avó paterna fez. Recordo também que quando expirou, a minha avó mandou vir um pão (dos grandes pães que a minha mãe cozia) e foi partido em duas partes para dar a dois pobres. Depois do funeral a minha mãe mandou dar um quartilho de azeite a todas pessoas da aldeia que dele precisassem. Não sei ou já esqueci qual o significado daquele pão.

Lembro-me dessas noites longas de velório com a minha mãe, tias, primas e outras mulheres sentadas em redor da urna sempre a rezar terços. Os homens demoravam-se pouco, saiam e depois ficavam na rua a falar das colheitas, dos animais, enfim das vidas em geral.

Na morte do camarada Albano, em Buba, faltou o amor e compaixão das mulheres para dar sentido e dignidade à despedida.
Éramos homens e jovens, não dávamos valor às cerimonias e rituais que existem e sempre existiram em todos os tipos de sociedades e têm um papel importante para repor a paz e a harmonia entre os vivos e os mortos.

As mulheres conhecem todos esses mistérios, sabem falar com os mortos e não têm pudor em chorar e em manifestar as suas crenças e a sua fé. Como dizia o poeta Louis Aragon, a mulher é o futuro homem. Eu diria que ela é o princípio e o fim do homem pois é ela que lhe dá a vida e que no final o entrega e recomenda aos deuses.

Em Buba não tínhamos padre e não me recordo de alguém que o substituísse com uma mensagem de despedida que reunisse todos os militares do quartel ou pelo menos a Companhia. Sei lá, esse ou outro gesto, como toda a Companhia formada em silêncio em frente à capela onde estava o corpo.


(Francisco Baptista, texto publicado a 21 de março de 2014 no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Texto de Francisco Baptista publicado no livro "Cartas de Amor e de Dor, de Marta Martins da Silva, pp. 263 e 264

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Com textos meus, editados no Blogue do Luís Graça e com outros textos, editei um livro que tem este e muitos outros textos, sobre a minha vida na Guiné e em Brunhoso, uma aldeia pobre de Trás-os-Montes, onde nasci e me criaram.

No próximo dia 19, irei com alguns camaradas do Porto, ao almoço da Tabanca da Linha, que tendo como Régulo, o camarada Manuel Resende, cada vez ganha mais fama pelos bebidas e cozinhados que revigoram o corpo, aquecem a alma e ajudam a criar um alegre convívio, que todos os ex-combatentes da Guiné apreciam.

Tal como eu dois outros camaradas levaremos livros , eu já li os três e gostei muito, experiências diferentes, estilos diferentes, mas todos interessantes.

Abraço
Francisco Baptista


Eis as capas dos livros:
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23196: (In)citações (204): As comemorações do dia 25 de Abril de 1974 (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)