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sábado, 20 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25091: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (3): "Mulher 5 estrelas"



MULHER 5 ESTRELAS

adão cruz

- Ó Alves, escusas de estar para aí muito chateado por eu ter ido dormir com o meu ex, apenas com o fito de lhe gamar umas sapatilhas para o meu filho. E não te armes, pois tens à tua frente uma mulher 5 estrelas, que te ama, e é capaz de te mandar um pontapé nos tomates da noite pró dia.

A mulher 5 estrelas não era nova nem velha, tinha aquela idade subjectiva em que ninguém acerta. Era magra, quase escanzelada, e até não seria feia se tivesse dentes. Daí, a resposta do Alves não ser de todo descabida:
- 5 estrelas, o caralho!

O Alves ainda não tinha o estigma da terceira idade mas andava lá perto. Baixo e estreito, tinha aquela estatura que habitualmente se designa como roda 26. Devia ter tido um AVC, pois apresentava um pequeno desvio da comissura labial e soprava ligeiramente as sílabas graves, assobiando as agudas.

Ninguém tem nada com a vida dos outros e muito menos a D. Alice que por ali aparece, para comer uma torradinha e beber meia de leite, quando o negócio das cuecas e camisolas a um euro ou dos guarda-chuvas assim o permite.

- Coitada, e apontava o dedo à mulher 5 estrelas. Foi casada com um médico, não era bem um médico desses doutores de Medicina, era uma espécie de endireita. Um dia ele caiu de uma figueira e nunca mais se endireitou. Como não foi capaz de se endireitar a si próprio, nunca mais ninguém acreditou nele. E caiu outra vez, mas na miséria. Esta pobre, e estendeu o dedo na direcção da mulher 5 estrelas, ficou sem eira nem beira, com um filho nos braços (supomos que o mesmo que a levou a dormir com o ex). E, é claro, pôs os cornos ao marido na primeira esquina da vida. (A mulher 5 estrelas acenava com a cabeça em jeito de confirmação e aprovação. E inventou uma lagrimeta nos olhos).

- Mas não foi com este borradito, continuou a D. Alice com o dedo espetado no Alves. Este veio na onda da desgraça. Não é má pessoa, mas teve um ABC e ficou com a boca a tocar flauta e a mão a pôr açúcar nas farturas. O que lhe tem valido é a fé da velhota dele, ali sempre ajoelhada na Capela das Almas a pedir a cura. O certo é que está muito melhor e só quero que o Senhor o conserve. Do mal o menos. Ai Deus me perdoe, não leves a mal, ó Alves, mas sabes que é por bem que eu digo estas coisas e não era capaz de dizer mal do meu genro, ainda que meio emprestado.

Só aí ficamos a saber que a mulher 5 estrelas era filha da D. Alice e que o Alves fazia o papel de genro mais ou menos oficial. Portanto retirámos, neste caso, a observação de que ninguém tem nada a ver com a vida dos outros. Ela tinha.

O Alves não parecia lá muito contente com a conversa e já estava com os cabelos em pé. Por acaso não estava porque os não tinha. Quando foi danificado pelo AVC, os seus papéis foram trocados pelos de um outro doente que era cauteleiro e tinha um tumor cerebral. Aplicaram-lhe uma valente dose de quimioterapia que lhe fez cair tudo o que era pêlo. Quando deram pelo engano, já ele se queixava de quase tudo e até que mijava às pinguinhas. O médico disse que era da prósta e deu-lhe um daqueles remédios que amolecem o órgão mas põem um gajo a ejacular ao contrário, a ejacular para dentro. Por isso lhe fazia uma grande espécie quando ele batia uma e sentia todo aquele doce no baixo-ventre mas nem uma gota. Também por isso a mulher 5 estrelas lhe dizia que ele era uma malagueta seca. Com ele não precisava de tomar a pírula, ao que ele retorquia dizendo que nem com ele nem com outro, pois ela já tinha o úter fora de prazo.

E assim se passou um bocado da tarde entre dois finos, com o Alves a levantar-se da cadeira para depor ternamente um beijo na face da mulher 5 estrelas, esta a sorrir tapando a boca com a mão espalmada, a D. Alice a lamber os dedos besuntados de manteiga, e nós a virarmos a última página do jornal, desiludidos com as mentiras e as hipocrisias deste mundo.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25069: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (2): "A Rainha"

domingo, 14 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25069: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (2): "A Rainha"


A RAINHA

adão cruz

Dizem que toda a vida sonhara ser Rainha. Rainha de qualquer coisa, já que não podia ser Rainha a sério. Por isso, no bairro, todos lhe chamam Rainha. A Rainha para aqui, a Rainha para ali.

Não que haja, em bairro tão pobre, qualquer tipo de estatuto, hierarquia ou respeito especial. Não é um bairro onde os respeitos tenham degraus. No entanto, a Rainha, talvez pela idade, é assim uma espécie de pessoa honoris causa, uma espécie de Rainha-Mãe.

Dizem que é a prostituta mais antiga da cidade. Dizem que anda pelos oitenta, mas não precisam de o dizer. Está escrito nas engelhas. Trabalha na parte oriental da cidade, na zona oposta à do bairro onde vive. Noutro reino. Para não misturar as coisas.

Chega um pouco antes da meia-noite, ao único café aberto àquela hora. Senta-se sempre na mesma mesa, se estiver vaga, e na mesma posição. Virada para a porta. Com ela traz o filho e dois netos. O filho, alto e desengonçado, com um pequeno bigode à Hitler, mudo como uma pedra, não fala, e mal se senta não se mexe. Talvez fale para dentro, mas como falar para dentro é pensar, não é provável, porque ele dá a ideia de que não pensa. Dizem que nunca trabalhou e que sempre viveu à custa da mãe.

A neta, dos seus doze anos, engraçadinha, dá a entender que nada existe nem nunca existiu à sua volta. Não mexe uma fibra do corpo. Apenas os polegares, para premir, ininterruptamente, as teclas do telemóvel. O rapaz cola cromos numa caderneta como se, para ele, mais nenhuma tarefa houvesse neste mundo.

A Rainha e o filho comem um prego com mostarda, como quem cumpre um ritual, com os olhos fitos no nada, e bebem um fino. Ele, em duas goladas, ela, aos bocadinhos. Os netos comem hambúrger e bebem algo que está dentro de garrafinhas muito coloridas. E repetem, até à uma hora da madrugada. Entre a uma e as duas horas, o sono vence-os e eles tombam sobre a mesa. O pai pede mais um fino.

