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sexta-feira, 10 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25505: Consultório Militar do José Martins (83): Revolta de 16 de Março de 1974 passou pelo Concelho de Loures


1. Transcrição de um trabalho do nosso camarada José Martins, publicado em "Loures História Local, Abril/Newsletter n.º 45/2024", sobre o 16 de Março em Loures:


O 16 de Março na Área de Loures

Às 04H00 do dia 16 de Março de 1974 uma coluna auto transportada, de cerca de 200 militares comandada pelo Capitão Piedade Faria, sai do quartel das Caldas da Rainha, a caminho de Lisboa, com a missão de ocupar o aeroporto[1].
A Região Militar de Lisboa, avisada do facto, entra em estado de prevenção reforçada.

Esta situação não apanha de surpresa, quer o Governo quer as autoridades militares. Desde o dia 9 de Março, iniciam-se nos quartéis, por ordem do Comando-Chefe das Forças Armadas, o estado de Prevenção Rigorosa. Esta situação não se verificava desde 1961, há treze anos, portanto. Essa ordem foi dirigida aos Serviços de Informação dos 3 Ramos das Forças Armadas, assim como à 1.ª e 2.ª Repartições e à Secretaria-Geral da Defesa Nacional.

Foi uma semana em que houve vários acontecimentos: prisão de capitães do Movimento dos Oficiais das Forças Armadas (MOFA), e seu internamento no Forte da Trafaria; aprovada a politica colonial do governo, pela Assembleia Nacional; manifestação dos Oficiais-Generais, em apoio ao Presidente do Conselho e da sua politica; a demissão de Costa Gomes e António de Spínola, dos altos cargos que ocupavam; reuniões de elementos do MOFA, face às reacções de solidariedade de Capitães e outros oficiais subalternos, que manifestam as suas posições junto dos respectivos comandantes; e tudo isto acompanhado por variação de “estados de Alerta” com “estados de Prevenção Rigorosa”, situação reflectida no relatório do Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7 (Leiria), em que refere, na análise crítica: «Dos extractos da “Fita do Tempo” pode concluir-se ter havido um certo «à-vontade» da minha parte, pois poderia ter mandado armar, equipar e municiar a Companhia de Caçadores logo após a ordem de prevenção rigorosa. Não o fiz, como já disse, por razões que julguei convenientes na altura: a semana anterior tinha sido fértil em altas e baixas nos estados de emergência».

As notícias, a principio vagas, mas depois tornam-se mais alarmantes, apesar de especulativas. Mencionavam o movimento de várias unidades, do Norte, em direcção à capital, o que não se verificava. Como as Regiões Militares dispunham, à época, em cada Regimento e/ou Instituição da sua competência, de subunidades às suas ordens, normalmente uma companhia de caçadores (infantaria), baterias de bocas de fogo (artilharia) ou esquadrões de carros de combate e reconhecimento (cavalaria); e nas unidades de serviços e nas escolas práticas de companhias de caçadores, o Quartel-General da Região, a Região Militar de Lisboa, manda deslocar as seguintes forças, sob comando do Chefe do Estado-Maior do Exército, General João Paiva Brandão.

A Escola Prática de Infantaria (EPI), em Mafra, tendo parte do pessoal empenhado na semana de campo, do Curso de Oficiais Milicianos, com o pessoal e as viaturas disponíveis, inicia o patrulhamento da Zona Oeste, onde se encontra aquartelado. Para suster qualquer força não detectada, envia a Escola Prática de Administração Militar (EPAM), do Lumiar, para a Ponte de Frielas. Para a Zona Norte, às portas da cidade, onde terminava o troço da A1 (outras fontes indicam que foi na Rotunda da Encarnação), foram chamados o Regimento de Lanceiros n.º 2/Policia Militar (RL 2/PM) e o Regimento de Cavalaria n.º 7 (RC 7), da Ajuda: o Batalhão de Caçadores n.º 5 (BC 5), de Campolide; o Regimento de Infantaria n.º 1 (RI 1), da Amadora; o Regimento de Artilharia Ligeira n.º 1 (RAL 1), de Moscavide; e a Escola Prática do Serviço de Material (EPSM), de Sacavém. Para o mesmo local foram enviadas forças da Polícia de Segurança Pública e Guarda Nacional Republicana (Infantaria e Esquadrão de Reconhecimento), além de elementos, à civil, da Direcção Geral de Segurança e da Legião Portuguesa.

O ajuntamento destas forças, por volta das 06H00 de um sábado que à época era dia normal de trabalho, fez juntar os populares que se deslocavam para o seu trabalho, em Lisboa, e cujo trajecto obrigava a passar por aquele local, transformando-se em “mirones”. Todo aquele aparato prometia conversa, não só para aquela altura, mas também para o Domingo, e sabe-se se não se prolongaria pela semana fora, quando se aguardasse a hora do jantar.

Se por qualquer circunstância, mesmo que não tivesse havido troca de tiros, como não houve, bastava um disparo inopinado, para poder gerar confusão na fuga de civis, procurando abrigar-se, para poder ter havido um certo número de feridos, entre estes.

Apesar de, na prática, esta insurreição ter acontecido no Regimento de Infantaria n.º 5, onde era ministrado o primeiro ciclo do CSM - Curso de Sargentos Milicianos, não ter originado no país qualquer alteração, na realidade, teve implicação em duas localidades: Caldas da Rainha, o palco principal dos acontecimentos, e Loures, nomeadamente Sacavém, onde se instalaram as forças leais ao governo. Noutras localidades do percurso utilizado, houve maior ou menor impacto devido à movimentação das forças militares e paramilitares, mas todo o país seguiu os acontecimentos desse dia, pelo menos através das notícias que iam sendo divulgadas.

Loures, pela sua localização geográfica seria, necessariamente, um ponto de passagem, quer utilizando a EN 1, ou a EN 8 mais a Oeste, para se dirigiram ao Aeroporto da Portela, seu objectivo. Da A1, na altura, só existia o troço Sacavém - Vila Franca de Xira e, a autoestrada A8, ainda nem sequer fora pensada.

Não consegui obter os relatórios que, necessariamente, foram elaborados pelas unidades envolvidas na zona da Grande Lisboa, pelo que irei seguir o que relataram os documentos elaborados pelo Comando-Geral e pelo Batalhão n.º 2 da Guarda Nacional Republicana:
Cerca das 06H50, a coluna que tinha saído das Caldas da Rainha pelas 04H00, estava parada, na A1, a 3 km da Portagem de Sacavém. No relatório, do Comando-Geral da GNR, consta que à mesma hora, 06H50, é avistada uma viatura militar no sentido Cacém - Sintra, de que se desconhece a missão. O mesmo relatório relata que, às 08H05, a viatura MG-63-23 da Região Militar de Lisboa, com pessoal armado, é localizada em Tercena deslocando-se de Sintra para Cacém.

