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quinta-feira, 9 de março de 2006

Guiné 63/74 - P601: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (17): Este gajo estava mesmo apanhado

Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > 2005 > Um militar da CCAÇ 2381 - Os Maiorais na fase final da sua comissão (1969/70)

© José Teixeira (2006)


Luís:

A paz, a felicidade e o amor estejam contigo.

Junto a última parte do meu diário. Coisas muito pessoais ficaram do lado de cá. No entanto vão algumas partes reflexo de um ser que nunca deixou de pensar que talvez não tenham interesse em fazer passar no Blogue. Deixo ao teu critério.

Segue também um pequeno texto sobre o que está neste momento na berra: a sexualidade em tempo de guerra. É mais uma brasa para a fogueira que merece ser alimentada, pois muita coisa há a dizer.

Zé Teixeira


XVII Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

Recorde-se os principais passos do nosso camarada Zé:

"Fui enfermeiro de campanha na CCAÇ 2381. Fui para a Guiné em fins de Abril de 1968 e regressei em Maio de 1970. Estacionei cerca de 3 meses em Ingoré, no Norte, onde a companhia fez o seu treino operacional.

"Seguimos depois para Buba e fixámo-nos em Quebo (Aldeia Formosa), [no final de Julho de 1968]." Aí a CCAÇ 23881 teve como missão fazer escoltas de segurança às colunas logísticas de abastecimento entre Aldeia Formosa/Buba e Aldeia Formosa/Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a autodefesa de Aldeia Formosa, Mampatá e Chamarra.

"Regressámos a Buba, em Janeiro de 1969, para servirmos de guarda às equipas de Engenharia que construiram a estrada Buba/Aldeia Formosa. Face ao desgaste físico e emocional fomos enviados, a partir de [Maio de] 1969, para Empada onde vivemos os últimos meses de Comissão [até ao regresso em Maio de 1970]".

O Diário do Zé Teixeira começou a ser publicado no nosso blogue no dia 1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968


Empada, 19 de Setembro de 1969

Preciso de desabafar, de me abrir com alguém. Dentro de mim existe uma tremenda confusão. Quero fugir deste ambiente bélico, em que só se pensa na sobrevivência. Em que se mata para não morrer. Em que não se faz nada a não ser estar atento para ouvir uma possível saída de morteiro, que pode ser a nossa desgraça. Em que se parte ao desconhecido numa terra vermelha, estranha, inóspita, que esconde armadilhas fatais.

Sou inocente, nesta guerra que me recuso a fazer.

Procuro na solidão e no estudo, melhor na simples leitura, pois não consigo concentrar-me, as forças que me faltam, já que ninguém consegue compreender o meu estado de espírito. Também não encontro ninguém com quem possa conversar estas coisas. Ninharias, dirão.

Em cada dia que passa a confiança em mim mesmo vai-se abaixo enquanto sinto crescer dentro de mim um estado de espírito de revolta contra todos os homens que fomentam as guerras. Queria ir a Bissau fazer história mas não sou capaz.

Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > 2005 > Restos de abrigos construídos nos antigos quartos dos furréis da CCAÇ 2381, aqui aquartelados em 1969.

© José Teixeira (2006)


Empada, 24 de Setembro de 1969

O IN ainda não decidiu deixar-me em paz. No dia 20 à noite apareceram por esta terra. Aliás, no dia dezoito também cá estiveram, mas foi de muito longe. Só notei porque o 81 funcionou, para que não se entusiasmassem. O ataque do dia 20 foi fraco, talvez o mais fraco ataque que sofri até à data e me fez correr para o abrigo. Poucas granadas rebentaram e caíram todas fora do arame. Também utilizaram a costureirinha, mas sem quaisquer efeitos.
Também fizeram duas visitas a Buba. Apenas assustaram.

Empada, 16 de Outubro de 1969

Do pelotão que está em Buba chegam novidades. Há dias houve por lá um terrível ataque com tentativa de assalto. Atacaram do sítio habitual do lado do rio com 10 Canhões s/r, enquanto do lado da pista fazia o desenvolvimento do assalto, procurando apanhar a tropa desprevenida.

Segundo dizem os meus colegas eram mais de duzentos, a avançarem em arco para que se as nossas forças saíssem as envolverem. Felizmente estava emboscado um Pelotão que os detectou. Parece que foi um tremendo fogachal, enquanto os Fuzas perseguiam os que atacaram do lado do rio que pretendiam reforçar as forças de assalto.

Ao fazer-se o reconhecimento, foi encontrado um rádio, sinal de que o ataque foi bem comandado e o fogo controlado por sentinelas avançadas. Foram descobertas e desenterradas 180 granadas de canhão s/recuo. Foi também ouvido ruído de viaturas.

Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > 2005 > Antigo abrigo de morteiro construído pela CCAÇ 2381, na fase final da sua comissão (1969/70)

© José Teixeira (2006)


Quando os Fuzas voltaram ao quartel, foram seguidos pelo IN que os atacou muito perto de Buba. Assim caíram entre dois fogos, o do IN e o de Buba que reagiu a um possível ataque sem saber que o fogo era destinado ao grupo de fuzas..

No dia anterior tinha havido uma coluna a Nhala ,onde apenas foi encontrada uma A/P com dispositivo anti-levantamento eléctrico que felizmente não funcionou por ter as pilhas gastas.

Nesta mina havia uma mensagem escrita: "Esta é para Alferes Gonçalves". Infelizmente este furriel (e não alferes) já está em Lisboa devido a um estilhaço que apanhou noutro ataque a Buba.

Há tempos apareceu aqui por Empada um turra. Deu várias informações e foi para Buba integrado no Grupo de fuzas, para fazer de guia. Parece que conseguiu fugir levando uma G3 (1).

Empada, 26 de Outubro de 1969

Vejo-te, nesta manhã radiosa, em que o sol parece sorrir enamorado. A brisa bate de leve no teu rosto, ciumenta do teu olhar. Os pássaros, nos seus chilreios cantam hinos de louvor à tua beleza. Até as pedras da rua se sentem orgulhosas por te servirem de trono.

Eu vejo-te passar através do meu espírito, do meu coração enamorado. Sinto ciúmes de tudo o que te rodeia, de tudo o que amas, pois é amor que me roubas. Quem me dera ter-te a meu lado e de mãos dadas, cabeça erguida, altivos, felizes e confiantes, palmilharmos o caminho da vida . . .

Ontem procedeu-se à rendição do Pelotão estacionado em Buba. Parece que Sector está em brasa. Durante um mês foram atacados sete vezes. Num ataque de tiro ao alvo, meteram nove canhoadas numa parede de caserna . . sem ninguém. Que sorte.
_______

Notas do autor:

(1) A história foi muito mal contada na altura pelos Fuzas. No meu regresso em fim de Comissão vinha também no Niassa um fuza que tinha sofrido um castigo e foi expulso da Guiné. Contou-me este, que o tal Turra não fugiu. Um dos Fuzas tinha perdido a G3 e era preciso justificá-la. Por outro lado as suas informações eram a causa para eventuais futuras acções de combate, com assaltos a bases do IN, o que era sempre arriscado. A solução foi amarrar o gajo e atirá-lo ao rio fazendo-o desaparecer e passando a informação que tinha conseguido fugir.

(2) Comentário do autor em 2006: "Este gajo estava mesmo apanhado"...

quarta-feira, 8 de março de 2006

Guiné 63/74 - P599: Dia Internacional da Mulher (4): 'Fermero, ká na tem patacão pra paga, fica ku minha mudjer' (Zé Teixeira)

Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > O Zé Teixeira com um antigo milícia, o Braima de Mampatá.

© José Teixeira (2005)

XVI Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

© José Teixeira:


Empada, 11 de Setembro de 1969

Conheci a Mariama no primeiro dia que aqui cheguei. A sua alegria contagiante, as suas brincadeiras e a maneira como sabia fazer-se respeitada, tudo isso fez com que simpatizasse logo com ela. De manhã vinha acordar-me:
- Tissera, corpo stá bom ?

Ao fim da tarde de hoje, passou pela enfermaria, como sempre, mas vinha diferente; olhos inchados, cabelo muito arranjado, a alegria habitual tinha desaparecido.
- Mariama Corpo di bó ?
- Ká stá bom, hodje manga di chátisse.
- Porquê? Qui passa ?
- Meu pai diz a minha Mãe: 'Põe Mariama bonito. Hodje ela vai cása cum alfaiate'. Mim ká na sibi qui vai cása. Mim ká miste alfaiate.E acrescentou:
- Eu fui trabalhar na bolanha , manhã cedo, muito trabalho. Vem, lava roupa de Catarino (1) e passo tua roupa a ferro. Chega a minha mãe e conta a verdade. Eu não sabia que ia casar...

As lágrimas escorriam-lhe para o regaço. Não gosta do Sanhá e parece que nem sabia que o pai a tinha vendido como se faz com os animais. Sabia o que a esperava mais dia menos dia, mas nunca com um velho.

Nos Beafadas a cerimónia de casamento é diferente dos Fulas. Ao fim da tarde a bajuda segue para a morança do futuro marido, acompanhada por outras bajudas em festa: aí espera-a um jantar.

Em tempos apreciei um casamento fula em Mampatá. O casamento foi programado com antecedência. A festa durou dois dias com muita animação e até batuque. Este foi controlado pelo Sargento da Milícia, que a determinada altura mandou parar a batucada e vingou o silêncio. A noiva seguiu para casa do noivo às costas de um ancião coberto com um lençol de modo a ficar escondida dos olhares dos curiosos e, segundo me disseram, no dia seguinte tinha de pôr à porta o lençol com manchas de sangue para demonstrar que estava virgem.

Guiné-Bissau > 2005 > Campanha sanitária: "Usa camisinha na hora di ten"... Trinta anos depois da independência, o que é mudou na condição da mulher guineense ? Uma pergunta de difícil resposta, mas que não nos deixa indiferentes (LG).

© José Teixeira (2005)

A conversa com Mariama prolongou-se. Apresentou-me a Fanta, minha nova lavandera e deixou-me a dar largas aos meus pensamentos… Vieram-me à memória os jovens de Nápoles, e os da Ribeira . . . A Fármara de Mampatá que gostava do Amadu e era feliz; da Jubae, e da Yeró.

Esta última casada à força, presa fácil da tropa, que o marido me ofereceu como pagamento por lhe ter salvo o pai de uma doença (2), da Fatinha (siriana), cujo marido não se cansava de lhe bater. . e era tão bonita !... Da Suade … das suas lágrimas, quando à sua volta toda agente dançava ao som do batuque.

Pergunto a mim mesmo, como é possível em pleno século XX, ainda haver este tipo de escravidão. Como é possível um pai vender sua filha por uma vaca e três carneiros !
_________

Notas do L.G.

(1) Jorge Catarino, meu companheiro nas artes de seringa e grande amigo

(2) Quando cheguei a Mampatá, veio ter comigo pedir quinino para o pai que estava com muitas dores. O Furriel enfermeiro que fui substituir disse-me:
- Este gajo tem o pai a morrer, eu estou a dar-lhe um comprimido por dia de X medicamento. Não lhe dês mais que um por dia, pois só tens esta caixa e em Aldeia Formosa não há.

Assim fiz e no dia seguinte, já sozinho, fui ver o doente. Velho de cabelos brancos, amarelo como cera, há mais de um mês de cama, sem forças etc,etc.

