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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9214: O meu Natal no mato (35): Um Santa Claus na forma de um barquinho (José da Câmara)

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 11 de Dezembro de 2011:

Caro amigo Carlos Vinhal, camaradas, amigos,
No dia 24 de Dezembro de 1972, num presépio chamado Guiné, eu marquei encontro com o Pai Natal. Aqui fica a história desse encontro, que também seria o último que teria com Ele em terras africanas.

Por muitas razões da vida que vivi, eu acredito que há um velhote simpático de barbas brancas, chamado Santa Claus, que faz os possíveis para me acompanhar todos os dias. Ele também vos tem no coração, disso tenho a certeza.

Quando ele bater à vossa porta, deixem-no entrar e descansar um pouco no seio da vossa família. Ele, depois de passar por aqui e de atravessar este Atlântico imenso que nos une, apenas quer desejar-vos um Feliz e Santo Natal.

Um grande abraço do
José Câmara


Guiné, um presépio de Natal

Na linda ilha das Flores, terra que me viu nascer e crescer, as celebrações do Natal tinham como atenção o nascimento do Menino Jesus em Belém e as prendas que Ele, no seu infinito amor, distribuía pela pequenada.
Como criança que era não percebia porque é que o Menino gostava tanto dos meninos mais ricos e, muitas vezes, se esquecia de mim, dos meus irmãos e de outros meninos tão pobres como eu. Levei alguns anos para me aperceber que o Menino também me amava como aos outros. A verdade era que a minha pequenina casa não tinha chaminé por onde Ele pudesse entrar e, mesmo que arranjasse outra forma de se infiltrar, nunca poderia encontrar os meus sapatinhos porque eu não os tinha. Apesar de todos esses problemas, na sua infinita bondade, às vezes arranjava maneira de deixar debaixo do travesseiro um saquinho com figos passados. Quando isso acontecia, o Natal era enorme no meu coração de criança.

No Faial, para onde fui com a idade dos 10 anos, talvez por influência das companhias estrangeiras de cabos submarinos (americana, inglesa e alemã), de algum consumismo já evidente na pequena cidade da Horta e mesmo dos emigrantes resultantes da erupção vulcânica dos Capelinhos, o Menino era mais rico e, por isso mesmo, costumava contratar um ajudante, o Pai Natal, por altura dos festejos natalícios. Era este Ajudante que trazia as boas novas do Menino.

O meu alfinete de gravata, homenagem ao meu Menino Jesus
De nós para vós, um Santo Natal
©Foto de J. Câmara

O Pai Natal, o Santa Claus como alguns lhe chamavam, viajava por entre estrelas, vindo das zonas frias da Lapónia. Talvez porque o trenó, puxado por renas de nariz vermelho, tinha mais espaço para sacos de prendas o Natal, na minha casa passámos a contar com algumas alegrias extras, entre as quais, há um alfinete de gravata que ainda hoje é o único que uso em homenagem ao grande amor e sacrifício do meu Menino Jesus.

Todavia, para compreender o Natal em toda a sua beleza humanística faltava, de facto, ter um encontro com o Menino Jesus, com o Pai Natal. A oportunidade aconteceu a meia tarde do dia 24 de Dezembro de 1972.

Ao tempo eu era, com muita honra, militar no Exército de Portugal, em fim de comissão de serviço na Guiné.
O presépio, devidamente preparado para essa efeméride, era completamente diferente daqueles a que estava acostumado na minha meninice. Este fora desenhado e construído com belas bolanhas e matas esplendorosas de palmeirais, cajueiros, capim, às quais não faltavam javalis, veados, pombos verdes, cobras, lagartos, sapos, mosquitos, formigas e os demais requintes da flora e fauna tropicais. A completar todo esse quadro maravilhoso que extasiava os corações mais sensíveis, as cascatas das ribeiras da freguesia deram lugar a um espelho imenso de um rio calmo que reflectia o sorriso quente do astro-rei. Era na verdade um presépio que deixaria imensas recordações, alegres umas, bem tristes outras, porque não saudades das boas, vida fora!

O Pai Natal da CCaç 3327 fazendo a aproximação à margem do Enxudé, Zona de Tite
© Foto de J. Câmara - Dezembro 24, 1972

Foi nesse ambiente que o Pai Natal, ansiosamente esperado, apareceu por detrás de um pequeno ilhéu colocado no meio do rio. Era diferente de tudo o quando imaginara até então. Vinha vestido de cinzento. Conduzia, com mestria, as renas que mais pareciam peixinhos vestidos de muitas cores que, alegremente, puxavam nas águas mansas do rio um trenó em forma de barquinho. Graciosamente, com lentidão cautelosa, aproximou-se da terra e aos poucos foi abrindo os seus braços até descansá-los na margem do rio. De peito bem aberto, deixou ver o seu imenso coração onde caberiam todos aqueles que o esperavam e que não se fizeram rogados em entrar nele.

Descansou o suficiente para receber a sua preciosa e alegre carga. Depois, talvez imitando Santo António, segredou algo aos peixinhos que, por ali, se mantinham em alegres brincadeiras. Fechou os seus enormes braços num amplexo imenso àqueles que acabara de receber junto do seu coração. E partiu. Tal como chegara, sem alaridos, havia que cumprir o final da sua nobre missão. Havia que levar a bom porto todos aqueles que confiaram no seu convite.

Aos poucos as margens do Enxudé foram-se perdendo no entardecer do dia para dar lugar à noite que se aproximava. Tite, Bissássema e as suas gentes passavam a ser nomes guardados na neblina da memória. Bissau foi o porto de acolhimento.

Encostado ao cais, exausto pelo cansaço, aquele Pai Natal ainda teve forças para um último aceno. Foi a última vez que o vi em terras da Guiné. A CCaç 3327 regressava à casa e às barracas que a receberam vinte e três meses antes, o Depósito de Adidos, em Brá.

A partir da esquerda: 1.º Sarg. Baltazar Lopes e Fur. Mil. Fernando Silva (ambos já falecidos), Fur. Mil. Pinto. A foto não oferece condições para identificar os outros com segurança. De costas, a ser servido, o Fur. Mil. Câmara
© Foto cedida pelo Fur. Mil. João Cruz, Natal de 1972

Nessa noite de Natal, alguns de nós ainda conseguiram desenfiar-se para a cidade. O Coelho à Caçador andou às correrias pelas mesas que juntámos no restaurante que nos acolheu. Uma noite diferente e alegre para nós. Só possível pelo amor e amizade de um Santa Claus que quis que, nesse ano de 1972, tivéssemos um Feliz e Santo Natal.

Porque ainda acredito na existência do Pai Natal, hoje, tal como ontem, que a Amizade e o Amor, a Paz e a Esperança do espírito do Natal, sejam companheiras diárias das vossas vidas e da dos vossos familiares.

Deste lado do oceano, um abraço enorme, quente e amigo do
José Câmara
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9088: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (29): Quando o destino cruel desabafa a sua ira

Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9213: O meu Natal no mato (34): Empada, 24 de Dezembro de 1969, em tempo de guerra (José Teixeira)

domingo, 17 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8564: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (26): A minha primeira vez

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 17 de Julho de 2011:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história sobre as minhas andanças pela Guiné. Tenho a certeza que a sua leitura despertará reacções e emoções desencontradas. Isso é precisamente o meu objectivo ao abrir um livro que é por demais íntimo.
Deste episódio e do seu desenlace último nunca me arrependi. Preparou-me para outras oportunidades bem mais difíceis que esta. Um dia, se possível, lá chegarei.
Ainda hoje, quando lembro deste desencontro sexual da minha vida na Guiné, dá para um sorriso. Afinal já sou um sexa e posso dar-me ao luxo deste tipo de indulgência.

Um abraço muito amigo para ti e para os camaradas que tiram o seu tempo para lerem estas pequenas coisinhas.
José Câmara


Memórias e histórias minhas (26)

A minha primeira vez

Nos anos sessenta, a juventude açoriana, cercada por princípios de ordem moral e religiosa e ainda pela pequenez do meio onde toda a gente sabia tudo, tinha que ter muito resguardo sexual. Nas ilhas, raparigas namoradeiras ficavam quase sempre solteiras e os rapazes sujeitavam-se a nunca serem pais.
Era na tropa que muitos mancebos, saídos do seu ambiente habitual, tinham a sua primeira experiência sexual com elemento do sexo oposto. Para os que o conseguiam era o esvaziar de um sonho tantas vezes recalcado ao longo das suas vidas ainda jovens.

Como açoriano prezado que era dos meus princípios sociais e religiosos também passei por essa sede recalcada durante os anos da minha juventude. Já na tropa nem Tavira, Funchal ou Angra do Heroísmo me proporcionaram as oportunidades de saciar a sede sexual. Confesso que também não as procurei.

Foi na Guiné, mais propriamente em Teixeira Pinto, que surgiu a grande oportunidade. E que oportunidade!
Andava eu pela Mata dos Madeiros quando tive que me deslocar a Bissau para ser vacinado contra a febre-amarela e marcar a minha passagem para ir de férias aos Açores.

Por motivos alheios à minha vontade tive que desistir desta passagem. No ano de 1971 acabei por não gozar as férias a que tinha direito.

