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quarta-feira, 29 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21208: Os nossos regressos (37): O pessoal do Comando e CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968 / 70) chegou a Lisboa, no T/T Carvalho Araújo, a 26 de junho de 1970 (Fernando Calado)

I. Mensagem de Fernando Calado (ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70) [, na foto ao lado, em Brá, no início da comissão, é o primeiro à direita, acompanhado do nosso saudoso João Rocha, 1955-2018]

Data:  segunda, 27/07/2020 à(s) 16:00

Assunto: Regresso da guerra na Guiné

Caro amigo,


Relativamente à data da chegada a Lisboa, a bordo do "Carvalho Araujo", da CCS do BCaç 2852, esclareço seguinte  (*):

1- A data referida de 19.07.70 está registada no único documento que anexei e que me foi  entregue no dia da chegada em Abrantes (**). É referido ainda que o documento substitui a caderneta militar e dele consta a passagem à disponibilidade no dia seguinte. Tanto quanto me lembro os oficiais milicianos não tinham caderneta militar.

2- Naturalmente que fui sensível às dúvidas levantadas e consultei dois  camaradas e amigos que vieram comigo no barco e ainda detentores de caderneta militar onde foram registadas as datas de partida  e de chegada do "Carvalho Araújo#. Refiro-me ao Furriel Miliciano de Transmissões Sérgio Fernandes Velho e ao Furriel Miliciano do Pelotão de Sapadores José Manuel Amaral Soares.

3- Na verdade aqueles registos referem que o barco que transportou a nossa companhia, partiu de Bissau em 16.06.70 e chegou a Lisboa em 25.06.70.

Já agora a companhia saiu de Bambadinca para Bissau via Xime [, em LDG,] , no dia 08.06.70, de acordo com o registo que consta da colectânea de documentos reservados da autoria do Furriel Miliciano José Duarte Martins Pinto dos Santos.

4- Assim, apresento as minhas desculpas pela informação errada, que resultou provavelmente de um lapso de quem há 50 anos preencheu o documento.

Um grande abraço

Fernando Calado

II. Comentário do editor:

 Consultada a história da Unidade, em formato de papel, lê-se a seguinte informação sucinta (HU - Cap Ii - Pág. 153):

(...) "No dia 29 e 31 de maio [de 1970] chegaram as forlas do BART 2917, começando-se assim a sobreposição. Durante este período, para que as novas companhias [CART 2714, Mansambo; CART 2715, Ximee CART 2716, Xitole] ficassem a conhecer as suas zonas de ação, realizaram-se várias ações.

"Em 8 de junho de 1970, o BCAÇ2852 deixou o Setor L-1, indo para Bissau, aguardando embarque para a Metrópole".

A História da Unidade acaba com o resumo, de 4 páginas, dos "factos e feitos mais importantes do batalhão" que talvez valha a pena, um dia, publicar aqui no blogue. Fica ao cuidado do Fernando Calado...

________________

Notas do editor: 


(*) Último poste da série > 25 de julho de  2020 > Guiné 61/74 - P21196: Os nossos regressos (37): Comando e CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70): foi há 50 anos, no T/T Carvalho Araújo, com algumas pequenas peripécias... (Fernando Calado)


(**) Vd. poste de 19 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21185: Efemérides (330): Faz hoje 50 anos que regressou, do CTIG, o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (Fernando Calado)

sábado, 25 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21196: Os nossos regressos (36): Comando e CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70): foi há 50 anos, no T/T Carvalho Araújo, com algumas pequenas peripécias... (Fernando Calado)


Abrantes > RI 2 > s/d (junho ou julho de 1970) > O Otacílio Luz Henriques, ex-1º cabo bate-chapas, do pelotão de manutenção comandado pelo alf mil Ismael Augusto, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70).

Foto: © Otacílio Luz Henriques (2013). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)



O T/T "Carvalho Araújo", propriedade da Empresa Onsulana de Navegação. Tinha lotação para 354 passageiros. Foi abatido em 1973. Imagem extraída do sítio "Navios porugueses", que deixou de estare dispponíevÇ. estava alojada no Sapo.pt.  



Fernando Calado
1. O Fernando Calado, ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) telefonou-me, no passado dia 19,  da praia de Monte Gordo, a propósito da data do regresso a casa do pessoal  da CCS/BCAÇ 2852 (*).

Disse-me que não ia a Monte Gordo há maus de 10 anos, e que a praia  estava agora às moscas, sem veraneantes: fora cá a passar uns dias, com a sua querida Rosa (cuja “Casa do Alentejo” está a sofrer com a presente crise…), acompanhados de um casal amigo.

Sem poder consultar outros elementos que têm no seu arquivo, quis-me dar uma explicação sobre a data que, para ele, é "a do regresso a Portugal, 19 de julho de 1970", a bordo  do velho T/T "Carvalho Araújo”, já em fim de vida.  Teria sido também a data em que passou à disponibilidade, conforme documento publicado no poste P21185 (*)


Ainda há dias ele comemorara a efeméride dos 50 anos do regresso a Lisboa, em almoço com mais dois velhos camaradas e amigos desse tempo de Bambadinca: o Ismael Augusto, o ex-alf mil do pelotão de manutenção da CCS (que, em 1970, ficou em Bissau, a chefiar a comissão liquidatária, tendo regressado só em setembro de 1970) e ainda  o José Carlos Lopes, ex-fur mil de reabastecimentos (Os três são membros da nossa Tabanca Grande.)


O Fernando Calado fiz que, "logo nesse dia 19 de julho de 1970, ainda foi a Abrantes ao RI 2, com mais um camarada, no carro do amigo, posto à disposição pelo pai"… Chegaram lá, e trouxeram o papel, da passagem à disponibilidade,  com o carimbo, regressaram a Lisboa de tarde, com o carro "na mecha”, na velha estrada nacional Lisboa-Abrantes. Ainda nesse dia esteva com a namorada, a Rosa.

Segundo eu apurei depois da conversa ao telefone, pela consulta do calendário de 1970.  esse dia, 19 de julho,  era domingo. 


Parece que, nos registos de arquivo, referidos em comentários ao poste P21185 (*)  a partida do "Carvalho Araújo", com o comando e CCS / BCAÇ 2852 e ainda com a CCAÇ 2404, do mesmo Batalhão, foi em junho (16, com a chegada a 25)  e não em julho.  Em 20 de julho de 1970, o "Carvalho Araújo" já estava a desembarcar novas tropas em Bissau,,,


Parece, pois,  haver, da parte do Fernando Calado alguma confusão de datas. Talvez os camaradas da CCS / BCAÇ 2852 e  da CCAÇ 2404 / BCAÇ 2852 (Teixeira PintoBinar e Mansambo, 1968/70), que viajaram juntos, na mesma data, no T/T "Carvalho Araújo", possam acrescentar algo mais sobre o assunto,. 



Fernando Teixeira
Por exemplo, o Fernando Maria Neves Teixeira, ex-1.º Cabo Aux-Enfermeiro da CCAÇ 2404, membro da nossa Tabanca Grande, diz-nos que desembarcou em Lisboa em 25 de junho de 1970 (**). 

Esta CCAÇ 2404 passou por Mansambo e fez connosco, CCAÇ 12, algumas operações do Setor L1.

Temos fotos desse regresso (e inclusive da ida do pessoal  a Abrantes, ao RI 2, mas não temos datas precisas na legendas...), do álbum do Otacílio Luz Henriques, ex-1º cabo bate-chapas, que pertencia ao pelotão de manutenção.  comandado pelo alf mil Ismael Augusto, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (***)


2. Independentemente do "rigor das datas", o Fernando Calado pareceu-me ter o "filme do regresso" no T/T “Carvalho Araújo”  bem  gravado na memória, na conversa que tivemos ao telefone… 

Por uma razão muito simples: ele foi nomeado, pelo capitão de bandeira, como "o comandante das tropas embarcadas", por ser "o oficial mais antigo",,, 

Explicação dada pelo Fernando Calado: não havia oficiais superiores do comando do batalhão nem o capitão da CCS, já que o Spínola tinha "decapitado" o comando e a CCS do BCAC 2852… Havia um tenente, mas não era operacional, era SGE, o nosso conhecido, açoriano, Manuel Antunes Pinheiro, o chefe de secretaria do comando do BCAÇ 2852. 