Reuni com o Alferes comandante do Destacamento e decidimos pedir a evacuação, à revelia das ordens que havia, o que gerou ameaças solenes para o Alferes do Comandante de Quebo, o qual teve como resposta:
- Sr. Major, eu não sou médico nem enfermeiro, o meu enfermeiro diz-me que não se responsabiliza pela saúde do homem. O Sr. Major responsabiliza-se ?

Assim o velho, foi evacuado. Esteve cerca de dois meses internado, fez uma operação ao intestino e regressou, para alegria dos familiares, muito melhor. Quando deixei Mampatá estava vivinho da costa.

Como prémio ou pagamento do meu trabalho, o filho, disse-me:
- Fermero, Ká na tem patacão pra paga. Fica ku minha mudjer.

Este gesto gerou outra conversa que como esta história não coube no meu diário.

segunda-feira, 6 de março de 2006

Guiné 63/74 - P593: A última parte do diário do Zé Teixeira

Guiné > Uma propaganda pérfida e cínica, a do regime de Salazar-Caetano, que criou nas populaçõe africanas a falsa (e trágica) ilusão de que eram portuguesas, tão portuguesas como os minhotos ou os alentejanos; por outro lado, minimizou e desprezou os combatentes do PAIGC, reduzindo-os ao estatuto de pobres mercenários, por conta de interesses estrangeiros, a quem se podia estender facilmente uma nota de 1000 pesos em troca da sua rendição e da entrega da sua arma... (LG)

© José Teixeira (2005)

Guiné > Material (muito pobre e tosco...) de propaganda das NT recolhido pelo ex- 1º cabo enfermeiro Teixeira (CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

Fica-se na dúvida sobre o público-alvo: os pobres soldados e quadros milicianos a quem era preciso incutir e reforçar permanentemente a ideia de que, na Guiné, era a Pátria que estava em perigo; ou os guineenses, que nem sequer sabiam onde ficava Lisboa e quem era o homem grande de Lisboa... (LG)
© José Teixeira (2005)


1. Texto do Zé Teixeira:

Olá, Luís: Estive sem computador uns dias, pelo que só agora voltei ao blogue e. . . não me queria sentir a estrela da companhia, mas da maneira como me pintas, até pareço ser. Olha que não era bem assim, apesar de já nessa altura sentir que todo o homem é meu irmão , mesmo os que estavam da outra banda da barricada.

Pedes-me para continuar a escrever coisas da minha memória... Ainda tenho uma pequena parte do Diário que não te enviei. A parte que falta é muito voltada para mim mesmo na sua maior parte, pois caminhava para o fim da comissão e tinha de me readaptar ao Zé Teixeira do antes da guerra. Claro que esta parte não vou pôr em comum. Mesmo assim parece-me que ainda tenho alguma coisa para reflectir com os tertulianos e a dar a conhecer mais algumas aventuras.

Brevemente enviarei a última parte.

Há naturalmente outras estórias para contar, mas face ao desenvolvimento do Blogue e sobretudo os últimos artigos que colocaste, parece-me que por muitas coisas que tenha para contar, ficarei sempre muito longe das estórias que os camaradas têm para pôr em comum. São estórias verdadeiras que se ouvia contar em surdina, mas que agora contadas pelos próprios até me arrepiam.

Curvo-me respeitosamente perante tantos mártires da Pátria, que morreram porque os senhores da nossa terra não eram dignos de ser portugueses, quanto mais líderes deste País de brandos costumes.

Foram cerca de 10.000 os jovens, em Angola, Moçambique e Guiné, que foram enviados para a morte, os quais já foram esquecidos. Mas também os que se entregaram a esse projecto, as milícias locais e a população ultramarina, aliciados pela máquina da propaganda segundo a qual eram portugueses... Quantos desses não faleceram durante a guerra ?!.... Mas também os outros, filhos valorosos da Guiné, que se bateram contra nós, com bravura, e que morreram. Estes, sim, por uma causa naturalmente justa.

Um fraternal abraço
do Zé Teixeira

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P550: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (15): um dia negro para a 15ª Companhia de Comandos (Setembro de 1969)

Guiné > Aldeia Formosa > 1969 > Viatura destruída por mina anticarro. Resultado: dois mortos.
© José Teixeira (2006)


XV Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

Buba, 1 de Setembro de 1969

Empada continua a ser a preferida do IN para brincar às guerrinhas. Ontem, pelas 4.30 h da madrugada, sofreu novo ataque. Foi chamada a aviação que não chegou a intervir.


Empada, 9 de Setembro de 1969

Desde ontem que estou por estas bandas, após dois meses em Buba sem novidade de maior.

O ataque do dia 31 não foi tão perigoso como constou em Buba. Atacaram de Morteiro 60, LGFog e bazooka sem causarem prejuízo. Não caiu nenhuma dentro do quartel.

Na estrada de Fulacunda, mais 8 Comandos e 3 soldados ficaram sem vida. Houve ainda sete feridos graves, entre os quais o meu amigo Zé João, enfermeiro comando. Uma mina anti-carro de grande potência atirou com a viatura cheia de militares, que estiveram comigo em Buba (15ª Companhia de Comandos) contra um tronco de árvore que se debruçava sobre a estrada, matando uma série deles instantaneamente. No buraco feito pela bomba pode-se esconder uma viatura, tal era a sua potência...

A Companhia de Comandos tinha vinda a fazer uma série de operações no Sector e dirigia-se para o Cais no Rio Grande, perto de S.João, para se retirar para Bissau.

Tem tido muito azar esta Companhia de Comandos. O Zé João sempre que sai com a Companhia fazem ronco, mas no regresso tem tido sempre problemas graves. Ainda há pouco tempo, quando estavam em Buba comigo, sairam para uma operação em Saredivane, fizeram um ronco de 15 mortos, apanharam 21 armas, apenas com dois feridos ligeiros, mas no regresso cairam num campo de minas e uma bailarina matou um Furriel e um soldado ficou sem uma perna...

Nesse dia o Zé João foi buscar o morto e ferido ao campo de minas tendo recebido o prémio Governador, que não chegou a gozar devido a este brutal acidente que o afastou da guerra definitivamente.

sábado, 11 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P503: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (14): De que lado estaria Deus ? (Agosto de 1969)

Guiné-Bissau > Buba > Tabanca de Lisboa > Antigos guerrilheiros do PAIGC, hoje perfeitamente integrados na comunidade local.
© José Teixeira (2006)


XIV Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).


Buba, 4 de Agosto de 1969

Ao comemorar o 6º aniversário da implantação do terrorismo na Guiné (1), o Sr. Amílcar Cabral queria fazer um grande festival em toda a Guiné. Ameaçou fazer uma grande surpresa, nomeadamente em Buba. Afinal limitou-se a vir cá às 17.45 h e fazer uma pequena serenata de canhão s/r, morteiro 120 e costureirinhas. Apenas uma granada rebentou dentro do Quartel,causando danos ligeiros. De noite ouviram-se rebentamentos por todo o lado. Empada parece que também foi atacada. Nhala, sofreu três ataques: à uma da manhã, às dez e novamente à noite. Mampatá também sofreu a visita do IN.

Buba, 7 de Agosto de 1969

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > Um minúsculo abrigo no quarto dos furriéis. 
 © José Teixeira (2006)

As colunas de abastecimento a Aldeia Formosa e povoações limítrofes continuam a dar que falar. Ontem, seguiu mais uma e ao chegar ao Pontão de Uane, uma mina anticarro rebentou debaixo da 14ª viatura, projectando os seus ocupantes a grande altura, pois a viatura seguia sem carga. Três mortes instantâneas, todas de africanos e nove feridos graves, entre os quais dois colegas meus. Foi este o resultado.

Eu não fui esperar a coluna porque estou com baixa médica. Sinto-me muito fraco e abatido psicologicamente.
Ainda não sei quando regresso a Empada, talvez, lá para o fim do mês.

Dá que pensar porque é que a viatura atingida foi a 14ª, portanto já no meio da coluna que seguia o trilho das outras treze anteriores, carregadas e bem pesadas.

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > "Aqui morreu o Conceição"
© José Teixeira (2006)


Buba, 9 de Agosto de 1969

Estou doente, sem forças, as pernas parece que não podem com o corpo. O apetite é pouco. Fui ao médico que, além de me receitar medicamentos reconstituintes, deu-me dispensa por uns dias.

Estou sozinho em Buba com metade da Companhia. Insisti desde sempre que não aguentava a carga e que devia ser chamado outro enfermeiro de Empada. Fui-me abaixo das canetas e estão a sair Enfermeiros da Companhia 2382 com os meus companheiros, o que nunca devia acontecer e está-se a gerar um mal estar, entre colegas e amigos, desnecessário. Segunda Feira termina a minha dispensa, mas eu ainda não me sinto bem. Vejamos que me vai dizer o médico.


Buba, 13 de Agosto de 1969

Está por cá o Padre Manuel Capitão, Coordenador dos capelães na Guiné, grande amigo, e que encontrei há tempos em Bissau, quando regressei da Metrópele de férias. Desde alguns dias que anda de visita ao Sector. Hoje foi acompanhar a coluna para Aldeia Formosa até Nhala e regressou no Héli que foi fazer uma evacuação de um ferido na sequência de um contacto com o IN.

A minha saúde continua abalada, felizmente com tendência para melhorar. Ontem, devido a uma grande caminhada de patrulhamento com o fim de preparar o terreno para a Coluna de hoje, não aguentei e os meus colegas tiveram de me transportar, até ao quartel. Depois de descansar fiquei melhor. Hoje sinto-me bem e tenho a esperança que em breve ficarei no lugar.

Quando estive com o Padre Capitão em Bissau, tentei aprofundar esta e outras questões sobre a assistência religiosa em tempo de guerra e a posição da Igreja Portuguesa colaboracionista com o poder político que manda matar em nome dos princípios cristãos, e a actuação dos capelães, passiva e nada evangélica, para não desagradar aos Comandantes, aos fazedores da guerra.

Eu já sentia dentro de mim a revolta. De que lado estaria Deus? Com os Portugueses que teimavam em dominar um povo pelas armas ou com esse povo que queria seguir o seu destino, ou não estaria com ninguém e apenas apelava aos homens para darem as mãos para construirem um País novo? Qual devia ser a missão do Sacerdote ? Como falar ao Soldado que tinha deixado forçadamente a sua família, o seu emprego para matar ou ser morto?

Nesse encontro pôs-me fora do gabinete, mas em Buba, ele que nunca tinha saído de Bissau, e quis vir ver como as coisas se passavam no terreno, deu-me razão. Chorou por não poder fazer nada. Sentia-se amarrado. O Sistema Militar condicionava-o e os Capelães que os Bispos lhe mandavam, na sua maioria eram sacerdotes com problemas e nada preparados para este tipo de missões.


Buba, 16 de Agosto de 1969

Mais 24 toneladas de material apanhado ao IN no Norte, perto de Ingoré (2). As nossas tropas destruiram cinco destacamentos do IN, entre os quais Canchungo, Mâmpatas e Sane, todos perto de Ingorei, por onde andei nos primeiros três meses de guerra. O IN fugiu e os nossos tiveram 6 feridos. Parece que o exército senegalês auxiliou a fuga a pretexto de assistência médica.
_____________

Notas de L.G.:

(1) Referência ao 1º taque do PAIGC a um aquartelamento português (Tite) em 1963 ? Não foi em Agosto (4), sim em 23 de Janeiro (efeméride que é apontada, em geral, como a do início da luta armada na Guiné

(2) Ingoré: no norte, junto à fronteira com o Senegal, na estrada entre Sedengal e Bigene. Pertence à actual região do Cacheu.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P491: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (13): Vi a morte à minha frente (31 de Julho de 1969)


Guiné > Buba > 1969 > Contrapropaganda das NT > Uma costureirinha (pistola-metralhadora PPSH, de origem soviética) por meia dúzia de pesos...