Pelas 07h15, na A1 por cima do rio Trancão, os Majores Luís Casanova Ferreira e Manuel Soares Monge que saíram de Lisboa, encontram-se com a coluna e avisam de que deve regressar a Caldas da Rainha, por ser a única unidade que se tinha sublevado, estando um dispositivo militar preparado para a defrontar, à entrada da cidade. Do relatório do Batalhão n.º 2 da GNR consta que, pelas 07H15, dois jeep saíram da EPI e seguiram pala estrada Paz - Torres Vedras, onde à 07H40 passaram nesta localidade. Num dos jeeps mencionados seguia o Comandante, Coronel Freitas, dirigindo-se para os lados da localidade de Ramalhal.

Sem apoio de outras forças, resolvem regressar ao quartel e, utilizando uma abertura no separador central da auto-estrada, mudam de faixa e iniciam o regresso. São interpelados à saída de Vila Franca de Xira, cerca das 08H30, por um efectivo de 10 elementos, comandados por um tenente. Das últimas viaturas ouviu-se um tiro inopinado. O problema foi sanado e a coluna segue sem mais incidentes.

Às 08H45, refere o mesmo relatório, que o Coronel Freitas passou novamente em Torres Vedras, regressando à EPI. Comunicou ter mandado levantar o "Destacamento de Cadetes COM" instalado numa quinta em Pai-Correia, Ramalhal e que, devido a carência de viaturas, o retorno se processaria por fases e a partir das 10H30. Mais solicitou que, a GNR o informasse de quaisquer outros movimentos de tropas naquela área, que se não relacionassem com o regresso dos cadetes ao quartel.

O Relatório do Comando-Geral da GNR refere que, pelas 09H30, uma coluna de viaturas passou frente ao Posto da GNR da Malveira, dirigindo-se para Loures. O Batalhão n.º 2 da GNR relata que a coluna auto que passou na Malveira, pelas 11H50 se encontrava a 1 quilómetro da Venda do Pinheiro, seguindo na direcção de Bucelas.

Às 10H20 o Comando-Geral da GNR solicita a informação, ao Comandante-Geral da Segurança Interna (CGSI), de quem é a competência de comando das força instaladas entre Sacavém e a Encarnação. O CGSI informa que a competência é do Quartel-General da Região Militar de Lisboa

Com o retrocesso da coluna sublevada, pelas 10H22, o Batalhão de Caçadores n.º 5 recebe instruções para retirar as suas forças. No local mantêm-se as do Regimento de Artilharia Ligeira n.º 1, cujo quartel ficava perto do local. Não há referência às outras unidades do Exército, que foram enviadas para o local e referidas anteriormente.

O Chefe do Estado-Maior da GNR dá instruções, pelas 10H25, para retirar o Pelotão de Reconhecimento/GNR e, às 10H27, a companhia do Batalhão n.º 2/GNR.

No relatório do Batalhão n.º 2 da GNR consta que, às 12H10, o Comandante do posto da Malveira, transmitiu que lhe havia sido comunicado, pelo posto de Bucelas, a apresentação de um Tenente-Coronel avisando do estacionamento de uma força à saída desta localidade, para o lado de Bemposta, que se encontrava em missão de reconhecimento. Entretanto, soube-se que tal força era comandada pelo Capitão Sousa Santos e que recebeu ordens para recolher à EPI.

A coluna do Regimento de Infantaria n.º 5, pelas 10H30, dá entrada no quartel, onde já se encontravam os Majores Monge e Casanova Ferreira, que os tinham abordado quando estavam entre Vila Franca de Xira e Sacavém.

Seriam estes oficiais superiores que negociariam a rendição, dos revoltosos, ao Brigadeiro Pedro Serrano, 2.º comandante da Região Militar de Tomar.

Depois de, cerca de três horas e trinta minutos, as forças rendem-se. São abertos os portões e a unidade é ocupada pelas forças sitiantes.

Pelas 22H00, os oficiais do Quadro Permanente detidos no RI 5, foram transferidos para o Regimento de Artilharia Ligeira 1 (Moscavide), escoltados pela Policia Militar e Policia de Segurança Pública. Uns ficaram na enfermaria do RAL 1, enquanto outros foram transferidos para a Casa de Reclusão Militar de Lisboa, no Forte da Trafaria.

Trinta e cinco Aspirantes a Oficial Miliciano, além de Sargentos, Furriéis e Cabos Milicianos, foram conduzidos, sob detenção, para o Campo Militar de Santa Margarida, às 03h00, acusados de participação nos acontecimentos de 16 de Março, onde seriam depois interrogados pelo Tenente-Coronel Andrade e Sousa.

No dia 17 de Março de 1974 pelas 14H30, por determinação superior, todas as unidades passam à Situação de Alerta e, a partir das 15H00, a Prevenção Simples.

Cerca de quarenta dias depois, sem que o MOFA tenha baixado os braços, mas passando a ser mais discreto, é marcado o “dia D” para 25 de Abril. Das unidades que foram mencionadas no presente texto e que intervieram do lado do governo vigente, qual teria sido a sua actuação nesse dia? Vejamos quais as missões mais importantes, atribuídas a cada uma delas, no intuito de manter os objectivos, na posse dos sublevados, já intitulados “Movimento das Forças Armadas”:

À Escola Prática de Infantaria, foi atribuída a ocupação e defesa, do Aeroporto da Portela, hoje Aeroporto Humberto Delgado.

À Escola Prática de Administração Militar é atribuída a missão de tomar os Estúdios do Lumiar da RTP, e pugnar para que a emissão continuasse no ar.

Do Regimento de Lanceiros n.º 2 – Policia Militar, uma força sob o comando de um Tenente, contacta com as forças que cercam o QG-RML. Depois de uma conversa com o comandante das forças sitiantes, retira em direcção à Praça de Espanha.

O Regimento de Cavalaria n.º 7 não adere ao MFA, vindo a constituir a única unidade que, comandada pelo Brigadeiro 2.º Comandante da Região Militar de Lisboa, tenta enfrentar as forças do Capitão Salgueiro Maia, na Ribeira das Naus e Rua do Arsenal. Muitos militares desta força passam, quase de imediato para o Movimento.

Ao Batalhão de Caçadores n.º 5, foi atribuído cerco e entrada no Quartel-General da Região Militar de Lisboa, mantendo a defesa da área.

Ao Regimento de Infantaria n.º 1, com duas Companhias de Caçadores, deslocaria uma para o Forte de Caxias e, com a outra Companhia, teria a missão de proteger a residência do General Spínola.

No Regimento de Artilharia Ligeira n.º 1 tinha sido colocado, como reforço, um Pelotão de Polícia Militar, que rodava todos os dias, variando os comandantes do mesmo e, contactados não se mostraram receptivos. O Comando não aderiu, pelo que se ficaram pela neutralidade. Com a chegada ao quartel do Agrupamento November, com tropas vindas de Viseu, Aveiro e Figueira da Foz, aderiram ao MFA pelas 18 horas.