O que importa agora é relembrar alguns aspetos desse regresso a Lisboa. Enfim, terá havido alguns peripécias, que merecem ser partilhadas.

O Fernando Calado, no dia da partida do T/T "Carvalho Araújo" , esteve muito atarefado com as diligências e as burocracias do embarque, pelo que nem sequer  tivera tempo de almoçar a bordo. O capitão do navio, pronto a partir,  deu-lhe autorização para "em vinte minutos, meia hora, no máximo" ir ao “Pelicano”, ali ao lado, comer qualquer coisa: ainda se lembra do prato que ele escolheu e de que gostava muito, "um bife de gazela com batatas fritas"...


A caminho de Lisboa, fizeram uma paragem no Funchal, e dois camaradas que ficaram em terra a curtir uma “cardina”… Feita a recontagem do pessoal embarcado, faltavam dois militares… Foram encontrados a dormitar numa esplanada…
Outra peripécia: o Fernando Calado lembra-se ainda que teve de “acalmar” vários militares da CCS que vieram com blenorragias (“esquentamentos”),  mal curadas... Alguns eram casados, um inclusive tinha-se casado por procuração… O drama era saber o que é que iriam dizer às esposas que os esperavam...

Alguns, mais desesperados, batiam com os punhos na cabeça: “Porque é que não eu fiquei em Bissau?!”... O Fernando arranjou uma solução diplomática mas salomónica: quando chegassem a casa, os “entrapados” contavam a verdade, e ficavam à espera que a penicilina acabasse por surtir efeito… Em suma, não era caso para se atirarem ao mar…

Enfim, ele prometei, no regresso a Lisboa, passar ao papel estas e outras memórias dessa algo rocambolesca e pícara viagem que teria demorado "cinco dias" (,. ou nivcem segundo o Fernando Teixeira)...


Aqui fica um primeiro resumo. O Fernando Calado, por certo, irá acrescentar umdia destes dias,  o que bem entender. (****)

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Notas do editor:



(**) Vd. poste de 8 de junho de  2018 > Guiné 61/74 - P18724: Tabanca Grande (464): Fernando Maria Neves Teixeira, ex-1.º Cabo Aux-Enfermeiro da CCAÇ 2404/BCAÇ 2852, Teixeira Pinto, Binar e Mansambo, 1968/70

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20887: Efemérides (325): De Santa Margarida ao Olossato - O Testemunho vivo de um soldado (Paulo Salgado, ex-Alf Mil Op Esp, CCAV 2721)



Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > Rio Farim > 2006 > Cambança do rio..."A bos portuguisis? Pai di nôs!"...



Guiné-Bissau > Região do Oio > Olossato > 2006 > Rio Olossato > O Paulo Salgado e o Moura Marques, 35 anos depois...


Fotos (e legendas): © Paulo Salgado (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado, [ex-Alf Mil Op Esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro (, o mais recente,) "Milando ou Andanças por África" (Torre de Moncorvo: Lema d'Origem, 2019) com data de 19 de Abril de 2020:

Caros Editores, Camaradas,
Em anexo, a carta/mensagem que o Moura Marques me remeteu e que eu gostaria que fosse publicada - com a sua autorização, claro - uma vez que partimos a 4.4.1970.
E há dias, nesse dia, eu escrevi um texto e referi esta intenção de a publicar. [1]
Recordo que há texto no blogue sobre a ida nossa (minha mulher, Moura Marque e eu) e uma foto. Essa estadia do Moura Marques é de 2006.

Obrigado e um abraço camarada.
Paulo Salgado


De Santa Margarida ao Olossato
O Testemunho vivo de um soldado

O Moura Marques é meu Amigo (com letras maiúsculas) – foi 1.º Cabo, que eu promovi, do meu grupo de combate, pois logo ali vi, eu aspirante recente, um homem de costas direitas. Na Guerra, na Guiné, melhor, já em Santa Margarida, e depois no Olossato, e depois em Nhacra, e depois… sempre. A correspondência que temos trocado, os encontros da CCAV 2721, que vamos fazendo, as visitas que ele me fez a Coimbra (estava eu no meu local de trabalho, nos Hospitais da Universidade de Coimbra), a Moncorvo (onde a minha mulher e eu vimos frequentemente, às nossas raízes), as visitas que fizemos a sua casa em Tires, o encontro que tivemos em Bissau, aonde ele foi em 2006, estando nós em Bissau, em acção de cooperação – momentos que fortaleceram a admiração e respeito recíprocos.[2] Às apresentações dos meus livros na Associação 25 de Abril, foi sempre.

Da última vez que o visitámos em Tires (aquando do funeral de outro Amigo nosso, o grande jornalista e poeta Rogério Rodrigues, em Outubro de 2019) fiquei muito satisfeito ao ver a sua biblioteca – mais de duas centenas de obras: guerra colonial, 1.ª GG, 2.ª GG, Guerra Civil de Espanha, romances, alguns ensaios… bravo, meu Amigo, prova que sempre soubeste o que andas a fazer neste mundo. De resto, uma informação mais. Foi motorista de uma CERCI, carregou rapazes e raparigas e conduzia-os a casa e ao centro – um humanista, crede. No dia 4 de Abril último, como habitualmente, telefonámo-nos. Era o 50.º ano da nossa partida, de Santa Margarida para a Guiné. Nesse momento, referiu-me que iria mandar-me uma carta a propósito desta deslocação: a nossa ida para a Guerra.

Devidamente autorizado pelo autor – o meu Amigo Moura Marques – vou pedir aos editores que publiquem a carta. Apenas a “traduzi” para letra mais legível, sem, contudo, fugir da sua forma, com respeito pelo direito autoral. Esta carta é um monumento – na minha opinião. Aliás, guardo as suas cartas numa caixa, como guardo outras de familiares e amigos em outras caixas – numa época em que o registo epistolar se reduz aos computadores… (ainda bem que temos e lemos as saborosas cartas trocadas por Sena e Sofia… e outras…).


Ao ler esta carta, crede, fiquei emocionado, muito emocionado. Traduz sensações e sentimentos que compartilho…

Por isso, meus Caros camaradas Editores, vos peço que a publiqueis.


Guiné-Bissau > Região do Oio > Olossato > 2006 > Rio Olossato > O Paulo Salgado e o Moura Marques, 35 anos depois...

**********

Aqui vai.


4/4/2020

Paulo Salgado. Meu alferes, meu amigo, meu irmão soldado, de há cinquenta anos.
Hoje foi um dia marcante para o resto das nossas vidas – 4/3/2020. A Companhia 2721 está de partida. Vou ler a minha memória tatuada [acho esta expressão profunda – opinião de quem reescreve a carta].
4 horas da manhã, toque de alvorada para tomar o café no refeitório.
5 da manhã, o Sr. capitão de cavalaria Francisco Vasco Gonçalves de Moura Borges fala na caserna aos seus soldados, porque só havia três militares na companhia, ele, e Severo e Amaro, os dois 2.ºs sargentos.
Palavras do capitão Moura Borges: bem, vamos partir para a Guiné, porque é um dever nosso defender o património que os nossos antepassados que partiram em naus e caravelas por esses mares fora e descobriram e conquistaram e colonizaram vários territórios pelo Mundo fora. Alguém sabe qual foi a primeira descoberta dos portugueses? Como ninguém se chegou à frente, o recente promovido cabo Moura Marques levanta o braço e respondeu, foi a Madeira, meu capitão. O cabo também sabia o ano da descoberta, mas não disse.
Moura Borges fala do treino operacional mesmo que o mesmo se prolongasse por mais tempo pouco adiantava.
Palavras do capitão Moura Borges: porque vocês só vão ser bons soldados quando morrerem quatro ou cinco.
Ironia do destino: Moura Borges foi o primeiro a tombar.
6 horas da manhã. Entrar nas berliets para a estação de Malpique para o comboio que nos despeja no cais de Alcântara.