Por volta da uma hora, a Rainha mexe-se. Olha para os dedos enrolados em anéis de vários tamanhos e cores, compara-os com as argolas enfiadas nos pulsos magros, a ver se condizem, alisa as roupas e as repas que, teimosamente, saem do gorro vermelho, confirma a cor vermelha das unhas e das meias, espreme os lábios, onde o batom resvala para fora dos bordos e das comissuras por imprecisão das mãos secas e trémulas, sulcadas de veias. Com dificuldade põe a carteira a tiracolo, levanta-se um tanto cambaleante e sai. Dizem que vai trabalhar mas ninguém sabe para onde.

Cinco minutos antes das duas horas da madrugada regressa, antes de o café fechar. Paga a conta, o pai acorda os putos com um safanão, único gesto verdadeiramente activo da noite, e todos, como sonâmbulos, desaparecem na escuridão da rua, dizem que em direcção a casa, no bairro onde a mais antiga prostituta da cidade é Rainha.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24911: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (1): "Assinada e tudo"

domingo, 3 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24911: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (1): "Assinada e tudo"


1. Em mensagem de 1 de Dezembro de 2023, o nosso camarada Adão Cruz enviou-nos este conto cheio de humor:

ASSINADA E TUDO…

adão cruz

Vem isto a propósito ou a despropósito daquela moça trintona que se sentou à nossa frente na mesa da esplanada, entre dois tipos iguais, de fato escuro e pasta preta na mão. Acendeu o cigarro, pousou o maço na mesa, aspirou bem fundo e expeliu para o ar uma longa baforada de fumo e CO2.

Os cabelos caíam pelos ombros em estrias de várias cores, dentro da mesma tonalidade aloirada. Ostentava no alto da cabeça um par de óculos escuros com vidros do tamanho de um CD.

A pele castanha, de cima a baixo, um tanto ebanácea, denunciava uma enorme quantidade de dias, semanas ou meses de ultravioletas dentro das células, encharcadas de melanina. Um vaporoso vestido branco de renda cobria parte do corpo desde o meio dos seios ao terço superior das coxas, deixando perceber que por baixo havia, como que emboscados, um soutien e umas cuecas também brancos, ora espreitando, ora se escondendo, ao sabor dos movimentos.

Um colar cravejado de bolinhas de cor lilás, era irmão dos brincos que chegavam à clavícula. Afilavam os dedos das mãos umas unhas pontiagudas, de uma cor vermelha arroxeada igual à dos lábios, dando ao conjunto um ar vampiresco. Na mão direita havia dois anéis, um duplo, na falange e na falangeta do anelar, presumivelmente ligados por uma fina ponte invisível, e outro enorme, no indicador, com uma cabeça de urso, azul, do tamanho de uma bola de pingue-pongue. No braço esquerdo, uma enfiadura de pulseiras. De resto, céu limpo até aos pés, onde davam nas vistas uns sapatos completamente abertos, com saltos inspirados na Torre Eiffel de cabeça para baixo e cheios de atacadores que se inseriam a meio da perna e desciam até às pontas dos dedos, sendo que o eixo desse complexo de atilhos, tinha um correr de pérolas iguais às da gargantilha. No pé direito, entre o dorso e a planta, uma assinatura percorria o espaço que vai do calcanhar ao dedo mínimo.

Foi quando o meu amigo, de boca pasmada, me disse baixinho:
- E está assinada e tudo, carago!

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domingo, 24 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24693: Agenda cultural (838): Orquestra Médica Ibérica: Hoje, 24 de setembro, às 16h, vai dar um concerto solidário no Altice Forum Braga... Programa: Tchaikovsky, Mendelssohn e Joly Braga Santos... Ingresso: 10 euros


Hoje, 24 de setembro, às 16h, vão dar um concerto no Altice Forum Braga,


Um dos elementos da Orquestra Médica Ibérica (OMI) (fot0 acima, editada por nós, com a devida vénia) é o nosso amigo João Graça, psiquiatra no IPO de Lisboa e músico (violino), que faz parte desde 2009 da nossa Tabanca Grande; a OMI estreou-se em Lisboa, o ano passado, no anfiteatro da Reitoria da Universidade de Lisboa (fotoo acima). (*)


1. "A Orquestra Médica Ibérica, criada em 2020, é composta por médicos e estudantes de medicina de Portugal e Espanha, que partilham a sua paixão pela música e medicina.

"A sua principal missão é criar pontes entre os profissionais de saúde da península ibérica, reunindo-se anualmente para realizar um concerto solidário, cujas receitas de bilheteira revertem a favor de uma entidade que promova a melhoria dos cuidados de saúde, a investigação e a ajuda a pessoas mais desfavorecidas.

"Para tal, a Orquestra Médica Ibérica parte da convicção plena de que a saúde é um direito humano básico que deve ser de acesso universal e um pilar estruturante para uma sociedade mais justa."


2. Concerto solidário, no Altice Forum Braga, hoje 24 de setembro, às 16h00;

Programa (**):


  • Tchaikovsky, Sinfonia nº 5 em Mi menor, op.64
  • Mendelssohn, Concerto para violino em Mi menor, op. 64
  • Joly Braga Santos, Hino à juventude, da sinfonia nº 4 em Mi menor, op. 16

Direção: Sebastião Martins | 1º Violino: Mariana Vilela

O dinheiro angariado na Bilheteira do concerto será inteiramente doado à Associação de Voluntariado Porta Nova.