Na Escola Prática do Serviço de Material estavam, desde data não mencionada, dois carros de Combate M-47, sob o controlo directo do Ministro do Exército. Os militares da EPSM conseguiram que a neutralidade fosse garantida.

As forças da Policia de Segurança Pública e da Legião Portuguesa, não localizei qualquer actuação, mantendo-se pela “neutralidade”.

A Guarda Nacional Republicana recebeu instruções para actuar em duas situações: primeiro vindo do lado da estação de Santa Apolónia, aguardava ordens para actuar na área do Terreiro do Paço e, mais tarde, tentando cercar as forças que se encontravam no Largo do Carmo, mas retrocederam a quartéis.

A Direcção Geral de Segurança acabou por ser neutralizada pela Força de Fuzileiros do Continente, depois de ter reagido, abrindo fogo, sobre a multidão.

Odivelas, 29 de Março de 2024
José Marcelino Martins

_____________

Nota do editor

[1] - Sobre o levantamento das Caldas em 16 de Março de 1974, vd. posts de José Martins de:


12 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25378: Consultório Militar do José Martins (76): Dia 16 de Março de 1974 - Antes do dia - Parte I

13 de Abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25381: Consultório Militar do José Martins (77): Dia 16 de Março de 1974 - Antes do dia - Parte II

14 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25385: Consultório Militar do José Martins (78): Dia 16 de Março de 1974 - Parte III - O dia

15 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25392: Consultório Militar do José Martins (79): Dia 16 de Março de 1974 - Parte IV - O dia

16 de Abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25395: Consultório Militar do José Martins (80): Dia 16 de Março de 1974 - Parte V - O dia

17 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25402: Consultório Militar do José Martins (81): Dia 16 de Março de 1974 - Parte VI - O dia

e
18 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25408: Consultório Militar do José Martins (82): Dia 16 de Março de 1974 - Parte VII (e última) - Os dias depois

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25326: Os 50 anos do 25 de Abril (6): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É o término da viagem memorial de um Capitão de Abril que escolheu um longo itinerário e não hesitou em dizer-nos como levou uma vida pautada por decisões de risco e pela independência de pensamento. Tenho sérias dúvidas que algo parecido possa surgir tão cedo à volta deste meio século que abarca o fim do império e as sinuosidades que têm atravessado o nosso sistema democrático.

Um abraço do
Mário


Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (3)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D, Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. 

É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

Cumpriu três missões em Angola, Moçambique e Guiné, louvado e condecorado, preparou uma companhia de Comandos de que foi seu comandante, o cenário de Moçambique foi determinante para ele questionar a fundo o mais que havia para além da honra e do dever, para além da vasta panóplia de requisitos que impõem a vida militar, vai numa operação em que o guia é um negro que promete levá-los a um objetivo, vai amarrado a um dos seus homens, uma inquietação sem limites começa a tomar-lhe a razão, que causa o ligava àquele negro e aos homens que estavam sob o seu comando? Que causas justificava a presença de cada um deles naquele palco? 

Tomou nota de que operações como a Nó Górdio nada resolviam, revolvia-se um território, a guerrilha e a população civil acoitavam-se até a operação passar, tudo voltava ao princípio, se bem que a comunicação social afeta ao regime louvaminhasse o feito, era a política da representação.

Geração D é um singularíssimo livro de memórias, já se disse o que este militar viveu até ao 25 de Abril e como ele, e muitos dos seus camaradas tiveram a possibilidade de ver na Guiné que se caminhava para uma hecatombe, tudo iria redundar num bode expiatório, seriam os militares os maus da fita, resolvido o incómodo da Guiné, julgavam os avatares no Estado Novo, todos os meios iam ser postos à disposição das joias imperiais, Angola e Moçambique, contava-se com o auxílio da África do Sul e da Rodésia. 

Matos Gomes adere ao 25 de Abril, alista-se na esquerda revolucionária, põe ênfase na relação que estabelecera com Jaime Neves e como seguiram vias separadas. Detalha o verão quente, as manobras, as alianças, os documentos, a ação de Otelo, o papel do COPCON, a mestria de Costa Gomes de gerir as fações, a impor o acatamento, recorda também como os paraquedistas voltaram a ser traídos.

Findo o 25 de novembro, Matos Gomes está suspenso, aguarda ser chamado ao Conselho Superior de Disciplina do Exército, é convocado e conta-nos o que aconteceu:

“O general promotor leu a acusação com fraco entusiasmo. Formalmente era acusado de ter assinado um documento, o mais comum dos crimes na altura. Entreguei um passaporte que revelava, através dos carimbos das alfândegas, que naquela data me encontrava na Alemanha. Recebera um telefonema de um dos signatários a perguntar se subscrevia mais este documento. Claro que sim. Estávamos do mesmo lado da barricada. 

Também era acusado pelo novo Chefe do Estado-Maior de ter assinado um outro, num encontro no Regimento de Polícia Militar, resultante de uma reunião determinada por Otelo Saraiva de Carvalho, na qualidade de comandante do COPCON. Entreguei aos generais uma ordem de serviço do Hospital Militar onde constava o meu nome e o do Chefe do Estado-Maior, então major e ainda meu contemporâneo na Academia Militar. 

Face a estes factos, concluía pela má-fé do Chefe do Estado-Maior e pedia para constar na ata do julgamento a minha queixa formal contra ele. De seguida, o general presidente deu-me a palavra. Tratava-se do julgamento político de um conflito entre defensores de opções políticas para a sociedade, e a disciplina não é, ou não devia ser, utilizada para esse fim. Estava à mercê da força e não do direito, menos ainda da disciplina. 

O general presidente deu a sessão por encerrada, mas antes do Conselho pedir para eu me retirar, a fim de deliberar, o General Leão Correia, a olhar para o meu uniforme cinzento sem uma condecoração ou emblema, limpo, perguntou-me por que não trazia as fitas com as duas cruzes de guerra com que fora agraciado. Apresentei as razões que me levaram a não usar condecorações: a primeira das cruzes de guerra havia-me sido imposta em Bissau, por um General Comandante-Chefe, Spínola, perante forças em parada, comandadas por um coronel, também ele condecorado. A segunda fora-me entregue há uns meses na secretaria da Direção de Arma de Cavalaria pelo Sargento Leitão, dentro de um envelope, como se fossem umas peúgas. ‘Ora, como não sei se foi a primeira a forma correta de ter sido condecorado, ou a segunda, para não ofender o Exército, decidi não usar condecorações até que seja esclarecido.’ 

O veredito do Conselho reconheceu-me idoneidade para continuar a ser oficial do Exército.”

