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quarta-feira, 26 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12900: Brochura, "Deveres Militares", SPEME, 2ª ed, 1969 (Fernando Hipólito): Parte IV: Quando os solípedes ganhavam aos bípedes em mimos, carinhos e cuidados: art. 96º do antigo RDM








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Continuação da reprodução da brochura "Deveres Militares"... A lista dos deveres de um militar é (ou era) longa...Publicamos hoje os deveres dos plantões... às cavalariças (artº 96º do RDM que estava em vigor do nosso tempo)...

Parece que, na tropa, o solípede (leia-se, o animal que tem um só casco ou uma só unha em cada membro inferior) ganhava ao bípede (ou seja, a besta que andava em dois pés ou que se deslocava sobre as duas patas posteriores)...em mimos, carinhos e cuidados!

E a propósito de cavalos e cavaleiros há muitos dichotes, ditados, provérbios... populares. Aqui vão algums de que eu gosto mais: (i) As manhas do cavalo só as sabe seu dono; (ii) Cavalo com quatro pés cai, quanto mais só quem tem dois; (iii) Cavalo que há-de ir à guerra, não corra bobo nem o abane a égua; (iv) Coices de garanhão, para égua carinhos são; (v) Em compar cavalo e escolher mulher, fecha os olhos e encomenda-te a Deus; (vi) Enquanto o meu tiver besta, para que quero cavalo ? ; (vii) Cavalo, mulher e arma não se emprestam; (viii) Não cavalgues em potro, nem gabes tua mulher a outro; (ix) A soldado novo, cavalo velho;: (x) Quanto maior é a besta, maior o coice....

O nosso saudoso RDM foi substituído pelo atual RDM - Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/77, de 09ABR, com diversas alterações. (Entro em vigor em 10 de abril de 1977, e foi promulgado pelo então Presidente da República António Ramnalho Eanes)

Imagens: Fonte: "Deveres Militares", 2ª edição, SPEME, 1969. A 1ª edição é de 1963. E há uma 4ª edição de 1973.


1. O documento chegou-nos, digitalizado, por intermédio do Fernando Hipólito e César Dias.  O Fernando Hipólito [, foto atual à direita, ] é o nosso novo grã-tabanqueiro, com o nº 650... Passou pelo CISMI, Quartel da Atalaia, Tavira, 3º turno, 1968. Foi fur mil, CCAÇ 2544, Angola, 1969/71. Esteve a maior parte do tempo no leste, em Lumege. Há um blogue sobre Lumege e a malta que por lá passou. E onde o Fernando Hipólitio colabora. Já lhe pedi uma foto atual, "decente", para substituir esta, do "Correio da Manhã"..

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

19 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12856: Brochura, "Deveres Militares", SPEME, 2ª ed, 1969 (Fernando Hipólito): Parte I: Os dez primeiros deveres de um militar...
20 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12859: Brochura, "Deveres Militares", SPEME, 2ª ed, 1969 (Fernando Hipólito): Parte II: Era longa a lista dos nossos deveres militares (e curta a dos direitos): Aí vão mais, do 11º ao 20º

23 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12885: Brochura, "Deveres Militares", SPEME, 2ª ed, 1969 (Fernando Hipólito): Parte III: Será que a lerpa, jogada no CTIG, nas longas noites de insónia, violava o nº 21º do art. 4º do RDM - Regulamento de Disciplina Militar, então em vigor ? Ou as bebedeiras de caixão à cova... não caíam sob a alçada do nº 24 º ?

domingo, 23 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12885: Brochura, "Deveres Militares", SPEME, 2ª ed, 1969 (Fernando Hipólito): Parte III: Será que a lerpa, jogada no CTIG, nas longas noites de insónia, violava o nº 21º do art. 4º do RDM - Regulamento de Disciplina Militar, então em vigor ? Ou as bebedeiras de caixão à cova... não caíam sob a alçada do nº 24 º ?











Continuação da reprodução da brochuira "Deveres Militares", onde naturalmente não se fala... de direitos... A lista dos deveres de um miliatar é (ou era) longa...Publicamos os restantes 5... Ou haver mais  ? Ao todo parece que são ou eram 25 (*)... No atual RDM - Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/77, de 09ABR, com diversas alterações, a lista dos deveres é o dobro, chegando ao nº 55.... (Entro em vigor em 10 de abril de 1977, e foi promulgado pelo então Presidente da República António Ramnalho Eanes)


Fonte: "Deveres Militares", 2ª edição, SPEME, 1969. A 1ª edição é de 1963. E há uma 4ª edição de 1973. (*)

1. O documento chegou-nos, digitalizado, por intermédio do Fernando Hipólito e César Dias.  

O Fernando Hipólito [, foto atual à esquerda, ] é o nosso novo grã-tabanqueiro, com o nº 650...  Passou pelo CISMI, Quartel da Atalaia, Tavira, 3º turno, 1968. Foi fur mil, CCAÇ 2544, Angola, 1969/71. Esteve a maior parte do tempo no leste, em Lumege.

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8951: Humor de caserna (23): Uma insubordinação do c... ou uma viagem pelo polissémico país do c...!!!

1. Termos (ou expressões) considerados “insultuosos” no meio civil, à luz das nossas regras de boa educação e urbanidade, incluindo as regras do nosso blogue (ou livro de estilo),  podem ter outra leitura, apreciação ou abordagem,  vistas  de dentro da “caserna da tropa" e, consequentemente,  à luz do sacrossanto  RDM.

É, pelo menos, essa opinião dos senhores jurisprudentes, civis e militares… Ou, pelo menos,  de alguns. O termo em causa é o nosso tão familiar c..., típica forma de “linguagem de caserna”... Mas podiam  ser outras armas de arremesso do nosso arsenal de insultos verbais, em contexto castrense ou fora dele, algumas usadas até no nosso blogue, no calor das nossas batalhas que, felizmente, são apenas verbais: por exemplo,  fascho, comuna, corno, tuga, turra, filho da puta, cabrão, panasca, fujão, penetra…).


Das Caldas (onde o Bordalo Pinheiro transformou o  c... em faiança artística, e onde no RI5, no CSM, eramos tratados de c... para baixo) a Tavira (onde sofremos pra c... nas salinas), de Mafra (onde o cadete na formatura, na parada do EPI, não podia mexer uma pestana nem que lhe passasse um c... pela boca) a Bedanda (onde o obus 14 dava um coice pra c ...), enfim, por toda a parte onde andámos fardados e calçados pela tropa o dito c... acompanhou toda a nossa alegre e divertida vida militar... 


Mais: é um verdadeiro ferrete, faz já parte do nosso ADN... Falo por mim que já não o dispenso no meu léxico, com 4 anos de tropa mais... 36 anos de conbíbio com a gente nortenha pela bia uterina... 

Esta peça de jurisprudência, de que já dei conhecimento ao nosso “alfero Cabral” (sendo ele um fino e erudito colecionador desta produção dos nossos jurisconsultos), merece figurar (em forma de excerto e link) no nosso blogue e na nossa série Humor de caserna… 


Aqui fica, para os efeitos que foram julgados convenientes ou que se mostrem devidos (memória futura, enriquecimento linguístico, resiliência ao stress, reforço do sistema imunitário, preservação dos usos e costumes, desopilanço dos tabanqueiros, proteção da dentadura do proletariado, etc.) (LG)


PS - Ah!, já me esquecia,  tiro o quico e bato a pala ao senhor relator...



Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa  (reproduzido parcialmente com a devida vénia...)


Processo:  1/09.3F1STC.L1-9
Relator:  CALHEIROS DA GAMA
Descritores:  INSUBORDINAÇÃO POR OUTRAS OFENSAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão:  28-10-2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão:  NEGADO PROVIMENTO



(...) Sumário

I - A palavra “caralho”, proferida por militar (Cabo da Guarda Nacional Republicana), na presença do seu Comandante, em desabafo, perante a recusa de alteração de turnos, não consubstancia a prática do crime de insubordinação por outras ofensas, previsto e punível pelo artigo 89º, n.º 2, alínea b), do Código de Justiça Militar.