A escolta a Bissau para além de ser muito perigosa, sobretudo o troço entre os quartéis do Pelundo e Bula, era extremamente cansativa. Tínhamos que pernoitar em Teixeira Pinto encostados a uma parede qualquer ou no assento do unimog, um luxo para quem estava habituado a dormir na terra todos os dias. No regresso conforme a hora da chegada a Teixeira Pinto podíamos pernoitar ali, mas quase sempre íamos fazê-lo ao quartel do Bachile. Este ficava muito mais perto do acampamento. Isso facilitava a vida daqueles que tinham que avançar para o mato logo à chegada.

Sobre a deslocação a Bissau escrevi um aerograma à minha madrinha de guerra:

“Mata dos Madeiros, 7 de Junho de 1971
Este aerograma será para umas breves notícias. Hoje de manhã vim do mato e daqui a pouco vou para Bissau. Devo regressar depois de amanhã. Vou ao hospital civil levar a vacina contra a febre-amarela; preciso de a ter para quando for de licença. Também irei à Agência de Viagens.”

Chegados que fomos a Teixeira Pinto, enquanto aguardávamos pela hora do recolher para um merecido descanso, eu e o Fur Mil APes Manuel Lopes Daniel fomos dar uma volta pela avenida principal desta vila. Foi durante esse passeio que surgiu a ideia de irmos à procura de mulher que quisesse partir catota.

Se bem pensamos, só haveria que saber onde. Não faltaria quem nos informasse o que de melhor podíamos ter por aquelas paragens.

Beldade manjaca junto a um poilão (Edição da Confeitaria Império - Bissau)

Um dos nossos informadores apontou-nos uma casa que ficava para além de um café muito frequentado pela tropa, que ficava ao fundo da avenida e no enfiamento para Bassarel. Segundo a informação as frutas eram um pouco verdes, lindas, doces. Rematou que eram de gritos, apitos e de se chorar por mais.

Estava lançado o ambiente que nós, quais bezerros cheios de testosterona, desejávamos e precisávamos.

Tratava-se de duas irmãs jovens segundo a nossa informação. Para azar meu apenas estava uma e o Daniel tinha-se adiantado à porta. Desapareceu por ela, enquanto me preparei para aguardar.

Raios! O Daniel já de volta assim como quem entra por uma porta e sai pela outra. Nem à mão, sem menosprezo algum para esta anciã ferramenta, se conseguiria ser tão rápido. Logo compreenderia o porquê de tamanha façanha.

Ao entrar à porta deparei com uma mulher, a mãe da jovem, a cobrar o capim. Não me lembro quantos pés do dito me pediu. Na escuridão da casa era possível ver-se a um canto uma porca a amamentar bacorinhos; crianças dormiam profundamente numa cama e debaixo desta estavam cachorrinhos às turras com as mamas da mãe cadela.

A jovem, a grande razão de eu estar ali, disse-me que tinha apenas 16 anos; manjaca, negra luzidia, linda, convidativa, disposta ou obrigada à prostituição, num ambiente impressionante.

Rapariga Manjaca lavando roupa (Bassarel)

O peito encheu de ar, latejante o coração falou mais alto.

Meu Deus, eu ainda tinha princípios morais que nada conseguira destruir até então. Bem presentes estavam os conselhos maternos de afectividade e conduta social: nunca esquecer que tinha irmãs, não fazer pouco das filhas de ninguém, que os homens usavam calças por alguma razão.

Foi então que me apercebi que nada do que estava ali a viver tinha a ver com os meus sonhos tantas vezes acalentados. Voltei as costas. Ainda não seria desta vez que me iria prostituir.

Com o Daniel segui em direcção ao quartel. Cada um de nós embrenhado no pensamento da experiência acabada de viver.

No dia seguinte, muito cedo pela manhã, seguimos para Bissau. Nesta cidade fui tratar dos assuntos que ali me levaram. Para além disso, eu tive a oportunidade de visitar o meu grande amigo do Liceu Nacional da Horta, o Alf Mil Art. Eduardo Manuel da Silva Camacho, acabado de chegar à Guiné com a esposa Filomena. Como não podia deixar de ser, este casal, fresquinho da boda, andava, disseram-me eles, apanhadinho pelo clima.

Pudera, eu também andava, só que por uma razão muito diferente: a falta dele. Do clima pois claro!
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8479: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (25): Abençoada chuva que tanto tardaste

terça-feira, 3 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8206: A reportagem que faltava fazer - Associação de ex-militares das Forças Armadas Portuguesas na cidade de Taunton - EUA (José da Câmara)

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 1 de Maio de 2011:

Meu bom e caro amigo Carlos Vinhal, camaradas, amigos,
Quando aconteceu a revolução do 25 de Abril de 1974, a chamada revolução dos cravos, eu já estava nos Estados Unidos da América. A carga emocional que me atingiu nesse dia não foi menor que a vossa, certamente diferente. Porque já então saboreara a vivência de um país livre e responsável como é esta grande nação americana, um país com cultura e vivências democráticas.

Essas vivências, num Portugal saído de uma revolução, não seriam possíveis de um dia para o outro. Haveria que dar tempo ao tempo para que as coisas pudessem atingir os seus desígnios.

Mas quanto tempo?

Eu responderia, o tempo suficiente para reconhecermos que nem tudo era mau antes da revolução e que é irracional continuar a pensar-se que tudo deveria ser bom e perfeito depois da mesma.

A revolução trouxe ideais puros e razoáveis. Mas também trouxe dor, incompreensão e muita intolerância. Tudo isso foi evidente a partir do dia 26 de Abril. Os factos estão à vista, infelizmente indesmentíveis.

Portugal, o meu e o vosso país, atravessa momentos menos bons. Importa que a esperança de melhores dias não morra em nenhum de nós.

Martin Luther King um dia disse que preocupante na sociedade era o calar das pessoas de bem. Por aqui tentamos fazer com que isso não aconteça. Essa é a razão do meu trabalho de hoje.

E aí que se faz?

Com um abraço amigo,
José Câmara


A reportagem que faltava fazer

(Foto da Associação) – Hastear da Bandeira Portuguesa na Câmra Municipal de Fall River. Eduino Faria (ex-1.º Cabo Enfermeirto em Angola), Presidente da Associação, lidera o Corpo de Elite em continência

Hoje não venho falar do 25 de Abril, nem do que essa data representa na história de Portugal. Nem das esperanças de liberdade, de democracia e de justiça para todos. Nem dos cravos que foram murchando com o tempo, nem dos sonhos que se foram perdendo. Nem do estatuto de banalidade que o povo português e os políticos que o representam foram outorgando a essa data.

Hoje, agora e aqui, venho falar-vos de uma Associação de ex-militares das Forças Armadas Portuguesas que combateram nas províncias ultramarinas e que, nos Estados Unidos da América, mais propriamente na cidade de Taunton, Massachusetts, teima em ser diferente, teima em manter bem vivos os ideais mais puros da revolução dos cravos.

Esta Associação, devidamente incorporada no estado de Massachusetts, foi constituída como instituição sem fins lucrativos, por conseguinte de Utilidade Pública. Os seus associados, cerca de 100 (cem), estão espalhados um pouco por todos os estados da Nova Inglaterra e da Florida.

A maioria dos associados já atingiu os 60 anos de idade. A esses é-lhes facultativo a incorporação no Grupo de Elite, uniformizado, e ao qual pertence, conjuntamente com a direcção, a representatividade da Associação nos diferentes eventos para que é convidada ou se oferece.

(Foto da Associação) – O grupo de Elie, uniformizado. José Câmara, ultimo à direita na fila de trás)

Para além de várias reuniões anuais de trabalho, a Associação está voltada para as várias actividades socioculturais da Comunidade. Nessas actividades sobressaem os diversos desfiles, as procissões religiosas nas nossas comunidades e as comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades.

Nas actividades da Associarão directamente viradas para os associados há dois eventos que vale a pena destacar seja pelo seu simbolismo na história da patria mãe ou pela carga emocional da condição de emigrantes e ex-combatentes da chamada Guerra do ultramar.

A comemoração do 25 de Abril tem um carinho especial da organização pois que, para além da efeméride, oferece um momento exclusivo de convívio familiar e amigo, para além de uma pequena exposição de livros, fotos, artigos, postais e outra memorabilia dos tempos da Guerra e não só.

Foto de José Câmara, Abril 30, 2011 – Exposição de memorabilia falante

O outro evento, não menos importante na vida desta instituição, é o pequeno-almoço oferecido pela Associação, no dia de Natal, aos seus associados e familiares.

A Associação tem pouca actividade política. Em contrapartida tem uma actividade filantrópica razoável contribuindo, dentro das suas possibilidades, com donativos para instituições carenciadas.

José Câmara devidamente uniformizado, peito para dentro e barriga para fora, como mandam as regras de agora, acompanhado da sua outrora madrinha de Guerra.

Orgulho-me de pertencer a essa Associação, exclusivamente organizada e dirigida por ex-praças, nossos camaradas no Exército português, imigrantes como eu em terras da América.

A todos os que se dedicam a esta Associação um grande bem-haja.
José Câmara
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7936: Os açorianos também migraram para o Ultramar (José da Câmara)

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5862: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (13): Um buraco no inferno da Mata dos Madeiros

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 5 de Fevereiro de 2010:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pedaço do meu roteiro por terras da Guiné.

Os meus votos de boa saúde vão para ti e para os nossos camaradas, com um abraço amigo
José Câmara


Um buraco no inferno da Mata dos Madeiros

A partir do momento em que a CCaç 3327 foi notificada para se preparar para sair para o interior, muita coisa se modificou no comportamento diário dos militares. A alegria de sair de Bissau, contrastava com a ânsia de providenciar para as necessidades imediatas de quem iria sair ao encontro do desconhecido.