A acção psicossocial é intensificada com o novo governador-geral e comandante-chefe António Spínola, apesar de ser considerado um grande cabo de guerra, seguramente o mais emblemático, com Kaulza de Arriaga, em Moçambique, dos generais que fizeram a guerra colonial. Na Guiné, a escalada da guerra, por terra e por ar, vai tornar-se irreversível e conduzir a uma espécie de suicídio das NT, com a criação do Movimento das Forças Armadas (MFA). Em Março de 1973, o PAIGC passa a dispor de mísseis terra-ar Strella, acabando com a superioridade portuguesa nos céus. Em 10 de Setembro de 1974, o Portugal revolucionário reconhecia a independência da Guiné-Bissau, proclamada unilateralmente um ano antes (LG).

© José Teixeira (2006)


XIII Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

Buba, 31 de Julho de 1969

Vi a morte à minha frente. Saí de manhã até à Bolanha de Beafada, a montar segurança à coluna que ia para Aldeia Formosa. Tinha como missão assistir os Picadores que iam à frente a tentar detectar as possíveis minas que o IN costuma colocar. Coloquei a bolsa na 1ª viatura e segui à frente da mesma.

Como havia muitas poças de água, instalei-me ao lado do condutor. Em determinado momento tive um pressentimento e saltei da viatura seguindo à sua frente. Não andei 50 metros e senti um rebentamento, fui projectado pela deslocação do ar e senti algo a cair em cima de mim, deduzindo que eram estilhaços. Pensei:
- Desta não escapo.

Guiné > Buba > 1969 > Contrapropaganda das NT > 

A verdade é que "juntos não conseguimos vencer"... Não se tratava de Portugal e dos portugueses nem da Guiné e dos guineenses mas de um regime político que não tinha qualquer legitimidade (política, legal e moral) para continuar a exigir o supremo sacrifício dos nossos jovens (LG).

© José Teixeira (2006)


Logo a seguir cai à minha frente um africano que ia em cima da viatura e que deve ficar cego (1). Verifico então que a viatura de onde tinha saltado há momentos e do lado em que eu vinha, tinha pisado uma anticarro. Apanhei apenas com lama e pedras, e um grande susto. O condutor, sentado em sacos de areia, foi ao ar, mas apenas sofreu um grande susto, também. Os Africanos que vinham em cima foram projectados e um perfurou o olho esquerdo, ficando este ao dependuro. Desnorteado, não sabia o que fazer. A bolsa estava na viatura sinistrada. Havia o ferido para tratar, mas também havia o perigo de minas antipessoais.

Andava de um lado para outro, sem saber o que fazer, sujeito a cair numa mina perdida. Lentamente fui acalmando, entretanto chegaram os outros enfermeiros, fui buscar a minha bolsa à viatura destruída e tratei dos feridos

Tal como os outros companheiros, pensei em aproveitar-me das bebidas da viatura destruída e mesmo das outras, já que ao dar-se baixa da viatura descarrega-se tudo e o que ficou em condições de ser aproveitado desaparece. Deu-se um autêntico assalto às viaturas e foi um fartar de roubar, ou melhor, aproveitar a ocasião.

Pouco depois aparece-me o Franklim com uma perna ferida por ter ficado debaixo de um atrelado, com bidões cheios de combustível, pois o condutor da viatura, na confusão gerada deixou-a destravada e esta ao deslizar fez passar por cima da perna do Franklim o atrelado que arrastava.

Os feridos voltaram para Buba depois de assistidos, para serem evacuados para Bissau. Restabelecida a calma retomamos a marcha, para de seguida rebentar uma anti-pessoal que estava colocada no local, mesmo no centro da picada onde eu tratei os feridos, possivelmente pisada várias vezes, mas que só rebentou quando foi pisada pelo rodado de um atrelado de viatura, para sorte de algum de nós, talvez por estar um pouco funda. Continuei na coluna até Beafada, onde encontramos o Pelotão de Picadores que tinha partido de Aldeia Formosa, tendo regressado a Buba com mais esta história para contar.

O meu sistema nervoso que andava abalado foi-se de vez. Fui ao Dr. Franco que me receitou um calmante, pois preciso de reagir. Tenho 15 meses de guerra e ainda falta muito tempo para o regresso. A guerra ainda não acabou para mim.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P488: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (12): A morte do Cantiflas (Julho de 1969)

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > Bajudas
© José Teixeira (2006)

XII Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).


Empada, 5 de Julho de 1969

Empada parece ser o que os meus colegas diziam. A partir de l de Julho é a minha nova morada. A população é um misto de todas as raças onde predomina a Manjaca e a Bijagó. É trabalhadora e parece fiel. Recebe a tropa com muita simpatia e, pelo seu proceder, confirma mais ainda que a população da Guiné quer viver em paz no amanho das suas terras.

A região é bastante rica, tem muitas bolanhas e os africanos aproveitam para semear milho, mancarra, malagueta e batata doce. Também se dedicam à plantação de arroz na bolanha da Punderosa.

Porque o IN vem, destrói e mata, sinto que existe um ódio tremendo e uma insegurança na população, que no entanto se arrisca a trabalhar nas bolanhas para seu ganha pão.

Esta população, de raças diferentes da de Buba e Aldeia Formosa (Mandingas e Fulas), é muito mais trabalhadeira.

Não gosto da posição estratégica do Quartel, mas como já fizemos um grande desbaste na vegetação, eles não tem condições para se aproximarem muito. Há que estar atento e continuar a confiar. As instalações são boas, superiores às de qualquer quartel na Metróple. A alimentação, porque as refeições são bem feitas, pode-se dizer-se que são do melhor. Se assim continuar, teremos um fim de comissão em beleza.

A situação moral é caótica. O sexo avança em toda a linha. Quase todas as jovens lavadeiras se prostituem por dinheiro.

Guiné-Bissau > Empada > 2005> A antiga (e actual) rua principal de Empada
© José Teixeira (2006)

Buba, 10 de Julho de 1969

Em Buba novamente desde o dia sete, por um mês, segundo diz quem tem os livros, no entanto eu duvido um pouco. Recordo-me do ano passado, quando vim para este Sector, por um mês e ainda cá ando...

Presentemente Buba está calmo, já não mete, até certo ponto, o medo que metia nos tempos em que se andava a rasgar a nova estrada para Quebo (Aldeia Formosa). Mas é de temer , pois mesmo sem o terrror de há meses atrás, o trabalho ainda é muito, as saídas para o mato são constantes e o tempo não ajuda.

Tem chovido muito. Ainda ontem, fui impossibilitado de passar a noite emboscado pela chuva que caíu torrencialmente durante todo o dia. Saí de manhã cedo em patrulha de reconhecimento e ao fim da tarde estávamos ensopados de tal maneira que um colega caíu sem forças e cheio de frio e angustiado por o Comandante não autorizar o regresso a quartéis. Viemos traz-lo e fomos autorizados a ficar.

Não sei o tempo que vou estar por Buba. Parece que querem arranjar a velha estrada de Nhala e tenho medo de lá cair. As recordações que touxe de lá e de Samba-Sábali não foram as melhores e estrada está toda alagada pelas chuvas da época.

A estrada nova Buba/Aldeia Formosa (Quebo) está feita e pretende substituir a velha estrada de Nhala com as suas bolanhas lamacentas, mas ninguém se atreve a passar na dita, pois na primeira e única coluna que se fez, houve três terríveis emboscadas que provocaram três mortos e nove feridos.

Empada está a tornar-se uma zona perigosa. Desde que saí de lá já sofreram dois ataques cujos resultados desconheço. É certo que está lá pouca tropa. Talvez seja essa a razão que faz o turra. ir até lá chatear mas... qual será melhor ? Buba, um pouco calma, com muitas saídas, fraca comida, más instalações, ou Empada que tem melhores condições, com o terrorismo a aparecer ?!


Guiné-Bissau > Empada > 2005> A antiga casa do chefe de posto
© José Teixeira (2006)

Buba, 12 de Julho de 1969

Há qualquer coisa que me falta. Sinto isso mais forte em mim desde que vim de férias. Pego num livro, porque de momento sinto vontade de ler para em seguida o fechar e pensar em qualquer coisa. Procurei na leitura qualquer coisa que precisava e não encontrei.

Sinto-me vazio. Por vezes sonho acordado, imagino a felicidade. Quero mais, quero ir mais além. Creio ser esta a razão do meu vazio. A sede de ir mais longe abrasa-me.
Comecei a sentir medo. Tenho medo de tudo, da vida e da morte, da guerra e do ódio, tenho medo. Tenho medo de mim mesmo, da minha fraqueza. Sinto-me um pouco fraco espiritualmente, mesmo com tudo o que as férias me deram. As forças do lado oposto também são mais fortes.

Será o meu querer forte o suficiente para vencer ? Tenho medo...

... Depois de deixar a pena correr, sinto o mesmo vazio que me persegue, que me atormenta. Que quero eu afinal ? Ir mais além, dar mais, continuar firme na minha construção como HOMEM...

Empada voltou a ser atacada hoje, enquanto por Buba não se nota o mais pequeno sinal do IN, aliás parece-me que as acções do bandido diminuiram em toda a Guiné.


Buba, 18 de Julho de 1969

Para morrer basta estar vivo, não interessa o local ou meio. De paz ou de guerra. A morte aparece em qualquer sítio e a qualquer hora. O Cantinflas estava na guerra.. Caíu debaixo de fogo várias vezes, sofreu os efeitos de uma guerra traiçoeira, sem o mais pequeno ferimento, mas a morte espreitava-o impiedosamente e há dias, através de um choque eléctrico, veio ter com ele.

Mulher e uma filha, os pais e familiares, os amigos, todos o esperavam. Que choque sentirá aquela esposa ao receber a notícia que o marido morreu electrocutado ?! Aquela criança...os pais que o adoravam!...

Veio para os Maiorais [ CCAÇ 2381] em substituição do Alzira que se encontra na Metróple com uma perna artificial depois de pisar uma mina na estrada de Buba. Duas figuras típicas e muito queridas. O Alzira (cujo verdadeiro nome não sei) , um infeliz sem pais, que nos deliciava com os seus fados. O Cantinflas pela sua boa disposição permanente que deixava transparecer através de comiquices e lhe valeram o nome.

Empada voltou a ser atacada. Hoje emboscaram no Rio Grande duas Lanchas de Desembarque e o Barco Patrulha que transportavam uma Companhia para Gadamael. Creio que não houve problemas.


Buba, 22 de Julho de 1969

Domingo (20) saí para o mato pela tarde a patrulhar a estrada nova e emboscar o IN em seguida. De certeza que fomos seguidos pelo IN que nos deixou montar a emboscada e abriu fogo de seguida. A nossa reacção foi rápida e os indivíduos calaram-se. Uma granada caíu bem perto de mim mas não feriu, aliás, nenhum dos meus camaradas foi ferido pelo IN. Apenas o homem do morteiro 60 se feriu na mão com o morteiro.