No cais o cabo Moura Marques descobre que aquele barco velho e ferrugento já tinha levado o pai dele para os Açores, Ilha Terceira, local Praia da Vitória, em 1942. Só que ele viajou como um turista em plena segunda grande guerra mundial. O barco era misto de passageiros e carga. Como só viajava um pelotão de metralhadoras pesadas e alguns civis, nada tinha a ver com o Carvalho Araújo do dia 4/4/1970, com três companhias mais uns quantos de rendição individual, foi uma viagem tipo século XIX.
A 2721 teve direito a algumas tarimbas toscas feitas à pressa em tábuas de pinho, mas nem todos os homens da 2721 tiveram cama, uns trinta no chão, mas as companhias 2724 e 2725 não, foram para o porão do gado que vinha dos Açores para o Continente. Esses soldados chegaram a Bissau em péssimo estado físico e psicológico.
11 horas da manhã. O Carvalho Araújo levanta ferro do Cais de Alcântara; a cena dos familiares é dramática e alguns camaradas choram como crianças. O barco sai a barra do Tejo e volta passada meia hora ao Tejo, entra alguém a bordo, volta a sair e volta a entrar e só às 4 da tarde se faz ao mar, disseram que andava a acertar agulhas…

Quando o cabo Espichel deixou de se ver, saltou uma equipa de tripulantes com tábuas de pinho a pregá-las em caneira da proa para a ré, uma de cada lado. Colocaram dois motores a tirar água do mar que passava pelas caneiras e voltava ao mar depois da obra feita. O chefe da brigada disse para alguns soldados que estavam na coberta, o cabo Moura Marques era um deles. O homem disse: a da direita é para cagar, a da esquerda é para lavar a louça, pois tinham-nos dado um prato e um copo. A colher e o garfo já nós tínhamos no quite da campanha.
E é aqui que nasce a saga das naus e caravelas e pleno século XX, a cena é dramática porque a grande maioria não sabe que uma caneira tem uma função e a outra é para lavar a louça, por isso muitos pratos e copos foram atirados ao mar mas logo aparecia alguém com uma caneta e um papel a tirar o número mecanográfico e o nome para o desgraçado pagar uma dúzia de pratos.

Dia 11/4, chegada a Bissau. Um mundo tão diferente, o calor, os cheiros, os africanos nos seus trajes típicos da sua cultura, a cidade cheia de brancos todos vestidos de verde porque também era a nossa cultura para dominar a outra milenar e dona daquele chão. Chegada ao campo de adidos em Brá, um autêntico campo de concentração, ficámos numas tendas na terra vermelha e dormíamos vestidos nos camuflados todos transpirados, só havia água entre as 4 da tarde e as 5 e dificilmente apanhava água para beber e tomar banho, as latrinas estavam atascadas até à porta, de fezes cobertas de por milhões de larvas. Nesses malditos dias, nunca tivemos uma refeição quente, só tivemos ração de combate para preparar o estômago a ela, pois durante as saídas ela se tornava mais saborosa.

Chegada ao Olossato. Logo no primeiro dia fui posto à prova pelo capitão Vargas, da CCAÇ 2402, com a equipa dos filhos da puta, no curral das vacas, uma noite inesquecível… No dia seguinte, fui apresentado a um soldado da 2402 pelo camarada Benjamim Marques, esse soldado tem o nome de Alberto Dias e trabalhou com o Benjamim no casino Estoril. Não conhecia o Alberto, mas conhecia o pai dele, era chefe dos varredores no Monte Estoril. Dias era a experiência, era a velhice, falou de Có, Mansabá e Olossato, e eu era só ouvidos. E quando começa a falar dos tempos de criança, aí eu descubro que ele e o Benjamim são conterrâneos, do Alentejo, Benjamim não gostava de ser alentejano, de Cascais sim. E bebemos mais três ou quatro cristais. Descobri que já havia dois soldados vermelhos no Olossato…

A povoação do Olossato tem gente muito pobre que vive do gado e da natureza, fiquei de boca aberta quando reparo na etnia balanta só de tanga a lavrar o chão da bolanha com uma pá de madeira, como em 1444 João Fernandes os viu pela primeira vez, pois julga-se que foi o primeiro a viajar por terras da Guiné. Ao fim de mais de quinhentos anos as culturas indígenas não tinham sido contaminadas pelos portugueses. Na minha cabeça fica um ponto de interrogação, este povo não se deixou colonizar ou a colonização foi um embuste, pois eu vi que a maioria dos guineenses não fala o português, talvez na ordem dos 80 por cento.

Primeiro patrulhamento a norte do rio Olossato, ao atravessar aquela ponte presa à margem direita por meio metro de cimento e ferro em resultado de uma carga explosiva no dia 2 de Julho de 1963 pela guerrilha. Logo mais à frente há milhares de invólucros de balas de vários anos de confrontos com o PAIGC, mais à frente saímos da mata e vimos uma serração toda queimada, os camiões já tinham árvores de certa dimensão, nascidas dentro dos chassis, mais à frente uma aldeia queimada. Voltámos a passar à estrada para o lado leste e mais invólucros, as árvores tinham cicatrizes da metralha, as palmeiras sem copa. Acordei para a realidade, pois estou na guerra.

Hoje só restam recordações, boas ou más, ao fim de cinquenta anos ainda me recordo dos vários e diferentes ataques, 2 de abelhas, 5 de malária, e 14 ao quartel fora as do mato do PAIGC.

Recordo-te Salgado, sempre, e mais quatro ou cinco camaradas.

Para ti e esposa Conceição um abraço.
Moura Marques
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Notas do editor:

[1] - 4 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20812: Efemérides (321): No dia 4 de Abril de 1970, saiu a CCAV 2721 do cais de Alcântara em direcção a Bissau (Paulo Salgado)

[2] - 20 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16622: Memória dos lugares (348): Olossato, com o Moura Marques, o Grão de Bico, a São... 35 anos depois (Paulo Salgado, ex-alf mil cav op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72; autor do livro "Guiné: crónicas de guerra e de amor", 2016)

Último poste da série de 17 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20865: Efemérides (324): 17 de Abril de 1968, dia negro para a CART 1689, a morte do Furriel Miliciano Belmiro João (Fernando Cepa, ex-Fur Mil Art)

sábado, 4 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20812: Efemérides (321): No dia 4 de Abril de 1970, saiu a CCAV 2721 do cais de Alcântara em direcção a Bissau (Paulo Salgado)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado, [ex-Alf Mil Op Esp,  CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro (, o mais recente,) "Milando ou Andanças por África"], com data de hoje, dia 4 de Abril de 2020, relembrando a partida da CCAV 2721 de Lisboa com destino à Guiné.


50 ANOS

No dia 4 de Abril de 1970, saiu a CCAV 2721 do cais de Alcântara em direcção a Bissau (como seria em tempos de Cais da Ribeira, quando embarcavam as naus e carracas e caravelas e galeões, e nela iam marinheiros e grumetes e soldados e pilotos e mestres e boticário e barbeiro e despenseiro e centenas de viajantes que ansiavam a riqueza lá longe, nas lonjuras da África e do Oriente?).

O navio TT Carvalho Araújo na Gare Marítimo de Alcântara
Foto: António Tavares

Durante a viagem de sete dias, no velho Carvalho Araújo (velho navio das viagens para os Açores e Madeira, carregando passageiros e vacas, recuperado para transporte de carne para canhão), os mesmo enjoos de mar que nos séculos XV, XVI, XVII e sempre, e as mesmas chatices nos porões: a monte, matando o tempo com as cartas, e com os olhares tristes postos nas famílias que ficaram.

Há um relato do cabo do meu Grupo de Combate, o Moura Marques1, desde a saída de Lisboa até ao Olossato. Vou pedir-lhe para o registar no nosso blogue, dentro de dias. Um texto notável.

Desejo para todos os camaradas, a vontade de sobreviver, a mesma vontade de sobreviver o melhor possível à presente luta pela vida, aquela vontade que nos fez regressar, e uma saudade aos que partiram, então, e ao longo dos tempos.