Tínhamos apenas quatro dias pela frente, e a nossa actividade militar continuava inexorável. O tempo livre era escasso, pelo que tivemos que nos socorrer da entreajuda para as pequenas, mas necessárias tarefas.

Entre as tarefas imediatas e pessoais, tivemos que contactar as nossas lavadeiras para devolverem os uniformes, tarefa arrojada pois nem sabíamos onde moravam. Eram elas que vinham até Brá levantar e depositar os uniformes. No meu caso pessoal, a minha roupa era lavada no Palácio, pelo que nesse aspecto não tive preocupações. Porque sabíamos que íamos por um período mais ou menos longo para a Mata dos Madeiros, onde estaríamos privados de quase tudo, houve a necessidade de comprarmos artigos de higiene para um período longo, e ainda envelopes, papel para a escrita e selos, pois muitos nós tínhamos os nossos familiares nos EUA e não podíamos utilizar os aerogramas.

O preço de uma carta para os States magoava os escassos recursos financeiros de alguns dos nossos soldados

A acrescentar a tudo isso, tivemos que requisitar todo o material logístico necessário ao desempenho da nossa missão - viaturas, metralhadoras, morteiros, lança granadas e respectivas munições. A acrescentar a tudo isso, uma cozinha de campanha, frigoríficos a petróleo, tendas individuais, colchões insufláveis, cobertores, mantimentos para 15 dias, incluindo as rações de combate. E ainda um posto sanitário de campanha.

No dia 5 de Abril emalamos a secretaria e aos poucos fomos emalando os nossos haveres. Muitos de nós saímos de serviço com o Render da Parada no dia 6 de Abril. Alguns minutos para limparmos os nossos alojamentos, e os últimos retoques nas nossas malas.

Finalmente soou a hora da partida.

A ordem foi dada para que as rações de combate fossem distribuídas e as as malas fossem colocadas nas viaturas. Foi então que um dos militares disse: - Malas-às-costas! Como os nómadas...

A coluna estava em marcha. Primeiro obstáculo, a jangada em João Landim. No lado de cá ficava Bissau. No outro lado... eu perdiria a minha virgindade em relação à guerra. Confesso que me sentia apreensivo, e mais ainda, quando depois de passar à entrada de Bula comecei a ver a quantidade de tropas que protegia a nossa passagem. Depois Có, a mítica Curva da Morte, um autêntico cotovelo antes de chegarmos ao Pelundo. Finalmente, entrámos em Teixeira Pinto para uma pequena apresentação no CAOP1.

A tarde ia avançada. Mesmo assim, avançámos para o Bachile. Ao chegarmos junto da Ponte Alferfes Nunes, reparámos que esta estava em obras de reparação, pelo que só uma viatura de cada vez atravessava no tabuleiro.
Nessa altura, eu ainda não sabia que estava a deixar o paraíso para entrar no inferno.

Pernoitámos no Bachile, um quartel de reduzidas dimensões, sede da CCaç 16. Ali ficaria a secretaria da companhia e a padaria. Também seria deste quartel que nos abasteceríamos de água.

No dia seguinte, 7 de Abril, rumámos ao sítio do nosso primeiro acampamento. Seguimos pela estrada nova, passando pelo primeiro buraco (acampamento) das tropas ainda ali estacionadas. Impressionantes eram as condições. Senti que não ia para melhor.

Chegada à Mata dos Madeiros. As secções agrupam-se para dar início à primeira saída

A partir de certa altura, a parte alcatroada acabou. Penetrámos na mata. O guia, engenheiro-topógrafo da obra, a determinada altura, flectiu para a esquerda, entrou numa pequena clareira e parou.

Estávamos a cerca de 10 (dez) quilómetros do Bachile - rodeados de mato, do chilrear dos pássaros, e protegidos (a fé é que nos salva) pelo Sagrado Coração de Maria.

O Furriel Pinto com a sua secção já preparada para sair

Descarregadas as malas, de imediato se preparou a protecção ao "descampado".

Enquanto penetrávamos na mata, sentimos o barulho das máquinas a arrumar o matagal e a preparar o terreno do acampamento. Com o anoitecer, regressámos. Preparados os turnos de sentinela, cada um procurou qualquer coisa para encostar a cabeça e descansar um pouco. Infelizmente tal não foi possível, pois passamos a noite à bofetada com os mosquitos.

Ali era o buraco da Mata dos Madeiros.
José Câmara
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5787: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (12): Bissau, uma guerra diferente onde os rumores também voavam

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5030: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (7): Servir Bissau: uma contenda inglória onde o pesadelo e o ronco se misturavam

1. Mensagem de José da Câmara (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 25 de Setembro de 2009:

Olá Carlos,
Junto encontrarás mais uma página das minhas memórias.
Como sempre faz aquilo que entenderes por bem.

Um abraço amigo com votos de muita saúde para ti e para toda a tabanca.
José Câmara


Servir Bissau: uma contenda inglória onde o pesadelo e o ronco se misturavam

Acabada a cerimónia de recepção às forças agora chegadas à Guiné, o Comandante da CCaç 3327, Cap Mil Rogério Rebocho Alves, reuniu com todos os graduados. Nessa reunião ficámos a saber que um GCOMB iria de imediato para o destacamento de Dungal, o qual seria rendido de quinzenalmente. Para além do Grupo de Combate, uma Secção foi reforçar o destacamento de Nhacra. O objectivo era adaptar a Companhia ao mato da Guiné. Os outros dois GCOMBS e duas Secções ficariam em Bissau, tendo como principal missão a segurança de algumas instalações militares, o patrulhamento dos bairros de Bissau, das tabancas e zonas limítrofes da cidade, e os serviços próprios de qualquer quartel. A tudo isso se juntava a Guarda de Honra que, semanalmente, se fazia no cemitério na exumação dos nossos camaradas caídos pelos diferentes pedaços da Guiné. Traumatizante demais para os soldados da minha Companhia. Antes da sua guerra já tinham contacto com a morte.

As instalações, cuja segurança militar ficariam à guarda e responsabilidade da CCaç 3327, eram as seguintes:

1 – Palácio do Governador da Guiné
2 – Quartel da Amura
3 – Instalações da Rádio
4 – Hospital Militar 241
5 – O Laboratório

Naquela reunião, o Comandante da Companhia solicitou três voluntários para chefiarem os serviços da Guarda ao Palácio do Governador. Ninguém se ofereceu para este trabalho, aparentemente fácil, mas de uma grande responsabilidade. Assim, a escolha do próprio Comandante recaiu no Fur Mil de Operações Especiais, Carlos Alberto R. P. da Costa, no Fur Mil de Armas Pesadas Manuel Lopes Daniel e em mim. Nós, os indigitados para o serviço ao Palácio do Governador, ficámos ainda com a responsabilidade de fazermos um serviço de Sargento de Dia, na rotação normal, que acontecia de oito em oito dias.

O trabalho em Bissau era intenso, embora não oferecesse os perigos que o mato escondia. Para se ter uma ideia daquela intensidade, ao fim de trinta e sete dias de Guiné ainda foram encontrados três soldados sem um dia de folga. A intensidade do trabalho aliado à disciplina imposta pelo Comandante do AGRBIS transformou esta estadia em Bissau num autêntico pesadelo.

Nesta contenda inglória que foi a nossa guerra em Bissau, os únicos felizardos fomos nós, os Sargentos da Guarda ao Palácio. O nosso trabalho era, comparativamente com o trabalho dos nossos camaradas, bastante mais suave. Mesmo assim, um dos meus camaradas de serviço ao Palácio, não se livrou do castigo à ordem. O furriel viu-se obrigado a participar de um soldado adido à nossa Companhia, na altura sob o seu comando, que se ausentou do seu posto de serviço, sem a devida autorização ou substituição. Na sua primeira e única participação que fez, o furriel não indicou o artigo do RDM infringido e esse lapso foi o suficiente para que fosse castigado com cinco dias de detenção. O soldado foi punido com vinte dias de prisão.

Entrámos de imediato ao serviço (28 de Janeiro de 1971) ao Palácio, embora, os primeiros dias fossem apenas de sobreposição e sem qualquer responsabilidade da nossa parte. Tomámos o primeiro contacto com aquilo que seria a nossa responsabilidade. A nossa missão principal seria, sem dúvida, a segurança diária do Palácio, e, todo o aparato que englobava o içar da bandeira e o render da guarda ao Domingo. Nas tarefas diárias e no Render da Guarda a colaboração dos cabos e dos soldados era fundamental. O seu aprumo, destreza e rapidez em todos os processos envolvidos eram primordiais para o sucesso da missão. Acrescento, com algum orgulho, que os soldados da minha Companhia estiveram à altura da missão.