Retirámos silenciosamente sem mais novidades e chegámos a Buba pelas 20 horas onde toda a gente esperava ordens para avançar em nosso auxílio. Este pequeno ataque não foi pera doce para mim. Quando notei que o camarada do morteiro estava ferido - tinha a mão rasgada por não ter utilizado o prato e o morteiro ao disparar enterrou-se na terra escorregando-lhe pela mão - , passei mensagem que não havia feridos graves e dispus-me a tratá-lo para evitar a hemorragia.

O Comandante, na sua pressa de se afastar da zona de perigo, mandou retirar e quando nos apercebemos estávamos a 300/400 metros dos companheiros de luta com o IN, na retaguarda que também não se tinha apercebido da situação. Iniciamos uma fuga a alta velocidade. Valeu-os o colega do ´lança-rockets que se apercebeu e fez passar algumas granadas por cima de nós obrigando o IN a manter-se em defesa.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P485: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (11): Desenfiado, em férias na Metrópole (Maio/Junho de 1969)

Guiné > Ingoré > CCAÇ 2381 > 1968 > O 1º cabo Teixeira era muito mais do que um simples enfermeiro, era um verdadeiro animador sociocultural... Aqui, ainda no início da sua comissão, com duas crianças vestidas com a farda da Mocidade Portuguesa.
© José Teixeira (2006)


Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) (1)

 
Bissau, 19 de Junho de 1969

Regressei a Bissau depois de um mês de férias na Metrópole onde pude participar no casamento do meu irmão Joaquim.

A minha [licença] de férias foi cheia de aventura. O Comandante não assinou o Passaporte, pelo que não podia ir, apesar de ter a viagem comprada. Mandei um rádio para Bissau a anular a viagem e entretanto o Comandante foi para uma Operação.

Como tinha a papelada toda pronta apresentei-a ao Capitão mais antigo que ficara a exercer o Comando, e que era um bolas, estava ali de castigo. Este assinou e logo enviei novo rádio a Bissau a reservar a viagem, só que a avioneta do correio não veio no dia habitual e o risco de perder o avião e o dinheiro da viagem era grande.


Guiné > Empada > CCAÇ 2381 > 1969 > O 1º cabo enfermeiro Teixeira, para além da sua intensa actividade operacional, estava sempre disponível para os outros e arranjava maneira de se divertir e divertir os seus camaradas. Aqui, caricaturando o festival da Eurovisão.
© José Teixeira (2006)

Entretanto aparecem dois bombardeiros no ar e o lugar do atirador vago. Ao pressentir que iam aterrar, fardei-me, peguei na mala e dirigi-me à pista com intenções de pedir ao Comandante da Esquadrilha para me levar, só que vejo sair do outro Bombardeiro nada menos que o meu Comandante que regressava da Operação. Olhou para mim, muito espantado, e regressámos ao quartel na mesma viatura, isto porque o meu Passaporte perdera de imediato o valor, e anulei novamente a viagem. No entanto pedi ao Alferes Barbosa para o guardar.

Nessa noite veio a Buba uma lancha trazer uma peça necessária para uma máquina, um caterpillar, que estava parado por ter pisado uma mina e era utilizado na construção da estrada para Aldeia Formosa.

Guiné > Empada > CCAÇ 2381 > 1969 > O 1º cabo enfermeiro Teixeira tinha, além disso, um trato fácil e afável com a população local. Aqui vemo-lo "muçulmano por um dia", ou melhor, vestido à maneira tradicional da população islamizada... © José Teixeira (2006)

Alguém me veio avisar e eu rompi a barreira, fui ter com o Barbosa que estava a jogar cartas com o Comandante, fiz-lhe sinal para vir cá fora, pedi-lhe o Passaporte falso e, à revelia do Comandante, fui para a Praia. Um colega pegou em mim e atirou-me para dentro da lancha e lá fui eu rumo a Bissau.

No dia seguinte de manhã cheguei a Bissau, corri à Agência, consegui ainda reservar a viagem e esperei 24 horas pela partida para Lisboa via Ilha do Sal.
____________

(1) Demos início à publicação de O Meu Diário, em 1 de Janeiro de 2006. Recorde-se o percurso do nosso amigo e camarada de tertúlia nas terras da Guiné:

"Fui enfermeiro de campanha na CCAÇ 2381. Fui para a Guiné em fins de Abril de 1968 e regressei em Maio de 1970.

"Estacionei cerca de 3 meses em Ingoré, no Norte, onde a companhia fez o seu treino operacional.

"Seguimos depois para Buba [, na região de Quínara, no sul] e fixámo-nos em Quebo (Aldeia Formosa), [no final de Julho de 1968].

"Aí a CCAÇ 2381 teve como missão fazer escoltas de segurança às colunas logísticas de abastecimento entre Aldeia Formosa/Buba e Aldeia Formosa/Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a autodefesa de Aldeia Formosa, Mampatá e Chamarra.

"Regressámos a Buba, em Janeiro de 1969, para servirmos de guarda às equipas de Engenharia que construiram a estrada Buba/Aldeia Formosa.

"Face ao desgaste físico/emocional fomos enviados, a partir de 1969, para Empada onde vivemos os últimos meses de Comissão".

segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P469: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (10): Abril/Maio de 1969, 'Senhora, nem Tu me salvaste!"

Guiné > Buba > Maio de 1969 > "Buraco na parede da minha caserna, comigo a fugir para a vala, num ataque em Maio de 1969" (1)

© José Teixeira (2005)

Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):
 
Buba, 10 de Abril de 1969
Há coisas na guerra que parecem impossíveis. Os Comandos saíram de Buba, andaram cerca de 15 Km em patrulhamento e depararam de frente com o IN. Meteram-se rapidamente na mata, deixaram que o bigrupo IN se aproximasse e atacaram, provocando 11 mortos, apreendendo 21 armas e ficando apenas com dois feridos ligeiros.

Pedida a evacuação, marcham para o regresso a Buba e caem num campo de minas, tendo rebentado uma bailarina que rouba a vida a um furriel. Foi cortado pela cintura. Outra arranca um pé de um soldado. Sai-se de uma, para se cair noutra...


Buba, 19 de Abril de 1969

Pela primeira vez, num ano de guerra com diversos casos graves e mortais, vi camaradas meus serem varados por balas de armas manejadas por companheiros só porque já não se ouve a voz da razão.

Guiné > Buba > Maio de 1969 > Entrada principal da povoação e do aquartelamento
© José Teixeira (2005)

Um pequeno incidente de palavras entre um soldado da minha Companhia [CC 2381] e um Comando Africano, quando tomavam banho, originou uma luta entre Fuzileiros e Comandos com consequências graves. Parece estar tudo louco.

Um Comando branco defendeu o Africano e alguns Fuzos intrometeram-se. A coisa azedou e surgiu uma cena de pancadaria de que resultou, algumas cabeças partidas e olhos negros. Aparece uma G 3 a vomitar uma rajada e quatro meros espectadores ficam gravemente feridos. Uma perna desfeita, um braço cortado e o mais grave veio a falecer com uma bala na cabeça. Foi este o resultado de uma simples discussão.

Eu estava de saída para o mato e mal vi os feridos. Pela primeira vez na minha vida de guerra, chorei. Lágrimas de raiva ... e de sangue.


Buba, 21 de Abril de 1969

Mais um encontro com o IN para o meu palmarés. Pelas 21 h do dia 19 e quando tomava um cafezinho, os nossos amigos apareceram por Buba e lá de longe enviaram-nos 45 canhoadas, utilizando cinco canhões e três morteiros. Acertaram numa tabanca e mataram um civil. Outra granada de grande potência e perfurante rebentou na parede da caserna a dois metros da minha cama, onde felizmente não estava. Dois colegas que se meteram debaixo da cama ainda sentiram, embora ligeiramente, os efeitos da sua estúpida decisão. Uma outra caíu na Enfermaria, no sítio onde costumo escrever à noite para a Metrópole. Um colega meu, enfermeiro de outra Companhia, estava nesse lugar quando rebentou o ataque.

No dia seguinte fomos fazer o reconhecimento e pude verificar a excelente pontaria dos nossos homens. Meteram uma granada do 81 a dois metros de um dos canhões provocando pelo menos feridos graves e notava-se que muitas outras granadas cairam perto.

Hoje fui ao médico. Apareceu-me um hematoma num testículo que parece ser um hidrocelo. É natural que tenha de baixar ao Hospital para ser operado.


Buba, 5 de Maio 1969
Outro domingo inesquecível. Foi o Miguel como poderia ter sido outro. Pisou uma antipessoal e ficou sem o pé esquerdo e com a perna toda esfacelada.

Saíram de madrugada, com destio a Nhala, levar mantimentos. Depois da curva do Vilaça detectaram três minas A/P. Os nossos homens puseram-se em posição de defesa e o Sapador preparou-se para as levantar, quando o Miguel se decide avançar um pouco e pisa uma terceira que estava dissimulada junto a um tronco de palmeira. O IN que estava emboscado no local a assistir ao levantamento abriu fogo de imediato, mas nada mais aconteceu de grave.

Rapidamente assistido pelo Catarino debaixo de fogo, o Miguel foi transportado em seguida para Buba, de onde o heli o levou até Bissau, enquanto a coluna seguia o seu destino, detectando-se mais duas minas e uma armadilha de tropeçar e um cemitério (em cenário) com pedidos para voltarmos para a Metrópole, deixando o povo da Guiné gerir o seu destino e ameaças de morte em que o falso cemitério era o exemplo do que nos esperava se continuassemos a fazer guerra. A CCAÇ 2317 ficou no local a levantar um campo de 38 minas antipessoais.

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 2005 > Depósito de água e antigas casernas da tropa...
© José Teixeira (2005)

No dia sete contava partir para a Metrópole em gozo de férias, pois tinha arranjado maneira de ludribiar o Comandante com a ajuda do Alferes Barbosa e também não era a minha vez de sair, pois tinha regressado no dia anterior à noite de uma patrulha de um dia, pela área onde se deu a emboscada.

Como o Catarino ia ficar sozinho no Destacamento, ofereci-me para fazer esta coluna. Preparei-me, mas à última da hora lembrei-me que "voluntário na tropa, só para comer ". Pedi desculpa ao Catarino e ele teve de avançar, compreendendo como sempre a minha posição.

Uma hora depois da sua partida sentimos o chocolate a cair e pensei: Escapei de boa. Acompanhámos via rádio a situação e pouco depois chega a viatura com o ferido que assisti, até chegar o heli.

A situação do Miguel e a sua reacção chocou-me muito. Parece que não tinha dores, apesar de estar sem um pé e garrotado abaixo do joelho. Só gritava agarrado à fotografia da namorada:
-Já não posso casar. - Pegou numa estampa de Nossa Senhora e disse:
-Nem Tu me salvaste".

No regresso da coluna os colegas contaram que quando se detectaram as minas, houve ordem, como de costume para se baixarem e ficarem em posição de fogo. O Miguel levantou-se e disse que ia ver o que se passava, começando a caminhar em cima do tronco de palmeira. Quando chegou ao topo e pôs o pé em terra, tinha a mina à sua espera. Um descuido que ficou caro.

O Catarino portou-se como um herói, secundado pelo Valente, pois arrancaram debaixo de fogo para junto do Miguel, correndo o risco duplo de serem atingidos pelas balas inimigas ou por alguma mina que pudesse lá estar. Foram encontradas no local 41 minas.

Disseram os meus colegas que o IN formou., com terra, campas de mortos, no local da armadilha para os intimidar com frases do género Branco vai para a tua terra.