Matos Gomes é mandado apresentar-se no Serviço Prisional Militar, com sede no edifício da PIDE/DGS, torna-se carcereiro, estão ali algumas figuras graúdas da PIDE. Procura aprofundar o que aconteceu após o 25 de novembro de 1975. Fez 30 anos, tinha uma casa, uma mulher e uma filha com 1 ano, houve eleições legislativas e autárquicas, a cena política internacional transfigurava-se, por cá vivia-se aconchegado com a normalidade democrática, as coisas não corriam favoravelmente às ex-colónias portuguesas. 

Exara nas suas memórias o poder sugestivo que lhe deixou ter-se envolvido no poder popular. Acompanhou Otelo em parte da sua caminhada, era um ser estranho entre aquelas organizações, não era marxista-leninista, revela o seu quadro de pensamento: 

“Rejeito a luta de classes como o princípio dominante das transformações políticas, entendo-a apenas como mais um, e não o determinante. A propósito desse elemento determinante, nunca soube nem procurei descobrir qual é a gota de água que faz transbordar o copo, mas assisti a intermináveis discussões teológicas com muito fumo e fé sobre o assunto. 

Também não perfilhava o princípio da necessidade histórica da alteração das relações de poder ser liderada pela vanguarda do proletariado, pelo partido. Nem era adepto de uma ditadura do proletariado, que ofendia a minha liberdade, a ideia de igualdade dos seres humanos, independentemente da posição que ocupam no processo de trabalho, e contrariava a realização das ditaduras do proletariado estabelecidas.” 

Afastar-se-á das Forças Populares 25 de Abril quando surgiu a radicalização da violência armada.

Lançou-se na escrita, louva o seu quadro de amigos, exulta com a camaradagem que pode manter com um punhado de militares. E a viagem prossegue. 

Quem escreve estas memórias singularíssimas, quem continua a intervir ativamente como observador atento e com opiniões aceradas, é o mesmo escritor que nos legou Nó Cego, Soldadó ou A Última Viúva de África

Há que saudar quem coligiu este punhado de anotações tão íntimas que vão da ditadura à democracia e dizer sem hesitações que não há nada parecido na literatura portuguesa, pois é o testemunho de um bravo militar, um capitão do MFA, alguém que foi revolucionário e nos doou a mais bela joia da literatura da guerra colonial, como se afirmasse, ponto por ponto, que a sua coerência e postura política não estão à venda.

terça-feira, 5 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25238: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte VII: Um adeus a Fulacunda (texto e fotos de Jorge Pinto, alf mil, 3ª C/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)


Foto nº 2A


Fot0 nº 2


Foto nº 1A


Foto nº 1


Foto nº 3A


Foto nº 3

Guiné > Região de Quínara > Sector de Tite > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Visita do governador e com-chefe gen Bettencourt Rodrigues, c. jan / fev 1974

Fotos (e legendas): © Jorge Pinto  (2014) . Todos os direitos reservados (Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)



1. Fotos relacionadas com uma visita do general Bettencourt Rodrigues a Fulacunda, sector de Tite, em janeiro/fevereiro de 1974, enviadas em 28/1/2014 pelo nosso camarada e amigo Jorge Pinto (*):

[natural de Turquel, Alcobaça. é professor de história no ensino secundário, reformado, vive em Sintra; é membro da Tabanca Grande, desde 2012; tem 55 referências no blogue; foi alf mil, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74; iremos falar mais vezes dele, proximamente, reeditando algumas das suas melhores fotos]


O adeus do general a Fulacunda,

por Jorge Pinto


(...) Lembro-me que esta visita foi curta e marcada por três pequenos discursos com conteúdo e tom adquados às características do grupo social a que o general se dirigia.

Num primeiro momento (Foto nº 1), logo à entrada, ainda junto à pista de aviação, dirigiu-se à população em geral, que se juntou para o saudar, com os mais novos à frente.

Lembro-me que, sem referir a palavra "Nação", salientou a necessidade de Portugal manter a unidade territorial e multirracial. Percebi nas suas palavras a intenção de que vinha a Fulacunda para transmitir aos guinéus ali residentes a confiança na sua capacidade de "autodefesa", em relação ao "inimigo", sem necessidade de haver uma permanente presença da tropa.

Lembro-me que alguns soldados ao ouvirem a palavra "autodefesa", algo confusos, me perguntaram o que queria dizer... Ficando incrédulos e com um sorriso cínico após a explicação.

No segundo discurso, em frente à casa do chefe de posto (foto nº 2 ), dirigiu-se exclusivamente à juventude masculina. Dirigiu-lhes, apenas algumas palavras em tom militarizado e paternal. Incentivou-os a unirem-se àqueles que combatem o "inimigo" e lutam por uma Guiné com um futuro melhor para todos.

Por fim o terceiro discurso (foto nº 3), teve lugar na parada do quartel e foi exclusivamente dirigido à 3ª Cart/Bart 6520/72. 

Neste discurso começou por referir o longo tempo de comissão que a companhia já tinha. Enalteceu o espirito de missão e sacrificio vivido durante esse tempo. Alertou para a necessidade de estarmos preparados para mais sacrificios.

Como foi o encerramento desta visita, sinceramente não me recordo... julgo que o nosso general e a sua pequena comitiva não chegaram a almoçar em Fulacunda.

Esta foi a última visita de um Governador Colonial da Guiné-Bissau a Fulacunda. O esperado "25 de Abril" ocorrerá dois ou três meses depois desta visita." (...)


(Revisão / fixação de texto, título, parênteses retos, negritos e itálicos,  reediçã
o das fotos: LG)


2. Nota do editor LG:

O gen Bettencourt Rodrigues deve ter feito escassas visitas a quartéis e destacamentos no mato (eram cerca de 225 as guarniçóes então). Até por falta de tempo. Mas o assunto não está devidamente documentado no nosso blogue. Daí a oportumidade da republicação destas fotos que, de facto, são raras. (**)

O BART 6520/72 cumpriu 26 meses de comissão (jun 72/ago74), o seu pessoal devia estar farto da Guiné até à ponta dos cabelos. Mas era preciso acalmar os ânimos e manter a um nível razoável o moral da tropa. 

Na longa entrevista que deu à investigadora Maria Manuela Cruzeiro, o Marechal Costa Gomes fala sempre com  rasgados elogios deste general, de quem era amigo pessoal. Diz dele: 

(...) "Foi o general que melhor serviu sob as minhas ordens ". (...) 

"Era meu amigo pessoal e também de Marcelo Caetano, aceitou o lugar de comandante e de governador da Guiné, mas sempre com a corda no pescoço. 

"Não concordava nada com Spínola e, como mo disse pessoalmente, considerava que a sua ação na Guiné, não tinha sido muito positiva".  