Hoje, deixo-vos um poema de Amílcar Cabral – um dos pensadores mais importantes da História da Humanidade (considerado o segundo maior líder mundial - o ideólogo das independências da Guiné-Bissau e Cabo Verde, que surge numa lista elaborada por historiadores para a BBC2). A minha homenagem ao Homem que quis e tentou por diversas vezes o diálogo com os governos de Salazar e de Caetano.

Leiamos este poema “NO FUNDO DE MIM MESMO” (In Antologia Poética da Guiné-Bissau Editorial Inquérito, 1990) – talvez muito nos diga agora, igualmente.
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[1] - O Moura Marques esteve comigo em Bissau em 2006. Como foi interessante a ida ao Olossato e reencontrar amigos da população; os miúdos, homens agora, e os mais velhos recordarem o que se passou.
[2] - Vide, por todos, https://www.cmjornal.pt/mundo/africa/detalhe/amilcar-cabral-considerado-o-segundo-maior-lider-mundial.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20693: Efemérides (319): O "Jornal do Exército", fundado em janeiro de 1960, faz 60 anos (Jorge Araújo)

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19218: Os nossos regressos (34): 21 de Novembro - o dia do regresso da Guiné… 48 anos depois (Carlos Pinheiro)

1. Em mensagem de hoje, 21 de Novembro de 2018, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), lembra a sua viagem de regresso e chegada a Lisboa neste dia, há 48 anos.


21 de Novembro - o dia do regresso da Guiné… 48 anos depois

A esta hora, às primeiras horas do dia 21 de Novembro de 1970, estava, aliás estávamos todos perfeitamente acordados a bordo do “CARVALHO ARAÚJO”, mais ou menos ao largo de Cascais, a prepararmo-nos para o assalto às casas de banho dos camarotes para, finalmente, tomarmos um banho após nove dias de mar alto desde Bissau até Cascais. Imagine-se a necessidade de nos apresentarmos de manhã em Lisboa, de cara lavada perante as nossas famílias e os nossos amigos, e as voltas que tivemos que dar para que isso fosse possível. Um banho, como se fosse a melhor coisa do mundo, e naquela noite foi mesmo a melhor coisa só suplantada com a chegada de manhã ao pé dos nossos familiares.

Carvalho Araújo, N/M da Empresa Insulana de Navegação. Tinha lotação para 354 passageiros. Foi abatido em 1973.
Imagem extraída de navios porugueses. Com a vénia devida.

O “CARVALHO ARAÚJO”, apesar de já estar no seu fim de vida naquela altura - esta foi uma das suas últimas viagens - foi um grande navio, o melhor de todos, que nos trouxe de África depois de 25 meses de comissão naquele pedaço de terra e água, mas mais água do que terra, encravado entre o Senegal e a Guiné Conakri.

Falar desse tempo não vem agora aqui ao caso. Há tantos livros publicados que, infelizmente pouca gente lê e por isso se sabe tão pouco daquele período de treze enormes anos que a juventude foi obrigada a cumprir lá longe, em África, e muitos nas piores condições, diria até em condições inimagináveis, para além daquela dezena de milhar cujos restos mortais por lá ficaram para sempre.

Tínhamos embarcado no dia 13 e logo alguns tripulantes nos avisavam que dado o mar picado do Golfo da Guiné, quando chegássemos ao mar da Madeira seria bem pior. Mas nós estávamos por tudo. Só queríamos que aqueles dias passassem depressa. No entanto quando chegámos ao mar da Madeira, tivemos um mar chão contra todas as previsões. Nem tudo podia ser mau.

Foram dias para esquecer. Não havia água disponível, o porão era talvez o sítio menos mau na medida em que o navio tinha andado muitos anos a transportar gado bovino dos Açores para o Continente e tinham-lhe adaptado um sistema de ar forçado nos porões para o gado não enjoar. Também foi bom para nós que nos contentávamos com pouco. Tinham-nos dado um prato à subida das escadas, para que tivéssemos direito à refeição que era comida onde era possível. Depois só tínhamos que lavar o dito prato, com água do mar, para a próxima refeição. A comida era do pior que se pode imaginar. Mas após ter feito o primeiro reconhecimento ao único sitio onde se vendia alguma coisa, tinha constatado que só havia cerveja e Coca-Cola com fartura e também bolachas baunilha. Mais nada. Portanto tudo o que foi aparecendo era comido, por vezes até com os olhos fechados, mas não havia alternativa. Houve porém uma excepção. No dia 19 o navio aportou ao Funchal, ao pôr-do-sol - um espectáculo inolvidável -, para meter água e nafta que na Guiné não havia e nesse dia ao jantar apresentaram-nos um peixe assado no forno com muito bom aspecto. Porém, fartos de comer mal, marcando também a nossa insatisfação pela comida que até aí nos tinha sido apresentada, nesse dia resolvemos ir jantar fora ao Funchal, com o resto do dinheiro que nos tinha sobrado da comissão.

Foi uma noite de festa porque já cheirava a Portugal e o degredo estava a acabar. Lembro-me perfeitamente, o “CARVALHO ARAÚJO” atracado ao Cais do Funchal ao lado dum paquete de luxo, o CHUSAN, penso que inglês, parecia uma casca de noz ao lado dum “cidade iluminada”. Mas não nos enganámos e à hora combinada lá estávamos de novo a bordo a caminho de casa.

A chegada a Lisboa foi de facto alegre mas ao mesmo tempo arrepiante quando nos pudemos aproximar dos nossos familiares que não víamos há mais de dois anos. São momentos indescritíveis onde as palavras nos faltam.

Depois foi embarcar numa camioneta para os Adidos, na Calçada da Ajuda e o espólio foi feito rapidamente.

Passado algum tempo já estava em casa da minha tia Cândida na Avenida 24 de Julho, mesmo em frente à Estação do Cais do Sodré, a voltar a admirar o Tejo de que também tinha muitas saudades.

A minha mãe estava a acabar o almoço - um cozido à portuguesa como deve ser, e o apetite era bastante, só suplantado pelas saudades que se iam matando aos poucos.

Primeiro a sopa do cozido como mandam as regras, depois o cozido propriamente dito. E lá vinha o respectivo arroz a acompanhar. Mas aí, quanto ao arroz, farto de tanta “vianda” da Guiné, disse que dispensava bem o arroz. Mas a minha mãe, com as palavras que só as mães saber dirigir aos filhos, lá me convenceu a provar o arroz e, de facto, estava tão bom que fiquei de novo freguês de arroz que eu pensava nunca mais comer dada a mistela que muitas vezes éramos obrigados a comer em Bissau.

Ainda fiquei uns dois dias em Lisboa a matar saudades e só depois é que viajei até à minha terra, Alcanena, para rever os amigos e outros familiares.

Nesse longínquo dia 21 de Novembro de 1970, o Almirante Américo Tomás foi a Alcanena, mais concretamente a Minde, inaugurar o Museu Roque Gameiro, acompanhado das mais altas entidades do país, da região e do concelho e, claro, de sua esposa a D. Gertrudes.

Mas nesse dia também aconteceu a invasão de Conakry pelas Forças Armadas Portuguesas comandadas pelo Comandante Alpoim Calvão a fim de libertar alguns militares portugueses presos naquele país. Foi uma operação secreta e de surpresa que não terá obtido o êxito planeado mas mesmo assim conseguiram um dos objectivos que foi a libertação dos presos.

Foi de facto um dia muito grande o dia 21 de Novembro de 1970.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14201: Os nossos regressos (33): Ficámos na Amura, a aguardar embarque no Uíge... Partimos para Lisboa em 30 de outubro de 1968 (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

sábado, 14 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18845: Bombolom XXII (Paulo Salgado): O desembarque das tropas em Cabo Delgado (1915) e no Pidgiguiti (1970)



T/T Carvalho Araújo a caminho da Guiné. A 26 de abril de 1970, avistámos à rè o  T/T Vera Cruz (a caminho de Angola ou Moçambique, presumivelmente).