(Continua)

terça-feira, 24 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P457: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (9): Buba, Fevereiro/Março de 1969, 'manga de chocolate'

Guiné > Região de Quínara > Buba > Maio de 1969 > A povoação e o aquartelamento vistos de helicóptero... Buba, a sul do Rio Corubal, forma um triângulo com Xitole e Fulacunda, nos outros dois vértices. É banhada pelo Rio Grande de Buba.
© José Teixeira (2005)

Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):

Buba, 20 de Fevereiro de 1968

Estou em Buba desde 7 de Fevereiro e as perspectivas não são muito boas. Gandembel foi abandonada e o IN entretinha-se por lá. Agora, talvez porque se está a construir uma estrada nova para ligar Buba a Aldeia Formosa, esta linda terra está a ser a preferida pelo IN para as suas brincadeiras.

A estrada nova já causou um morto, o primeiro da minha Companhia quando eu ainda estava em Chamarra. O IN estava emboscado com dois fornilhos montados e, ao fazer rebentar a emboscada, provocou a explosão das armadilhas e um homem, o velho, foi pelos ares. Mais uma vida roubada...

Buba foi atacada no dia 9 às 22.15 h. Valeu-se como sempre da surpresa e causou-nos um bom susto. Feridos graves só houve um embora houvesse muitos feridos ligeiros, pés cortados, unhas arrancadas, cabeças partidas, tal foi a confusão que se instalou nas duas Companhias operacionais, nos Comandos e nos Fuzileiros que aqui estão aquartelados.

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 2005 > Zona habitacional, na antiga estrada da pista de aviação.

© José Teixeira (2005)

Voltaram novamente a 14 pelas 5 horas da matina. Desta vez era para arrasar Buba se quisessem, ou então foram nabos, o que não me parece.

Treze canhões sem recuo chineses, 4 morteiros, LGFog, armas pesadas e ligeiras e sobretudo a uma hora que ninguém contava. Meteram bastante chocolate cá dentro mas só feriram um soldado. A Tabanca foi bastante atingida. Nove casas foram destruídas pelo fogo e com a precipitação da fuga para os abrigos ficou abandonada na Tabanca uma criancinha que morreu queimada.

Uma granada
Vinda não sei de onde,
Lançada não sei por que,
Rebentou...
E aquela criança,
Que brincava além,
A morte, a levou...

Na areia brincava...
E sua mãe,
Que seus paninhos lavava,
Estremeceu.
Num triste pressentimento
Seu olhar volveu...

Um grito ! ( desmaiou)
No preciso momento
Que seu filho morreu...


Tive muito que fazer na Enfermaria. Um dos feridos da população mais graves foi a mãe da menina que morreu. Tinha o corpo cheio de estilhaços, felizmente não foi atingida nos orgãos vitais e deve recuperar.
Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 2005 > "A minha antiga caserna"...
© José Teixeira (2005)

O seu sofrimento interior impressionou-me. É seu hábito dormir com a criança amarrada às costas para poder levá-la para o abrigo subterrâneo quando o IN ataca. Como já era de manhã desamarrou-a pouco antes do ataque se dar. Quando ouviu o fogo correu para o abrigo e só nessa altura é que se apercebeu que a bebé estava a dormir na tabanca. Saíu a correr, mas foi atirada ao chão pelo rebentamento da granada de canhão que caiu em cima da sua casa e lhe matou a menina.


Samba Sabali, 9 de Março de 1968

Depois de uns dias em Buba, segui para Nhala onde estive quatro dias e fixei-me em Samba Sabali, em tendas de campanha.

Ontem saí para o mato a dar protecção ao pessoal de Engenharia que está a abrir uma passagem de ligação à estrada nova. Dentro de dias volto para Buba e espero que se acabe para mim a protecção aos homens de Engenharia que estão a construir a estrada.


Buba, 18 de Março de 1968

Segundo me informaram na Secretaria da Companhia, o Comandante não autorizou a minha ida de férias à Metrópole. A Companhia está com muitas baixas por feridos e doenças pelo que as licenças foram cortadas. Custa-me imenso esta situação. Depois de um ano de guerra estou saturado, os nervos não obedecem e o cansaço é grande, e que saudades ...

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 2005 > Festa na escola, no em que branco vem trazer caderno...

© José Teixeira (2005)

Como a minha Companhia está saturada e com muitas baixas, talvez mude para uma zona melhor a curto prazo. É esta a minha esperança.


Buba, 26 de Março de 1969

Mais uma grande aventura na Guiné. A maior até hoje. Integrei um Pelotão que partiu de manhã para um patrulhamento e emboscámos ao fim da tarde num sítio propício para descansar um pouco, longe do lugar onde devíamos estar emboscados, ou seja, perto da Bolanha dos Passarinhos, local de passagem do IN e por tal razão perigoso.

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > Tabanca Lisboa > 2005 > O José Teixeira com um antigo chefe de milícias e a sua lindíssima filha. Um feliz reencontro.
© José Teixeira (2005)

Anoitecia, quando o IN atacou a Companhia que nos foi substituir a Samba Sábali e com tal fúria que provocou nuns escassos minutos um morto e nove feridos graves. Como não havia condições para o héli aterrar, quer por o local não se propiciar, quer por ser noite e perigoso e porque o estado dos feridos era grave, foi necessário ir buscá-los para Buba.

A Bolanha dos Passarinhos, local onde devíamos estar emboscados, fica entre Buba e Samba Sabali e o Comandante, convencido que estávamos perto, solicitou via rádio que fossemos reconhecer o terreno e montar segurança às viaturas que iam recolher os feridos. Como estávamos longe e porque os camaradas precisavam de apoio partimos a correr pela estrada fora sem nos preocuparmos com a segurança.

Que medo, andar de noite pela mata cerrada, em zona de contacto com o IN, com este por perto, com colegas a pedir socorro. Emboscámos a montar segurança na Bolanha e as viaturas passaram, sem perigo. Sentimos movimentos atrás de nós, supomos que era o IN, a tentar ocupar o local para atacar a coluna no regresso, mas deve-nos ter pressentido e retirou. Ainda ouvimos alguns tiros perto, mas como não reagimos, tudo se manteve calmo e eu no regresso apanhei uma viatura que trazia três feridos a quem dei apoio.

Eu tinha abandonado Samba Sabali dois dias antes. O Enfermeiro que me substituiu foi ocupar o lugar que eu deveria ocupar na defesa do acampamento. Teve azar. Uma bala perfurou-lhe a cabeça e não resistiu aos ferimentos. Um outro foi para a Metrópole inutilizado.

No dia 14 houve um ataque a Buba. Um estilhaço de granada alojou-se no pericárdio de um colega meu, que também não resistiu aos ferimentos.
José Teixeira (2005)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P440: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969

Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Chamarra, o guineense, menino no tempo da guerra colonial, entre o Albano (à direita) e o Camilo (à esquerda) levou-nos ao local onde era o posto avançado de Chamarra e havia esta placa guardada religiosamente: indicava Gatos Negros, CART 1612 (?)

© Albano Costa (2006)


Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Vestígios da presença dos tugas, a CART 1612 (?), "bravos e leais" ... É espantosa a emoção com que se mostram (os guineenses) e se (re)descobrem (os portugueses) estes toscos marcos da nossa passagem por terras da Guiné...

© Albano Costa (2006)

Curta mensagem do Albano Costa:

Caro Luís Graça: Lembrei-me de enviar estas fotos de Chamarra... o José Teixeira merece ver estas fotos foram tiradas num dos postos avançados da Chamarra, em Novembro de 2000. O diário dele está muito interessante.

Um abraço,
Albano Costa.
__________________

Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):

Mampatá, 5 de Janeiro de 1969
Estou de volta a Mampatá, depois de uma coluna a Buba. Se todas as colunas de abastecimento fossem como esta, não me importava de fazer colunas. Estiveram cerca de 400 homens em movimento e cerca de 30 Km de marcha (60 km em dois dias) por picada e bolanha sem que o IN desse sinal de vida. Tive assim oportunidade de conhecer mais uma tabanca, ou seja Nhala, onde encontrei amigos da CCAÇ 2382.

Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.

A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).

A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (1)...


Chamarra, 10 de Janeiro de 1969
Chamarra é o meu novo habitat desde ontem. A despedida de Mampatá foi triste, chocante mesmo. Custou-me imenso deixar aquela gente que me ensinou que o Africano, sendo compreendido e ajudado, torna-se um amigo sincero. Alguns membros da comunidade foram pedir ao Chefe de Tabanca, Alferes Aliu Balde, para eu ficar. Este foi a Aldeia Formosa pedir ao Capitão, mas como o meu Pelotão segui para Buba e apenas ficou o 1º Pelotão em Chamarra, o Capitão autorizou que eu ficasse na Chamarra e viesse uma vez por semana a Mampatá dar apoio ao Enfermeiro da Milícia que me vai substituir, dado que a defesa de Mampatá ficou entregue a um Pelotão de milicia (2) A festa de despedida foi mais uma vez chocante para mim.

Chamarra é pequenina. Só meia dúzia de moranças e os habitantes parecem que também são boas pessoas.


Chamarra, 16 de Janeiro de 1969

Gadamael foi teatro de uma das maiores lutas no Ultramar entre a Força Aérea e o IN. O resultado, pelo que dizem demonstra bem o poder da aviação e sobretudo mostra que os homens se matam sem compaixão e mesmo neste caso em que as nossas forças lutam para manter a ordem não há homem, creio eu, que não sinta o coração sangrando, quando vê o inimigo a sofrer, numa luta desigual.

Gadamael estava a ser atacada como nunca qualquer outra população da Guiné. Muitos homens, com as melhores armas, algumas utilizadas pela 1ª vez. Atacavam de longe ao ponto de os colegas de Gadamael pensarem que o ataque se dirigia a um sítio de ninguém, daí pediram à FA [Força Aérea] para bater a zona.

Quando os Fiat sobrevoaram o IN foram metralhados por uma quárupla antiaérea. Deixaram 200 kg da sua carga mortífera e foram buscar mais. Os T 6 (Bombardeiros) apareceram também e durante duas horas foi um descarregar de bombas. Nós só víamos os aviões à distância e ouvíamos o estrondo dos rebentamentos, mas calculamos que tenha sido uma luta terrível, tal a quantidade de chocolate que estourou. Eu imagino o chão juncado de cadáveres, regado com o sangue dos mortos e feridos, imagino os gritos lancinantes dos feridos ao verem a vida a fugir-lhe. Parece-me que estou a ver os que ficaram ilesos carregar os mortos.

Dentro de mim há uma confusão tremenda. A paz consegue-se fazendo a guerra. impondo-a até certo ponto através das armas que matam. É certo que aqueles queriam fazer guerra, estavam a atacar uma população que quer a paz, que quer ir para o seu trabalho na bolanha sem arma, sem medo que alguém lhe surja no caminho com intenções assassinas. Uma população que quer viver na sua tabanca despreocupada, sem precisar de correr a toda a hora para um abrigo e dormir debaixo de terra para não ser surpreendida, uma população que quer viver sem precisar de matar, mas haverá homens com coração de pedra que não sinta tanta morte, homens que foram levados talvez à força ou com uma dose maior de vinho de palma, como consta que acontece muita vez...