Bilhetes:

1ª Plateia: 10,00 €
2ª Plateia: 10,00 €

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Notas do editor:

domingo, 17 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24665: Blogpoesia (794): "Lágrima de Sol", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



LÁGRIMA DE SOL

O sol vem sempre
o sol não mente
ou vermelho e quente
queimando a sede
e roendo a fome
de tanta gente inocente
ou pálido e frio
congelando a sede
e empedrando a fome
ainda que a gente o não veja
e pareça ausente.
E também o deserto
o deserto não mente
o deserto sempre aberto
na alma desta gente
ainda que pareça certo
o caminho em frente.
Vem sempre a dor
na secura das carnes
a dor não mente
ainda que ao mundo pouco importe
a dor que dói a tanta gente.
E também a alma não mente
e não mente o sofrimento
do esbugalhar dos olhos
ainda que a mente enlouqueça
e até se esqueça
de que é alma de gente.
E morre a paz
a paz podre não mente
ainda que na vaga esperança da sorte
não seja mais do que a paz da morte.


adão cruz
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24465: Blogpoesia (793): "Um apenas", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 3 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24615: "O menino que abria rãs", texto de Eva Cruz, irmã do nosso camarada Adão Cruz


1. Texto de autoria de Eva Cruz, irmã do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68):

O MENINO QUE ABRIA RÃS

Vou lá abaixo ver o giro da água. Aproveito para olhar as últimas rosas à beira do canastro. Se tirar as velhas, ainda nascem novas. São rosas de muitas cores, plantadas há anos por mãos que perfumam a memória. Ao passar pelo tanque pequeno, dou com os olhos numa rã, da cor de musgo verde salpicado de pintas pretas, tão bem desenhadas que parecia obra de artista. Descansava à superfície da água sobre uma folha seca, como se andasse de jangada. Logo me veio à memória aquele menino que abria rãs, engendrava canalizações com os pés das folhas de abóbora que são ocos, fazia bolas de trapos, gaitas de palha centeia, jogava ao pião, corria tudo de arco e guincheta, construía uma camioneta de pau com travões e barquinhos de papel ou veleiros de cortiça. Caçava melros e pardais com caniçadas, que alojava temporariamente em gaiolas, pois não gostava de lhes roubar a liberdade. Não tinha medo dos bichos, incluindo cobras e lagartos, que dizia serem seus irmãos naturais. Já mais graúdo, o rio era a sua atracção ao fim da tarde, o que que lhe valeu algumas vergastadas nas pernas pelas mãos de nossa mãe. Tinha um pombal com pombos-correio e gabava-se de ter uma pombinha que ganhara um segundo prémio numa largada em Madrid.

Mas foi o facto de o ver há dias, entusiasmado, à volta da rã sarapintada que ali apareceu ninguém sabe como, procurando fotografá-la, que me trouxe à memória o menino cirurgião que abria rãs. Quando éramos crianças, havia muitas no tanque grande ou no rego lodoso da beira do campo do meio. Já rapaz, agarrava uma rã, anestesiava-a, colocando uma bolinha de algodão embebida em éter sobre a cabecita, estendia-a numa tábua de barriga para cima, fixava-lhe as patas com alfinetes e, com toda a habilidade cirúrgica, abria a pele do bichinho de alto a baixo, com a ponta bem afiada de um canivete e uma tesoura pequenina. Chamava-nos então, para que víssemos as suas entranhas e o coraçãozito a bater, do tamanho de uma semente de romã. De seguida, munido de uma pinça e de uma agulha de costura, suturava-lhe cuidadosamente a pele da barriga e esperava que ela acordasse. Mantinha-a alguns momentos no recobro e voltava a pô-la na água com todo o jeitinho. Estupefactos, sentíamos todos uma grande alegria ao vê-la nadar, como se nada tivesse acontecido.

Foi talvez aqui… que começou a aprender a olhar tão bem o coração dos homens.

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Nota do editor

Último post de Adão Cruz de 20 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24570: (In)citações (258): Reflexão extemporânea entre dois copos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 20 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24570: (In)citações (258): Reflexão extemporânea entre dois copos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)



REFLEXÃO EXTEMPORÂNEA ENTRE DOIS COPOS

adão cruz

Todos aqueles que já me leram sabem que eu considero o vinho como a melhor droga estimuladora da criatividade, moderado, claro está. Um copinho de tintol, ou mesmo de branco fresco, nestes dias de verão, é uma bênção do céu, admitindo que existe Céu.

Gostaria que nesta extemporânea reflexão coubesse tudo o que há de bom no mundo, mas infelizmente há mais de mau do que de bom, o suficiente para levar à extinção do ser humano, a espécie que, apesar de tão infinitesimal no Universo, mais tem envergonhado a natureza e mais tem dado cabo de tudo o que poderia criar o equilíbrio e a harmonia.

O vinho, como disse, é uma espécie de fio-de-prumo que equilibra o nosso pensamento. O pensamento é o resultado de triliões de neuro-transmissões, e não é grosseira metáfora dizer que o vinho é uma espécie de óleo que lubrifica os nossos canais neuronais. Quem quiser que acredite, quem não quiser acreditar que beba água. Sem pretender colidir com a maravilha, com a ética e a estética da existência, penso que um copinho permite chegar mais depressa à interface que eu considero como fronteira entre a condição antropológica e a condição universal do ser humano. Só aí, calmamente sentados em qualquer tosca pedra, poderemos olhar o infinito e sentirmo-nos capazes de reconhecer a merda que somos.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24499: (In)citações (257): Não basta sermos velhos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 23 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24499: (In)citações (257): Não basta sermos velhos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)


NÃO BASTA SERMOS VELHOS

adão cruz

Esta reflexão não é só em relação ao SNS que existe, mas também ao SNS que poderia vir a existir se houvesse vontade política. Ao que o SNS poderia vir a ser, se houvesse uma vontade séria de eliminar os defeitos, as imperfeições e as carências, no sentido de o amparar no seu tão ansiado e promissor caminho de um futuro indispensável à saúde de um povo.

Hoje, o conhecimento e a experiência médica são muito grandes. A investigação científica atingiu uma dimensão incalculável e a sua aplicação prática trouxe avanços inimagináveis na assistência aos doentes. Existem muitíssimos profissionais idóneos, com excelente formação técnica e humana e com grande vontade de colaborar no radioso futuro de um SNS de alto nível, mas também se verifica o contrário, nesta furiosa corrida ao desumano negócio da saúde. Apesar de estarmos num bom lugar a nível mundial, não podemos escamotear os defeitos, grandes imperfeições e carências em toda a assistência médica em Portugal, sobretudo na incapacidade de atendimento atempado e na ausência de um exercício clínico profundo e correcto, A substituição da sábia observação clínica de um doente por um computador e por uma fábrica de exames, a avaliação clínica atamancada e a abordagem vulgarmente negligente e irresponsável da situação do paciente, pode redundar em diagnósticos errados, prescrições inadequadas e exames dispendiosos, muitas vezes nefastos e até mortais.