Foto (e legenda): © António Tavares (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Paulo Salgado, ex-alf mil op esp. CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72


Bombolom III  (Paulo Salgado) (3) > O desembarque das tropas em Cabo Delgado (1915) e no Pidgiguiti (1970)



O desembarque do navio Zaire [1] decorreu num ambiente de estranha confusão a que os militares não estavam habituados, não obstante alguma desorganização nestas circunstâncias, por falta de meios. Durante a viagem, sede, fome e miséria no bojo do Zaire foram uma constante. Depois, do barco até à praia, os soldados sentiram o miserando esforço dos indígenas para carregar às costas os militares. Sim, às costas.

Tenho tido oportunidade de aprofundar os meus conhecimentos, com várias leituras, sobre a primeira grande guerra em África [2]. Estava-se na primeira vintena de anos do século XX, carregada de episódios políticos, nacionais e internacionais, alguns deles relativos às posições assumidas por ingleses e alemães que, no fundo, pretendiam, juntamente com outras potências (França, Itália, Bélgica…), dominar o continente africano, com prejuízo para Portugal, afastando-o, por vezes com maneiras cordatas, diplomáticas, todavia frequentemente pela coação política. Recorde-se o vexame do Ultimato inglês [3], ainda no século XIX, que pensadores e escritores da época apelidaram de enorme afronta do aliado tradicional (por exemplo, Guerra Junqueiro).

Passo, então, a transcrever os seguintes excertos da obra indicada em rodapé (ver nota 2):

«…quando, já noite cerrada, cheguei ao local que o Quartel-general tinha destinado ao estacionamento do meu batalhão [na zona do Rovuma, perto de Porto Amélia - nota deste escriba], encontrei-me numa pequena clareira, raspada à pressa no seio da floresta, sem ar e sem luz, dando-me a impressão do poço Poe [4] aberto na solidão daquele mato…foi ali o nosso primeiro bivaque [5]

Prossegue um pouco mais adiante a descrição pessoal deste ilustrado combatente à chegada ao Norte de Moçambique, em 1915:

«Parece que o Quartel-general ignorava a viagem que há um longo mês vínhamos fazendo em direcção a estas paragens».

Ao ler este precioso depoimento pessoal, de que transcrevi dois breves excertos, decerto escrito em circunstâncias adversas, não posso deixar de referir a viagem atribulada do Carvalho Araújo, nome do bravo marujo, que transportou para o Teatro de Operações da Guiné, na sua primeira viagem [6] após restauro e adaptação a transporte de tropas.

Após a IAO [7], e cumpridas as férias antes do embarque, ia a malta de barco. Ao longo de sete dias, a “carne para canhão” esteve sujeita às miserandas condições de habitação do navio. Sobretudo os soldados viajavam no bojo do barco, em condições deploráveis, enquanto os graduados tinham algo de mais positivo lá no alto.

Sou muito claro: só a necessidade e a obrigação de orientar as tropas nos faziam descer ao fundo, aos graduados, aos porões, onde se jogava às cartas e se vomitava imenso... Uma miséria no ano de 1970!

Igualmente, chegados a Brá – quem lá passou, sabe como era! – distribuíram-nos tendas esburacadas e colchões meio podres, e atacados pela mosquitada. Depois, já no mato, a sobreposição com os “velhinhos”, uma confusão dos diabos…

Como vedes, camaradas, as situações vividas em guerra na África estavam separadas por cerca de cinquenta anos e não houve grandes melhorias. Diferente e melhor na guerra colonial, pois que estavam garantidos na Guiné e, creio, nos restantes TO, o serviço postal militar (SPM), a distribuição, precária mas existente, de víveres e outros produtos, a electricidade fabricada por geradores, o apoio clínico, o apoio pastoral, o apoio dos “héli-canhões” ou dos “fiats”…

Até à próxima crónica do meu bombolom.

Paulo Salgado – 30.6.2018
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Notas do autor:

[1] Foram vários os navios utilizados no transporte de tropas para o norte de Moçambique e sul de Angola durante as operações havidas na Primeira Grande Guerra, por força do confronto entre Inglaterra e Alemanha, e na qual Portugal participou, dada a velha aliança com os ingleses. De acordo com o Capitão-de-Mar-e-Guerra, José António Rodrigues Pereira (Revista Militar, nºs 2551 e 2552), mencionam-se os seguintes navios envolvidos nesta guerra no norte de Moçambique, 1914-1916: Moçambique, Durhan Castle, Beira, Cazengo, Ambaca…

[2] Por exemplo a leitura do livro Epopeia Maldita – o Drama da Guerra de África, de A. Cértima, publicado em 1924, como já referira na crónica anterior do meu Bombolom.

[3] Como é sabido, o governo inglês exigiu a Portugal, em memorando, no ano de 1890, a retirada das forças portuguesas que, por direito, tinham ocupado o território compreendido entre Angola e Moçambique. O governo português e o rei foram muito atacados pelos republicanos. Entre outros intelectuais, Guerra Junqueiro vituperou a concessão do governo e do rei D. Carlos na sua obra, direi patriótica e panfletária, Finis Patriae, onde escreveu versos de revolta, de que ora se recorda «Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente// Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?» É de recordar, no entanto, que as diversas tomadas de posição por republicanos pouco interesse prático revelaram, como defendia Eça de Queirós.

[4] É uma referência do autor do livro citado (ver nota 2) ao conto ‘O Poço e o Pêndulo’, de Edgar Alan Poe, que fala, como sabeis, de um condenado que sente a sensação horrível de estar preso numa masmorra, num espaço claustrofóbico.

[5] Bivaque designa um acampamento rudimentar para passar a noite na natureza, vigiando. Trata-se de uma expressão muito utilizada nas campanhas militares, herdada da palavra francesa bivouac. Bivaque é também a designação de boné, utilizado por militares ou paramilitares.

[6] Este navio fazia a carreira dos Açores, transportando pessoas e gado dos Açores para o Continente; já meio consumido pelo uso e pelo tempo, foi, por necessidade, transformado em navio transportador de militares para a Guiné. Nele seguiu a CCAV 2721, onde este escrevinhador estava incluído, e duas companhias e uma secção de morteiros.

[7] No Arquivo do Centro de Documentação do 25 de Abril – Universidade de Coimbra, há um texto – que eu conheça, pois haverá outros – sobre a mobilização, a IAO – instrução de aperfeiçoamento militar, que, na Guiné passou a fazer-se, creio eu, a partir de 1972, e que refere o que passo a transcrever:

«O militar era um mobilizado, ia a casa, despedia-se da família, fazia umas asneiras por conta, arranjava umas correspondentes para lhe escreverem, ou umas madrinhas de guerra, e voltava à unidade mobilizadora para daí iniciar verdadeiramente a viagem. Neste regresso faltavam uns quantos camaradas, que tinham decidido dar o salto para o estrangeiro ou baixado ao hospital com uma doença mesmo a calhar, mas os que restavam formavam-se de novo em parada no quartel, com as malas, e embarcavam nas viaturas militares para a estação de caminho-de-ferro mais próxima».

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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de junho de 2018  Guiné 61/74 - P18757: Bombolom III (Paulo Salgado) (2): As guerras - a primeira e a colonial

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18561: Efemérides (276): No dia 24 de Abril completaram-se 48 anos após o embarque do BCAÇ 2912, no Cais de Alcântara, com destino à Guiné (António Tavares, ex-Fur Mil SAM)

Navio T/T Carvalho Araújo


1. Mensagem do nosso camarada António Tavares (ex-Fur Mil SAM da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), datada de 24 de Abril de 2018:

Camarigos,
Esta fotografia faz hoje (24.Abril.2018) precisamente 48 anos. Nela, vemos militares do BCaç 2912 que estavam no Cais Marítimo de Alcântara a aguardar a hora de embarque.

Chegámos pelas 06H30 ao cais. Aí tomámos o pequeno-almoço junto ao navio. Depois das cerimónias de despedida subimos o portaló da embarcação. O almoço foi servido a bordo.