Além disso, era de lamentar  "o facto de Spínola ter montado uma impressionante máquina de propaganda. que dava uma ideia distorcida da nossa ação na Guiné,  do que lá se passava  realmente" (Fonte: "Costa Gomes, o último marechal entrevista de Maria Manuela Cruzeiro"- Lisboa, Editorial Notícias,  1998, pág. 151).
____________

Notas do editor:


(**)  Último poste da série > 7 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25220: 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte VI: Dois generais de escolas, perfis e personalidades muito diferentes

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Guiné 6/74 - P25217: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte V: Angola 'versus' Guiné


Gen Bettencourt Rodrigues (Funchal, 1918 - Lisboa, 2011)


1. Há documentos que devem merecer a nossa atenção e ser divulgados neste blogue de antigos combatentes da Guiné... É o caso do depoimento do gen Bettencourt Rodrigues (Funchal, 1918 - Lisboa, 2011), o último governador e com-chefe da Guiné, antes do 25 de Abril, prestado em 1997, no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida. 

O sítio original na Net foi descontinuado. Só há pouco tempo o conseguimos recuperar através do Arquivo.pt.  Devido à sua entensão,  será reproduzido,  com negritos nossos (e itálicos), em duas parte (com a devida vénia, ao ICS - Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa). 

A primeira parte é dedicada a Angola, onde o general Bettencourt Rodrigues foi o "herói da região militar leste" (1971-1973). A segunda, à Guiné.

Os entrevistadores, já falecidos, Manuel Lucena, cientista político (1938-2015)  e Luís Salgado de Matos, sociólogo (1946-2021), foram dois brilhantes investigadores do ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Este documento também está disponível no Arquivo de História Social do ICS. Faz parte do espólio de Manuel Lucena.

Estudos Gerais da Arrábida > 
A DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA

Painel dedicado à Guiné (29 de Julho de 1997) 


Manuel de Lucena

Antes da eclosão da guerra Angola - e baseando-me no depoimento que concedeu a José Freire Antunes  (2) - sei que estagiou em unidades norte-americanas e esteve integrado na Divisão SHAPE. Quer falar-nos um pouco dessa experiência? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Em 1952, depois de ter feito o curso de Estado Maior no Instituto de Altos Estudos Militares, o então Chefe de Estado Maior, general Barros Rodrigues, destacou-me para tirar o curso de Comando e de Estado Maior nos EUA (Kansas). Seguidamente, estagiei na 1ª Divisão de Infantaria norte-americana instalada no campo de Graffenworhr, na Alemanha Ocidental. 

Passado algum tempo, constituiu-se a Divisão SHAPE, que actuou em numerosos exercícios e manobras, dentro e fora do país, Nessa unidade, fui adjunto da 3* Repartição do Quartel General durante o período de manobras de 1953 e anos seguintes. 

Quando regressei a Portugal, estive durante algum tempo colocado em Santa Margarida, onde se começaram a aplicar os modelos e técnicas americanas ao Exército português: foi em Santa Margarida que nasceu o moderno Exército portuguesa. 

Foi talvez em 1958 que começámos a ter a percepção de que algo iria acontecer em África, fundamentalmente devido ao exemplo da guerra da Argélia e às primeiras independências na África negra. 

Por essa  altura tomaram-se certas providências tendo em vista a adaptação do Exército ao tipo de inimigo que poderia ter de vir a enfrentar. 

Enviaram-se alguns oficiais para a Argélia (Hernes de Oliveira, Almiro Canelhas, Franco Pinheiro, entre outros), a fim de se familiarizarem com os métodos de luta anti-guerrilha; mudaram-se os planos de instrução; no Instituto de Altos Estudos Militares, na Academia Militar e nas Escolas Práticas começou leccionar-se a teoria da «guerra subversiva»; em Lamego, foi criado o Centro de Instrução de Operações Especiais, especialmente vocacionado para a luta antissubversiva 

Em 1960 - o ano da independência do Congo belga -, o coronel Almeida Fernandes, então ministro do Exército, mandou uma missão do curso de Estado-Maior a Angola. Fiz parte dessa missão - era então professor no curso Estado Maior - tendo levado comigo os alunos da parte complementar do curso, Percorremos toda a fronteira Norte de Angola em duas station wagons sem que tivéssemos dado conta de algo de anormal. Angola parecia estar perfeitamente pacificada. 

Quando a grande bronca rebenta, - os massacres da UPA de 14 de Março -, eu estava lá em missão, juntamente com os generais Beleza Ferraz e Câmara, respectivamente CEMGFA e CEME. Em Buco-Zau (Cabinda), onde nos encontrávamos, chamaram-nos de urgência para a Luanda. Depois daqueles dois responsáveis terem regressado a Lisboa, na companhia do ministro do Ultramar, Vasco Lopes Alves, ainda lá fiquei uns dias. 

Manuel de Lucena: 

Qual era o propósito dessa última missão? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Tratava-se de uma simples missão de rotina, tanto quanto me recordo. Simplesmente, calhou estarmos lá aquando da eclosão da guerrilha. Depois dessa ocasião, voltei repetidas vezes a Angola, uma delas com o então major Pedro Cardoso, adjunto do Secretário-Geral da Defesa Nacional, por ocasião do cerco a Carmona. 

Em Novembro de 1961 teve lugar um acontecimento dramático: o desastre do Chitado, onde pereceu o general Silva Freire, então comandante da região militar de Angola. Pouco tempo depois, o general Holbeche Fino, designado para suceder a Silva Freire, telefona-me dizendo que gostaria de me levar para Angola como seu chefe de gabinete. 

À minha maneira, respondi-lhe que tinha dois patrões; o general Gomes de Araújo e o general Câmara Pina; se ele se entendesse com eles, muito bem, iria para Angola, Comigo foi sempre assim: basta apresentarem-me a guia de marcha e eu vou para qualquer lado. 

Luís Salgado de Matos: 

Quando em Março de 1961 rebenta a «bernarda» em Angola, o dr. Salazar não quis falar com as pessoas que lá estavam?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Não sei. Pela minha parte, só falei com o Costa Gomes e o Almeida Fernandes. 

Luís Salgado de Matos: 

Não é no regresso daquela visita que os generais Beleza Ferraz e Câmara Pina classificam os incidentes em Angola como um simples caso de polícia e depois são muito criticados? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, admitia-se que o general Beleza Ferraz talvez não tivesse medido bem a gravidade da situação; e daí essas declarações menos felizes. 

Luís Salgado de Matos: 

Ainda em relação a esse ano de 1961, como viu o golpe do general Botelho Moniz? 

General Bettencourt Rodrigues: 

O general Botelho Moniz era um homem muito complicado, muito fechado sobre si mesmo. Quem não segue as regras no Exército, acaba sempre por «dar gato»

Ainda hoje não sei bem o que foi a «Abrilada». Que eles queriam derrubar o dr. Salazar e o almirante Américo Tomás é um facto - e o Craveiro Lopes até já tinha a mala feita para se instalar em Belém. Agora o que sucederia depois do golpe, isso permaneceu sempre um mistério para mim. 