Vem tudo isto a respeito do doente idoso, isto é, aquele doente da chamada terceira idade. Este doente é muito diferente do indivíduo jovem. É mais atingido por doenças, especialmente doenças crónicas e tem muitas comorbilidades. Além disso, as alterações fisiológicas próprias da idade são comuns, levando a problemas de absorção, de metabolismo e de excreção de substâncias.

Chegado ao ponto intencional deste pequeno texto, eu queria dizer que quando há necessidade de prescrever um medicamento a uma pessoa idosa, os principais problemas prendem-se com as patologias não tratadas ou patologias mal tratadas, com a indicação de tratamentos e fármacos inadequados, com a polimedicação, com o baixo nível de instrução, com as fracas condições sociais e económicas, e, sobretudo, com as reacções adversas aos medicamentos e as interacções medicamentosas. O idoso tem duas a três vezes mais probabilidades de sofrer uma reacção adversa do que um jovem. Um idoso a tomar vários medicamentos tem grandes probabilidades de interacções e reacções mais graves e de mortalidade duplamente mais elevada do que as pessoas mais novas.

Neste drama da terceira idade, porque de um drama se trata, essencialmente por passar à margem da responsabilidade e do bom senso, centra-se um dos maiores defeitos e um dos mais graves problemas da assistência médica, pública e privada. Não a que é praticada por profissionais conscientes, responsáveis e competentes, mas a que se faz em muitas dessas clínicas, por vezes quase de vão de escada, que por aí proliferam. A ignorância, a incompetência e a falta de juízo crítico e clínico estão na base de boa parte da morbilidade e mortalidade desta faixa etária.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24480: (In)citações (256): Sigamos a andorinha de Candoz (Luís Graça)

domingo, 9 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24465: Blogpoesia (793): "Um apenas", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



UM APENAS

Faço por ser um apenas…
quando tenho na frente
alguma nata de gente
a dizer o que diz
que a gente não sente.
Mas eu sou eu
e sei o que penso
quando estou sozinho
sem ter pela frente
esta nata de gente
que diz o que mente
e que a gente não diz.
Quando estou sozinho
em silêncio feliz
tal nata de gente
que diz o que diz
sem saber o que penso
não sabe o que rio…
quando não tenho na frente
esta nata de gente.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de > Guiné 61/74 - P24386: Blogpoesia (792): "Soneto", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 25 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24430: (In)citações (252): "Hoje falamos dela", de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


HOJE, FALAMOS DELA

adão cruz

A conversa que deveria ser com a minha amiga da onça não o é. Desta vez não quero nada, tu cá tu lá, com ela. Não é que esteja zangado, mas não quero falar com ela, prefiro falar dela, ainda que me digam que é má-língua.

A descodificação das arquitecturas neurais que levam à razão aponta para um conjunto complexo e heterogéneo de áreas do córtex cerebral, situadas no lobo frontal. A sua superfície cresceu exuberantemente do antepassado primitivo até ao Homem, o que levou a qualificá-lo de órgão da civilização. Há, além disso, áreas circunscritas do sistema límbico envolvidas no prazer e no seu oposto, a repulsa. Tudo leva a crer que o prazer estético resulta da interacção concertada entre as representações mentais elaboradas no córtex cerebral e os estados de actividade do sistema límbico. Se assim for, não se ofendam com a interposição pessoal de uma pergunta: situar-se-á por estas bandas, mais amplas ou menos amplas, a tal identificação com ela?

Numa espécie de conclusiva ilação podemos dizer que quem se entrega a esta atrevida senhora, a Arte, propõe a si próprio uma verdadeira aventura. Para isso tem de traçar um caminho, caminho belo, difícil, desconhecido, atapetado de contradições, sem rota nem destino. Outro não pode ser o caminho da Arte. Neste caminho que atravessou e atravessará os séculos, não podemos deixar de nos situar numa posição de humildes aprendizes. Não podemos viver se não estruturarmos um trajecto de análise, de reflexão, de aprofundamento cultural e de intensa pesquisa individual e colectiva, que nos confira a dignidade de intérpretes da “Filosofia da Arte”. Arte que ninguém consegue definir de forma absoluta e universal, pela qualidade de algo que é produzido na inteligência humana, com efeito estético gerando juízos de valor sobre a própria obra, o seu autor e as técnicas e modalidades de produção.

Será que todos sentimos necessidade de comunicação, destino aparentemente credível de uma “Obra de Arte”? Será este “movimento da mensagem” a seiva que pode fazer de todos os fenómenos culturais fenómenos de comunicação? Será o verdadeiro destinatário a satisfação de caprichos e vaidades, ou o Ser Humano, entidade interpretante de um processo de significação?

Cientes da riqueza, do deslumbramento e dos perigos do binómio “Arte e Comunicação”, mantendo alguma inclinação para considerar a Arte como linguagem, deixemo-nos aventurar no campo do pensamento. Assim, consideramos que a Obra de Arte se dirige não só ao autor, mas também ao fruidor, não como um convite para estabelecer uma relação primariamente sensível, mas para que ele a compreenda como sentimento.

O Ser Humano que sonha a Vida na Arte e a Arte na Vida pretende o diálogo entre ele e os outros. A sua obra foi criada com a necessidade e a exigência de que todos a compreendam, ainda que esta exigência seja idealista e pouco realizável. De qualquer forma, tal necessidade e exigência constituem uma propriedade fundamental da Obra de Arte e um estímulo essencial da criação artística. Pela forma de estar nesta magnífica aventura, começamos lenta e progressivamente a acreditar que a Obra de Arte deve mediar um significado suprapessoal.

Neste percurso dentro do mundo da nossa amiga, teimosamente falseado de arranjos curriculares que visam pôr o artista acima da obra, fica-nos a sensação e a ideia de que a autêntica obra artística é um jogo, no qual o autor instaura livremente valores e opostos, com total soberania, com muitas interrogações, mas sem respostas a dar ou a esperar, elegendo como resultado o sentimento veiculado numa linguagem privilegiada, que procura dar à mensagem a dimensão mais ampla e profunda do Ser Humano.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24411: (In)citações (250): Sou amigo do ex-cap QEO Bordalo Xavier, ex-cmdt da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1971/72); fui a Lamego pagar-lhe uma dívida de gratidão; sei que participou no 25 de Abril de 1974 mas não sei qual foi o seu papel (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

domingo, 18 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24410: (In)citações (249): "Sei que a culpa não é só tua", de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



SEI QUE A CULPA NÃO É SÓ TUA

adão cruz

São muitos os caminhos que nos conduzem à impostura, mas, mesmo assim, acredito que a única fonte da beleza ainda está em nunca nos separarmos de ti. Ao despedirmo-nos de ti, aliciados por modernas metáforas do pensamento banal, a nossa própria imperfeição nos basta, nos ilude e nos realiza. Tudo o que gira à tua volta, toda a mercadotecnia da arte, tanto mais ruidosa quanto mais artisticamente vazia, não passa de um barco sem remos à flor das águas quietas, numa falsa harmonia de contemplação, sem nada que a prenda medularmente ao artista, sem a luz e os espaços utópicos que a libertem deste mundo de merda.