Dizem-nos que temos de fazer a guerra para impor a paz, que aqueles que morreram e os que ainda estão vivos, são um perigo para a sociedade guineense. Eu e os meus camaradas, tantos outros, já sofremos muito por sua causa. Arriscamos a nossa vida a todo o momento por causa dessas mãos assassinas, cujo prazer é matar. Um prazer cego ao ponto de verem os seus camaradas morrerem às dúzias e continuarem a luta. Será prazer, ou será a convicção da sua razão que os faz lutar ?

Porque é que estes homens querem a guerra, quando podiam viver em paz, do seu trabalho, na sua Tabanca, no seu lar com os seus filhos ? Que os faz lutar ? Que faço eu no meio disto tudo ? (3)


Chamarra, 23 de Janeiro de 1969

É tremendamente chocante ver morrer um camarada na guerra, mas custa muito mais quando se morre por acidente, por descuido e sobretudo quando a morte é causada por vingança de outrem.

Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.

Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer.


Chamarra, 25 de Janeiro de 1969

A minha Companhia está de luto. Tantas colunas de abastecimento de Aldeia Formosa para Buba e vice versa, de Aldeia para Gandembel e na última que fazia, quando se retirava para Buba, um soldado que nunca saíra para o mato por estar impedido à Secretaria morreu. Dizem que foi por descuido, pois parece que ia em cima de uma viatura quando rebentou a primeira emboscada, saltou, reagiu com os outros ao IN e saltou novamente para o matador. Alguns metros à frente rebentou uma mina e foi projectado a grande altura, morrendo segundo consta, algumas horas mais tarde no Hospital de Bissau. Fim de Janeiro triste...

Chamarra, 30 de Janeir de 1969

Já segui para Bissau, sob prisão, um soldado branco suspeito de ser o causador dos mortos em Aldeia Formosa no dia 22. Afinal o Russo, impedido à Secretaria, que foi ferido na mina anticarro que destruiu o matador, não morreu, nem ficou sem pernas. De qualquer modo segui para Bissau bastante ferido num braço. A guerra para ele acabou.

_____

Notas de L.G./J.T.

(1) Vd o resto do diário, referente à Maimuna, no post de 31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDVI: Maimuna, uma história de amor (José Teixeira) (L.G.)

(2) Soube um ano depois, após a queda de Gandembel, que a situação piorou de tal maneira que foi lá colocada um Companhia (J.T.)

(3) Que admiração tenho hoje por este povo, pobre e humilde, puramente selvagem Como eu gostava, hoje, de ser selvagem como eles. Amavam a sua terra, queriam ser donos do seu próprio destino. Lutavam. Sacrificavam-se, palmilhando quilómetros e mais quilómetros, para dizerem:
- Estamos aqui na nossa terra, ide-vos embora! -, como tantas vezes ouvi, através do troar das suas armas, que teimosamente se recusavam acertar no alvo ou mesmo nas populações ditas fiéis, nas Tabancas por onde passei.

Um dia o Raul Fodé de Empada,, meu companheiro na profissão de assistir a população em cuidados de saúde nos seus poucos conhecimentos de enfermagem colhidos no contacto com a tropa portuguesa, em Empada, pessoa culta, teólogo muçulmano, disse-me:
- Tixeira nos queremos que tu firma na Guiné. Deissa arma e vem na Tabanca.- … [Teixeira, queremos que tu fiques aqui. Deixa a tua arma e vem para a nossa tabanca]... Deixa a tua arma, abandona o teu exército!, ele que acompanhava esse mesmo exército com a sua arma igual à minha, a bolsa de Enfermeiro...

terça-feira, 17 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P434: Comentário ao Diário de José Teixeira (J.C. Mussá Biai)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972:

Malta da CART 3494, em passeio despreocupado pela tabanca do José Carlos Mussá Biai, que na altura era criança... O segundo, a contar da esquerda, é o ex-1º cabo radiotelegrafista Castro. A CART 3494 (1972/74)esteve aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74). Pertencia ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.

© Sousa de Castro (2005)


Meu caro Luís:

Acabo de ler o diário de José Teixeira que acho muito engraçado (no bom sentido) e com um sentido de humanismo raramente visto. Isso só demonstra o sentido de solidariedade e compaixão que une os dois povos.

Cumpre-me fazer algumas correcções:

(i) Aquilo que ele escreve como vianda devia ser bianda;

(ii) Aquilo que ele escreve vem na cume devia ser bim nô cumé;

(iii) O que escreve de gila deve ser guila e o significado não é contrabandista, mas sim, comerciante ambulante;

(iv) E o dialecto que ele identifica como sendo mandinga, não o é, mas sim fula.

O meu muito obrigado. Um abraço, amigo Luís.

José C. Mussá Biai


2. Comentário de L.G.:

Fico muito feliz por reencontrar, agora aqui no bosso blogue, o José Carlos, que faz parte da nossa tertúlia, como guineense, como português e como amigo. Recorde-se a sua história:

Nasceu no Xime, e era menino no tempo em que por lá passaram a CART 2715 (1970/72), a CART 3494 (1972/73) e a CCAÇ 12 (1973/74). O furriel miliciano enfermeiro, da CART 3494, de nome José Luís Carvalhido da Ponte, natural de Viana do Castelo, foi alguém especial na sua vida e na vida de outros meninos, por ter sido seu professor na única escola que lá havia, o Posto Escolar Militar nº 14.

Também teve como professor, depois da CART 3494 ter ido para Mansambo, o furriel Osório, da CCAÇ 12, que dava aulas no Posto Escolar Militar nº 14, juntamente com a esposa. Fez a instrução primária debaixo de fogo. Um dos seus irmãos, o Braima, era guia e picador das NT. O seu pai, um homem grande, mandinga, do Xime, o chefe religioso da comunidade islâmica local (um almanu).

A família, de etnia mandinga, teve problemas depois da independência devida à colaboração com as NT. Teve irmãos que fizeram o serviço militar em Farim e que depois foram presos. O José Carlos, nascido em 1963, foi para Bissau fazer o liceu. Foi cinco anos professor, até vir para Lisboa e obter uma bolsa de estudo da Fundação Gulbenkian. Hoje é formado em engenharia florestal. É casado. A sua mulher é natural do Xitole, filha de um comerciante conhecido dos tugas, o Braima.

Trabalha e vive em Portugal, no Instituto de Geográfico Português. Mas nunca mais voltou a encontrar os seus professores do Xime. O José Carlos é um exemplo de tenacidade, coragem, determinação e nobreza que honra qualquer ser humano. Que nos honra a nós e ao povo da Guiné-Bissau a ele que também pertence.

Guiné 63/74 - P433: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (7): Mampatá, Outubro-Dezembro

Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):

Créditos fotográficos: © José Teixeira (2006)


Mampatá, 29 de Outubro de 1968
Quase seis meses se passaram, já, desde que deixei a Metrópole. Parece que estou a ver à minha frente o cais de embarque e milhares de pessoas que com as lágrimas nos olhos e lenços a esvoaçar diziam adeus aos jovens familiares que se lentamente se afastavam com destino à Guiné.

Este tempo, os primeiros meses da guerra, sempre o mais difícil, tem-me custado imenso a passar. Ambientes diferentes, um clima doentio que me marcará para sempre, a guerra com todos os seus perigos. Até a própria natureza parece diferente. Tudo isto são factores, que a par das saudades da família que ficou preocupada, da namorada que lá longe sofre na incerteza, influem no meu estado de espírito.

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > A antiga enfermaria do José Teixeira

Já corri muitos perigos. Balas e estilhaços que mãos criminosas, inconscientes ou talvez conscientes do direito de terem a sua Pátria livre, lançaram sobre mim. Já percorri muitos quilómetros, conheci terras, povos e culturas, paisagens maravilhosas. Por muitos anos que viva, jamais esquecerei a Guiné, a forma natural como os seus povos vivem, a fraternidade que comungam entre si, a sua forma simples de Ser, em que o Ter não é importante, mas o viver cada dia como que o seguinte não existisse.

A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:
- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos.
Guiné-Bissau > Quebo > 2005 > Um hospital (?)...

A refeição animada com a conversa sobre a forma de viver em Lisboa, quando chega um estranho elemento, carregado de panos e bujigangas, era um gila (contrabandista oriundo da Guiné Conacri). Começou o diálogo em Mandiga:
- Na pinda . .. Jame tum … - . O homem sentou-se e começou a comer connosco. O ditado Português diz “para mais um chega sempre”, agora para mais dois… mas chegou.

Após ter comido connosco a pouca vianda que havia tentou vender os panos que trazia, depois foi-se embora, com muitas saudações e com um Djarama nani ( muito obrigado) no final
Quem é? - perguntei.
- Ká sibi - É Gila vem de Conacri, tinha fome. Quando pessoal tem fome …


Mampatá, 1 de Novembro de 1968
Comemoro seis meses que saí da Mãe Pátria. O "Bandido" quis entrar na festa e veio fazer uma visita a Mampatá. Ontem cerca das 20 horas, com seis canhões sem recuo e um morteiro, fez um belo festival nocturno enviando-nos 112 canhoadas que não causaram danos físicos nem materiais. Ripostamos com o 81 e mal o inimigo cessou o fogo, os meus colegas e alguns soldados da Milícia saíram na sua perseguição, sem resultado porque o IN pôs- se de imediato em fuga.

Note-se a diferença de capacidade bélica. Eles trazem todo este material às costas. Isto é demais…
Gui Guiné-Bissau > 2005 > Uma campanha sanitária, tendo em vista a prevenção do paludismo...

Fui procurado pela irmã mais velha da Fámara Baldé. Trazia-me a sua filha com oito meses que estava doente. Tinha Paludismo e estava a entrar na fase crónica, de que quase todos os adultos de raça africana sofrem. Os que conseguem escapar na sua fase mais aguda. A criança apresentava-se muito magra, com 42 graus de temperatura, diarreia e vomitava tudo o que mamava, nem forças tinha para chorar. Acabava de chegar do Hospital de Bissau, segundo me disse a mãe a chorar, sem esperança.
Todos os dias de manhã tinha sua visita.
- Fermero parti-me mézinho para minina, na tem febre e bariga ramassa
Que fazer? Eu que apenas tinha aprendido a tratar feridos da guerra! Estes poucos meses de Guiné ensinaram-me a lutar contra o paludismo nos meus colegas e nos adultos africanos com bons resultados, mas nunca tinha deparado com uma situação tão delicada.

Pedi-lhe para voltar mais tarde que ia pensar o que fazer para salvar a bébé. Para combater o paludismo nos adultos servia-me de um antipalúdico injectável misturado com outro injectável para prever a reacção negativa do coração. Então pensei que, injectando na bebé umas milésimas destes dois produtos, talvez salvasse a criança.

Ontem assim fiz, com todo o cuidado, no posto de socorros ao ar livre, no coberto da casa da Answar. A reacção só se fez sentir cerca de um quarto de hora depois com um pulsar acelerado do coração e um avermelhamento da face. Depois a aceleração aumentou, os olhos dilataram-se e a menina ficou estática por duas ou três horas. Que momentos de ansiedade para mim e para aquela mãe que me confiou a sua filha. Esta chorava e dizia:
- Tu mataste minina! -. Eu pedia-lhe para ter calma e apelava para todos os Santos. Por fim a aceleração do coração começou a baixar e temperatura registou 39 graus. Estava ganha a vida da criança. Abraçamo-nos a chorar um ao outro e a mãe ofereceu-me a menina para minha mulher quando fosse grande.

Ao fim do dia deixei-a levar a menina para a tabanca e chorei sozinho de alegria. Hoje voltou para me dizer que a minina ká na tem xoro, já não vomitou a mamada (2).