II - Será menos própria numa relação hierárquica, mas está dentro daquilo que vulgarmente se designa por “linguagem de caserna”, tal como no desporto existe a de “balneário”, em que expressões consideradas ordinárias e desrespeitosas noutros contextos, porque trocadas num âmbito restrito (dentro das instalações da GNR) e inter pares (o arguido não estava a falar com um oficial, subalterno, superior ou general, mas com um 2º Sargento, com quem tinha uma especial relação de proximidade e camaradagem) e são sinal de mera virilidade verbal. Como em outros meios, a linguagem castrense utilizada pelos membros das Forças Armadas e afins, tem por vezes significado ou peso específico diverso do mero coloquial.

(...) Decisão Texto Integral:

(...) Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:  


(...) Se bem compreendemos, parece que para a Digna Magistrada do MP a ser por alguém proferida a palavra “caralho” esta terá de ser sempre entendida, seja em que circunstancialismo for, como ofensiva do bom nome honra e consideração quiçá de todos quantos estejam à volta de quem a proferiu, ainda que não lhes seja dirigida (vd. conclusões C) e D) do recurso).

Afigura-se-nos que, manifestamente, sem razão.

Segundo as fontes, para uns a palavra “caralho” vem do latim “caraculu” que significava pequena estaca, enquanto que, para outros, este termo surge utilizado pelos portugueses nos tempos das grandes navegações para, nas artes de marinhagem, designar o topo do mastro principal das naus, ou seja, um pau grande. Certo é que, independentemente da etimologia da palavra, o povo começou a associar a palavra ao órgão sexual masculino, o pénis. E esse é o significado actual da palavra, se bem que no seu uso popular quotidiano a conotação fálica nem sequer muitas vezes é racionalizada.

Com efeito, é público e notório, pois tal resulta da experiência comum, que CARALHO é palavra usada por alguns (muitos) para expressar, definir, explicar ou enfatizar toda uma gama de sentimentos humanos e diversos estados de ânimo.

Por exemplo “pra caralho” é usado para representar algo excessivo. Seja grande ou pequeno demais. Serve para referenciar realidades numéricas indefinidas (exº: "chove pra caralho"; "o Cristiano Ronaldo joga pra caralho"; "moras longe pra caralho"; "o ácaro é um animal pequeno pra caralho"; "esse filme é velho pra caralho").

Por seu turno, quem nunca disse ou pelo menos não terá ouvido dizer para apreciar que uma coisa é boa ou lhe agrada: “isto é mesmo bom, caralho”.  Por outro lado, se alguém fala de modo ininteligível poder-se-á ouvir: "não percebo um caralho do que dizes" e se A aborrece B, B dirá para A “vai pró caralho” e se alguma coisa não interessa: “isto não vale um caralho” e ainda se a forma de agir de uma pessoa causa admiração: "este gajo é do caralho" e até quando alguém encontra um amigo que há muito tempo não via “como vai essa vida, onde caralho te meteste?”.

Para alguns, tal como no Norte de Portugal com a expressão popular de espanto, impaciência ou irritação “carago”, não há nada a que não se possa juntar um “caralho”, funcionando este como verdadeira muleta oratória. 

Assim, dizer para alguém “vai para o caralho” é bem diferente de afirmar perante alguém e num quadro de contrariedade “ai o caralho” ou simplesmente “caralho”, como parece ter sucedido na situação em apreço nestes autos. No primeiro caso a expressão será ofensiva, enquanto que, ao invés, no segundo caso a expressão é tão-só designativa de admiração, surpresa, espanto, impaciência, irritação ou indignação (cfr. Dicionários da Língua Portuguesa da Priberam e da Porto Editora 2010).

Para a primeira hipótese vale aqui, entre outros e por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Dezembro de 1997 (in www.dgsi.pt) onde se expendeu em síntese que: “Integra a prática de um crime de injúrias, qualificado em razão da qualidade profissional do ofendido, subchefe da PSP, aquele que, ao dirigir-se-lhe, no exercício das suas funções, diz "vai para o caralho".” (…)

(...) DECISÃO

Em conformidade com o exposto, tudo visto e ponderado, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando, nos seus precisos termos, o despacho recorrido de não pronúncia do arguido A....
Sem custas, por não serem devidas.
Notifique-se nos termos legais. (O presente acórdão, integrado por vinte e uma páginas com os versos em branco, foi processado em computador e integralmente revisto pelo desembargador relator, seu primeiro signatário – artº 94º, nº 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 28 de Outubro de 2010

Desembargador J. S. Calheiros da Gama
Juiz Militar Major-General Norberto Bernardes (...)

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Nota do editor:

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7116: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (5): O Soldado Para-quedista Folhas

1. Texto do Sílvio Fagundes de Abrantes (foto à direita):


Data: 27 de Setembro de 2010 23:51


Assunto: O Soldado Para-quedista Folhas (*)




No dia 22 de Agosto levantei-me por volta das 10 horas da manhã o que não é muito habitual da minha parte. Levanto-me e vou tomar banho, a minha esposa queria que eu fosse fazer um serviço, mas eu não lhe dei ouvidos e disse
- Queres vir comigo, é sem destino ?!
- Não - foi a resposta.
- O.K.,  não fiques zangada. 

Equipei-me, pego no carro e aí vai ele sem destino. Ando uns 200 metros,  pára e ligo a um amigo que estava de férias da França e pergunto se quer vir comigo. ´
- É sem destino - digo eu.

A resposta foi afirmativa. Espero um pouco por ele e penso no meu amigo Folhas, é hoje que o vou procurar a Coimbra e lá fui com o meu amigo. Almoçamos pelo caminho e seguimos viagem. Em Coimbra procurei a direcção de S. Martinho do Bispo. Encontro um senhor dos seus sessenta e tantos anos, que me diz conhecer o pessoal dali e não existir nenhuma família Folhas, mas sim numa terra cujo nome me varreu, lá sim, há muitos Folhas. 

Lá fui em direcção a Taveiro, entro na povoação encravada na serra, atravesso-a de um lado ao outro e não vejo alma viva. Páro a conversar com o meu amigo e companheiro para delinear uma estratégia e eis que alguém se aproxima e pergunta se precisamos de alguma coisa. Digo ao que vou e o senhor manda-me para um café, lá fui. Mais uma vez conto ao que vou e diz uma dos presentes para o outro:
- Ó pá, de pára-quedistas é contigo. 

Estou com a minha gente,  pensei, e estava, era um ex-pára-quedista, amigo do Folhas e colega de trabalho durante muitos anos.


O senhor que em S. Martinho do Bispo me enviou para esta terra tinha razão, o pai do Folhas era daqui, onde há muitos Folhas, só que casou em Coimbra, melhor em S. Martinho do Bispo.


O nosso ex-pára-quedista indica-me onde mora o Folhas e lá vou. Encontro o meu amigo entretido a fazer um galinheiro para uma vizinha, vá lá, nada de maus pensamentos,  suas más línguas. Mostro uma foto onde estamos os dois e pergunto à senhora se conhecia aquele patife [, vd. foto a seguir: o Folhas e o Hoss com a MG 42].
- Não,  reponde a dita senhora.

É lógico. Não nos conhecemos. Ele está magro,  como sempre, mas muito acabado. Não quer ouvir falar da tropa. Lá conversámos umas horas, onde me contou que até na prisão o meteram, por não ter feito nada, ainda hoje não sabe bem a razão. Eu perguntei se não seria o resto do 16 de Junho de 1970? (**)... Nada de concreto, talvez sim talvez não. 