António Tavares



 Cozinha de campanha

Embarque do BCAÇ 2912 - Lisboa, 24 de Abril de 1970

O CARVALHO ARAUJO zarpou às 12H00, certas, de Lisboa, rumo ao cais de Pindjiguitti. Para trás ficavam os acenos e gritos lancinantes dos familiares dos militares que se deslocaram ao cais. Algumas famílias viram partir os seus queridos familiares e nunca mais os viram vivos ou mortos. Eu parti só, naturalmente com o pensamento na minha família. Do convés do navio via a Tapada da Ajuda, onde viviam alguns meus familiares. Retenho a imagem de uma cabina telefónica no cais. Interroguei-me se telefonava ou não, a despedir-me. Não telefonei e de bordo enviei um telegrama com os dizeres tipo “chapa” em que somente mudava o nome do militar emitente da comunicação transmitida.

No dia 26 de Abril avistámos à nossa ré o navio VERA CRUZ. Enquanto os dois navios navegavam lado a lado as tropas saudaram-se mutuamente assim como os navios com os apitos da praxe. O Vera Cruz depressa nos ultrapassou devido à maior potência dos seus motores e velocidade de cruzeiro. Os Teatros de Operações do CTIGuiné e de Moçambique aguardavam os três batalhões e os militares individuais que seguiam nos dois barcos.

O Carvalho Araújo fica para trás do Vera Cruz (ao longe)

Após horas e horas de navegação e em alto mar tivemos a companhia de peixes voadores, alguns dos quais morreram na coberta do navio. À ré do CARVALHO ARAÚJO os golfinhos saudavam os militares e estes presenteavam os golfinhos com restos de comida. A cor azul e por vezes esverdeada das águas do mar e do céu fizeram-nos companhia durante muitas milhas náuticas. Experiências e vivências inesquecíveis para cada um dos militares.

Quando entrámos e navegávamos nas águas territoriais do TO do CTIGuiné tivemos a escolta da Lancha de Fiscalização Grande NRP 361, de nome “Lira”. No início da noite de 30 de Abril o navio T/T Carvalho Araújo terminava mais uma das muitas viagens de Lisboa - Guiné - Lisboa.

A Lancha Lira a navegar em águas territoriais do CTIGuiné

Um constante vaivém de navios entre estas duas cidades desde 1963 a 1974. Os militares transportados no CARVALHO ARAÚJO desembarcaram no cais de Pindjiguitti na manhã do dia 01 de Maio de 1970. A terra vermelha, e de clima tropical, caracteristicamente quente e húmido, recebia mais um contingente de tropas. Os guinéus cantavam e dançavam, dizendo: “periquito” vai no mato...

Em Portugal, o Dia da Liberdade viria após quatro anos transcorridos.

Cumprimentos,
António Tavares
Foz do Douro, Terça-feira 24 de Abril de 2018
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de Abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18558: Efemérides (275): O 25 de Abril de 1974... visto de Bissau, através de aerogramas enviados por Jorge Gameiro ( REP / ACAP / QG / CC) à sua esposa Ana Paula Gameiro e ao seu filhinho Nuno Gameiro... Documentação comprada no OLX, há 5 ou 6 anos (Carlos Mota Ribeiro, Maia) - Parte II

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P16017: Efemérides (221): Tempos passados ou como recuar a 24 de Abril de 1970, data de embarque do BCAÇ 2912 com destino à Guiné (António Tavares, ex-Fur Mil)

1. Mensagem do nosso camarada António Tavares (ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), datada de 24 de Abril de 2016


TEMPOS PASSADOS

Camarigos,
Na famosa fotografia "The Steerage", de Alfred Stieglitz (1907), vemos os abastados em cima e em baixo os outros.
Ao ver esta imagem imediatamente recuei a 24 de Abril de 1970, data de embarque, no navio T/T Carvalho Araújo, do BCaç 2912 rumo ao Comando Territorial Independente da Guiné. Viagem em que o militar se sentiu passageiro de classes.

The Steerage de Alfred Stieglitz (1907)

Passados 46 anos recordo as primeiras horas daquele dia ímpar.
O dia do começo das aventuras coloniais vivido por centenas de jovens com pouco mais de 21 anos.
O Batalhão partiu de Santa Margarida em comboio. Cerca das seis e trinta chega ao cais marítimo de Alcântara. O comboio entra no Porto de Lisboa e de imediato avistamos o navio que nos transportou até ao cais de Pindjiguiti. O navio, visto do cais, era enorme mas de certeza mais pequeno do que outros que já tinha visto.

 Lisboa - "Carvalho Araújo"

Depois de retiradas as bagagens individuais do comboio transportamo-las para o navio.
Tudo arrumado viemos tomar o pequeno-almoço no cais onde até uma cozinha de campanha nos aguardava para conforto do estômago.
Realizadas as cerimónias oficiais de despedida, no cais marítimo de Alcântara, regressamos ao navio.

Cozinha de Campanha no Cais

Começaram a aumentar os lancinantes gritos e choros dos familiares que tinham ido dizer adeus aos jovens combatentes. Infelizmente para alguns foi o último ADEUS.
Ao meio dia certo o CARVALHO ARAÚJO zarpou e poucas milhas percorridas entrou no Oceano Atlântico, que sulcou durante seis dias. Um Oceano Atlântico diferente daquele que conhecia.

24 de Abril de 1970 - Embarque do BCAÇ 2912

Sala de Jantar do "Carvalho Araújo"

 Camarote de 1.ª Classe do "Carvalho Araújo"

As personagens ao longo dos tempos foram diferentes.

Durante a Guerra Colonial (1961 – 1974) víamos os tropas nesta situação de classes. Antes da data da fotografia, The Steerage, em piores condições os escravos.

Em tempos passados não há melhor protagonista deste marear do que cada um dos combatentes enquanto navegantes. E cada caso era um caso.

Abraço António Tavares
Foz do Douro, Domingo 24 de Abril de 2016
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P16008: Efemérides (220): Cerimónia de comemoração do Dia do Combatente e VII Aniversário do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes, dia 30 de Abril, em Matosinhos e Leça do Balio (Carlos Vinhal)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15647: Efemérides (208): Lembrando José Botelho de CARVALHO ARAÚJO que faleceu a 14 de Outubro de 1918 a bordo do Caça-Minas NRP Augusto de Castilho afundado pelo submarino alemão U-139 (António Tavares)

Monumento a CARVALHO ARAÚJO em Vila Real
Com a devida vénia a minube


Combate entre o Navio Patrulha "Augusto Castilho" e o submarino alemão U-139 em 1918 durante a I Guerra Mundial.
Aguarela de Artur Guimarães
Museu Marítimo de Ílhavo.


1. Mensagem do nosso camarada António Tavares (ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), datada de 10 de Janeiro de 2016

Camarigos,
Ao ver esta excelente aguarela de Artur Guimarães recordei José Botelho de CARVALHO ARAÚJO que faleceu a 14 de Outubro de 1918 a bordo do Caça-Minas NRP Augusto de Castilho afundado pelo submarino alemão U-139 quando escoltava o vapor São Miguel.

O Comandante CARVALHO ARAÚJO interpôs o seu navio entre o submarino e o vapor São Miguel, no mar dos Açores, salvando os 206 passageiros que seguiam a bordo deste.
Estávamos na 1.ª Guerra Mundial iniciada a 28 de Julho de 1914 e terminada em 11 de Novembro de 1918.
A morte do Comandante CARVALHO ARAÚJO ocorreu 27 dias antes do fim da I Grande Guerra.
A Marinha Portuguesa de Guerra e a Mercante glorificou-o perpetuando o seu nome em diversas embarcações.