A guarda ao Palácio englobava as seguintes forças essenciais:

a) - Uma Secção de tropa regular, comandada por um Sargento da Guarda, que tinha a seu cargo os postos de sentinela ao fundo do jardim e ainda um posto de sentinela ao lado direito do jardim. A segurança era feita durante o dia do lado de fora do jardim. Com o render dos postos de sentinela às seis horas da tarde a segurança passava a ser feita do lado de dentro dos muros.
b) - Uma Secção da Polícia Militar, incluindo um sargento e um oficial, que tinha a seu cargo o pórtico principal do Palácio e o portão lateral de serviço geral.
c) - Durante a noite, entre as dezoito e as seis horas, a segurança era reforçada com um elemento da Polícia de Segurança Pública, que ficava encarregado do espaço entre a casa da guarda e do pessoal civil servente do Palácio e o edifício principal.
d) - Também durante a noite, a segurança era ainda reforçada com um cão treinado em segurança e respectivo tratador, na altura um pára-quedista, que tinha a seu cargo o patrulhamento do interior do jardim


Com a devida vénia ao autor da fotografia. Vista aérea de Bissau sendo bem visível o complexo do Palácio. 1 – Casa da Guarda 2 – Casa da Polícia Militar

Toda a responsabilidade da segurança recaía nos ombros do sargento da guarda. Cabia-lhe a implementação das regras estabelecidas. Mantinha em ordem todo o material de guerra à sua disposição: metralhadoras, munições e granadas de mão. Era responsável por encaminhar todas as mensagens chegadas via CTT, conforme o seu grau de segurança. Respondia directamente ao Oficial Ajudante de Campo do Governador sobre qualquer assunto de segurança julgado pertinente. Elaborava e assinava o seu relatório de serviço que era entregue no Comando do AGRBIS logo após a sua chegada a este complexo militar.

Durante cerca de dois meses, essa foi parte do meu trabalho, esta foi a minha Guerra em Bissau. Mantive, sempre, óptimas relações com todas as forças de segurança, incluindo os oficiais da Polícia Militar, que nunca me regatearam a sua compreensão. Encontrei no Ajudante de Campo do Governador, na altura um capitão, muito mais que um militar. Nesse oficial encontrei alguém que compreendia que nós, militares obrigados ao serviço, éramos pessoas que cometíamos erros, que falhávamos, mas que também tínhamos qualidades humanas a respeitar.

Fev71 - O Fur Mil José Câmara, Sargento da Guarda, no interior do jardim do Palácio do Governador da Guiné

Devo confessar que as boas manobras militares sempre me fascinaram. A organização, a ordem, a unidade, a beleza do movimento são, essencialmente, a base desse fascínio. Ainda hoje isso acontece.

Em Bissau, em frente ao Palácio do Governador, iria ter a oportunidade de ver essas manobras ao mais alto nível, e, eventualmente, participar nelas, quiçá a pior parte. A responsabilidade era grande, pois milhares de pessoas observavam, ao pormenor, essas manobras na praça do Império e o desfile das tropas na Avenida da República.

No Domingo de manhã acontecia ronco grande em Bissau

O atavio militar das Praças da Guarda era o fardamento n.º 2, com cordões brancos nas botas, tendo como armamento a G3. O Sargento da Guarda também vestia o fardamento n.º 2, com luvas brancas e cordões das botas da mesma cor. O seu armamento era a FBP. Durante a cerimónia o carregador na arma estava vazio. Em verdade se diga, os carregadores que estavam nas cartucheiras estavam devidamente carregados.

Postal da época da Guerra na Guiné - Aspecto do Render da Guarda

Para além das Praças da Guarda, as Forças em Parada eram, normalmente, as seguintes: dois Grupos de Combate reduzidos, nesta nossa participação, da CCaç 3327, com fardamento n.º 2 e G3, um Pelotão da Polícia Militar em camuflado e G3, e um Grupo do Destacamento de Fuzileiros Navais em fardamento branco e G3. Os Leopardos (se a memória não me falha essa era a sua sigla e sujeito a correcção) de Bissau, com os seus inconfundíveis turbantes vermelhos, eram a Banda Militar que nos acompanhavam nestas cerimónias.

Após o içar da bandeira e o render da Guarda, as forças desfilavam pela Avenida da República indo destroçar junto ao Quartel da Amura.

Postal da época da Guerra na Guiné – A excelente Banda Militar de Bissau

Nunca poderei esquecer a atenção e o respeito que os guineenses demonstravam nestas cerimónias. Novos e velhos, homens e mulheres seguiam com muita atenção todos os pormenores do içar da bandeira e do Render da Guarda. Vi muitos deles saudar com continência a Bandeira que subia no mastro, e senti o calor de milhares de palmas quando as nossas tropas acabavam as manobras em frente ao Palácio e desfilavam pela Avenida da República. Nestas ocasiões, devo confessar, não sentia que os guineenses procuravam a sua independência. Quanto muito desejavam a paz, a mesma paz que nós procurávamos. Nós éramos a sua esperança.

Foi essa atenção, respeito e calor humano que eu senti das populações da Guiné, num simples içar de uma Bandeira Nacional e de um desfile militar, que começaram a despertar em mim o amor por aquela terra mártir e a sua gente que, ainda hoje, perdura e... perturba.

José Câmara
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4935: Os Nossos Enfermeiros (4): Valioso trabalho desenvolvido pelo Fur Mil Enf Rui Esteves (CCAÇ 3327) e a sua equipa (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4906: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (6): AGRBIS, um inferno no meio da guerra

domingo, 6 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4906: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (6): AGRBIS, um inferno no meio da guerra

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, com data de 3 de Setembro de 2009:

Olá Carlos,
Depois de umas maravilhosas férias pelos Açores, cá estou com mais uma uma achega para a minha história.

Para minha surpresa encontrei, no fundo de uma caixa com coisas que há muitos anos tinhamos guardado, alguma da correspondência que então mantive com a minha madrinha de guerra, e que hoje é a minha esposa. Estava convencido que tinha queimado toda a nossa correspondência à muitos anos.
Quando lhe perguntei o que tinha acontecido, ela apenas respondeu que não tinha tido a coragem de se desembaraçar de algo que lhe era muito querido.
Parte dessa correspondência vem avivar alguns dos factos que aos poucos se íam perdendo na neblina da memória.

Haja saúde para todos.

Um abraço do tamanho do oceano,
José Câmara


AGRBIS, Um Inferno no Meio da Guerra

Grande surpresa!


Tão longe que estava de encontrar muito da correspondência que mantive com a minha Madrinha de Guerra, hoje minha esposa, ao longo da minha comissão de serviço na Guiné. Acidentalmente, encontrei o seu (nosso) tesouro, do qual manteve absoluto sigilo durante todos estes anos. Pensava que as cinzas tinham tomado conta desse espólio.

Ao reler muito do que então escrevi, as memórias avivaram-se, e darão outra tonalidade àquilo que irei escrevendo. É certo que sempre fui parco em palavras, e aprofundava muito pouco sobre o que se passava comigo. Era uma forma de estar na vida.

Na última parte que escrevi afirmava que as paupérrimas instalações de alojamento, a falta de correspondência e a dureza da disciplina estavam entre as condições que mais afectavam os militares da minha Companhia. Pouco me alonguei sobre o assunto na medida em que, ao fim de tantos anos, alguns factos foram-se perdendo na neblina da memória.

Acontece que agora posso aprofundar um pouco mais sobre o que foram os primeiros dias na Guiné. Vou servir-me exactamente daquilo que então escrevi, suprimindo aquilo que me parece supérfluo para aqui.

José Câmara nas traseiras do AGRBIS

Foto e legenda: © José da Câmara (2009). Direitos reservados.



Aerograma de 28 de Janeiro de 1971:

A minha Companhia desembarcou ontem cerca das nove horas da manhã. Pelas três horas da tarde houve formatura geral, com as demais forças desembarcadas. Tivemos a recepção oficial com a presença do próprio Governador e Comandante-Chefe General Spínola. A cerimónia foi de estarrecer, sobretudo, pela quantidade de desmaios. O calor era tremendo. Demorou até ao escurecer. Só depois fomos para os nossos alojamentos. Estes são incríveis.

Dorme-se em barracas de lona, com 5 camas para onze homens. As camas insufladas, também em lona, são muito semelhantes àquelas que levamos para a praia.

As noites são frias. Não há cobertores, pelo que nos vemos obrigados a dormir com a farda durante a noite. Em contrapartida os dias são quentíssimos e os corpos suam como torneiras a pingar.

Quanto à comida… ainda não a provei. Desde que desembarcámos temos estado a ração de combate.

A disciplina também é muita pesada, muito mais dura que no Continente ou nos Açores.

Miserável, mas verdadeiro!

Quanto à população, é difícil entender o que diz. Interessante mesmo foi a aproximação de um preto que me pediu para o ensinar a tirar a 4.ª classe.

Estas são as minhas primeiras impressões da Guiné.


A correspondência, ou melhor, a falta de correspondência foi outro problema que enfrentámos.

Para recebermos a primeira correspondência, a solução foi pedir autorização ao Comandante da Companhia Cap Mil Rogério Rebocho Alves para deixar-me ir a Bissalanca ao SPM. Com alguma reserva, ele autorizou-me, desde que eu mantivesse sigilo sobre a autorização. E era fácil de compreender. A Companhia não tinha viaturas distribuídas, pelo que teria que ir à boleia ou a pé. Em qualquer dos casos eu assumiria as consequências do que eventualmente pudesse acontecer.

Verdade seja dita que, sendo açoriano, sempre tive algum espírito aventureiro. Fiz-me ao caminho na companhia do soldado José Francisco Serpa, florense como eu, homem da minha confiança, e a quem atempadamente pus ao corrente da situação. Este soldado era um dos que mais sofria com a falta de correspondência. Para além de ser muitíssimo chegado à família, andava muito preocupado com a sorte de dois irmãos gémeos que estavam a entrar para o serviço militar. Tinham metido requerimento para amparo mas ainda não tinham obtido resposta, portanto, preocupações acrescidas para ele, não fossem todos a virem a encontrar-se no Ultramar. Por ironia do destino, foi o que veio a acontecer, dois na Guiné e um foi para Timor.