Está um homem revoltado que nunca mais foi a Tancos embora já tenho sido convidado por diversos colegas, inclusive um ex- Coronel Pára-quedista. Nem mesmo esse o consegue levar. Vejam a revolta que este homem tem para com os seus ex-superiores (**). É preciso relembrar a esses senhores que se hoje têm altas patentes, melhores mordomias, foi à nossa custa, à custa do Folhas e de muitos outros FOLHAS, que estão traumatizados com a guerra e com o comportamento menos digno de certos oficiais e sargentos, que só se importavam com a carreira militar e se esqueceram de que estavam a lidar com homens. 

O Folhas não sabia da nossa decisão de enviar o dito oficial para fora do reino dos viventes. Ficou muito admirado. Disse desconhecer isso por completo. 
- Se fosse comigo esse homem hoje não estava vivo - respondo eu - , não tenhas a menor dúvida.

Esse trauma que o Folhas tem, felizmente não o afectou na vida civil, tem uma vida boa,  graças a Deus. Não precisou da tropa para viver dignamente.


Será que esses senhores não têm vergonha do que fizeram? Será que não são capazes de pedir desculpa pela porcaria que fizeram? Pelo menos uma palavra. Já ouvi um Coronel pára-quedista na reforma, claro, dizer que se encontrasse o Folhas lhe pedia desculpa, pelo menos isso já é de louvar. Mas falta outro dizer o mesmo, esse é que eu queria ouvir aqui neste sítio publicamente. Será capaz? Vamos esperar para ver.


Hoss

[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
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Notas de L.G.:


(*) Último poste desta série > 2 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6816: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (4): A cabra do PIDE de Nova Lamego


(**) Vd. poste de  6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6681: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (3): Conclusão


(...) Conforme mencionei na 1.ª parte, houve um oficial que na emboscada  [, perto do Pelundo, em 16 de Junho de 1970,] saltou da viatura sem a G3 e pediu ao Folhas que lhe desse a dele, ao que este rejeitou. O oficial fez a vida negra ao Folhas o resto da comissão.


Passados uns meses e já em plena época das chuvas, fomos para um aldeamento na fronteira com o Senegal onde só havia um pelotão de obus. (...) 


Um dia saímos de manhã fazer uma operação de reconhecimento, chegámos todos molhados. À noite fomos em auxílio dum quartel do exército que estava a ser atacado, chegámos todo molhados. Na manhã seguinte o dito oficial manda formar a companhia de camuflado. Camuflado significa botas. Nós só tínhamos dois pares de botas e dois camuflados que estavam todos molhados. Então resolvemos formar em fato de treino uns, e outros de calções, a única coisa que tínhamos enxuto para vestir. Ao ver tal situação o dito oficial manda o Folhas sair da formatura, entra em discussão com ele e deu-lhe cobardemente duas bofetadas.

O Folhas passa-se da cabeça, e não era para menos, vai buscar a G3 com um carregador enfiado, pronta a disparar, corre atrás do oficial que se refugia na escola. Então eu e outros colegas fomos acalmar o Folhas, o que não foi nada fácil e conseguimos que nos desse a G3.

Passados poucos minutos reuniram-se alguns velhinhos da companhia e de cabeça quente ditamos a sentença ao nosso oficial. Decidimos que, se o dito oficial participasse do Folhas, deixaria de contar a 100% no efectivo das tropas Pára-quedistas, ou seja hoje não estaria no reino dos viventes. Por sorte não houve participação. 



Mas, digo com toda a honestidade, se fosse comigo não lhe perdoava. Ainda hoje pergunto o que é que me segurou em não concretizar a sentença, algumas vezes o tive na mira. O meu pai nunca me bateu.

Seria mais um morto em combate.  Esse grupo era composto por 3 MG, 2 Hk, 1 Degtariev e várias G3. (...)

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7058: (De) Caras (3): A emboscada em Malandim e a descontrolada reacção do 1º Cabo Costa, na noite de 3 de Agosto de 1969: Branco assassino, mataste uma mulher (Beja Santos)


Guiné Sector L1 > Bambadinca > Pel Caç Nat 52 (1968/70) > Destacamento (!) da Ponte do Rio Udunduma, na estrada Bambadinca- Xime. Natal de 1969. Destacamento, é favor: uns bidões de areia, umas valas, umas chapas ... como tecto. Este rio era uma fluente do grande Geba... Do pelotão fazia parte o 1º Cabo Benjamin Lopes da Costa, natural de Cabo Verde, ou de ascendência caboverdiana (LG).


Foto : © Beja Santos (2007) / Blogue Luís Graça . Direitos reservados.


1. Os dramas de consciência de camaradas nossos como o Luís Borrega ou o Simões (*), foram vividos (e partilhados ou não)  por muitos de nós.  Outros, como A. Marques Lopes e o Mário Beja Santos também passaram pela terrível experiência, no TO da Guiné,  de ter de disparar e matar... de caras. Os seus relatos são peças antológicas: se um dia se fizer uma antologia, em livro, do melhor do nosso blogue, eles deverão figurar lá... Eles foram pioneiros no nosso blogue, no sentido de terem sido provavelmente os primeiros, de todos nós, que vieram dizer, em público: "Eu estive na guerra e sei que matei, vi a cara dos homens ou das mulheres que as minhas balas mataram"... Com um misto de pudor, culpa, piedade, compaixão, humanidade, frontalidade, sem lamechice mas também sem fanfarronice... Tirando os casos patológicos, ninguém por prazer...  De qualquer modo, quem disse que aquela guerra era de baixa intensidade e que o Inimigo não tinha rosto ? De um lado e de outro, houve seguramente vítimas inocentes, pessoal não combatente, mulheres, crianças e idosos, que  estavam no sítio errado à horra errada. Pode não nos servir de consolo pensar que é assim, tem sido assim, em todas as guerras.

Hoje publicamos um excerto do poste P1978 (**).


2. A emboscada em Malandim e a descontrolada reacção do 1º Cabo Costa
por Mário Beja Santos [, foto à esquerda, emk Missirá, entre autoridades tradicionais do Cuor]:


(....) E portanto a 3 de Agosto [de 1969] vamos emboscar em Malandim, vamos mostrar a quem se abastece em Mero e Santa Helena que não estamos impassíveis ao descaro. Trabalhou-se até cerca das 5 da tarde, escolhi um grupo de quinze homens, cuidadosamente, com o auxílio do Benjamim Costa e do Domingos Silva expliquei como íamos actuar: ficaríamos em linha numa clareira, muito perto do mato denso que vem da destilaria de aguardente abandonada da fazenda de Malandim; ficaria no meio rodeado do Tcherno e de Mamadu Djau; ninguém dispararia a não ser à minha ordem, e a haver uma retirada viríamos pelo trilho até Finete, deixando os sentinelas de sobreaviso quanto a essa emergência. (...)

Estamos devidamente posicionados quando a repentina noite tropical caíu sobre nós. Aqui e ali ainda se ouve um cantil que vai à boca, um mastigar de comida, um pedaço de cola que ajuda a passar o tempo e quebra a secura. Penso mais no dia de amanhã que no de hoje, amanhã quero levar as folhas dos vencimentos a Bambadica, procurar trazer arroz, encomendar comida para a nossa messe em Missirá, ver se já chegaram alguns cunhetes para suprir as munições desaparecidas na noite de 15 de Julho.

(...)  A 5 de  Agosto vou escrever à Cristina:

"Não podes imaginar a dor com que te escrevo, estou chocado e não sei conter a amargura que me trespassa a alma. Tens que me ouvir. Montei uma emboscada na noite de 3 perto de Finete, onde estive até ontem. Aguardávamos com ânimo elevado a borrasca dos céus e o desfiar das horas, até alta madrugada. Eu estava estirado na pequena picada que conduz às ruínas da fazenda de Malandim. Silêncio sem o piar das aves até que, passava das 7, não estávamos ali há mais de uma hora, oiço o brado do Mamadu Camará que passa como um chicote pelas minhas costas: alto, alto já! rodopio, há um vulto que avança para mim, é um manto que me parece esverdeado que vacila diante de mim, não sei se vem armado, crivo-o de balas, oiço um suspiro breve, é como se uma massa mole que me cai nos braços.