Características oficiais do Navio T/T CARVALHO ARAÚJO, que o BCAÇ 2912 conheceu em 24 de Abril de 1970:

Tipo... Navio misto de 2 hélices
Construtor... Cantiere Navale Trestino
Local construção... Monfalcone - Itália
Ano de construção... 1929
Ano de abate... 1973
Registo... Capitania do Porto de Lisboa, em 21 de Abril de 1930, com o número 420 F
Sinal de código... C S B U
Comprimento fora a fora... 112,82 m
Boca máxima... 15,30 m
Calado à proa... 6,69 m
Calado à popa... 6,99 m
Arqueação bruta ... 4.559,55 Toneladas
Arqueação Líquida... 2.694,45 Toneladas
Capacidade... 4.292 m3
Porte bruto ... 4.724 Toneladas.
Aparelho propulsor... Duas máquinas de triplice expansão, de 3 cilindros cada, construídas em 1929 por John G. Kincaid & Ca Lda. em Greenock - Escócia.
Quatro caldeiras, com 3 fornalhas cada, para a pressão de 14,7 K/cm2.
Potência... 4.430 CV
Velocidade máxima ... 14,0 nós
Velocidade normal ... 12,0 nós
Passageiros... Alojamentos para 10 em classe de luxo, 68 em primeira classe, 78 em segunda, 98 em terceira e 100 em cobertas, no total de 354 passageiros.
Tripulantes... 98
Armador... Empresa Insulana de Navegação - Lisboa

Com certeza que os milhares de militares que navegaram nele desde 1963 discordam dos números dos passageiros acima. Sentiram na prática o excesso de lotação.


O “EXCELENTE E VALOROSO” Batalhão de Caçadores 2912 desembarcou no cais de Pindjiguiti, Bissau, em 01 de Maio de 1970, com cerca de 500 militares.

O primeiro dia da guerra vivida em Galomaro, Cancolim, Dulombi e Saltinho, matas do Leste do TO do Comando Territorial Independente da Guiné.

António Tavares
Foz do Douro, Domingo 10 de Janeiro de 2016
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15541: Efemérides (207): Ataque ao Cachil na Consoada de 1965 (João Sacôto, ex-Alf Mil da CCaç 617/BCAÇ 619)

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12751: Notas de leitura (566): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 4 de 4 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Setembro de 2013:

Queridos amigos,
Carlos Fabião, talvez o oficial português que melhor conheceu a Guiné entre 1955 e 1974, deixou vários depoimentos de inegável valia.
Sentiu, em meados da década de 1960, que a guerra se transformara num atoleiro para as nossas tropas; acreditou convictamente que Spínola cativaria as populações e poria a Guiné do nosso lado, foi assistindo à escalada armamentista e não hesita em dizer que se perdera a solução militar, a partir de 26 de Abril todos os dados estavam lançados.
Reitero que todas estas intervenções, cheias de deficiências devido a aspetos técnicos, devem ser lidas no site que se indica.

Um abraço do
Mário


A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas (4)

Beja Santos

A última jornada de trabalho sobre a descolonização da Guiné promovida pelos Estudos Gerais da Arrábidas realizou-se em 11 de Abril de 2002 e o interveniente principal foi Carlos Fabião (1930-2006), membro do Movimento dos Capitães, colaborador próximo do general Spínola e último governador da Guiné. Recordo aos confrades que toda a documentação atinente a estas jornadas de trabalho pode ser encontrada no site (www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/guine.htm), de que é titular o Instituto de Ciências Sociais. Esclarece-se novamente que a transcrição destas jornadas têm defeitos de vária ordem, correspondentes a interrupções, conversas inaudíveis, gravação desaparecida, aconteceu de tudo um pouco, é lamentável que assim seja dada a alta qualidade dos participantes, protagonistas da descolonização da Guiné.

Carlos Fabião, talvez o oficial português com melhor conhecimento da realidade guineense, começa por referir o seu currículo militar, incluindo as diferentes comissões que fez na Guiné. Chega à colónia em 1955 e aqui permanece até Março de 1961. Volta a Lisboa e é mobilizado para Angola, segue no Batalhão 132, já como capitão. Em 1965, faz nova comissão na Guiné. É questionado sobre o teatro de operações, e descreve-o: “A situação já é muito má. Quando eu cheguei à Guiné, havia entre os indivíduos que aqui estavam e os que chegavam uma rivalidade estúpida: os que tinham já feito Angola, os que ainda não tinham feito Angola. O chefe do Estado-Maior perguntou-me se eu já tinha estado em Angola, respondi-lhe afirmativamente, disse-me para esquecer tudo o que tinha aprendido lá”. Vai permanecer na Guiné até 1965. Volta para a Guiné em 1669.

Spínola modificou drasticamente a quadrícula, impôs a aproximação às populações, reservou para o Comando-Chefe as zonas de intervenção onde só iam as tropas especiais. Spínola decide uma nova conceção para as milícias, quer que passem a ter uma estreita ligação às populações a que pertenciam. Fabião não regateia elogios a esta primeira fase de Spínola e como mudou dispositivos, como gerou hábitos de auscultação das populações e como foi bem-sucedido com os congressos do povo, talvez o seu maior êxito na política social: “Spínola criou na Guiné uma maneira de estar em África que eu considero que foi o mais extraordinário que ele fez, pôs a manobra militar subordinada à manobra política. Fez uma guerra política em que a manobra militar servia só de suporte”. E criou as aldeias junto às lavras. Fabião é questionado sobre o estado de espírito no teatro de operações antes do 25 de Abril. Tem uma resposta pronta: “A Guiné estava perdida. O 25 de Abril evitou um desastre militar na Guiné”. E pede para que as suas declarações subsequentes sejam eliminadas na transcrição.

Retomada a conversa, Fabião descreve a iniciativa de Spínola para se encontrar com Senghor, ambos analisaram uma proposta de acordo, Senghor foi firme: descolonização em dez anos; cessar-fogo imediato; pôr a diplomacia internacional a colaborar nesta solução pacífica. A fama de negociador chega aos altos comandos conservadores, por exemplo o general Câmara Pina envia-lhe uma carta apelando um retorno à bandeira. Segue-se o Congresso dos Combatentes, os ultranacionalistas fizeram uma jogada para exigir a continuação da doutrina monolítica. Os slogans do congresso eram do tipo: “As pátrias não se discutem, defendem-se”, “Alerta, há inimigos escondidos no altar de Deus”, “Ninguém aprova o desmembramento do seu corpo. Portugal também não”. Muitos antigos combatentes foram aliciados para comparecer no Porto, seria uma forma de reavivaram a camaradagem.

Em 1971, Fabião é responsabilizado por Spínola para encontrar um novo enquadramento para as milícias, foram fundamentais para a arrancada no Sul, quando Spínola decidiu no fim do ano de 1972 a reocupação do Cantanhez. A conversa direciona-se para a operação “Mar Verde”. Fabião comenta: “Spínola tenta de todas as maneiras a vitória militar. A “Mar Verde” é encarada como a hipótese de ganhar a guerra” e explica o que correu bem e o que correu mal. A partir do momento em que não foram destruídos os MIG, havia que regressar o mais cedo possível a casa. Critica a má qualidade das informações da PIDE/DGS. E a seguir a conversa centrou-se nos acontecimentos a seguir ao 25 de Abril. Senghor pede a Spínola para enviar um emissário a Paris, seguem Fabião e Nunes Barata. O presidente do Senegal declara estar disposto a ajudar Portugal na descolonização, a independência da Guiné-Bissau é já um dado indiscutível, a OUA ficaria extremamente agradecida. Spínola não comenta os apelos de Senghor. Fabião chega a Bissau no início de Maio, sente que não há condições para se realizar um Congresso do Povo como Spínola pretende. O PAIGC ameaça retomar prontamente a guerra.

O que passa agora a estar em discussão é se o modelo da descolonização portuguesa fora dado pela descolonização da Guiné. Fabião retoma as suas observações sobre a especificidade dos acontecimentos na Guiné, continuar a guerra era inviável, não encontrara uma fórmula de negociação com o PAIGC para o cessar-fogo teria redundado num desastre. Fabião veio a Lisboa e Spínola ter-lhe-á apresentado hipóteses que ele considerou delirantes: criar-se um Vietname ou criar-se uma Coreia, Fabião terá dito a Spínola: “Eu isto não faço, não pense. E vou-me embora”. Spínola volta a insistir no Congresso do Povo, medida sem pés nem cabeça. O próprio Comandante Militar, General Galvão de Figueiredo foi perentório: “Diga ao general para não pôr aqui os pés”. Decorreram bem as negociações com o PAIGC, acordou-se que eles ocupariam alguns destacamentos e que depois, de forma progressiva as tropas portuguesas iriam regressando a Bissau.