Trazia-me água fresca numa cabaça, que ia buscar à bolanha a uma nascente de que se servia também o IN. (Que riscos por minha causa). Trazia-me cachos de bananas e eu tinha de todas as noites ao passar para o meu abrigo ir parte mantanhas ... à minha mulher. Se não o fizesse, a mãe chamava:
- Fermero tu não vens ver tua mudjer e parte mantanhas a ela !
Dizia-me muitas vezes que quando eu viesse para a Metrópole tinha de trazer a minha mudjer.

Assim foi até sair de Mampatá. Tornei-me um visitante da família Baldé. Fámara, Binta Auá e Answar. A mãe era uma velhinha que só falava o seu dialeto e o pai tinha-as abandonado suponho que era gila ( contrabandista) ou IN.


Mampatá, 3 de Novembro de 1968

O dia 3 de Novembro não será esquecido pelos "Amarelos de Mampatá" pois tivemos de travar uma luta de vida ou de morte com o IN que aproveitou a hora do almoço em que os militares se afastaram do seu posto de defesa para buscar na cozinha alimentação, para tentar entrar em Mampatá.

De algum modo eu fui o responsável pela situação criada, pois incentivei um sentinela durante a noite a mandar um tiro na direcção de uma vaca que estava entre as duas faixas de arame farpado e tocava neste, provocando o tilintar das garrafas que lá tínhamos colocado para não sermos surpreendidos pelo IN a tentar entrar pela calada da noite cortando o arame. Esta minha atitude passou-se durante a minha hora de ronda e o sentinela assim fez pouco depois, aparecendo de manhã uma vaca com um buraco numa coxa. Claro que o proprietário, o Régulo Alfero Aliu (Alferes da Milícia) vendeu a vaca à tropa.

Há mais de um mês que não comemos carne, porque os Africanos se recusam a vender qualquer animal. Assim foi fácil convencer o proprietário a vender a vaca ferida, mas ficou-nos cara.

Praticamente todos os postos de sentinela ficaram abandonados à hora do almoço o que não é habitual, mas o estranho foi o turra saber exactamente o que se estava a passar e atacou.

Quase todos os soldados tiveram de correr para as suas posições debaixo de fogo e durante quinze minutos a luta foi terrível com "eles" junto ao arame com fogo cerrado. Chegamos a ter a sensação que estavam cá dentro o que não se verificou graças à nossa capacidade de resistência e por sorte também. Ao tentarem entrar pelo lado de Buba, o Silva Algarvio que não tinha vindo buscar a comida ao refeitório por estar doente, aguentou-os até chegarem reforços e obrigou-os a retirar. Aliás foi ele que deu o sinal. Ao ver um grupo de africanos com armas que não eram a velha mauser a tentarem forçarem a porta em rede de arame farpado, estranhou e abriu fogo, depois… foi, cantinas de comida pelo ar e umas loucas correrias para os abrigos de protecção. Segui-se o “chocolate” do costume. Os assaltantes recuaram para selva e o fogo continuou.

Onze moranças ficaram destruídas pelo fogo, pois utilizaram balas incendiárias e também destruiram o paiol. Fiquei assustado e desorientado porque dada a intensidade do fogo e a estratégia adoptada pelo IN contava ter muito que fazer com os feridos talvez mortos, atendendo a que ninguém contava com tal surpresa e os postos estavam desguarnecidos e sobretudo porque tinha pouco material de socorro ( apenas 2 sacos de soro).

Ainda debaixo de fogo saí do abrigo onde me protegera e corri pela tabanca à procura de feridos, junto dos abrigos subterrâneos onde se abrigara a população. Felizmente nada aconteceu, foi só fogo de vista susto e prejuízos materiais. Graças a Deus.

Pergunto-me como que a população não foi atingida e as suas casas foram queimadas ? Ataque combinado ? Notámos que o “catequista” muçulmano saiu de manhã cedo para a bolanha, o que é estranho pois costuma estar sempre na tabanca a ensinar os putos e só voltou muito depois do ataque. Temos de o trazer debaixo de olho, como disse o Alferes Belo depois de saber a sua ausência.

Novo ataque de. . . formigas. Dormia a bom dormir depois de uma ronda de duas horas pelos postos de sentinela. Um colega dá um grito: Aiiiiiiiii. Logo de seguida, eu, e os outros dois colegas saltamos da cama pensando que era mais uma visita do IN. Aconteceu-nos exactamente o mesmo que aos colegas do posto do morteiro. Estávamos todos cravados de formigas e o chão era um autêntico tapete preto. Iniciamos logo o combate dirigido por mim pois já tinha experiência da sessão anterior com o Rio Maior.

Quem não gostou foi Djaló, pois a palhota dele sofreu um ataque di branco e ficou sem palha. Foi a única maneira de matarmos as formigas e podermos continuar a dormir descansados.

Foi aqui que pude apreciar a sua capacidade organizativa. Com a bota esmagava um grupo delas e logo as mais fortes se dirigiam para o local fazendo como que um cerco de protecção. Mais tarde nas minhas experiências pude verificar que ao interromper uma a fila de formigas, todo o grupo parava até vinte / trinta metros à frente e rectaguarda e iniciavam de imediato o envolvimento à zona afectada seguindo à frente as mais fortes.


Mampatá, 5 de Novembro de 1968

Atacaram Gandembel com o Morteiro 120 e às 3 horas da matina, Ponte Balana acordou debaixo de manga de chocolate (fogo intenso). Não sabemos se houve acidentes pessoais.

Parece incrível que a zona do Corubal que, segundo dizem é das mais lindas e mais ricas da Guiné, se encontre mal defendida. Há lá uma tabanca onde só existem três armas antigas, canhangulos. Da última vez que o IN a visitou, a população fugiu para o mato e eles entraram à vontade, roubaram o gado e incendiaram as tabancas.


Mampatá , 29 de Dezembro de 1968
Há uns tempos que não pego no Diário. Senti-me por uns tempos desorientado, mas agora estou melhor. Habituei-me ao ambiente e às situações que tenho de viver - estou em guerra - e tudo se tornou mais fácil, apesar de começar a não entender a razão desta guerra. A população quer paz para viver e nós, ao estarmos cá, trazemos-lhe a guerra. E de facto a guerra continua, mas a situação nesta área está mais calma e a relação com os povos locais - Fulas Mandingas, Fula Futas e Balantas - é excelente. Estou a gostar de viver aqui.

A bajuda Jobo Ansato (Joaninha, como eu lhe chamo), começou há tempos a ter um comportamento diferente para comigo. Várias vezes me ofertou fruta, chama-me muitas vezes à noite para a porta do abrigo subterrâneo onde dorme, gosta de conversar comigo e fica ciumenta quando me vê a conversar com outras bajudas. Com a Fámara, por exemplo, que é a jovem mais linda que eu vi em toda a minha vida. Eu, embora notasse essa mudança, não conseguia compreender a sua razão de ser.

Ontem, como tantas outras vezes fui até à sua tabanca e a conversa virou para os feridos de guerra as doenças da população e a acção dos enfermeiros e fiquei espantado ao ouvi-la dizer dizer:
- No último taque di bandido eu ver Tixera ir por Tabanca, baixo di fogo perguntá tudo dgente si ká na firido. A mim nesse dia ficá manga di contente com Tixera. Tixera i amigo di Africano.- Para meu espanto verifico que foi a partir da data do último ataque que sofremos que se deu esta mudança no seu comportamento. Como uma simples acção no cumprimento do meu dever pode influir tanto na maneira de pensar e agir de uma pessoa !

A minha fama de curandeiro depois da recuperação da Binta, assim se chama a bebé que curei, fez-me passar por outra aventura do género. Apareceu-me na Enfermaria improvisada, ao ar livre, uma mulher que não era da localidade a pedir-me para ir ver o seu minino que ramassa (vomita) e tem corpo quente, manga d'ele (temperatura).

O menino estava numa cubata perto da Enfermaria, deitado numa esteira no chão e apresentava os mesmos sintomas da Binta, muito magro, alta temperatura, sem forças nos braços. Era um pouco mais velho, mas estava esquelético

Hesitei, tal fora o susto que tinha passado e insisti para o levar a Aldeia Formosa e daí para Bissau na avioneta que viria dois dias depois trazer o correio para os militares, dado que não havia médico nesta localidade.

Numa mistura de Português, crioulo e dialecto da etnia, a mãe só me pedia:
- Cura minino. Dá quinino para minino ficar bom.

Preparei o medicamento servindo-me do mesmo sistema que utilizei na Binta, apenas em menor quantidade e dei a injecção ao miúdo, cujo nome não cheguei a saber.

As reacções foram as mesmas, só que desta vez a recuperação foi mais lenta. O coração parecia um cavalo, embora o corpo estivesse como que paralisado, apenas mexia os olhos dilatados.

Para meu azar, a mãe e a proprietária da cubata entraram em pânico, mais que eu próprio e começaram a ameaçar-me que se o menino morresse o marido me matava a mim, cortava-me o pescoço. Faziam o gesto com uma catana que sempre usam.

Eu só pedia calma e acompanhava o estado do bébé. Tal como da outra vez, ao fim de umas horas a temperatura baixou, a face deixou de estar avermelhada e os olhos perderam a dilatação.

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > O ex-1º cabo enfermeiro Teixeira da CCAÇ 2381 encontra o seu antigo ajudante de enfermagem, Braima, 36 anos depois...

Deixei a criança entregue à mãe, recomendando que lhe desse uma pequena mamada e fosse aumentando a dose conforme ele fosse reagindo. Se a temperatura subisse ou vomitasse devia chamar-me de imediato. Se não houvesse nenhuma situação anormal, eu voltaria no dia seguinte para ver o menino.

À noite rondei a casa para ver se havia alguma anormalidade e no dia seguinte dirigi-me para lá, ainda cedo, para ver o estado do bébé, mas não consegui voltar a vê-lo porque a mãe, de manhã cedo abandonou Mampatá, pelos vistos, feliz porque o seu minino já comia e não tinha o corpo quente.

De onde veio, quem era, nunca chegarei a saber, pois a dona da tabanca diz que não conhece a mudjer que esteve lá em casa com o menino, apenas lhe deu hospedagem por uma noite.
__________

(1) Em 2005 procurei o Hamadu. Sei que foi viver para Buba, sendo actualmente quem dirige as orações na Mesquita local. Não consegui encontra-me com ele, apenas conheci uma neta, por quem deixei uma mensagem.

(2) A recuperação foi de cerca de oito dias. Daí em diante, todos os dias a mãe trazia-me a menina: - Tua mudjer vem parte mantanhas (cumprimentar).

quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P420: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (6): Mampatá, Setembro-Outubro de 1968

Marrocos > A caminho da Guiné-Bissau > Abril de 2005 >

O (im)possível regresso ao passado... O José Teixeira regressa aos sítios por onde andou em 1968/70, no sul da Guiné... Desta vez a missão é pacífica: o jipe vai carregado de...livros escolares

© José Teixeira (2005)


Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):


Mampatá, 11 de Setembro de 1968

Desta vez foi Chamarra a escolhida para fazer a festa. Cerca das 20 horas o bandido abriu fogo com vários canhões e lança-roquetes. Durante uns minutos ouvimos ao longe o ruído característico do rebentamento de granadas. O pelotão da minha Companhia que aí se encontra destacado, comandado pelo Alferes Barbosa reagiu bem, pondo-os em debandada. Mesmo assim há a lamentar um soldado ferido e dois mortos civis, uma mulher e uma criança... Tantas vítimas inocentes nesta guerra que não quero fazer!