Escusado será dizer que o nosso regresso a Brá, carregados com os sacos de correspondência, foi recebido com extrema alegria por todos e alguma admiração. Tudo tinha sido mantido em segredo. Poderia acrescentar, sem medo de errar, que os soldados da minha Companhia me passaram a ver como sendo um homem de bom coração.

A alegria que eu vi estampada naqueles rostos de bebés está entre as melhores recordações que guardo da Guiné.

A minha outra recompensa foi o facto de também ter recebido a primeira carta da minha Madrinha da Guerra em terras da Guiné. Respondi-lhe assim:

Carta de 10 de Fevereiro de 1971:

Recebi a tua carta. E com ela a vontade firme em ajudares-me; acredita-me que a carta é o melhor remédio para quem, longe, anseia pela palavra de uma pessoa amiga. A carta é, para mim, alegria, dor, saudade, angústia, prazer, amor, vontade de viver. Sim, a carta é tudo isso. Ajuda a fazer desaparecer os tormentos e as angústias do dia-a-dia. É lida a correr porque o tempo voa nesse instante de leitura. A carta fala, comunica. Vem ao encontro de outra que se presta para partir. Juntam-se e animam-se.
Depois… fica a certeza de que alguém reza pela nossa protecção, nos anima, nos acarinha.


Carta de 25 de Fevereiro de 1971

Já se passaram quinze dias desde que recebi a última carta. E dos meus pais também não recebi. Até parecem combinados.

Estas duas cartas que eu escrevi exemplificam as dificuldades que nós, açorianos, tínhamos em receber correspondência. Esse aspecto agudizava-se muito mais para aqueles que eram oriundos das ilhas das Flores e Corvo, onde, no Inverno, os barcos apenas lá iam uma vez por mês caso o mar e as condições atmosféricas o permitissem. Ainda em outros casos, como o meu, tínhamos os nossos familiares emigrados nos Estados Unidos da América ou Canadá. As distâncias eram, de facto, muito grandes naqueles tempos.

A disciplina, melhor dizendo, o uso e abuso do RDM (Regulamento de Disciplina Militar) martirizou e condicionou a CCaç 3327 para toda a comissão. Muitos furriéis foram decapitados da sua autoridade moral pelas punições sofridas. Ficaram-se, em parte, pela autoridade militar, forma triste de comandar tropas em qualquer cenário militar e, muito particularmente, num cenário de guerra. Acrescento que todos estes furriéis eram militares competentes, e que as punições só aconteceram porque a comandar o AGRBIS estava um militar que desconhecia, por completo, que por detrás de cada farda estava um ser humano.

Era comandante do AGRBIS o Coronel Santos Costa, o célebre Onze, e a quem me referi em escrito anterior.

Para que se tenha uma ideia do que então aconteceu, aqui fica um sumário das punições:

1 Furriel Mil com 15 dias de detenção,
1 Furriel Mil com 10 dias de detenção
2 Furriéis Mil com 5 dias de detenção cada
1 Furriel Mil com 2 dias de detenção
2 Cabos com 5 dias de prisão cada
2 Soldados com 10 dias de prisão cada
2 Soldados com 5 dias de prisão cada

Carta de 1 de Abril de 1971

Há 72 horas que me encontro de serviço. O trabalho tem decorrido normalmente. Cansativo e aborrecido como sempre.
Ontem, a coisa esteve feia. Estive de Sargento de Dia à minha Companhia. Todos os soldados presentes no refetório tentaram fazer um levantamento de rancho. O Oficial de Dia, um Capitão de Cavalaria, obrigou-me a participar de todos os soldados da minha Companhia que não quiseram comer. Ao todo foram vinte e sete (27) participações. Podes calcular como estou, até porque os soldados tinham razão: a comida não se levava de maneira nenhuma.


Quando entreguei as participações ao Comandante da minha Companhia, pedi-lhe que não desse seguimento disciplinar até ao limite permitido pelo RDM que, se a memória não me falha, era de 30 dias, pois era minha intenção retirar as participações. Nessa altura já sabíamos que a Companhia iria seguir para o interior no dia 6 de Abril. Foi assim que vinte e sete (27) soldados escaparam a uma punição, no mínimo, de cinco dias de detenção cada um.

Recentemente tive a ousadia de pedir a um dos furriéis punidos se ainda se lembrava dos motivos da sua punição. Esta é a resposta que me deu por Email:

O castigo que tu referes foi dado num dia que eu estava de Sargento de Dia. Eu já tinha pedido licença ao Oficial de Dia para o pessoal ficar à vontade e caminhar para o refeitório. Quando já estava quase metade da Companhia dentro do mesmo, apareceu o Comandante e procurou quem era o Sargento de Dia e mandou chamar-me. Fui ter com ele. Perguntou se não o tinha visto. Eu disse que não. Voltou-se para mim e disse:

- Os soldados que vão ficar à tua ordem vão morrer todos! (e disse ainda mais alguma coisa que já não me lembro). Parece que isso aconteceu quando estávamos adidos a um batalhão no Agrbis. Vê se te recordas...
O furriel em causa foi punido com dois dias de detenção pelo simples facto de não ter visto o tal Onze. Como não viu não cumprimentou. Levou com a porrada na mesma.

Assim se praticava a (in)justiça no AGRBIS

José Câmara
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4730: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (5): Os primeiros passos na Guiné

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4730: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (5): Os primeiros passos na Guiné

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 17 de Julho de 2009:

Olá amigo Carlos,
Junto encontrarás mais um pouco da minha história.
Se vires que algo possa ser ofensivo para alguém agradeço que faças o óbvio: dá-lhe o nó que eu até agradeço.
Com votos de muita saúde para esses lados do Atlântico.

Um abraço amigo,
José Câmara


Os primeiros passos na Guiné

A Companhia de Caçadores 3327 quando chegou à Guiné já tinha o seu IAO feito e sabia-se que a mesma iria ficar em Bissau durante algum tempo. Como não ia substituir nenhuma Companhia, não lhe foi dado qualquer treino operacional.

A Companhia passou as primeiras três semanas no Depósito de Adidos em Brá, tendo depois mudado para o AGRBIS onde permaneceu até ao dia 6 de Abril de 1971.
Estes dois meses revelaram-se como estando entre os piores momentos de toda a comissão.

AGRBIS > O arame farpado, as bananeiras , as papaeiras e o barro vermelho.

A adaptação ao calor da Guiné tornava-se muito difícil a que não era alheio o facto de estarmos instalados em barracas de campanha. Para quem fazia serviço de noite era impossível descançar de dia dentro das barracas. Assim cada um procurava um sítio que lhe permitisse algum descanço, missão quase impossível num local barrento e sem arvoredo.

A mudança para o AGRBIS com instalações muito boas para a época vieram minimizar as condições salubres e de alimentação. Em contrapartida a Companhia teve que enfrentar no austero Coronel Santos Costa (?), Comandante do AGRBIS e a quem tinham apelidado de O Onze, uma disciplina que ultrapassava em muito aquilo que era razoável e normal. O Coronel usou e abusou do RDM e transformou uma Companhia disciplinada num autêntico desastre, históricamente falando. Foi pena!

AGRBIS > Tanques de água

Outro factor que contribuiu para o mal estar da Companhia em Bissau, em príncipio, foi a falta de correspondência. Como afirmei anteriormente a Companhia teve o seu embarque marcado para o dia 5 de Janeiro, mas só veio a verificar-se a 21 do mesmo mês. Entretanto os militares foram avisados para informarem os familiares e aqueles com quem mantinham correspondência que a deviam mandar para o SPM da Companhia. Infelizmente o sistema do Serviço Postal Militar não foi devidamente informado de que a Companhia ficaria no DA, e a correspondência acabou por ficar congelada em Bissalanca durante algum tempo.

AGRBIS > Mensagem visiual diária da guerra – Helis a grande altitude em direçãao ao sul

Foi durante a estada no DA que teve lugar a cerimónia de boas-vindas pelo então Comandante-Chefe General Spínola. Não o conhecia! O seu discurso foi empolgante e trouxe, ao menos para mim, uma faceta nova a tudo aquilo que me tinham ensinado na Recruta e Especialidade. A guerra não poderia ser ganha se não conquistássemos a população e não a tivéssemos connosco. Isso só poderia ser obtido com respeito pelo ser humano, pelos suas tradições, pela sua forma de estar. Era, julgo eu, a base essencial da sua estratégia para UMA GUINÉ MELHOR!

A seguir às cerimónias o General teve uma reunião com todos os graduados das Forças que agora começavam a sua comissão. Mais uma vez o General no seu estilo militarista peculiar alertou para os perigos que iriamos enfrentar, e exortou-nos a respeitar os nativos, e a fazer da Guiné um pedaço de terra do qual todos nós nos pudessemos orgulhar no futuro.

Durante a sua alocução falou-nos da importância que era reservada aos diferentes postos de comando, e referiu-se especialmente aos Primeiros Sargentos das Companhias, equiparando-os às nossas mães, arrancando assim uma gargalhada geral. O General até conseguiu rir-se com as suas próprias palavras.

Confesso que mais tarde acabei por perceber o que ele então nos quiz dizer.