Fabião é confrontado pelos moderadores sobre a dimensão das áreas chamadas libertadas, referindo que mesmo nos santuários como Sara-Sarauol, Morés, Cantanhez, o PAIGC era forçado à mobilidade e à dissimulação, se assim não fizesse a aviação destruía tudo, liquidava civis e militares. E, por fim, veio à baila a especificidade da guerra na Guiné: clima e tensão, a penosidade dos abastecimentos, as terras alagadas e o inimigo agressivo. Fabião comenta a mentalidade daquela guerra, o estado mórbido que se desenvolvia nos militares: “A gente na Guiné dizia que o clima jogava a nosso favor. Só quem o vive é que pode adivinhar. A gente está no quartel e o quartel é atacado todos os dias, ou dia sim dia não, e um tipo habitua-se àquilo. De repente, o quartel começa a ser atacado de cinco em cinco dias e eu, a partir do terceiro dia, já não durmo. Já não durmo porquê? Porque devia ter sido atacado na véspera e não fui. E, às vezes, os tipos estão dez dias sem atacar. A partir do sexto ou sétimo, já ninguém dorme. Tem que haver um ataque, tem que haver. Se não for esta noite é a de amanhã. Se não é a de amanhã, é a outra. Mas tem que haver”. É um depoimento significativo de quem conheceu a Guiné pacífica dos anos 50, conviveu com as diferentes fases da guerra e ali esteve como último governador, sujeito a pressões incríveis, procurando remediar soluções honrosas e tendo procurado levar por diante o espírito do Acordo de Argel.

Paquete Carvalho Araújo, pintura de Fernando Lemos Gomes: postal adquirido na Feira da Ladra, deu para lembrar as viagens que nele fiz: em Outubro de 1967, a caminho de Ponta Delgada; Março de 1968, regresso de Ponta Delgada a Lisboa; Agosto/Setembro de 1970, de Bissau a Lisboa, passando pelo Sal e São Vicente e Ponta Delgada. Terei muito gosto em oferecer este postal a quem for colecionador.
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Nota do editor

Vd. postes da série de:

7 de Fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12688: Notas de leitura (560): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 1 de 4 (Mário Beja Santos)

10 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12705: Notas de leitura (561): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 2 de 4 (Mário Beja Santos)
e
18 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12737: Notas de leitura (565): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 3 de 4 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6274: O cruzeiro das nossas vidas (16): Uma viagem calma no Carvalho Araújo a caminho da Guiné (António Tavares)

1. Em mensagem do dia 24 de Abril de 2010, António Tavares* (ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72, conta-nos como foi a sua ida para a Guiné em 24 de Abril de 1970.



Ao meio-dia de 24.04.70 e após o terceiro apito arrastado, o mais longo dos anteriores, zarpou o “paquete” Carvalho de Araújo, adornado a estibordo, com o BCaç 2912 e alguns tropas individuais a bordo, num total de 500/600 militares.

À medida que o barco se aproximava da barra os choros e gritos lancinantes dos familiares, na Gare Marítima de Alcântara, iam sendo inaudíveis.

Fomos almoçar, a comida era razoável… nunca tinha comido tanta marmelada e queijo à sobremesa como naqueles dias... ainda era a doçura do mel… o fel viria dias depois!

Foi nesse dia que o IN matou os três Majores, um Alferes Miliciano e três Nativos em Teixeira Pinto… ia a bordo quando soube do Massacre do Chão Manjaco… o efeito psicológico que teve nas nossas tropas… o nosso moral ficou muito abatido!

Naquela manhã senti-me só! … Ninguém soube do meu embarque! … Já a bordo é que enviei um telegrama a meus pais… recordo uma cabine telefónica no cais e a Tapada da Ajuda, onde tinha familiares… seriam o pressuposto laço de ligação… mas resisti! Segui só para o desconhecido!

O navio era tão antigo - de 1930 -, que já há muito tempo se dizia que ao fim de cada viagem ia ser abatido ao efectivo… mas só terminou a sua odisseia - transporte de tropas - em 1973… já não honrava o nome do grande capitão tenente Carvalho de Araújo!
Em cada trajecto contava-se uma história diferente passada na anterior viagem… um incêndio... uma avaria… um encalhe… um adornamento maior do que o habitual… a dificuldade em vencer as alterosas vagas… a falta de combustível devido a consumos excessivos… felizmente nunca havia feridos!

Camarote de 1.ª classe do Carvalho Araújo


Sala de jantar do Carvalho Araújo


As histórias fariam parte da nossa preparação psicológica?

Ao segundo dia da viagem, 26-04-70, vimos à nossa ré o “Vera Cruz”, que após as habituais saudações depressa nos ultrapassou… levava outras tropas e destino… nós seguimos a ronceira viagem de 7 dias… continuávamos a ver o azul do céu e do mar!

Passagem do Vera Cruz, (CCN; 1952-1973;), com dois Batalhões a bordo, pelo Carvalho de Araújo em alto mar

Certo dia apareceram à ré uns golfinhos a fazer-nos companhia… o Golfinho, símbolo do conhecimento… a popa era o local onde se lançava ao mar restos de comida!
E mais umas milhas percorridas - (equivalências: - milha marítima = 6080 pés ou = 1852 m) - tivemos a visita de peixes voadores… alguns destes com as suas curiosidades/fantasias acabaram os dias no convés do navio.
Já Santo António dizia no “Sermão aos Peixes” que nem eram peixes nem pássaros… digo eu, são criaturas de Deus!

Na Guiné havia peixes voadores, segundo o livro Missão na Guiné, do E.M. Exército, conquanto nunca por lá os ter visto.

O mar foi nosso amigo embora assustasse quando o barco ondulava e as ondas batiam nas vigias dos camarotes. Houve camaradas que devido aos enjoos nunca saíram das suas execráveis camaratas nos porões adaptados - (?) - ao pessoal!

Os dias eram passados a dormir, jogar cartas, conversar, escrever, ler… Encafuados nos porões iam as Praças em condições deploráveis! Os Oficiais e Sargentos da CCS viajaram em camarotes de 1.ª classe… Foram elementos da CCS que fizeram o reconhecimento do navio.

A tripulação do barco levava duas enfermeiras, que de trabalho específico nada vi.
Vi-as jogar cartas, passear, conversar… Uma era especialista em jogar crapô! O que queria era jogar as cartas! Tinha a sua “tabanca” na coberta do navio… a outra, mais jovem, andava lá por baixo nos camarotes! Tinham de fazer algo no meio de tanta juventude.

Contrabando também o havia… vendiam tabaco e relógios CAUNY PRIMA a 500$00… o meu CAUNYMATIC ainda funciona!

Já nas águas da Guiné tivemos a escolta da Lancha patrulha P351… era o começo da guerra!


Lancha P351 a escoltar o Carvalho de Araújo nas águas da Guiné


No cais do Pidjiguiti começaram os nossos trabalhos em 01-05-70…

No convés do navio, já fundeado em 30-04-1970, mostrava um furriel, de caneta e bloco em punho, a sua 1.ª picadela de mosquito na Guiné!

Esta é uma história de um entre muitos milhares de jovens… infelizmente muitos não puderam contar as suas histórias de uma guerra injusta para todos os intervenientes… uma guerra de guerrilha que nos era imposta por cobiças exteriores, segundo o governo… uma luta pelas populações…

Quarenta anos decorridos é a imagem que guardo da partida - Lisboa - e da dolorosa viagem de longo curso - 3000 Kms - até à Guiné!

Um abraço
António Tavares
Ex-Fur Mil SAM
Foz do Douro
24 de Abril de 2010
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 18 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6177: Adiantamentos e Prestações O.G.F.E. (António Tavares)

Vd. último poste da série de 24 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5703: O cruzeiro das nossas vidas (15): O dia do embarque (José Marques Ferreira)