Mampatá, 15 de Setembro de 1968

Visitei Chamarra. O último ataque foi tremendo. Aproximaram-se do arame farpado para pregar aos meus colegas uma terrível partida, apanhá-los à mão. Felizmente os meus colegas reagiram em força e não permitiram.

Chamarra é o posto mais avançado de ligação com Gandembel, por Ponte Balana, o único caminho que permite chegar a este posto avançado, pois ninguém de bom senso se arrisca a fazer a ligação pelo corredor da morte – Guileje, Mejo e Gandamael Porto. Esse só para o Inimigo e para os Páras ou Comandos, de vez em quando e com muito cuidado, fazer os seus raides de aventura.

Consta que Mampatá vai ser atacado pelo mesmo sistema.


Mampatá, 16 de Setembro de 1968

Ontem Chamarra foi mais uma vez atacado. Desta vez não houve azar. Em Guileje também houve festa dura. A companhia de Páras tem trabalhado bem, no patrulhamento da Zona, mais usada pelos terroristas para introduzirem homens e equipamento, mas mesmo assim....

Guiné-Bissau > 2005 > Que diefrenças entre a Guiné de 168/70 e a de hoje ?

© José Teixeira (2005)

Hoje na estrada de Chamarra-Mampatá ia-se dando mais uma catástrofe. O IN. estava a montar minas A/C na estrada quando uma patrulha de milícias apareceu e abriu fogo pondo o IN em fuga deixando duas minas de 15 Kg. Todos os dias passa nesta estrada uma viatura com 10 homens a caminho de Aldeia Formosa.


Mampatá, 17 de Setembro de 1968

Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....

O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN.

Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo.


Mampatá, 23 de Setembro de 1968

Tudo está calmo, há dias que o IN não ataca. Todos estamos convencidos que o próximo objectivo é Mampatá e com o seu novo sistema de ataque nos vai dar que fazer.

Uma das coisas que me agrada fazer, embora perigosa, é a ronda nocturna pelos postos de sentinela. No princípio detestava, mas agora dá-me prazer. Normalmente passo um quarto de hora em cada posto, a conversar baixinho com o camarada que está de sentinela. Assim, ajudo-o a passar o tempo e a manter-se atento. Esta missão nocturna é distribuída pelo Alferes, pelos Furriéis e por mim.

Ontem aconteceu-me uma cena que dá para rir. Como é hábito, avisei com um pequeno assobio (a senha) o primeiro sentinela que me estava a aproximar. Sentei-me ao lado dele no chão e ficamos a conversar. Não notei que me tinha sentado em cima de um carreiro de formiga preta e quando me levantei senti o corpo todo a ser ferrado. Que dores horríveis pelo corpo todo !

Tirei a roupa toda, arranquei as formigas como pude, coloquei a roupa na ponta da espingarda e continuei a ronda completamente nu. Estava no primeiro posto, faltavam cinco. Os meus camaradas ao verem-me chegar ao posto com o fato que a minha mãe me deu ao nascer gozaram em cheio e durante uns dias não se falou noutra coisa.

A formiga preta faz carreiros de quilómetros à procura das suas presas. Na família desta formiga existem várias funções e tamanhos físicos. Assim as batedeiras são grandes e gordas. Normalmente andam fora da fila a procurar as presas e são as mais agressivas. A fila é composta por duas alas laterais e duas alas interiores, sendo as laterais como que soldados, mais fortes que as que vão no interior, as escravas que transportam o alimento para um esconderijo debaixo da terra

Quando as batedeiras localizam a presa morta ou viva, esta por qualquer razão em estado imobilizado, automaticamente a fila abre-se em duas e começa o envolvimento e a tomada de assalto sem que a vítima dê por nada. Quando esta se mexer sentirá milhares de ferradelas. Os cornos das formigas ficam de tal maneira cravados, que muitos ficam agarrados ao corpo, quando a vítima se tenta libertar. Foi isso que me aconteceu. Dizem que gostam muito de atacar os ‘tomates’ e eu que o diga !

Disse-me a Aliu Djaló que a giboia depois de asfixiar a presa explora a zona num raio de 20 a 30 metros e se sentir que há formigas, abandona o alimento. Acontece que como fica vários dias a deglutir o animal que caçou, se as formigas forem atraídas pelo sangue da vítima, ou a descobrirem cobrem-na e no momento em que com o estômago cheio tenta abandonar o local, as formigas atacam e ficam com alimentação para vários dias.

São milhões de formigas. Eu vi uma cobra apanhada pela formiga, melhor, vi uma mancha negra do que fora uma cobra.



Mampatá, 25 de Setembro de 1968

Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal.

Um novo ser que ri e chora. Um novo ser que é feliz porque não sente, não houve o troar das armas, não foge para o abrigo aterrorizado, não se deita no chão para fugir às balas assassinas e traiçoeiras. Vai com os outros e se morrer ?... não conhece, não sente, não ama...

Guiné-Bissau > 2005 > A actual estrada (asfaltada) de Quebo para Mampatá Forea.

© José Teixeira (2005)

Ontem fui chamado para assistir a uma mulher que estava a ter uma criança e se sentia muito mal. Assisti-a o melhor que pude. Mãe e filho estão bem.

Na minha ronda de ontem apanhei um susto que no fim deu para rir às gargalhadas.
Estava na ponta norte da aldeia, pelas duas da madrugada, quando avisto um clarão na ponta sul. Parecia uma tabanca a arder. Por vezes diminuía de intensidade e não se ouvia qualquer indício de movimento de pessoas. Pensei: é o inimigo que atacou o posto do morteiro, num golpe de mão e apanhou os meus colegas. Vou mandar uma rajada para acordar o pessoal. Depois decidi ir ver o que se passava atravessando a aldeia com todo o cuidado por entre as tabancas e fui dar com os meus colegas todos nus a tirar palha das tabancas, incendiá-la e queimar milhares de formigas que aproveitando-se do seu sono os visitaram e quando um deles se mexeu foi uma autêntica catástrofe, ao sentir dezenas de corninhos a picarem-lhe o corpo todo. O vizinho acordou com o grito que o desgraçado deu e sentiu o mesmo. O chão era um tapete negro, pelo que quando puseram os pés no chão tiveram outra surpresa.. Então começou a luta entre o soldado Português e a formiga preta da Guiné. Houve milhares de mortes por parte do inimigo, um grande susto que eu apanhei e por pouco não pus a Tabanca toda em alvoroço às duas da manhã.


Mampatá, 27 de Setembro de 1968

Há alguns dias que a guerra parece ter parado. As povoações deixaram de ser atacadas. As colunas fazem-se sem incidentes, só as minas continuam. Desta vez foi um alferes em Gandembel que pisou uma bailarina que o cortou pela cintura. Para ele como para tantos outros acabou a guerra...

Os dias sucedem-se no seu marchar monótono, uns mais fáceis de passar, outros mais difíceis, mas a realidade é que eles vão passando e com eles vai o sofrimento de quem se vê longe dos seus e anseia que chegue o último dia, o dia em que de novo se aproxima dos seus entes queridos, os abraça e se fica com eles, jurando a si mesmo, nunca mais se afastar.

Porquê este desejo enorme que o tempo passe se com o seu andar nos torna mais velhos ? A felicidade só é possível onde haja amor, onde haja paz. Num ambiente de guerra onde somos uns estranhos, numa terra que não é nossa e que desconhecemos, onde nos consideram e respeitam porque precisam de nós, porque lhes tratamos as feridas e matamos a fome e sobretudo porque temos a força das armas, neste ambiente de desamor, onde muitas vezes impera o ódio e o terror, não pode haver felicidade e o que é a vida sem uma réstia de felicidade ?

Que vale a vida se não vemos o "outro" ou passamos por ele e porque as circunstâncias o exige, fingimos não o ver ?... Vivemos na esperança que o tempo, uns escassos meses da nossa vida, passe depressa para uma liberdade duradoira e uma paz excelente...

Apanhei mais um susto. Na Guiné há noites que mais parecem dia, tal é a luz do luar. Quantas cartas eu escrevi de noite enquanto fazia horas para iniciar a minha ronda. Noutras ocasiões a escuridão é tão profunda que não se vê um palmo à frente do nariz. Numa dessas noites ia eu de um posto de sentinela para outro, às apalpadelas e por vezes contra as palhotas, quando sinto que bati em algo que se mexeu. Tive um pressentimento e gritei:
- Tem calma pessoal fricano, é fermero (enfermeiro) qui na vai !- Ouço a voz do Suleimane (1):
- Tu na tem sorte, djubi (estás com sorte, olha). - Mostrou-me a catana que tinha na mão. Disse-lhe eu:
- Sorte na tem tu!- e mostro-lhe o dedo no gatilho da G - 3, pronta a disparar. Demos um abraço e ficamo-nos a rir. Tinha vindo fora da tabanca urinar, mas como estava muito escuro houve um choque que podia dar mau resultado.

Mampatá, 21 de Outubro de 1968

Recomeçaram os ataques a Gandembel. Há algum tempo que paira no ar uma atmosfera tensa.. A dúvida e a preocupação vê-se em todos os rostos. Podiam começar em qualquer lugar.

Ontem, em Bacardado, pequeno povoação que só tem um pequeno grupo de milícias com mausers, a dois quilómetros de Mampatá, junto à estrada onde passamos todos os dias. O terrorista apareceu de noite e queimou toda a povoação e feriu alguns nativos. A pouca população juntou-se e defendeu-se bem, pondo o bandido em fuga. Apenas ficaram de pé três palhotas. Animais, dinheiro e haveres, foi tudo queimado.


Mampatá, 23 de Outubro de 1968

Passei em Bacardado. Triste abandono, palhotas queimadas, animais mortos, nem uma viva alma, só os abutres, medonhos, anunciantes da morte e da desolação, procurando os restos de carne para com avidez saciarem a fome e um cheiro nauseabundo e pestilento...

A estrada está vazia. O medo fez a população abandonar o que porventura lhes restava e vieram acolher-se a Mampatá. Deixou de haver movimento humano na estrada. Quando passávamos de viatura, as crianças, nuas e sujas de lama, mas com a alegria no rosto acorriam a dizer adeus e a desejar bom biaje. Agora vejo-as todos os dias à minha frente esfomeadas, a mendigar migalhas para matarem a fome.

O vazio da estrada transmitiu-se à alma. Também ela sofre. O coração chora tantos inocentes que procuravam viver a sua vida em paz, só queriam uma bolanha para trabalharem a terra e tirarem o seu sustento. De um momento para outro viram surgir junto de si, um inimigo traiçoeiro que, escondido no alto capim, esperou que a noite viesse, como uma fera que espera a sua presa , para protegido pela escuridão, incendiar, ferir, matar, arrasar tudo - se meia dúzia de valentes não lho impedissem - e depois fugir cobardemente à procura de protecção para lá da fronteira.

Porquê atacar e matar os seus irmãos de raça ? Não sei (2) ...
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(1) Tive o prazer de reencontrar o Suleimane em Abril de 2005 no Saltinho. Estava o mesmo, parece que os anos nem passaram por ele.

(2) Em Abril de 2005 visitei Bacardado e como fiquei feliz ao verificar que a vida logo depois do fim da guerra recomeçou e hoje liga com Áfia e Mampatá Forea fazendo como que uma única aldeia!