Manuel de Lucena: 

Como é que o sr. general sentiu o ambiente das Forças Armadas em Angola, em 1961? Nos escalões que contavam, é evidente. 

General Bettencourt Rodrigues: 

Apesar de uma certa surpresa perante a proporção que as coisas assumiram em Março de 1961, já havia um certo planeamento por parte dos responsáveis militares. O general Silva Freire, um estratega brilhante, tinha alinhavado algumas ideias para enfrentar um possível foco de subversão. 

Infelizmente, no desastre do Chitado faleceram também dois chefes de Repartição do Quartel General. Escaparam, valha-nos isso, o hoje coronel Moreira Rebelo, da 1ª Repartição, e o hoje general Salazar Braga, da 2ª Repartição. 

Em finais de 1961 tínhamos para resolver: a reconstituição Quartel General, as comunicações, a logística e a montagem do sistema de quadrícula. Ou seja, praticamente o essencial. 

O sistema de quadrícula, de inspiração francesa, surgiu-nos como o mais adequado, até porque os massacres tinham eclodido em regiões onde não existiam guarnições militares, deixando os fazendeiros num grande isolamento. 

Luís Salgado de Matos: 

O general Silva Freire era um oficial da escola francesa? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, mas era sem dúvida o nosso melhor general, um dos mais brilhantes estrategas da sua geração. Ele teve a inteligência de perceber que era através da quadrícula que poderíamos contactar com as populações, trazê-las para o nosso lado. 

Repare: a guerra dita subversiva é um conflito assimétrico; uma disputa entre dois adversários desiguais em termos de organização, recursos e implantação no terreno. 

O sistema da quadrícula adaptou-sese bem às características da guerra subversiva. Era a quadrícula que integrava o médico que fornecia os cuidados de saúde básicos, o cabo que dava a instrução primária aos indígenas, o soldado que conhecia bem os musseques, a sanzala, enfim, a tropa que ia fazendo o  «trabalhinho». 

Quando se queria bater com força, então chamavam-se as forças de intervenção. Foram ambas indispensáveis e complementares uma da outra. 

Luís Salgado de Matos: 

Diz-se que a quadrícula deixou de combater em 1965. 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não tenho essa ideia. Sinceramente. Quando voltei a Angola em 1971 (a minha missão com o general Holbeche Fino terminou em 1964), para chefiar a Zona Militar Leste, combatia-se com determinação. Tanto assim que ainda nesse ano voltou a ser possível circular à vontade nessa região.

 Manuel de Lucena: 

Entre 1961 e 1964, a ideia era cooperar e pacificar, por um lado, e bater quando necessário, por outro? 

General Bettencourt Rodrigues: 

A ideia do apaziguamento era primordial. Era a razão de ser da nossa guerra. Nunca se perseguiu uma estratégia de aniquilamento do inimigo. O nosso lema era «a conquista pelas mentes». 

Luís Salgado de Matos: 

Voltando um pouco atrás. O general Beleza Ferraz tinha ou não razão quando dizia que a situação em Angola se pacificava num ápice? Porque em 1962 as coisas estavam aparentemente controladas... 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não é tanto assim. Aquela gente era determinada, batia-se bem, tinha armamento, apoios internacionais. 

Manuel de Lucena: 

A guerrilha era então vista como um inimigo a longo prazo?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Era impossível liquidá-la de uma só vez. Repare: qual é a finalidade da guerra subversiva? Substituir uma autoridade por outra, naquele caso, portugueses por angolanos. 

Nesse aspecto, a subversão falhou: foi o 25 de Abril que nos derrubou. 

Como a finalidade era aquela, não podia haver soluções de compromisso. Como é que se faz um cessar-fogo no âmbito de uma guerra subversiva? Nunca ninguém mo soube explicar até hoje. 

Utilizando uma imagem conhecida: uma mulher está grávida ou não; não pode estar apenas um bocadinho grávida…

Manuel de Lucena: 

O que o sr. general pretende dizer é que na guerra subversiva o compromisso é sempre o prelúdio da derrota de um dos lados. É isso? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Eu vou mais longe: qualquer compromisso equivale sempre a uma derrota incondicional

À guerrilha nunca interessam partilhas territoriais, soluções intermédias. É a vitória total ou nada. 

Manuel de Lucena: 

E em relação ao compromisso, quando é que se percebe que um dos lados se está a precipitar no abismo? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Veja esta hipótese: o general Spínola chegava a um entendimento com o Amílcar Cabral e conseguia chamá-lo para o Governo, oferecendo-lhe o cargo de secretário-geral ou coisa que o valha. Neste caso, quem vencia era o general Spínola porque o Governo, a autoridade, mantinha-se portuguesa. 

Luís Salgado de Matos: 

A esse respeito tenho uma espécie de teoria sentimental sobre a descolonização portuguesa. Ganhámos a guerra militarmente - com a possível excepção Guiné - mas o pais decidiu que se retirava, que não valia a pena continuar em África. 

Manuel de Lucena: 

Depois do trabalho com o general Holbeche Fino, entre 1961 e 1964, e até voltar a Angola, por onde andou o sr. general? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Estive três anos em Londres como adido militar e depois fui ministro do Exército, já com o professor Marcelo Caetano. Em 1971 fui então nomeado Comandante da Zona Militar Leste.

 Manuel de Lucena: 

Como surgiu essa sua última nomeação? 

General Bettencourt Rodrigues: Creio que foi o general Costa Gomes, meu grande amigo, que me propôs. 

Luís Salgado de Matos: 

Com quem tinha grandes afinidades tácticas, segundo julgo saber… 

General Bettencourt Rodrigues: 

Direi que partilhávamos de uma certa unidade de vistas. Em 1970-71 a situação em Angola apresentava sinais de deterioração. A subversão alastrou do Norte até ao Leste, à Lunda, ao Mochico e, o que era verdadeiramente preocupante, começara a ameaçar Nova Lisboa, o centro nevrálgico de Angola. 

Nessa altura, o general Costa Gomes decidiu remodelar o dispositivo e criar a Zona Militar Leste, que abrangia os distritos do Bié, Lunda, Mochico e Cuando Cubango. Essa sua iniciativa coincidiu com uma viagem do general Sá Viana Rebelo, ministro da Defesa a Angola. 

Em conversa, o general Costa Gomes sugeriu o meu nome para a chefia do novo comando, tendo obtido a anuência do ministro. 

Manuel de Lucena: 

Entretanto, falou também com o professor Marcelo Caetano? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Exactamente. De resto, eu sempre estive muito à vontade com o professor Marcelo. Tinha sido seu ministro, conhecíamo-nos bem... Ele até dizia que eu usava uma linguagem muito pitoresca... 

Luís Salgado de Matos: 

O professor Marcelo alguma vez se confessou consigo sobre os contados secretos com o PAIGC? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não acredite nisso... Eu não duvido que o Villas-Boas tenha ido a Londres, mas foi só ver o que é que os tipos queriam, mais nada. Havia um toque do Foreign Office e não se podia dizer que não. 