Foi nessa altura que o Capitão Parracho, comandante da Companhia de Caçadores 3325 entrou, tendo sido de imediato interpelado pelo General na sua falta de comparência ao príncipio da reunião. O Capitão, com o àvontade próprio de alguma experiência, respondeu que estivera a prepar as coisas necessárias à sua Companhia que iria seguir para o mato nessa noite. No meio da gargalhada e da boa disposição do momento, as palavras do Capitão tiveram o efeito de uma lufada de ar gelado. Sabíamos que o destino da sua Companhia era Guileje.

Finda a audiência entrámos nas despediadas normais daquelas ocasiões. Cada um seguiria, a partir de agora, o seu próprio destino. A madeirense 3325 ia para Guilege. A açoriana 3326 ia para Mampatá, a 3327, a minha Companhia, ficava em Bissau e a 3328 ia para Bula.

Nessa despedida estava o meu bom amigo Fur Mil Bernardino Val da CCaç 3325. Era natural da área de Viseu. Tínhamos sido camaradas de Pelotão na Recruta, marchámos lado a lado e as nossas tarimbas também eram lado a lado. Na Especialidade foi voluntário para o Curso de Comandos, o seu sonho. Acabaria tirando o Curso de Minas e Armadilhas. Encontrámo-nos no Funchal, e mais tarde em Santa Margarida. Viajámos juntos até à Guiné.

Primeiro Turno 1970 - O Instruendo Bernardino Val em Tavira. Fur Mil da CCaç 3325.

No abraço de despedida ficou a última vez que nos veríamos. O Val não voltaria.

José Câmara
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4621: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (4): A viagem até à Guiné

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4621: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (4): A viagem até à Guiné

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73 (*), com data de 29 de Junho de 2009:

Olá Carlos,
Junto encontrarás mais um bocadinho da história. Faz com ela o que nuito bem entenderes.

Com votos de muita saúde e um abraço amigo
José Câmara


A Viagem até à Guiné

Enquanto o Paquete Angra do Heroísmo sulcava os mares encapelados do Atlântico, resolvi passar pelos porões. Para mim, era uma forma simples de humanizar o meu dever: estar ao lado daqueles que mais precisavam de ajuda, fosse ela física ou emocional. Sabia por experiência própria que, em ocasiões como esta, uma palavra anímica é como bálsamo para a alma.

Infelizmente, deparei com os primeiros enjoos. Os soldados mais afoitos e dados ao mar ajudavam como podiam aqueles que mais necessitavam. Perante tal visão, o meu pobre estômago resolveu dar o primeiro sinal de alerta, e obrigou-me a recolher ao meu camarote. Embalado pelas ondas alterosas afundei-me, cada vez mais, nos delírios da mareação. Perdi, na neblina da memória, o tempo passado nesse estado horroroso de nada poder e nada querer. Assim foi, até que alguém descortinou terra. Eram as ilhas Canárias!

A partir daí, o mar como que envergonhado do que nos fizera sofrer, amansou os seus capelos e, como cordeiro manso, resolveu deixar-nos em paz. Já não era sem tempo.

Navio "Angra do Heroísmo".
Foto retirada do site
Navios no Sapo, com a devida vénia

O Angra do Heroísmo, esse sim, continuava a sua viagem, indiferente ao que se passava à sua volta e à carga que transportava. Mais uma noite e um dia, e ainda outra noite, mas que importa isso?! – pois chegaríamos a bom porto.

Até que…

Lá longe, muito longe, no pego, era possível ver-se uma linha azulada que confundia o mar e o espaço. De repente, sem saber de onde, apareceu uma fragata navegando majestosamente entre o Angra e a tal nuvem que, agora, bem podia ver-se - era terra Africana, de seu nome Guiné.

Em alto mar ainda, vindos de terra, subiram a bordo, o piloto do porto e ainda alguns fuzileiros navais. Era o primeiro contacto com homens da Guerra. Jamais poderei esquecer a visão dos seus camuflados, as G3 e as cartucheiras. Ali, à minha frente, estava a realidade daquilo que seria a minha vida nos próximos dois anos.

Finalmente, o Angra do Heroísmo, talvez cansado da viagem, lançou ferro no Porto de Bissau. Era então o dia 26 de Janeiro de 1971. Por incrível que pareça, pernoitaríamos mais uma noite a bordo. O quartel de Adidos em Brá não estava minimamente preparado para receber as tropas que agora chegavam ao teatro da Guerra.

Esta última noite, a bordo do Angra do Heroísmo, foi diferente. De longe, dali e dacolá, chegavam os sons de tiros de artilharia e de explosões. O rio Geba, indeferente ao que se passava à sua volta, parecia dormir profundamente. Melhor dizendo, a sua calma profunda parecia gozar com o espírito receoso dos periquitos que tentavam desvendar os mistérios da noite guineeense para além da escuridão.

No dia seguinte, ao desembarcar, olhei o Angra uma vez mais. Com alguma emoção. Estava longe de imaginar que seria a última que o via

A CCaç 3327 era, principescamente, instalada em tendas de campanha no aquartelamento de Adidos em Brá.

José Câmara

As tendas de campanha em Brá, onde a CCaç 3327 ficou alojada.
José Câmara é o quinto a partir da direita na linha de trás.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4577: O mundo é pequeno e o nosso Blogue... é grande (13): Encontro de dois atabancados em terras da América (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 8 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4480: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (3): Partida para a Guiné

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4577: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (13): Encontro de dois atabancados em terras da América (José da Câmara)

José Macedo, natural de Cabo Verde, ex-2.º Ten FZE do DFE 21, Guiné, 1973/74 (*)

José da Câmara, natural das Lajes das Flores, Açores, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73 (**)


1. Mensagem de José da Câmara que vive nos Estados Unidos da América, com data de 16 de Junho de 2009:

Assunto: Uma surpresa do tamanho da Tabanca

Caro Carlos,

Junto encontrarás uma pequena surpresa. Mesmo que ela possa não ter interesse para o blogue, não quero deixar de partilhá-la contigo. Conheci no José Macedo um homem amável e de trato fino, acérrimo defensor de uma cultura que foi assimilando, a americana, e sem perder as suas raízes luso-cabo-verdeanas. Foi um encontro agradável aquele que tive com o José Macedo e a esposa.

Com um grande abraço e votos de muita saúde,
José Câmara


2. Mensagem de resposta enviada no mesmo dia ao nosso camarada:

Caro José Câmara
O que o nosso Blogue pode fazer!!! Juntar compatriotas na diáspora!!! Muito bonito.

Claro que vamos publicar. Muito, mas mesmo muito obrigado por nos teres dado nota do vosso encontro.

Um abraço
Vinhal


3. Numa manhã de domingo

- José, tens uma chamada telefónica. Não sei quem é. Foi assim que a minha esposa me alertou...

Raios, quem seria que, naquela manhã de domingo, precisava de falar comigo. Logo o saberia.

- Estou, quem fala?

- Olá José Câmara. Eu sou o José Macedo. Vi o teu nome no blogue do Luís Graça. Depois procurei pelo teu número de telefone e aqui estou.

Se uma bomba - que não explodisse - me tivesse caído aos pés, o efeito surpresa não teria sido maior.

Aqui, em terras da estranja, se confirmava que a Tabanca Grande é, afinal, uma grande tabanca. É tão grande como o mundo por onde nos encontramos espalhados.

Como não podia deixar ser, falamos sobre os assuntos do blogue, das nossas experiências, dos sítios por onde andámos em terras da Guiné. E, claro, um pouco sobre a nossa vida enquanto emigrantes. Ficamo-nos de encontrar aqui, em Stoughton, até porque o José Macedo tem familiares nesta área.

Mas surpresa não ficaria por aqui.

A convite de um casal amigo, fomos, eu e a minha esposa, jantar ao Sport Club Faialense, com sede em Cambridge, MA. Foi na sexta-feira dia 22 de Maio. Nessa noite o ex-Tenente do Destacamento de Fuzileiros Especiais 21, apareceu naquela colectividade acompanhado da sua, muito simpática, esposa e um casal amigo.

Um encontro de tertulianos em terras da América

Os nossos amigos acabaram por se interessar pela nossa história e pela forma como o encontro se proporcionou. Para nós, ilhéus de arquipélagos diferentes, Açores e Cabo Verde, foi um encontro diferente de tertulianos. À nossa maneira: simples e simpático.

Na despedida ficou um abraço que só nós, aqueles que combateram na Guiné, são capazes de compreender.

Um abraço para todos,
José Câmara


4. Comentário de CV:

Caros camaradas José Câmara e José Macedo, não posso avaliar a sensação que tiveram quando se encontraram. Felizmente (?) nunca tive necessidade de sair do meu cantinho, excepção do tempo de tropa, pelo que só pessoas nas vossas condições poderão avaliar a situação.

No entanto, ao ler o relato do José da Câmara, quase saltava uma lagrimazita traiçoeira, daquelas que deixam um homem mal.

Se para vós dois foi um momento mágico, para nós, editores/tertulianos, com alguma responsabilidade no blogue, foi um bálsamo para contunuarmos o nosso trabalho de retaguarda, visível só no que aos leitores se depara, os vossos e nossos escritos. Que orgulho sentimos por chegarmos aos portugueses e amigos lusófonos que se encontram em todas as partes do mundo.