"Estala o pânico, ouvem-se passos em fuga, é naturalmente o grupo que se reabastecera em Mero que parte em fuga. Acometido por uma violenta histeria, o cabo Costa pragueja e insulta-me: matou uma mulher, és um branco assassino. Uns procuram dominar o dementado, outros querem caçar os fugitivos, é uma desordem geral com a berraria do cabo Costa que continuava a vociferar e a insultar-me.

"Coisa curiosa, estou sereno, ordeno a retirada para Finete, aqui peço ao Bacari para ir buscar o corpo e os despojos, informo que vamos todos seguir para Bambadinca, sei e sinto que é necessário cortar pela raiz este sinal de insubordinação. Os quilómetros enlameados que levo até Bambadinca dão para pensar no que devo ao Benjamim Lopes da Costa (**), seguramente o mais culto dos meus cabos, sempre prestável, militar aprumado a quem reconheço a qualidade da solicitude e o valor da lealdade. Mas não se pode passar uma esponja sobre o que aconteceu". (...)

(...) Teor da punição dada ao 1º Cabo Benjamim da Costa Lopes, do Pel Caç Nat 52, pelo Cmdt do BCAÇ 2852, Ten Cor Jovelino Pamplona Corte Real:


"Puno com a pena de 8 (oito) dias de prisão disciplinar, o 1º Cabo nº 82535864 - BENJAMIM LOPES DA COSTA, do Pel Caç Nat 52, por no passado dia 03 de Agosto cerca das 19H00, no decurso de emboscada na estrada FINETE-MALANDIN, perante uma atitude legítima do seu Comandante de Pelotão, dirigiu-se-lhe em tom e termos denotando falta de respeito, seguindo-se-lhe uma crise de nervos e de choro, facto este que inibiu ser adoptada uma medida de perseguição imediata a um grupo IN que se revelara, sobre o qual momentos antes o Comandante do Pelotão tinha aberto fogo e abatido um dos seus elementos.


"Não é mais rigorosamente punido atendendo-se ao seu bom nível operacionmal bem c0mo uma razoável capacidade de colaboração já demonstrada em outras ocasiões, além das desculpas que pouco depois apresentou, alegando o seu temperamento nervoso e emotiona


"Infringiu o dever nº 2 do artº 4º do R.D.M." (...)

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Notas de L.G.:

(*) Último poste desta série > 30 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7056: (De) Caras (2): Em 6 de Novembro de 1971 abati um chefe de bigrupo do PAIGC, sei o seu nome, e o seu rosto persegue-me até à morte (Luís Borrega)

(**) Vd.poste de 20 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1978: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (56): Mataste uma mulher, branco assassino!
Vd. também Mário Beja Santos - Diário da Guiné: 1968-1969: Na terra dos Soncó.  Lisboa: Círculo de Leitores / Temas e Debates, 2008, pp. 342 e ss.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7001: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (3): A(s) Disciplina(s): Ser ou não ser... disciplinado, eis a questão


Foto 1 – Alpendre na margem do Cacheu frente a Farim onde os passageiros aguardavam a jangada ou o autocarro. Serviu de abrigo ao meu pelotão [, da CCAÇ 675,]quando fui ali “testa de ponte” durante uma semana.

Fotos (e legendas): © Belmiro Tavares (2010). Todos os direitos reservados.


A (s) Disciplina (s): Ser ou não ser disciplinado... eis a questão!
por Belmiro Tavares

A Disciplina é dos temas mais abundantemente badalados, quer na vida civil, quer na vida militar; mas há sempre algo mais a acrescentar a este fundamental tema inesgotável.

A Disciplina encontra-se – devia encontrar-se – em todo e qualquer local onde haja seres humanos: em casa, na escola, no local de trabalho, na rua, nos transportes etc. Ela é inerente – devia sê-lo – à convivência entre os humanos; até entre os ditos irracionais ela está, em muitos casos, notoriamente presente. Ela aparece com frequência tão intimamente ligada às pessoas que por vezes se confunde, intencionalmente ou não, com autoridade, obediência, educação; é, por vezes, conotada com ditadura e similares. Pontos de vista!

Em qualquer ramo da actividade a disciplina é imprescindível; ela é a base do respeito mútuo, da união do grupo e inter-grupos; ela é, enfim, a semente do triunfo.

Não é possível progredir em direcção à qualidade (tão badalada nos nossos dias), ser bem sucedido, sem que todos os envolvidos no processo sejam devidamente ou minimamente disciplinados.

Se é assim na vida civil, na vida militar, especialmente em tempo de guerra, a disciplina é, com toda a certeza, a principal âncora para aceder à vitória. As nossas vidas estão permanentemente vigiadas, bem de perto, pelo perigo; a morte está sempre atentamente à espreita, aguardando um passo nosso mal medido ou distraidamente levado a cabo para nos "embrulhar" no seu tenebroso manto escuro.

A Disciplina é aqui tão boa companheira (ou quase) como a própria espingarda à qual os nossos briosos e corajosos soldados, mui carinhosamente, chamavam "a minha Maria".

Unidades bem equipadas, bem treinadas, não serão bem sucedidas se não forem também intensamente disciplinadas.

A Disciplina é sempre (ou quase sempre) imposta – pode também ser auto-imposta – mas só é verdadeiramente bem aceite pelos subordinados quando:

(i) Eles confiam plenamente na chefia;

(ii) Acreditam piamente no que lhes é transmitido;

(iii) O chefe sabe usar a "linguagem" dos seus subordinados ou, no mínimo, sabe fazer-se entender plenamente;

(iv) O chefe usa o próprio exemplo para ser melhor entendido e, consequentemente, obedecido.

Estes princípios são no mínimo uma boa maneira de adoçar a pílula. Todos conhecemos casos como os que aqui vamos citar:

- "É assim porque eu quero!"

- "Aqui quem manda (o chefe) sou eu!"

- "A Lei está na ponta da minha caneta"! frase célebre dum Ministro não menos celebre (badalado) do tempo da outra senhora.

- "Tens de estar a horas na formatura (ou no trabalho) porque eu quero dormir mais uns minutos!"

Isto não é disciplina nem a ela conduz; é arrogância; é uma forma de ditadura implícita, talvez camuflada... a caminho do terror.

Vou citar alguns exemplos; juro que só transmitirei puras verdades:

1 – Em fins de Abril 1966 uma companhia é enviada de Bissau para Farim (através do Oio) totalmente desarmada! Seguia em viaturas da Intendência e só os condutores dessas viaturas levavam as suas espingardas.

De notar que esta estrada (Bissau/Farim) esteve "interdita ao Turismo" (trânsito de viaturas) durante aproximadamente dois anos, especialmente Mansabá/Farim.

É certo que havia Tropa nossa ao longo da estrada; o inimigo, porém, podia colocar-se a escassos metros da berma e disparar livremente sobre a coluna desarmada provocando os costumeiros estragos.

Que aventura! Que falta de respeito pelas vidas dos outros!

2 – Um alferes estava "agarrado" a uma nativa; minutos volvidos dá uns tabefes a um soldado que, a poucos metros, também "massajava" uma negra!

3 – Um alferes pede a outro que o substitua no comando do seu pelotão numa batida em zona perigosa, porque "estava muito mal disposto". Quem não estaria mal disposto sabendo que ia participar num petisco daqueles?!

Alguns soldados seguiram o exemplo do chefe, não comparecendo na formatura. O alferes "substituto" entendeu não dever sair para o mato com apenas oito ou dez soldados e três ou quatro furriéis.

O alferes mal disposto procurou logo os faltosos e obrigou-os a comparecer na formatura. Dois soldados, porém, não foram encontrados e ficaram no aquartelamento.