Manuel de Lucena: 

Quando falou com o professor Marcelo antes de ir para o Leste,  havia mais alguma coisa na manga, ou era apenas uma conversa normal entre o Presidente do Conselho e um antigo ministro que ia desempenhar uma importante missão militar? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Prefiro essa segunda hipótese. Para ser sincero, a conversa foi até relativamente inócua. Discutimos a delicadeza da situação militar, particularmente dramática à volta de Nova Lisboa; falámos das acções que se poderiam desenvolver junto das populações. 

Este último desiderato era, não me canso de sublinhá-lo, muito importante para nós. Nisso, o dr. Salazar e o prof. Marcelo não eram muito diferentes. 

Nas três frentes em que estivemos envolvidos, não arrasámos nada, não recorremos a bombardeamentos maciços, não seguimos uma política de terra queimada

É claro que, numa situação de conflito, há sempre uns tipos desequilibrados que podem praticar abusos. 

Luís Salgado de Matos: 

Na Argélia o uso da tortura em uma directiva explícita do Estado-Maior. O comando de pára-quedistas de Argel estava especificamente treinado para aterrorizar. 

Manuel de Lucena: 

Bem, a esse respeito há até quem fale de uma excessiva brandura por parte da tropa portuguesa. Quer comentar,  sr. general? 

General Bettencourt Rodrigues: 

É claro que quando era preciso bater, nós batíamos. No entanto, é sempre muito difícil dosear essas coisas... 

Mas fomos sempre formados para não cometer excessos. 

Manuel de Lucena: 

Sobre a sua acção no Leste, pode dizer-nos alguma coisa sobre os seus acordos com Jonas Savimbi? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Relativamente a esse assunto, entendo que não devo falar, uma vez que a pessoa em questão ainda está viva e politicamente activa. 

No entanto, esclareço que após o 25 de Abril nunca tive nada a ver nem com a UNITA, nem com o MPLA. 

Manuel de Lucena: 

O brigadeiro Passos Ramos, que nos prestou dois depoimentos em 1995 e 1996, levantou um pouco a ponta do véu sobre esses acordos. Disse-nos, nomeadamente, que houve um entendimento entre o Exército português e a UNITA com vista à formação de um santuário, que, naturalmente, funcionava contra o MPLA. 

Disse-nos também que a UNITA não era um movimento fantoche: estava bem implantada, cobrava impostos aos madeireiros, controlava áreas muito vastas - em suma, dava-nos trabalho. 

General Bettencourt Rodrigues: 

A única coisa que posso dizer é que o general Costa Gomes estava dentro desse entendimento, tal como o professor Marcelo Caetano. O que não equivale a atribuir-lhes a paternidade da ideia. 

Luís Salgado de Matos: 

O fim do 'modus vivendi' com Savimbi ficou a dever-se à inabilidade do seu sucessor? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Em certa medida. A guerra subversiva é uma guerra - como direi? - suja, pouco ortodoxa. 

Se sigo com demasiada intransigência os meus princípios - e essa foi a opção meu sucessor - não estou a jogar pelas regras do jogo. 

Luís Salgado de Matos: 

Mas essa inflexão face à UNITA terá tido o assentimento do ministro, não?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Não sei. Mas note que o Leste de Angola é um sítio remoto. Naquele conflito gozávamos de uma grande margem de autonomia. 

Manuel de Lucena: 

Quando estive exilado, falei uma vez com um homem do MPLA, um mestiço, Castro Lopo, que se confessou muito impressionado com as dificuldades que o movimento então experimentava na Frente Leste. Dificuldades sobretudo ao nível dos abastecimentos - vinha tudo de muito longe, da Zâmbia, por exemplo, forçando-os a longas caminhadas…

 General Bettencourt Rodrigues: 

Precisamente. Por outro lado, eram essas as vantagens dos terroristas na Guiné. Mas o Governo Zâmbia não regateava apoios à subversão. À semelhança, aliás, de alguns lobbys norte-americanos, como o American Comitte for Africa

Quem tocava no Caminho de Ferro de Benguela era a UNITA, o que não convinha nada à Zâmbia, um país de hinterland com acesso ao mar bloqueado. Isso dava-nos um grande trunfo sobre o Kaunda. É por isso que chamei à guerra subversiva uma guerra suja: cada um dos lados combatia com manhas e artimanhas. 

Manuel de Lucena: 

Nesse sentido, o acordo com a UNITA revestía-se de um carácter eminentemente prático; quanto muito implicaria uma integração de quadros dirigentes daquele movimento na administração portuguesa. É isso? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, é mais ou menos isso. 

Luís Salgado de Matos: 

Passando agora para a Guiné (...)

(Continua em próximo poste)

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Notas dos entrevistadores:

1 José Manuel Bettencourt Rodrigues (n. 1918): Oficial de Infantaria. Ministro do Exército (1968-70). Comandante da Zona Militar Leste de Angola (1971-73). Sucedeu a Spínola como governador da Guiné (1973-74). 

(2) José Freire Antunes, A Guerra de África, 1° vo1. Lisboa; Círculo de Leitores, 1996. 

(Revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, para efeitos de publicação neste blogue: LG)

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Nota do editor:

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25189: Notas de leitura (1668): "Amílcar Cabral e o Fim do Império", por António Duarte Silva; Temas e Debates, 2024 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Impõe-se um esclarecimento, antes de mais, este texto que ponho à vossa consideração seguiu igualmente para alguns órgãos da imprensa regional, entendi que tinha aqui pleno cabimento fazer referência, nos mesmissimos termos, de um livro que, estou certo e seguro, durará décadas até que venha uma outra investigação tão potente de um olhar diferente, talvez mais original. Há livros assim, como a biografia política de Salazar, de Filipe Ribeiro Meneses, demorará muito tempo investigar-se mais e melhor, como a biografia de Hitler, da autoria de Ian Kershaw, ou a de Churchill, de Martin Gilbert. Mas quanto a biografias de Amílcar Cabral, cometeria a mais grosseira injustiça não referir outros trabalhos como o livro premiado de Julião Soares Sousa, as biografias de António Tomás, Oscar Oramas, ou as Memórias de Aristides Pereira e Luís Cabral, não esquecendo uma obra de consulta obrigatória de Leopoldo Amado, as entrevistas que fez para o livro de Aristides Pereira intitulado "O Meu Testemunho".