Pode-se dizer com orgulho que o Mundo é pequeno, mas o nosso Blogue é... enorme.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2532: Tabanca Grande (56): José J. Macedo, ex-2º tenente fuzileiro especial, natural de Cabo Verde, imigrante nos EUA

(**) Vd. poste de 15 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4350: Tabanca Grande (141): José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73)

Vd. último poste da série de 12 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4514: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (12): O embaixador Manuel Amante, com saudades do Geba, fala da onça e do irã-cego

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4480: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (3): Partida para a Guiné

1. Mensagem de José Câmara (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 6 de Junho de 2009:

Assunto: Memórias e histórias minhas (**)

Olá Carlos,
Junto encontrarás mais um pouco da história. Como sempre, para bem do blog, faz com ela o que muito bem entenderes.

Daqui do outro lado do oceano, um abraço amigo
José Câmara


Partida para a Guiné

Ali, em frente dos meus olhos, estava o n/m Angra do Heroísmo. Muitas vezes o vira ao largo da cidade da Horta. Em desafio ao povo faialense nunca amarrara à doca. Entrar nele só mesmo aqueles que fizeram viagem. E era isso que eu ía fazer: uma viagem que não tinha requisitado. Tal como todos os outros militares que iriam encher os seus camarotes e porões.

O Angra do Heroísmo, no Cais de Alcantra, em Lisboa, espera que os seus porões se encham de militares com destino à Guiné

Foto: © Juvenal Afonso (2009). Direitos reservados.


Da vistoria ao navio fiquei com uma sensação amarga que, ainda hoje, perdura: a visão dos porões preparados para cargas de toda a espécie, e que agora serviriam para o transporte de carga humana. Tinham sido limpos, mas continuavam mal cheirosos e a ventilação era paupérrima. Aqueles porões iriam servir de camarata a tropas que dariam o melhor de si mesmas nas matas e bolanhas da Guiné.

Nos Açores, vezes sem conta, tinha visto as vacas serem embarcadas e arrumadas nos porões dos barcos que, ao tempo, demandavam as terras açorianas. Agora, em plena Lisboa, apercebia-me que os nossos soldados iriam ter idêntico tratamento, e serem, assim, reduzidos à condição animalesca.

A bestialidade e baixeza de instintos das chefias militares e dos responsáveis pela governação no Portugal de então, estavam ali, na visão daqueles porões. Muito baixo tinham descido no conceito e respeito pela pessoa, pelo militar, pelo cidadão e pelo mártir da Pátria. A prova estava ali. Para ser vista e sentida pelos cerca de seiscentos militares que faziam parte daquela viagem. Uma situação que foi vivida e sentida por muitos outros, antes e depois de nós.

Pelas 8:00 horas da manhã, do dia 21 de Janeiro de 1971, começaram a chegar as primeiras tropas. Sem desfiles e sem discursos de ocasião o embarque foi acontecendo. Pouca gente a observar este embarque. Sem grandes despediadas. Compreensível. A maioria do contingente militar era formado por açorianos e madeirenses. Aqui e ali um outro lenço abanava. Pelos militares continentais que faziam parte dessas Companhias e pelos militares de um Pelotão de Artilharia. Um grupo de cães e respectivos tratadores também faziam parte do contingente.

Cerca das 13:00 o navio começou a afastar-se da doca. Aos poucos foi descendo o Tejo, rumo ao Atlântico, cujas águas encapeladas provocadas pelo tempo invernoso que então se fazia sentir, deixava antever uma viagem pouco agradável. Como se isso fosse possível naquelas circunstáncias. Para trás ficava a linda Lisboa. Por todos um aceno de esperança. Para alguns o seu último adeus!

O silêncio entre os militares era tão cortante como o frio que então se fazia sentir, aqui e ali quebrado pelas rajadas do vento forte que fazia, e pelo navio a cortar as águas do estuário do Tejo. Cada um embrenhado nos seus pensamentos.

O dia tinha sido longo e a noite já ía avançada. As emoções tinham sido muitas. Restava-me mais uma: o dia da minha partida para a Guiné coincidia com o dia de aniversário natalício de minha mãe. No meu pensamento e no meu coração dei-lhe os parabéns.

Naquele momento a escuridão da noite era a luz do vazio que me ia na alma.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4424: (Ex)citações (30): O meu pai só aprendeu as letras que o trabalho lhe ensinou (José da Câmara)

(**) Vd. último poste da série de 27 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4421: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (2): O IAO em Santa Margarida

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4421: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (2): O IAO em Santa Margarida

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 25 de Maio de 2009:

Olá Carlos,
Em anexo encontrarás a continuação da minha experiência militar.
Como sempre deixo-te à vontade para fazeres com ela o que muito bem de aprouver.
Um abraço do
José Câmara


Memórias e histórias minhas

2 - O IAO em Santa Margarida

Três apitos! Saudação tradicional de despedida dos barcos que aproavam à Ilha das Flores. A âncora começou a subir na proa do n/m Ponta Delgada. Extremeci. O coração apertou… de ternura! Por uma lágrima que quisera saborear. Comigo, bem escondido no meu coração, levava uma linda recordação.

Olhei a minha ilha uma vez mais. Relutantemente, as costas lhe fui virando…

Um aspecto da linda ilha das Flores, Açores

Juntei-me aos outros camaradas oriundos das ilhas das Flores e Corvo que, tal como eu, estavam mobilizados, e íam juntar-se às suas Companhias, incluindo a CCaç 3327. Na chegada à Terceira, um piquete militar esperava por nós. Guias de marcha em ordem, passagens confirmadas. De repente, sem esperar, o som inconfundível de calcanhares à posição de sentido. O Aspirante de serviço, com a dignidade própria de um camarada de armas, estendeu a mão num cumprimento, desejou-nos boa sorte. Jamais esqueci esse gesto simples, mas cheio de um sigificado muito especial. Afinal eramos todos irmãos.

Ao largo, majestosamente boiando na baía de Angra, o luxuoso paquete Funchal esperava por nós. Esse navio, no seu giro tradicional, passaria pela Horta, Ponta Delgada, Funchal e Lisboa. Aqui, em perfeito contraste com o que se tinha passado na Terceira, não havia piquete, estafeta ou qualquer outro tipo de apoio militar. De malas às costas lá segui com os outros militares que me acompanhavam para o Depósito Geral de Adidos. Ali deparei com outro desastre, ou melhor, com uma afronta: não sabiam da chegada dos militares, mas sabiam que íamos para Santa Margarida no dia seguinte. Desenrasquem-se, foi a palavra de ordem. Foi isso que se fez, até à hora de tomar o combóio, no dia seguinte para Santa Margarida.

12/1970 – José Câmara a bordo do n/m Funchal, em frente à cidade com o mesmo nome, a caminho do IAO

A chegada àquele campo militar trouxe um pouco de comoção. Os meus camaradas desdobravam-se a contarem as suas experiências do IAO. Porém, não foi o retrato da instrução o que mais mexeu comigo. A grande notícia no campo militar era a deserção de três oficiais mobilizados para a Guiné. O madeirense Gonçalves, Aspirante a Oficial Miliciano, Comandante do 3.º GComb da CCaç 3327, era um dos oficiais desertores. Servi, ainda na Terceira, durante algum tempo debaixo do seu comando. Considerava-o um bom oficial, e nunca pensei ser capaz (e desejoso) de dar o salto. Enganei-me! A atitude daquele oficial trouxe-me a certeza de uma outra realidade: eu nunca seria capaz de abandonar os meus soldados, que treinei e que confiavam em mim para os guiar em terras da Guiné.

O IAO não teve, em mim, quaisquer proveitos práticos. Porque cheguei mais tarde, e porque no pouco tempo que estive em Santa Margarida, não me apercebi de nada ser diferente daquilo que já se fazia no Monte Brasil, Ilha Terceira. Os exercícios com o apoio de helicópteros foi a novidade programada mas, até isso, foi cancelado. Passavamos o tempo em exercícios de ginástica e ordem unida, treinos de penetração, progressão, patrulhamentos, emboscadas, e pouco mais. O mais importante, para mim, foi a manutenção do poder físico e da disciplina militar. Foi num desses exercícios que conheci o distinto e prestigiado coronel Maçanita, Comandante do campo militar. Observou o meu Grupo durante algum alguns exercícios, fez alguns comentários, desejou-nos sorte e prosseguiu a sua vistoria.

12/1970 – José Câmara no IAO, Santa Margarida

Mas nem tudo foi monótono no IAO. Três eventos muito importantes marcaram a minha estadia em Santa Margarida: a visita ao Santuário de Fátima, as festas de Natal e Ano Novo, e o festival da Batatada entre açorianos e madeirenses.

A visita que a Companhia fez ao Santuário de Fátima, foi o evento mais importante do IAO. Para os açorianos, profundamente religiosos, essa visita acabou por ser uma autêntica peregrinação de fé cristã. A magnitude do lugar, o silêncio, o simbolismo e as manifestações de fé que constantemente se podem observar são deveras impressionantes. Nesta visita ao Santuário, com cerca de quatro contos que conseguimos juntar entre os militares da Companhia, foi adequirida e abençoada uma linda imagem do Sagrado Coração de Maria, que nos acompanhou e protegeu durante toda a comissão. Hoje, a imagem, como muitas outras imagens que fizeram comissão no ultramar, faz parte do espólio religioso da igreja de São João Batptista, que se encontra edificada no Castelo, em Angra do Heroísmo.