O alferes mal disposto agrediu-os fisicamente várias vezes durante a madrugada e participou deles: embrulhou-os numa folha de papel azul de 25 linhas.

O comandante de companhia (interino) nem pestanejou e, sem qualquer averiguação, castigou os faltosos com a pena máxima da sua competência; o comandante de batalhão também aplicou o máximo e o comandante do Agrupamento (16?) seguiu os exemplos anteriores: cada soldado "levou" trinta dias de prisão disciplinar agravada sem ter direito a ser ouvido para poder defender... o indefensável (?)

O capitão voltou à sua companhia e, ao ler o texto da participação, comentou:
- Está tudo doido! Só em Conselho de Guerra estes soldados podiam ser castigados!

Estes soldados foram severamente castigados (em parte injustamente), porque... seguiram o exemplo do seu alferes.

Os castigos existem... e devem ser aplicados quando tal se torne imperioso, mas é fundamental (obrigatório) averiguar os porquês de qualquer acto. Soldado também é gente!

Foto 2 – O autor deste texto e o seu guarda-costas, Gregório, em plena selva.


Parte II > Uso do Capacete no "mato"

A nossa comissão arrastava-se penosamente para o seu fim com uma lentidão bovina insuportável (quase) que enervava e exasperava toda gente e tirava do sério o mais (e o menos) pintado.

Alguns soldados começaram a entregar (fazer espólio) parte dos artigos que lhes haviam sido distribuídos, especialmente o capacete por o considerarem já dispensável.

Perante esta situação, e porque eu entendia que o capacete devia ser sempre usado, transmiti aos meus soldados que o capacete continuava a ser obrigatório em todas as saídas - era parte integrante do equipamento. Seria uma boa protecção para a "tola" principalmente contra estilhaços de granadas que na Guiné eram abundantemente utilizadas pelos independentistas..., e não só:
- Façam como eu!,  nas zonas que considero menos perigosas, penduro o capacete nas cartucheiras; nas zonas menos seguras, coloco-o na cabeça; em caso de dúvida... vai sempre na cabeça!

Como qualquer Lei deve conter em si a punição pelo seu não cumprimento, estipulei que seriam aplicados três "reforços" de castigo aos infractores.

[Nota: Quero deixar aqui registado que em quase nove anos de serviço militar, como oficial, só castiguei um soldado à Ordem – no Colégio Militar – porque violou a minha correspondência, assenhoreando-se dumas magras notas cujo montante – ele sabia – se destinava a custear lápides para as sepulturas dos nossos 3 mortos em combate e dum que entretanto morreu cá num acidente. Castigos não à ordem... foi o que calhou!].

O tempo ia rolando mansamente! Um dia, em pleno mato, detecto sem capacete o meu guarda-costas, de seu nome António da Silva Gregório, soldado nº 1887, nado e criado em Marinhais, Salvaterra de Magos, onde ainda reside.
- Onde está o capacete? - perguntei.
- Já o entreguei! - respondeu o soldado com quem eu repartia sempre a ração de combate e que tomava a seu cargo a limpeza da minha espingarda.
- Já sabes qual é o castigo!

A pena foi cumprida!

Volvidos perto de trinta anos o Gregório almoçou mais uma vez em minha casa no Porto Alto. Depois do almoço, estava ele, a cavaquear com um dos meus amigos ali presentes. Eu estava "com um olho no burro e outro no cigano", e ouvi o Gregório dizer:
- O nosso alferes era um "gajo porreiro" mas castigou-me e eu era seu guarda-costas!

Interferi logo na conversa convidando-o a relatar como tudo tinha acontecido. Ouvido o relato completo e cabal dos acontecimentos, retorqui:
- Não sei se sabes que dessa vez eu fui... injusto!

O Gregório, com ar malandro, sorriu de orelha a orelha e eu continuei:
- Se eu soubesse o que vim a saber uns dias mais tarde, tu terias levado não apenas três... mas pelo menos seis "reforços" de castigo. Tu eras o meu guarda-costas e sendo o soldado da minha inteira confiança, tu traíste essa confiança; além disso agiste premeditadamente: quiseste experimentar se eu te castigava e até fizeste apostas com alguns elementos do nosso pelotão. Eu fui injusto... por defeito e a ti saiu o tiro pela culatra!

Há dias telefonei-lhe a informar que ia escrever sobre este assunto ao que ele, rindo, perguntou:
- Ainda te lembras disso?!

Foto 3 – Coluna militar em movimento.


Parte III > Salvo pelo capacete

O que atrás foi relatado sobre o uso obrigatório do capacete dizia respeito apenas ao meu pelotão e a quem, por qualquer motivo, saísse comigo para o mato.

Os nossos grupos de combate não incluíam telegrafistas, telefonistas, condutores nem enfermeiros. Sempre que havia uma saída, o oficial "requisitava" aos chefes daquelas especialidades o pessoal e o equipamento tidos por necessários.

Na madrugada do dia 3 de Dezembro de 1965, dois Gr Comb iam tentar localizar e destruir um acampamento inimigo existente (segundo informações) na zona da companhia de Farim a qual fazia parte do BArt 733. Um Tenente/Capitão/Major (nesta data comandava interinamente o batalhão) "colocou" com os seus galões o dito acampamento na zona da minha companhia; pelo "peso dos galões" fomos "persuadidos" a atacar e destruir o dito e os "donos" da zona ficaram no bem bom. Nada mau!

De nada valeram os nossos argumentos fundamentados que o acampamento estava fora da nossa zona. Até ouve ameaça de prisão! Nós éramos adidos (e mal pagos), éramos os filhos bastardos do batalhão 733!

Só a muito custo conseguimos o direito de escolher a data da actuação e seguir o percurso que considerássemos mais conveniente.

No dia aprazado íamos partir para a zona de Sanjalo no cumprimento da missão. A coluna estava pronta. A poucos minutos da partida apercebi-me que o 1º Cabo R.T. condutor-auto nº 2681, José Miranda Pereira, um minhoto puro, não tinha capacete, porque... já havia efectuado a sua entrega.

Falei-lhe com certa rispidez, ordenando:
- Nem tu sais sem capacete... nem eu atraso a saída por tua causa! Desanda!

O telefonista saiu em corrida; voltou dentro do horário e devidamente equipado. Partimos. As viaturas largaram-nos em Temanto (cerca de 10km do quartel) e seguiram para Farim onde aguardavam ordens para ir ao nosso encontro. Pretendíamos assim demonstrar ao comando do BArt 733 que o dito acampamento se localizava mais perto de Farim que do nosso aquartelamento... e na zona deles.

Umas horas depois de largar as viaturas fizemos uma "visita de cortesia" ao inimigo e fomos mal recebidos (a ferro e fogo) no tal acampamento clandestino (mais de 500m fora da nossa zona). Tivemos três feridos,  um dos quais, o fur Rodrigues, foi transportado em maca improvisada durante cerca de 5km, através da mata muito densa, até à estrada Dungal/Farim, onde o heli podia aterrar.

O heli partiu com o ferido a bordo em direcção ao HMP 241 em Bissau. Nós tomámos lugar nas viaturas que entretanto haviam chegado.

Iniciado o regresso, como habitualmente, tirei do bolso o meu pão que não comi ao pequeno almoço (meio casqueiro) e comecei a comer. Como de costume logo os meus soldados me pediram uma "bucha" que ajudaria a engolir um gole de água (se ainda restava!) para aguentar melhor o percurso (perto de 30 km) até aos nossos aposentos.

O 1º cabo Miranda Pereira dirigiu-se-me nos seguintes termos:
- Oh meu alferes, hoje também tenho direito a uma naco do seu pão!
- Enquanto houver, dá sempre para mais um, mas ninguém tem direito ao meu pão!
- Veja isto, meu alferes!