O atrevido desconcerto das palavras, quando é bonito dizer-se que o poeta domina as palavras como se as levasse voando, a desconstrução de emoções e sentimentos, o desfazer dentro de nós da ordem e da criatura a fim de tentar abordar o não criado, são as ondas que na apatia do mar sereno tornam os poemas habitáveis e fazem da arte a real experimentação da vida. É muito grande a distância que nos separa do belo, e muito longo o caminho de libertação e renúncia para dele nos aproximarmos. Ainda que isso pressuponha o contratempo de não estar na moda, é imperioso acreditar que não é a rotura da mentira que faz a moda. A moda é o crime estético por excelência. Gira sobre si mesma para que nada mude a verdade-mentira. Se me permites um humilde conselho, foge das globalizações e hegemonias, geradoras de défices éticos e artísticos que fazem de ti um ser dominado e subalterno. Por isso te digo que não vale a pena dizer sim ou não quando o terreno não é fecundo e a vida não é mais do que imitação de si própria. Não vale a pena sonhar, se os fundos cálidos e cromáticos não nascem do destilar das horas e da vida, e se o diálogo de alegrias e desânimos não nos liberta da artificial conduta.

Muitos dos consumidores da ardilosa etiqueta e muitos dos argentários modeladores do mundo, instalados num presente sem fissuras e no acanhado espaço da exclusiva liberdade individual, em cujo peito o pulsar político-social, poético e artístico não é mais do que um coração de pedra, fabricam a ignorância, a incultura e a amoralidade necessárias à tua morte e à consagrada sobrevivência elitista. Sobre ti, basta-lhes o escolástico provérbio: De gustibus et coloribus non est disputandum (não há que discutir gostos e cores).

Uma vez na crista da onda, agarram-se ao mastro e passam a mandar no mundo, porque a sua fé lhes garante que a corrupção acompanha o poder como a sombra acompanha o corpo. Obreiros de um futuro podre, desconhecem a formosa face de uma alma nua e o apaixonante canto da arte e da vida em dignidade social. Compreender a obra é possuir a pessoa do criador, a sua experiência, a sua vida, os seus sentimentos e ideias. A Arte não é apenas a narração do estilo, mas a razão entre a força possuída e a força possessiva, a personalidade concreta feita modo de formar, na mais diversa e dialógica conversa com a vida.

Por mim, ainda que um tanto desconfiado, prefiro continuar a dizer-te: quando levas um seio ao vento e me dás a beber campos e cidades, glorifico a pouca luz que ainda me resta.

Se os lobos se atravessam no caminho para a tua cabana, o vento ergue-me nos ares e o coração aprende a não ter medo de cair.

Descobridor de sonhos, de amanhãs que riem e de estuários, continuo a pintar o vento, ainda que nele te vás.

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24388: (In)citações (248): "Mais uma conversinha contigo", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 11 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24388: (In)citações (248): "Mais uma conversinha contigo", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


Mais uma conversinha contigo

adão cruz

A pérfida administração do silêncio é a melhor arma de matar ambições. Vês-me aos encontrões no nevoeiro, sem terra debaixo dos pés, à procura de um ponto de apoio, à procura de um princípio fiável da verdade e nada me dizes. Já reparaste que me escondes sempre a verdade? A verdade senta-se na paleta, mas tu trocas as cores da verdade pelas tintas da fama. Eu sei que todos temos direito ao nosso quarto de hora de fama, ainda que passemos uma vida inteira sem verdade. Gauguin nunca entendera a desordem de Van Gogh e Van Gogh nunca entendera a ordem de Gauguin. No entanto, a procura da verdade fora, provavelmente, a sua vida comum, o seu único acto comum, a consonância da arte que fez da substancialidade da pintura a ressonância dos tempos.

Quanto a mim, o pensar é garantia imediata do caminho da verdade, ainda que não deixe de nos acompanhar a dúvida imensa e incancelável. Quem tem as verdades e certezas das mentes formatadas, dos cabotinos e histriónicos trata a arte como os homens tratam as putas, isto é, utilizam-nas e elas sorriem-lhes, mas não os amam. Dizem eles que o tempo da beleza já passou e que a arte será cada vez mais científica e a ciência cada vez mais artística. Mas não fazem ideia do que dizem. A arte e a ciência, a ciência e a poesia podem fundir-se, é certo, dentro da progressiva cumplicidade entre as Ciências e as Humanidades, mas apenas quando a perversidade dá lugar à música do percurso. Sabemos que o engenho humano já manipula hoje a intimidade da Enciclopédia do Homem e dos muitos milhares de milhões de unidades que a compõem. E tudo isso nos leva a crer que a ciência pode, deve e tem de conviver contigo. Se a neuroplasticidade cerebral é base da compreensão da vida, isso mais nos ajuda a entender que a numerologia da arte é inimiga do sentimento e pode ser o diabo a cortar-te os braços para com eles se persignar. Todo o homem que te ama de verdade morre sempre na incerteza do seu próprio valor.

Na vida dizemos muitos adeuses. A lugares, amigos, relações, a gente que morre e a gente que se despede, a coisas que se acreditam e nos enganam. Só à verdade não é permitido dizer adeus. Será por isso que ma escondes? Consideras divertido esse teu espaço eleito como ideal mítico e atractivo, capaz de nos catapultar até à excelência interpretativa, mas o que nos mostras, a mim pelo menos, é uma cortina de fumo que me esconde o fogo e a espontaneidade da luz. Entre amanheceres e crepúsculos, exiges-me a verticalidade do meio-dia, amargamente impossível neste balancear incessante entre a intensidade do meu sentir, a que não é alheia a tua sensualidade, e a polarização dialéctica e simbólica.