Outro evento importante, para nós açorianos, foi a celebração do Natal de 1970 e a passagem de ano em terras de Santa Margarida. Para muitos soldados açorianos foi a primeira vez que o fizeram longe do aconchego familiar. Foi um Natal passado com saudades, tristeza e resignação. Para mim era a segunda vez que me acontecia. Mas tive uma consolação: voluntáriamente, estive de serviço contítuo à Companhia, permitindo, assim, que os meus camaradas continentais pudessem disfrutar, mais uma vez, do calor familiar, e das alegrias próprias que embelezam a época de Natal. Nunca me arrependi de o ter feito. A minha família, naquele momento, eram os militares da CCaç 3327.

Natal 1970 – Caserna da CCaç 3327 - Armas ensarilhadas e imaginação. José Câmara junto da árvore de Natal

Natal 1970 – José Câmara (Em pé – Primeiro da direita) – CCaç 3327 - A minha família

As Companhias em exercícios de IAO eram as CCaç 3325, do BII19, Funchal e as açorianas 3326, que foi para Mampatá, a 3327 (a minha) que ficou, no príncipio, em Bissau e a 3328 que foi para Bula. Com as férias de mobilização dos graduados continentais, essas Companhias ficaram decapitadas pela ausência de commandos a todos os níveis. Apenas sargentos de dia se encontravam presentes. As relações entre açorianos e madeirenses, que usufruiam do mesmo refeitório, começaram a azedar com a recusa dos madeirenses em descascar as suas batatas.

Pelo facto de ser açoriano, julgo eu, a minha ajuda foi solicitada, para ajudar a resolver o problema das batatas, ou melhor, da recusa pelos militares madeirenses em descascar as suas batatas. Em voz bem alta, e para que não houvesse dúvidas, dei ordem para que as batatas descascadas e por descascar fossem depositadas no mesmo caldeiro, cozidas e servidas ao jantar. Seguidamente, e com os sargentos de dia das outras Companhias, saí do refeitório, e fechei a porta. Nunca soube o que se passou a seguir. Ao jantar as batatas foram servidas descascadas, havia sorrisos, e, por incrível que pareça, vi açorianos e madeirenses sentados na mesma mesa. Tenho que confessar: o Sagrado Coração de Maria tinha feito o seu primeiro milagre: tinha tornado uma ordem muito perigosa em remédio santo. Julgo que Lhe agradeci

No príncipio do mês de Janeiro o frio começou a apertar, e apareceram os primeiros flocos de neve. Os exercícios de IAO cessaram e, começamos a contagem dos dias para a partida para a Guiné. Soubemos que o embarque estava marcado para o dia 5 de Janeiro de 1971. Por razões que desconheço só veio a acontecer no dia 21 de Janeiro de 1971.

Entretanto, mais uma surpresa me estava reservada. Fui nomeado, conjuntamente com o Aspirante Francisco João Magalhães, para fazer a vistoria do barco que nos levaria à Guiné. No dia da minha partida para Lisboa o Comandante da Companhia, Cap. Mil. Rogério Rebocho Alves, chamou-me ao seu gabinete, e mandou-me por as divisas de Furriel. Excusado será dizer que, ainda hoje, o braço direito me doi de responder a tanta pala feita com a mão esquerda: o gozo normal, nestas circunstâncias, dos meus camaradas. Porém, quando em frente do espelho as vi nos meus ombros, aquilo que podia ter sido um sentimento de honra e orgulho, foi substituído pelo peso acrescido das responsabilidades que se advinhavam: comandar tropas no teatro de guerra: a Guiné!

A 19 de Janeiro eu deixava Santa Margarida com destino a Lisboa no cumprimento da minha missão: vistoriar as acomodações do n/m Angra do Heroísmo, da Empresa Insulana de Navegação, que iria fazer, segundo se dizia, a sua viagem inaugural como navio transporte de tropas. O resto da Companhia chegaria a Lisboa dois dias depois.

NAVIO ANGRA DO HEROISMO


Tipo... Navio de passageiros de 1 hélice
Construtor... Deutsche Werft A.G. (construção número 690)
Local construção... Hamburgo
Ano de construção... 1954-55
Ano de abate... 1974
Porto de registo... Lisboa
Número de registo... I 358
Indicativo de chamada... C S B P
Comprimento ff... 152,71 m
Comprimento pp... 138,34 m
Boca... 19,87 m
Pontal... 11,00 m
Calado máximo... 8,71 m
Capacidade de carga... 4 porões com capacidade para 9.019 m3 de carga, incluíndo 536 m3 de carga frigorífica
Tonelagem... 10.187 TAB, 6.230 TAL, 6.870 TPB, 13.900 T deslocamento
Aparelho propulsor... Um grupo de turbinas a vapor AEG, construídas em Berlim Ocidental, por Allgemeine Electric Gesellschft, 2 caldeiras.
Potência... 11.500 shp a 119 r.p.m.
Velocidade máxima... 19 nós
Velocidade normal... 18 nós
Classificação... +100A1 LRS
Passageiros... Alojamentos para 80 em primeira classe, 43 em turistica A, 80 turistica B e 120 em turistica C, no total de 323 passageiros.
Tripulantes... 139

Photo and Copyright Carlos Russo Belo
http://navios.no.sapo.pt/angrah.html

O resto da Companhia chegaria a Lisboa dois dias depois.
José Câmara
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 16 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4353: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (1): O início do Serviço Militar

Em tempo:
Poste rectificado em 29 de Maio por ter sido publicado originalmente com parte do texto suprimido.
As minhas desculpas ao José da Câmara
CV

sábado, 16 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4353: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (1): O início do Serviço Militar

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73:

Junto a minha primeira história. Para ser corrigida, cortada, ou publicada se virem interesse nisso.

Com um abraço do tamanho da tabanca,
José Câmara


Memórias e histórias minhas…
Ao serviço da Pátria: a CCAÇ 3327 e PEL CAÇ NAT 56

O início do Serviço Militar


Era então o dia 29 de Novembro de 1969. A manhã acordara calma, cheia de sol, linda como a cidade da Horta, da não menos bonita ilha do Faial, Açores. Porém, uma tristeza enorme pesava em cima dos meus jovens ombros, e o coração começava a sangrar com a invasão de uma tremenda saudade: acabara de me despedir dos meus pais e irmãos que, nessa manhã, embarcaram rumo aos Estados Unidos da América.

Naquele tempo, os jovens, a partir dos 16 anos de idade, não podíam, por lei, sair do país. O auge do esforço da Guerra no Ultramar assim o exigia. Por esse motivo, naquela manhã, não pude seguir os meus familiares na rota da emigração. O meu sonho americano, como o de muitos açorianos, teria que esperar. Assim, pela primeira vez na minha curta vida, sentia-me sozinho. O serviço militar esperava por mim.

Em de Janeiro de 1970, cruzei os portões do Centro de Instrução Militar de Tavira. Nos sete meses seguintes, o Centro foi a minha casa. Lá conheci outras formas de estar na vida, criei algumas amizades. E lá senti o grande estigma da descriminação.

Findo o curso de Sargentos Milicianos, os meus camaradas continentais foram de férias, com transportes pagos pelo governo. Eu, tal como os outros açorianos e madeirenses, não tive esse direito. Fiquei por Tavira à espera de colocação.

Recruta: José Câmara, primeira linha, segundo da esquerda

Especialidade: José Câmara, segunda linha, primeiro da esquerda

Com as divisas de Cabo Miliciano, Atirador de Infantaria, fui colocado no BII19, então sediado na cidade do Funchal, Ilha da Madeira. Foi ali que, dois dias depois de lá ter chegado, recebi a notícia da minha mobilização para a Guiné. Iria juntar-me, já em rendição individual, à CCAÇ 3327, que estava em formação no BII17, Angra do Heroísmo, Terceira. Voltava, assim, aos meus amados Açores.

Quando cheguei ao BII17, a CCAÇ 3327 estava práticamente formada, e a meio da especialidade. Apenas tive que me integrar no grupo de trabalho. Finda a especialização, fui gozar as minhas férias de mobilização à ilha das Flores, freguesia da Fazenda das Lajes, terra onde nasci, e que já não visitava desde os 12 anos de idade. Tinha deixado a ilha para poder estudar no Liceu Nacional da Horta, Ilha do Faial. Os meus dez dias de férias transformaram-se, por falta de transportes marítimos, em vinte e nove dias de lazer. Mas essas férias foram muito mais que isso…Marcaram o resto da minha vida!…

Férias de Mobilização (Fazenda, Flores): Com o meus tio J. António Silveira e esposa Mariazinha

Durante as férias da mobilização conheci uma jovem de 16 anos. Falamos algumas vezes. Convidei-a para Madrinha de Guerra. Ela aceitou! Essa jovem foi o ombro onde, em sonhos, encostei muitas vezes a cabeça, e deixei escapar, em confissão, as minhas aspirações de jovem. Nesse ombro deixei rolar a maldita lágrima da saudade, ou o desespero de um dia menos bom. Nesse ombro senti o calor e o palpitar de um coração de ouro, e ouvi a voz de uma palavra amiga e de esperança. Mais tarde, nos Estados Unidos da América, voltei a encontrar a minha Madrinha de Guerra, que também emigrara para aquele país. Hoje, como nos sonhos de então, continuo a encostar a minha cabeça naquele ombro. Relembro a lágrima que lhe rolou na face, quando nos despedimos. Relembro a realidade, nua e cruel, ali no meio do mar: o barco que me levaria de volta ao continente português, e a terras de Santa Margarida para o IAO.

A Guiné esperaria um pouco mais!

José Câmara
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4350: Tabanca Grande (141): José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73)