E mostrou-me o capacete todo "arranhado" no cocoruto; havia um sulco com cerca de 4cm de comprimento e 1mm de fundo além de outros mais pequenos. O tecido envolvente tinha desaparecido daquela zona – cerca de 10cm de diâmetro.
- Que foi isto?!
- Quando entrávamos no acampamento vi uma granada no ar e lancei-me ao solo; ela embateu no capacete e explodiu estrondosamente; fiquei um pouco atordoado mas... nada de grave... já passou!
- Vejam isto! - disse eu mostrando o capacete aos meus soldados:
- Este bom malandro se não tivesse sido obrigado a usar o capacete, a esta hora, estaria já a bater à porta de S. Pedro!

Este telegrafista nunca compareceu às nossas reuniões anuais, porque... emigrou para França onde viveu cerca de 40 anos.

Falámos ao telefone muitas vezes. Em meados de 2004 disse-me que havia construído numa vivenda em Mindelo, Vila do Conde; que nesse ano vinha viver definidamente em Portugal e que nunca mais faltaria às reuniões da nossa companhia. Faleceu em fins de Abril do ano seguinte, 2005... por acaso no dia do meu aniversário.

Como escreveu o poeta: "Vejam agora os sábios na escritura/ que segredos são estes da natura!"

P.S.: Em Dezembro 2009, o Jero, o Moreira e eu, acompanhados pela viúva do Miranda Pereira, colocámos na sua sepultura numa lápide em nome da CCaç 675. Nesse mesmo dia colocámos mais cinco lápides noutras tantas sepulturas de companheiros nossos de entre o Douro e o Minho. Destes só um morreu na Guiné.

Quem mais procederá como nós?!

Será só a CCaç 675?! Haverá outros casos idênticos?! Gostaria de saber se somos caso único! Digam de vossa justiça!

Agosto de 2010

Belmiro Tavares
Ten Mil Inf

[Revisão / fixação de texto: L.G.]
____________

Nota do Editor

Vd. último poste de 25 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5709: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (2): A(s) guerra(s) e a(s) maneira(s) de a(s) fazer

segunda-feira, 15 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5997: Controvérsias (67): A Páscoa Sangrenta de Fajonquito, em 2 de Abril de 1972 (António Costa)

1. Mensagem, com data de ontem, do nosso camarada (e amigo) António José Pereira da Costa,  António Costa, tout court (Cor Art na reserva, na efectividade de serviço), que esteve na Guiné entre 1972 e 1974:

 Assunto: Páscoa Sangrenta

Camarada:

Sobre a situação de Fajonquito (*) gostava de alinhar umas considerações, que me parecem construtivas:

(i) Não era contra o RDM ficar na PU [ Província Ultramarina,] onde se estava, a trabalhar após a passagem à disponibilidade. O país era só um - é bom que se recorde - e após as "obrigações militares" até era possível ir para o estrangeiro sem ser "a salto".

As Ordens de Serviço estão cheias das chamadas autorizações de ausências definitiva para o estrangeiros, passadas pelas unidades onde os desmobilizados tinham ficado colocados para efeitos de recrutamento. Por isso, tenho dificuldade em entender o início do diferendo entre e o capitão e o soldado, por esta razão. Não haveria outras?

(ii) Depois, tenho dificuldade em imaginar que um homem sózinho tenha conseguido descavilhar duas granadas defensivas que transportava, obviamente, uma em cada mão.

Imagina como é que o farias. Será que teve o auxílio de alguém? Claro que não! Peço desculpa, mas tenho dúvidas de que tenha sido assim.

(iii) A causa determinante terá sido a distribuição das amêndoas. Penso que o soldado ter-se-á sentido ferido (muito) na sua auto-estima e, principalmente, desamparado e abandonado.

A sua atitude terá sido um expor da sua situação de solidão, uma espécie de pedido de ajuda, semelhante aos dos suicidas. Na verdade, ele provavelmente nem sequer entendia porque estava ali a fazer aquilo (a Guerra) que não aceitava, mas não tinha saída ou remédio senão fazê-lo (não podia desertar nem fugir). Por isso, pelo menos, tinha que estar. Será que ele sentia estar a defender a Pátria ou as populações que estavam junto das NT? Ouvi dizer que era Básico, o que quer dizer que era dos psicotecnicamente menos aptos no Exército.

(iv) Por mim, creio que algumas situações de insubordinação e desobediência têm origem numa espécie de descarregar de ira e revolta contra o sistema e a situção. Não é possível que aqueles contra quem foram cometidas - na sua maioria tão milicianos como os insubordinados - fossem uns tiranetes e injustos e que merecessem a insubordinação.

(v) Creio mesmo que algumas delas terão origem numa situação de revolta profunda que não tinha por onde se expandir. Estas situações terminavam normalmente mal para os insubordinados e não creio que os quadros ficassem satisfeitos com o sucedido, como muitas vezes se diz. Para mim, estas situações serão o indício técnico de que o enquadramento é insuficiente e a mentalização é má.

Embora nunca tivéssemos tido uma recusa ao embarque, não creio que a defesa da Pátria nos fornecesse elementos para aceitarmos a ida para lá Tive ocasião de verificar que as unidades que embarcavam iam cada vez menos "mentalizadas" para as tarefas a realizar.

Farás com este mail o que quiseres, mas sugiro que testes a coerência da história tão dramática, e procures uma interpretação sociológica e psicológica para o sucedido e para a actuação dos dois principais intervenientes.

Um Ab do António Costa

2. Comentário de L.G.:

António:

Aprecio a sagacidade do teu raciocínio, a oportunidade do teu comentário e a gentileza do teu gesto, honrando a memória dos nossos mortos.

Seguramente que faltam outras versões. As duas que temos (, a do José Cortes e do José Bebiano, ambos furriéis em Fajonquito, em 1972), não são suficientes.  O José Bebiano é contemporâneo dos acontecimentos, privou por exemplo com o Fur Alcino, uma das vítimas mortais dos acontecimentos, mas no dia 2 de Abril de 1972 não estava em Fajonquito, estava antes na Metrópole, em gozo de licença de férias.

 Por sua vez, o José Cortes (da companhia que veio render a CART 2742, a CCAÇ 3549),  tinha partido para a Guiné erm 26 de Março de 1972 e,  antes de seguir para Fajonquito, ficou  a tirar a IAO, no Cumeré, possivelmente durante um mês e meio... A versão dele só pode ser em segunda mão...Ouviu contar "in loco", um a dois meses depois do ocorrido... E contou-ma agora, 38 anos depois, ao telefone, ele em Coimbra, eu em Lisboa. (Em rigor, é a versão dele, oral, telefónica, reconstituída por mim).

 Há pormenores, nas duas versões, que se contradizem: o José Cortes falou-me, ao telefone, em duas granadas, descavilhadas, uma em cada mão. O José Bebiano fala apenas numa... O Soldado Almeida seria um básico, segundo li na lista dos mortos da guerra do Ultramar... O José Bebiano dizer que ele era um ex-comando... Esperemos que ainda apareça alguém, da CART 2742, que nos dê uma versão mais detalhada, exacta e contextualizada desta tragédia ocorrida num domingo de Páscoa, numa festa que era suposto ser de despedida e de alegria... É a isto que se chama a triangulação das fontes.

Em suma, partilho, contigo, da mesma dúvida céptica: um soldado, não operacional, não tinha acesso fácil a granadas de mão defensivas (que estavam, em princípio,  à guarda do cabo quarteleiro, tal como as granadas de morteiro e de bazuca); depois, não tinha habilidade nem sangue frio para pegar logo em duas, arrancar-lhe as cavilhas (com os dentes ?) e segurá-las, uma em cada mão, atravessar a parada e dirigir-se (calmamente ?) à secretaria... Fosse ex-comando, talvez tivesse treino para isso... Será que, entretanto,  algum dos graduados o tentou desarmar ? Refiro-me ao Cap Figueiredo, ao Alf Félix e ao Fur Alcino...Aparentemente não há testemunhas desta cena fatal, passada na secretaria...