Dentro das alegorias possíveis e de uma espécie de polifonia pictórica, considero-te a música do Universo, a mulher reinventada nas vivências e passagens do tempo, elemento de candor poético na intimidade do quotidiano. Talvez pelo hormonalismo poético da tua imagem feminina, nunca te outorguei o exíguo papel que tantos te atribuem. Mas pago bem caras a aspiração da tua pureza, a procura da tua inocência, a adoração da tua beleza, a ansiedade do teu absoluto, que fazem de mim um náufrago de sonhos preso nos lastros da realidade.

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24380: (In)citações (247): Já comíamos ostras em Empada, em junho de 1969: abertas em chapa quente com o lume por baixo e passando depois pelo picante e limão... (José Manuel Samouco, ex-fur mil, CCAÇ 2381, 1968/70)

sábado, 10 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24386: Blogpoesia (792): "Soneto", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Hoje é dia de Camões. Longe de mim a pretensão, mas a título de comemoração, deixo aqui um dos poucos sonetos que fiz. Escrevi-o em 1971, dois anos após a morte de meu pai

Tão cedo a esta vida te roubaram
Saudoso pai, meu bom e grande amigo
Que mal teus olhos fundos se fecharam
Boa porção de mim partiu contigo.

Flores e velas, preces lacrimosas
Oh! Alienas artes da razão
Ainda bem que não te iludem rosas
Meu doce pai que em tudo és meu irmão.

Minha fé, minha crença, minha idade
De homem-filho, é grito de homenagem
Que outro não sei, sem lágrimas, sem prantos.

Mãos dadas pelos céus da eternidade
Nesse reino sem trono e sem linhagem
Vives tu, vivem papas, reis e santos.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24270: Blogpoesia (791): "Passei o dia a ouvir música", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24368: História da CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (Coordenação: Raul Albino, 1945-2020) - Textos avulsos - Parte I: Tempo(s) de Homofobia(s) (Mário Vargas Cardoso, 1935-2023)

  

Capa do II Volume do documento policopiado "Memórias de Campanha  da Companhia de Caçadores 2402 (Guiné, 1968/70) (Raul Albino, ed. lit.), 2008,  inumerado.


1.  O nosso saudoso camarada e amigo Raul Albino (1945-2020), ex-alf mil at inf, MA, CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), publicou ainda em vida dois volumes com a história da sua unidade. 

No II Volume, que teve a coordenação fotográfica do Maurício Esparteiro, contou ainda com a participação especial do ex-cmdt da companhia, Vargas Cardoso, e do ex-fur mil SAM, João Bonifácio.  Hoje publicamos um pequeno texto do Vargas Cardoso, ex-cor inf ref, que há dias nos deixou (*). No nosso blogue, o Raul Albino também publicou, no devido tempo, 18 postes com episódios da história da CCAÇ 2402 (**).


O transmissões que era gay...

por Vargas Cardoso 

Durante o período de preparação das unidades que mobilizavam para o Ultramar, quando já tinha conhecimento do teatro de operações do destino, e se preparavam os exercícios finais, que em 1968 se faziam no Continente / Metrópole, apresentavam-se na unidade mobilizadora (no nosso caso, o Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora) os chamados especialistas, ou sejam os elementos do comando da companhia.

De entre os condutores, enferfermeiros, mecânicos, radiotelegrafistas, trabsmissões, etc., apresentou-se-me um futuro cabo de transmissões, que durante a habitual entrevista que tive com todos os militares da CCAÇ 2402, me causou alguma preocupação, pois pareceu-me denunciar um comportamento de tipo sexual, à época, bastante anómalo.

Já não me recordo como obtive informações complementares, mas lembro-me que dias depois,  e uma vez confirmadas (em princípio) as minhas suspeitas, falei com o nosso médico, o dr. João Dória (***), manifestando-lhe os meus receios, por estar em vias de embarcar para a Guiné, um militar que iria ter uma actividade muitas vezes sozinho no seu posto de serviço.

Ficou decidido, entre mim e o nosso clínico, conseguir que o rapaz baixasse ao Hospital Militar da Estrela onde foi sujeito ao chamado teste do "prato de farinha" (****). Face às diligências do dr. Dória com os seus colegas do Hospital, chegou-se à conclusão que o rapaz era o que agora se designa por "gay".

Resultado, embarcámos com um militar de transmissões a menos, mas escapámos aos problemas que aquele militar, sendo "doente", nos poderia levantar.

Vargas Cardoso, cor ref 

Excerto de: Parte II - Comando da Companhia, textos de Vargas Cardoso. In: Memórias de Campanha  da Companhia de Caçadores 2402 (Guiné, 1968/70) (Raul Albino, ed. lit.), II Volume, 2008, documento em pdf, inumerado.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24363: In Memoriam (478): Mário Vargas Cardoso, cor inf ref (1935-2023), ex-cap inf, CCAÇ 2402 / BCAÇ 2851 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) e ex-cmdt do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74) (João Bonifácio, ex-fur mil SAM, CCAÇ 2402, 1968/70, a viver no Canadá); Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 3547, Contuboel, 1972/74)

(**) Vd. último poste da série > 19  de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7010: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (18): Terceiro ataque ao Olossato

(***) Julgamos tratar-se do dr. João Dória Nóbrega (1934-2021), ginecolista e obstetra.

(****) O "teste da farinha ou  do prato da farinha" era uma prática infamante, homofóbica, que esteve em voga em diversos exércitos, incluindo o brasileiro e, ao que parece, também no português.

domingo, 4 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24365: (In)citações (245): "Pequena conversa com a Arte", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


Pequena conversa com a Arte

adão cruz

Há muito tempo que não falo contigo em público, mas penso em ti todos os dias e vivo-te intensamente. No entanto, não ando lá muito satisfeito contigo, melhor dizendo, não estou muito convencido da verdade da nossa relação. Cá para nós, também não acredito muito nos orgasmos daqueles com quem privas e a quem iludes tanto ou mais do que a mim.

A plenitude contigo, bem como a plenitude com a tua amiguinha poesia seria um contrassenso se conduzisse à frustração. Mas eu não vejo os teus amantes, por mais convencidos que pareçam, libertar-se das desilusões e frustrações. Apercebo-me de que, como eu, procuram constantemente mendigar o afecto que teimas em não me dar.