Um abraço do
Mário



Aqui se revela o maior feito revolucionário de Amílcar Cabral

Mário Beja Santos


Publicado no ano do centenário do nascimento de Amílcar Cabral, temos finalmente uma biografia escrita por um investigador português que é simultaneamente um livro de história, de política e de direito, em torno de um líder revolucionário africano que criou o PAIGC, que deu voz aos movimentos nacionalistas africanos de língua portuguesa nos areópagos internacionais, admirado pelo seu pensamento original, pelos seus dotes diplomáticos e como estratega militar. O seu nome está associado à construção de duas nações, à renovação do pensamento revolucionário à escala mundial e ao determinante contributo que deu à queda da ditadura e à descolonização portuguesa: "Amílcar Cabral e o Fim do Império", por António Duarte Silva, Temas e Debates, 2024.

Devo fazer uma declaração de interesse: o autor honra-me com a sua amizade desde longa data, fui sentindo, pelos anos fora, como esta escrita lhe ia pulsando da investigação, credora de um olhar completamente distinto de outras obras de cariz biográfico.

 Posso afirmar, sem a mínima hesitação, que se trata de uma investigação memorável, tem uma moldura biográfica tão distinta que põe esta obra ao nível dos ensaios biográficos que resistem aos caprichos do tempo. O autor tem um currículo firmado, de grande qualidade científica, que inevitavelmente o catapultou para este exercício que comporta uma conclusão que certamente assombrará muitos leitores: ao delinear um modelo praticamente idêntico numa colónia em guerra fazer uma consulta popular que culminaria numa declaração unilateral de independência, nunca Cabral imaginou que tal processo iria, a breve trecho, escancarar as portas à descolonização portuguesa. Como o próprio autor declara:

“Concluo que a declaração unilateral de independência do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, como ato e prova da soberania e da autodeterminação interna e externa, foi, pelo seu êxito e impacto no fim do colonialismo português e apesar de formalmente posterior ao seu assassinato, o maior feito revolucionário de Amílcar Cabral.”

É um longo itinerário discursivo onde cabem as primeiras reuniões dos movimentos unitários contra o colonialismo português, a reunião de Bissau em setembro de 1959, os primeiros opúsculos e memorandos, como o PAI/PAIGC se foi afirmando à escala internacional, a preparação da luta e os apoios à formação de quadros, os primeiros relacionamentos com a ONU, a consolidação do pensamento ideológico (a constituição da vanguarda, o papel da pequena burguesia e da massa camponesa); a convulsão no Sul da Guiné, a partir do segundo semestre de 1966, a Operação Tridente, o Congresso de Cassacá, o crescimento imparável da guerrilha, os assentamentos em território colonial, o apoio cubano, Schulz, Spínola; a formulação de Cabral de que a luta de libertação nacional é um processo cultural, libertador, um regresso à identidade; as preocupações de Cabral em estabelecer pontes para a organização de um quadro jurídico que levasse à aceitação internacional, uma gestação que preludia a decisão de tomar a iniciativa de fazer uma declaração unilateral de independência; o reconhecimento de Spínola de que não se podia ganhar militarmente a guerra e a proposta de medidas que os órgãos de soberania recusaram; a ofensiva político-diplomática culmina em 1972 com a visita da missão especial da ONU, em Abril, a eleição da Assembleia Nacional Popular, a última tentativa de Spínola de negociar um entendimento, recusa de Marcello Caetano; e chegamos ao assassinato do líder revolucionário e o autor observa: 

“O PAIGC ficou sem cabeça, pois não havia ninguém capaz de o substituir, especialmente na discussão de ideias, na definição de grandes objetivos e na diplomacia. Morto, Cabral deixava pronto o processo de independência da Guiné-Bissau, um programa mínimo conseguido, um programa maior para aplicar e uma unidade orgânica com Cabo Verde por concluir.”

O autor disseca os antecedentes de declarações unilaterais de independência e como Cabral foi preparando uma recetiva atmosfera internacional. Em 1972, obtém apoio soviético para deter uma arma que leve a guerra a um patamar mais elevado – os mísseis terra-ar, que farão destruições a partir de março de 1973, e deixaram as forças portuguesas em polvorosa. 

Numa reunião de chefias em 8 de junho com o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, tomou-se a decisão de retrair o dispositivo português, o objetivo era consolidar um reduto que pudesse garantir uma solução política. 

“Em reunião com Costa Gomes e os ministros da Defesa, do Ultramar e da Marinha, Marcello Caetano pôs a hipótese de preparação a retirada progressiva das tropas, para não prolongar um sacrifício inútil, designando um oficial-general para liquidar a nossa presença, ao que Costa Gomes terá retorquido ser possível a defesa militar enquanto não aparecesse a aviação.”

E temos o legado de Cabral: o II Congresso do PAIGC (julho de 1973), a cerimónia no Boé, em 24 de setembro, a proclamação da Constituição, a decisiva resolução 3061 da ONU, de 3 de novembro, a admissão da Organização da Unidade Africana, também em novembro; o acordo de Argel, a 26 de agosto de 1974; as iniciativas para a descolonização e independência de Cabo Verde, e a assunção da nova república; e o caminho para o desastre da unidade Guiné-Cabo Verde, a governação de Cabral, o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, a cisão partidária.

“O Estado da Guiné-Bissau nasceu frágil e rapidamente entrou em colapso. Bissau tornou-se uma cidade-Estado e devorou a luta de libertação nacional. A revisão constitucional de 1980, destinada a consolidar a unidade Guiné-Cabo Verde, trouxe o fim do regime. No início da década de 1990, ambas as Repúblicas transitaram para a democracia representativa e pluralista. Em 1998, uma rebelião militar originou uma guerra civil e a Guiné-Bissau derivou para Estado-falhado. Sob a tutela das FARP, o PAIGC manteve-se no poder. Assumira-se sucessivamente como um partido político autónomo, binacional e clandestino, um movimento de libertação nacional, um Partido-Estado, a força dirigente da sociedade, um partido nacional, o partido único e um partido político democrático. Embora com sobreposição destas diferentes naturezas, estatutos e funções, ainda sobrevive; não passa de uma mescla, dotada de uma sigla antiquada, equívoca e desgastada. Em Cabo Verde foi substituído por um partido herdeiro e novo, o PAICV.

Com Amílcar Cabral, seu ideólogo e líder, o PAIGC ficará na história como o movimento de libertação nacional que alcançou a independência associada da Guiné-Bissau e de Cabo Verde que contribuiu decisivamente para o fim do império colonial português. Política, diplomática e juridicamente, o momento transcendente foi a declaração unilateral de independência da Guiné-Bissau, o maior feito revolucionário de Amílcar Cabral, fundador do PAI primordial e PAI das Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e Cabo Verde, pelas quais deu a vida.”


De leitura obrigatória, documento da maior exigência para a consolidação das relações luso-guineenses, devia ficar nas mãos de todos os investigadores de estudos africanos em Portugal e na Guiné-Bissau, e ser alvo de estudo continuo dos estabelecimentos escolares da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Tenho sérias dúvidas que esta abordagem venha a ser ultrapassada nas próximas décadas.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25176: Notas de leitura (1667): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (12) (Mário Beja Santos)