É bem possível que o Sold Almeida apenas tenha querido chamar a atenção para o seu caso, ou simplesmente protestar, julgando-se vítima duma clamorosa injustiça... A história das amêndoas bem pode ter sido a gota de água que fez transbordar o copo...

Também descarto a hipótese de suicídio (bem como de homicídio deliberado)... Na tomada de decisão de um suicída, há vários factores (antecedentes e mediatos) a ponderar... Nunca há uma causa única, há um feixe de causas ou determinantes... Ninguém toma uma decisão repentina destas, mesmo quando sob o efeito de álcool ou drogas (o que até podia ser o caso)... E a haver suicídio, ele foi também um triplo homicídio...Aparentemente, o Sold Almeida não tinha nenhum conflito com os dois milicianos que morreram, juntamente com o Capitão... O mais provável é que tenha havido uma tentativa de neutralizar o infeliz Almeida que, de resto, tinha todas as razões para viver, não para morrer: o conflito com Capitão era porque ele querir ficar na Guiné, depois da peluda...

A alegada incompatibilidade dessa manifestação de vontade com o RDM é uma interpretação (indevida) minha... Eu pensei que a comissão militar só acabava com o regresso à Metrópole e a consequente passagem à disponibilidade...

Quanto ao pedido que me fazes, para arriscar "uma interpretação psicológica  e sociológica para o sucedido" (sic), agradeço-te mas sai fora da minha competência como editor deste blogue. Não sou psicólogo, sou sociólogo e, em princípio, só gosto de falar do que estudo, investigo ou leio... O suicídio enquanto fenómeno social interessa-me. O suicídio, as tentativas de suicídio, outras formas de auto-mutilação (tiros no pé, no dedo indicador direito, etc.), o homicídio e outras formas de violência nos quartéis (ou no mato) merecem ser descritas, divulgadas, analisadas, contextualizadas, interpretradas no nosso blogue... Mas nesse caso ainda não temos informação suficiente para tentar uma interpretação que não seja baseada em ideias de senso comum (o que é de todo contra-indicado a um sociólogo)... Façamos votos para que apareçam mais camaradas com informação (inédita e válida) sobre o caso da "Páscoa Sangrenta de Fajonquito"...
Deixo-te aqui apenas uma dica sobre o suicídio, e que fui buscar à página da Sociedade Portuguesa de Suicidologia (Vd. Questões frequentes):

(...) Normalmente o suicídio é equacionado como forma de acabar com uma dor emocional insuportável causada por variadíssimos problemas. É frequentemente considerado como um grito de pedido de ajuda. Alguém que tenta o suicídio está tão aflito que é incapaz de ver que tem outras opções: podemos ajudar prevenindo uma tragédia se tentarmos entender como essa pessoa se sente e ajudá-la na procura de outras opções e soluções. Os suicidas sentem-se com frequência terrivelmente isolados; devido à sua angústia, não conseguem pensar em alguém que os ajude a ultrapassar este isolamento.

Na maioria dos casos quem tenta o suicídio escolheria outra forma de solucionar os seus problemas se não se encontrasse numa tal angústia que o incapacita de avaliar as suas opções objectivamente. A maioria das pessoas que opta pelo suicídio dá sinais de esperança de serem salvas, porque a sua intenção é parar a sua dor e não por termo à sua vida. A este facto dá-se o nome de ambivalência. (...)

Os modelos, mais propriamente sociológicos, avançados para a compreensão e a explicação do suicídio, tendem a chamar a atenção para o facto de, em contexto de guerra, poder haver menos factores de risco de suicídio (a não ser em casos de derrota ou de aprisionamento, por questões de honra, etc.). O combatente, integrado num grupo de combate, terá menos hipótese de suicídio, de acordo com a teoria de Durkheim: O aumento, real ou percebido, da ameaça sobre o grupo, vinda de fora - neste caso, do inimigo - leva a uma maior integração do indivíduo no grupo, e o consequente decréscimo do risco de suicídio...

No caso do Almeida, a questão de se saber se ele realmente era um soldado básico (e, portanto, menos apto, do ponto de vista "psicoténico") não é de somenos importância... LG
____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:

6 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5938: A tragédia de Fajonquito ou as amêndoas, vermelhas de sangue, do domingo de Páscoa de 2 de Abril de 1972 (José Cortes / Luís Graça)

[Versão de José Cortes, recolhida ao telefone por Luís Graça:]

(...) (i) Havia um, soldado da CART 2742 que, uma vez terminada a comissão, queria ficar na Guiné como civil;


(ii) Ao que parece o Cap Art Carlos Borges Figueiredo manifestou, desde logo, a sua oposição à ideia,  contrária a todo o bom senso e sobretudo ao RDM;

(iii) Ter-se-á aberto um contencioso entre o soldado e o seu comandante, e envolvendo também o primeiro sargento;

(iv) A mulher do capitão havia mandado, da Metrópole, "dez quilos de amêndoas" para distribuir pelo pessoal da companhia; a distribuição foi feita pelo próprio comandante, no refeitório, no domingo de Páscoa, 2 de Abril de 1972;

(v) Quando chegou a vez do soldado em questão, o capitão terá passado à frente, num acto que aquele interpretou como de intolerável discriminação;

(vi) O soldado levantou-se, sem pedir a licença a ninguém, e saiu do refeitório. Foi ao abrigo (ou à sua caserna) e veio para a parada com "duas granadas já descavilhadas", em cada mão. Dirigiu-se à secretaria. O primeiro sargento ter-se-á apercebido, a tempo, das intenções do soldado, e não se aproximou da secretaria (ou fugiu, não sei);~

(vii) Dentro da secretaria, estava o Capitão, um alferes e um furriel. Ninguém sabe o que se passou lá dentro. O soldado deixou cair as duas granadas. O tecto da secretaria foi pelos ares. Lá dentro ficaram 4 cadáveres

Mortos, em 2/4/1972, todos do Exército, por acidente (sic), constam os seguintes nomes, na lista dos Mortos do Ultramar da Liga dos Combatentes:

- Alcino Franco Jorge da Silva, Fur
- Carlos Borges de Figueiredo, Cap
- José Fernando Rodrigues Félix, Alf
- Pedro José Aleixo de Almeida, Sold (...)


7 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5946: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (2): Evocando o Sold Almeida e o Fur Alcino, da CART 2742, que morreram, mais o Cap Figueiredo e o Alf Félix, na tragédia do domingo de Páscoa de 1972


[Versão do José Bebiano:]

 (...) José Cortes: O tempo passa e a tua imagem passou? Pouco tempo estive convosco [ CCAÇ 3549]. Lembro-me bem do Cap Patrocínio.

A história do soldado Almeida, ex-comando, e que com uma granada na mão matou-se e matou 1 cap + 1 alferes + 1 furriel... Eu, na altura do acidente estava em Lisboa.

Qual a razão para tal atitude? Pelo que me disseram, queria permanecer na Guiné e com uma granada na mão foi pedir para que não o enviassem para a Metrópole (?!)... Passou-se completamente.

Vou enviar uma foto com o falecido Alcino e com o Bebiano. A foto foi tirada em 26 Out 1971. Ainda por lá fiquei mais um ano.

Cumprimentos

P.S. - Estou reformado/aposentado desde 30 de Novembro. Ex-professor de Educação Física em Moura. (...)

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5003: Controvérsias (36): A Justiça Militar e os presuntos implicados (João Seabra)

1. Uma peça (de antologia, de finíssimo humor...) que eu acabo de receber do ilustre jurista João Seabra, ex-Alf Mil da CCAV 8350, Piratas de Guileje (Guileje, 1972/74), e querido (como todos os demais) membro da nossa Tabanca Grande:

Caro Luís,

Recebi, há dias, um mail teu em que vinha anexo o actual RDM (*).