Todos os planos se interceptam no universo policromático e polipoético que cria o labirinto onde te escondes. O teu secreto reduto, em permanente movimento pelos céus do incriado, torna a tua posse quase impossível, por infinitamente diversa e fugidia em cada momento da vida. Todos os meus pressupostos interpretativos na gestão do acto criativo fazem-te rir, eu sei. Todos os pressupostos não são mais do que sentimento e dilatação da memória, que dificilmente coexistem com a dissolução das experiências pessoais.

Eu não moro em ti, mas moro mais em ti do que em qualquer outro lugar. Por tu o saberes, obrigas-me a ser um guardião de ruínas, medindo a palmos de esperança e futuro a arqueologia da vida. Na ânsia da tua vasta presença e no paulatino destapar das sucessivas camadas da realidade complexa, fazes de mim uma espécie de geólogo do meu próprio íntimo. Mas eu não posso viver fora desta procura e não tenho medo nem vergonha de me preocupar com a arte, de me preocupar contigo. Tenho medo, isso sim, daquilo que o reaccionário Flaubert chamara a maré de merda que inunda o nosso estado mental. Na realidade, poucos se preocupam a sério contigo. A infinita estupidificação corre o mundo como uma conjura contra a poesia e a liberdade - as asas que te eternizam - e faz do ser humano um arremedo, habitante de quatro paredes onde não cabem as cores da mente cultural e a edificação da palavra. Um ser encerrado na prisão dos actos controlados, longe da luz e da razão, caminhando cegamente na rota da sombra.

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24360: (In)citações (244): "CONFISSÃO à Arte, minha velha amiga da onça", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24360: (In)citações (244): "CONFISSÃO à Arte, minha velha amiga da onça", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


CONFISSÃO à Arte, minha velha amiga da onça

adão cruz

Talvez tenhas dado por mim, mas não quiseste mostrar. Ajoelhei meus passos no teu caminho e tu não viste. Sempre tiveste duas pedras brancas nos olhos e cego foi o meu coração.

Sempre foi de mármore o teu rosto em todas as manhãs. Parte-me o peito a amargura, sempre que toda tu és apenas figura, retórica figura.

Afogado na tristeza, nunca uma boia me lançaste. Um fio de silêncio, de lágrimas molhado, foi o espaço vazio que criaste, o poema sem alma, a tela negra onde cravei os dedos e cuspi as cores sem brilho.

Desonrei o corpo das palavras e o seu mais alto dizer, para esmolar um verso, um rasgo de cor ou... morrer. Tu nada quiseste saber, em todas as plúmbeas manhãs derretidas em chuva.

Nasço e morro contigo todos os dias, amparado em versos que não têm mãos e logo se quebram aos primeiros raios de sol. Todas as minhas rugas faciais estão assinadas por um roteiro de ansiedades num calendário de esperanças, todos os meus nervos estão marcados pelos dedos vulcânicos da paixão. Em todas as manhãs perdidas no leito da angústia, só a ilusão foi minha amiga. Para ela me arrastaram as nuvens e com elas me confundi, com elas me perdi.

Sei que o meu lugar é aqui, ainda que eu não saiba o lugar que ocupo. Faço que rio, faço que choro, faço que canto, ao som ausente de um Quinteto para Clarinete. Mas não posso viver sem ti. Mais do que nunca, preciso de ti para viver o amor, a mais bela das frustrações.

O meu silêncio, de espada em riste, parte os teus olhos de pedra, e canta. Canta uma qualquer Chanson Romanesque a uma qualquer Dulcineia, perdida nos montes, algures, para lá do arco-íris.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24352: (In)citações (243): "Pequena REFLEXÃO sobre a obra de Arte", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

terça-feira, 30 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24352: (In)citações (243): "Pequena REFLEXÃO sobre a obra de Arte", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


Pequena REFLEXÃO sobre a obra de Arte

adão cruz

A obra de arte, seja qual for a forma de expressão, em nossa opinião deve procurar libertar-se, tanto quanto possível, do meramente sensorial, por mais figurativa que seja. A sua intrínseca e mágica natureza confere-lhe, fundamentalmente, um delicado papel de estímulo, mais ou menos poderoso, que pode levar a pessoa que a lê, que a ouve ou contempla, a libertar-se da escuridão e da hibernação, a desnudar-se, a revelar-se a si própria e a conhecer-se melhor. Quem vive uma obra de arte, poderosa expressão da essência humana, está constantemente a aprender uma experiência vivencial que não faz parte dos nossos padrões habituais de reflexão. E pode, se o estímulo e a sensibilidade tiverem a força necessária, permitir a sorte de nos alcandorar a instâncias onde reside um prazer único da fruição estética.

O sentimento artístico e o sentimento poético fazem parte da essência e do sumo da vida. Se ambos estes sentimentos existissem de forma construída e profunda dentro de nós, o mundo não seria tão cruel, a racionalidade não seria truncada, a verdade não seria mentida, a consciência não seria vendida e o Homem não seria caminho para a destruição.

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24348: (In)citações (243): "REFLEXÃO sobre a matéria e a vida", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 21 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24331: (In)citações (242): "REFLEXÃO sobre o complexo caminho da simplicidade da Evidência", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

REFLEXÃO sobre o complexo caminho da simplicidade da Evidência

adão cruz

Não é fácil percorrer o complexo caminho da simplicidade da Evidência que anda por aí, em muita coisa. O medo da Evidência apavora as mentes que, de uma forma ou de outra, perderam a liberdade ou rejeitam a liberdade, sobretudo a liberdade de pensar. Interiorizam mecanismos fortemente redutores que são aceites acriticamente, porque não existe ou foi tacticamente anulada a capacidade crítica, ou são impostos por uma espécie de fé ou crença consuetudinária, impiedosamente dogmática, que cristaliza toda a forma de pensar, mesmo em pessoas familiarizadas com a Cultura Científica da Evidência. Estas, ainda assim, as pessoas de boa fé. Porque as há, e não são poucas, que fazem da má fé o antídoto da Evidência que não conseguem negar. O mundo é muito claro, até onde nos permite que o seja.

O sobrenatural continua a ser um grande problema, com a maioria das pessoas a serem incapazes de o resolver, incapazes de rever a equação cujo resultado estabeleceram como certo sem conhecerem os dados que a compõem. Nunca até hoje, o sobrenatural teve qualquer Evidência Científica a comprová-lo.

Dogmas e argumentos condicionados, não sendo permeáveis à razão, só podem levar a conclusões frustrantes. O sobrenatural, tantas vezes aterrorizador, entrou na minha cabeça à força da destruição da razão e do entendimento, perpetrada por mentes ignorantes que me assaltaram a infância e adolescência. Essa parte negativa da minha vida teve um lado positivo. Permite-me, hoje, à luz da Evidência possível, fazer a comparação entre a falsa liberdade da enganadora felicidade do obscurantismo e a aliciante liberdade da real felicidade de uma razão, não mais miscível com qualquer grande ou pequena crendice. É muito difícil quebrar as grilhetas de um pensamento fortemente colonizado, mas a força projectiva da curiosidade humana que leva ao complexo caminho da simplicidade da Evidência é a única força capaz de nos libertar de todas as constritoras angústias metafísicas. Foi essa libertação que me trouxe a paz e a serenidade de uma total descrença mística, uma das melhores prendas que a vida me deu.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24313: (In)citações (241): "Reflexão (Ainda sobre a poesia)", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 14 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24313: (In)citações (241): "Reflexão (Ainda sobre a poesia)", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

REFLEXÃO (Ainda sobre a poesia)

adão cruz

Dizia Daniel Barenboim, que a música não é o som. Todos sabemos que a música se exprime através do som, mas o som, em si mesmo, não é música, é apenas o meio através do qual se pode transmitir a mensagem da música. Todos conhecemos as notas musicais, todos somos capazes de as dedilhar nas teclas de um piano, mas daí à música vai um abismo. Todos conhecemos as letras e as palavras, todos somos capazes de juntar palavras e com elas comunicar, de forma mais ou menos primária, mas daí a fazer arte literária vai um abismo.

Todos nós possuímos no nosso cérebro o mesmo esquema neural do sentimento, já que é o esquema neural da nossa espécie. Mas o padrão neural do sentimento, o padrão sentimental de cada um, que vai encaixar no nosso esquema neural, é completamente diferente em cada um de nós. Todos, de uma maneira geral, temos o mesmo esquema de vida, mas os nossos padrões de vida são diferentes, desde a camisa à profundidade do nosso íntimo.

Cada um de nós vai criando os padrões dos seus próprios sentimentos, através de uma curva de vivência e aprendizagem de uma vida inteira. Uma pessoa que tenha tido uma vida repleta de amor tem um padrão do sentimento do amor muito diferente do padrão de uma pessoa que nunca amou ou nunca foi amada. Uma pessoa que toda a vida viveu na miséria, no meio de agruras e dificuldades de toda a ordem, tem um sentimento de carência totalmente diferente do sentimento da pessoa que nunca teve dificuldades e sempre viveu na abundância.

Então, poderemos tentar dizer, cautelosamente, o que será um poeta…

Ser poeta não é ser um agente da banalização da palavra e da poesia, que é o que tantas vezes se vê, mas ser dono de um sentimento poético consolidado, muito apurado e afinado, construído através de uma vivência de amor e dedicação à poesia, vivendo a poesia de uma forma indissociável do viver da vida. No entanto, para além desta aprendizagem de uma vida inteira, é fundamental na construção do sentimento poético uma formação cultural global do ser humano, tão profunda quanto possível, a par de uma segura formação ética e estética. Obviamente que me refiro, muito especialmente, à formação na universidade da vida e não em qualquer fábrica de intelectualismos.

Só assim se entende que o sentimento poético e o sentimento artístico podem enriquecer e enobrecer todos os nossos processos de humanização, podem criar grandes afinidades com a consciência, revolucionar as inquietas questões da nossa mente, aproximar-nos de todos os mecanismos de identificação da verdade e ajudar-nos na difícil procura do caminho da harmonia.

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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24267: (In)citações (240): O meu 25 de Abril de 2023 (Hélder Valério de Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)

domingo, 7 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24295: Dia da Mãe (1): MÃE (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)


MÃE

Mãe
a palavra universal
a palavra mais consensual da humanidade.
Nem Deus…
Deus é de uns e não de outros
Deus é conceito de muitos
e negação de outros tantos.
A mãe é de todos sem exceção
a mãe é de todos e é só nossa
a mãe é do crente e do ateu
a mãe é do pobre e do rico
do sábio e do ignorante.
A mãe é dos poetas
dos filósofos e artistas
dos bons e dos maus
a mãe é do amigo e do inimigo.
Não há mãe de uns e não de outros
não há ninguém sem mãe
e não há mãe de ninguém.
A mãe é de toda a gente
a mãe é de cada um
a mãe é do mundo inteiro
e do nosso mais pequeno recanto.
A mãe é do longe e do perto
da água e do fogo
do sangue e das lágrimas
da alegria e da tristeza
da doçura e da amargura
da força e da fraqueza.
A mãe é certeza e aventura
medo e firmeza
dúvida e crença
a haste que se ergue no céu
ou se aninha rente ao chão
para que a morte a não vença.
A mãe é a outra parte de nós
sem mãe somos metade
sem mãe nada é exato
igual a um
igual a infinito
onde se tocam princípio e fim
onde os tempos se encontram
sem presente passado e futuro.
A mãe é a lágrima que não seca
no sorriso que não se apaga
a nuvem que chove no sol que aquece
a mensagem da luz e da harmonia
e dos acordes matinais
com que abre o nosso dia.
A mãe levanta-se nas lágrimas da noite
e mesmo cansada
não perde a voz nem a cor da madrugada.
A mãe é a voz que se não teme
a voz que se confia
a voz que tudo diz
nas consoantes do grito
nas vogais do silêncio
nos abismos da agonia.
Mãe
primeira palavra a nascer
a última palavra a morrer.
A mãe é sempre a mesma
a mãe nunca é outra
na sua infinita diferença.
A mãe é criação
a mãe é sempre o fim
da obra-prima inacabada
a mãe nunca é ensaio
nem esboço nem projeto.
A mãe é um milagre
no milagre do mundo
o único milagre concebido
real e concreto.
Chora para que outros riam
ri para que a dor a não mate
mistura-se com a luz das estrelas
para vencer a escuridão
devora as nuvens por um raio de sol.
A mãe é beleza e poesia
aurora fulgurante
aurora adormecida
a mãe é bela porque é simples
porque nasce da silenciosa lógica da vida.
A mãe é fragilidade da semente
a força do tronco
a beleza da flor
a doçura do fruto
o dom de renascer.
A mãe é tudo numa só coisa
AMOR.


adão cruz

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