Andando para trás no blogue, encontrei uma sugestão tua para que eu e o Jorge Cabral, entre outros, nos pronunciássemos sobre as hipotéticas consequências criminais do constante numa narrativa do Amílcar Ventura (**).

Antes de mais, deixa-me dizer-te que tenho o Amílcar na conta de boa pessoa. Aliás, já foi muito simpático comigo, a propósito de uma correspondência tumultuária que manteve, há tempos, com um terceiro e que desencadeou, por iniciativa deste último, numa grande agitação em cavalariças e canis.

Todavia, aqui para nós, parece-me (podendo estar enganado) que a história dele é uma fantasia que terá descambado em convicção. Aliás não é a primeira, nem será a última, que aparece no blogue.

O menos que se poderá dizer é que o frete foi muito pouco produtivo. Porque não levou ele mais dois ou três bidons de gasóleo? Era para uma emergência?

De qualquer modo, o RDM dispõe sobre ilícitos disciplinares, e a matéria de que se trata é de natureza criminal e está contemplada no Código de Justiça Militar (CJM). Que eu saiba, ao CJM em vigor em 73-74 seguiu-se outro de 77, outro de 2003, e ainda outro mais recente.

Acontece que as minhas áreas de actuação profissional são as do direito fiscal e do direito das sociedades. Neste momento, por exemplo, estou muito atrapalhado porque tenho de opinar urgentemente sobre a vexatória questão da hipotética neutralidade fiscal da fusão inversa. Se calhar vou-lhe chamar reverse merger porque, como diria o Serafim Saudade, “o verdadeiro artista é o que fala estrangeiro”.

Do CJM ocorre-me – “entre as brumas da memória” – a curiosa figura do “presumido delinquente”, e pouco mais. E mesmo assim, porque – por vezes e com grande gáudio – ouço colegas espanhóis aludirem aos “presuntos implicados”.

Para tratar adequadamente a vertiginosa questão da sucessão de leis penais, e da qualificação da hipótese em causa, a pessoa indicada é, realmente, o Jorge Cabral. Mas seria um desperdício, porque o iria distrair das valiosas opiniões periciais que nos vai dando sobre matérias menos áridas.

No fundo seria preferível encerrar o assunto, como o fez, há muitos anos, um magistrado do Ministério Público, quando soube que tinha sido bem sucedido num concurso para a carreira diplomática.

Os impulsos processuais do Ministério Público, designam-se, no nosso jargão, por “promoções”.

Vai daí o nosso futuro diplomata, no primeiro processo que lhe chegou às mãos, exarou o seguinte:

Tendo decorrido o prazo,
e operado a prescrição
vão os autos para arquivo
- eis a minha promoção.


Aplicando o que antecede a mim próprio, diria que muito me preocupa a eventualidade de, involuntariamente, concorrer para envenenar o ambiente de um blogue fundado por um grupo de amigos e que vive, sobretudo, da inexcedível dedicação dos seus editores.

Assim sendo, vou fazer o possível para, de futuro, escrever apenas para arquivo ou para “presuntos interessados”. Se e quando tiver tempo, já se vê.

Abraço amigo do
João Seabra

P.S.: Uma observação (ou “nota”, como se diz agora) final. Fiz serviço militar na Guiné na condição de “compelido”. Mas, uma vez lá, a situação, para mim, era muito simples: de um lado estavam as nossas forças (às quais eu pertencia) e do outro o inimigo. Tudo o mais são subtilezas que estão fora do meu alcance.

[ Revisão / fixação de texto / bold, a cor: L.G.]

___________

Notas de L.G.:

(*) Dirigido ao Jorge Cabral e com conhecimento a outros juristas da nossa Tabanca Grande:

"Jorge: Aqui tens o novo RDM... Não sei se tens tempo e pachorra para o analisar, do ponto de vista daquilo que pode interessar ao nosso blogue e à nossa Tabanca Grande".

(**) Vd. poste de 24 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5002: O segredo de... (7): Amílcar Ventura: Ajudei o PAIGC por razões políticas e humanitárias

domingo, 6 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4906: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (6): AGRBIS, um inferno no meio da guerra

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, com data de 3 de Setembro de 2009:

Olá Carlos,
Depois de umas maravilhosas férias pelos Açores, cá estou com mais uma uma achega para a minha história.

Para minha surpresa encontrei, no fundo de uma caixa com coisas que há muitos anos tinhamos guardado, alguma da correspondência que então mantive com a minha madrinha de guerra, e que hoje é a minha esposa. Estava convencido que tinha queimado toda a nossa correspondência à muitos anos.
Quando lhe perguntei o que tinha acontecido, ela apenas respondeu que não tinha tido a coragem de se desembaraçar de algo que lhe era muito querido.
Parte dessa correspondência vem avivar alguns dos factos que aos poucos se íam perdendo na neblina da memória.

Haja saúde para todos.

Um abraço do tamanho do oceano,
José Câmara


AGRBIS, Um Inferno no Meio da Guerra

Grande surpresa!


Tão longe que estava de encontrar muito da correspondência que mantive com a minha Madrinha de Guerra, hoje minha esposa, ao longo da minha comissão de serviço na Guiné. Acidentalmente, encontrei o seu (nosso) tesouro, do qual manteve absoluto sigilo durante todos estes anos. Pensava que as cinzas tinham tomado conta desse espólio.

Ao reler muito do que então escrevi, as memórias avivaram-se, e darão outra tonalidade àquilo que irei escrevendo. É certo que sempre fui parco em palavras, e aprofundava muito pouco sobre o que se passava comigo. Era uma forma de estar na vida.

Na última parte que escrevi afirmava que as paupérrimas instalações de alojamento, a falta de correspondência e a dureza da disciplina estavam entre as condições que mais afectavam os militares da minha Companhia. Pouco me alonguei sobre o assunto na medida em que, ao fim de tantos anos, alguns factos foram-se perdendo na neblina da memória.

Acontece que agora posso aprofundar um pouco mais sobre o que foram os primeiros dias na Guiné. Vou servir-me exactamente daquilo que então escrevi, suprimindo aquilo que me parece supérfluo para aqui.

José Câmara nas traseiras do AGRBIS

Foto e legenda: © José da Câmara (2009). Direitos reservados.



Aerograma de 28 de Janeiro de 1971:

A minha Companhia desembarcou ontem cerca das nove horas da manhã. Pelas três horas da tarde houve formatura geral, com as demais forças desembarcadas. Tivemos a recepção oficial com a presença do próprio Governador e Comandante-Chefe General Spínola. A cerimónia foi de estarrecer, sobretudo, pela quantidade de desmaios. O calor era tremendo. Demorou até ao escurecer. Só depois fomos para os nossos alojamentos. Estes são incríveis.

Dorme-se em barracas de lona, com 5 camas para onze homens. As camas insufladas, também em lona, são muito semelhantes àquelas que levamos para a praia.

As noites são frias. Não há cobertores, pelo que nos vemos obrigados a dormir com a farda durante a noite. Em contrapartida os dias são quentíssimos e os corpos suam como torneiras a pingar.

Quanto à comida… ainda não a provei. Desde que desembarcámos temos estado a ração de combate.

A disciplina também é muita pesada, muito mais dura que no Continente ou nos Açores.

Miserável, mas verdadeiro!

Quanto à população, é difícil entender o que diz. Interessante mesmo foi a aproximação de um preto que me pediu para o ensinar a tirar a 4.ª classe.

Estas são as minhas primeiras impressões da Guiné.


A correspondência, ou melhor, a falta de correspondência foi outro problema que enfrentámos.

Para recebermos a primeira correspondência, a solução foi pedir autorização ao Comandante da Companhia Cap Mil Rogério Rebocho Alves para deixar-me ir a Bissalanca ao SPM. Com alguma reserva, ele autorizou-me, desde que eu mantivesse sigilo sobre a autorização. E era fácil de compreender. A Companhia não tinha viaturas distribuídas, pelo que teria que ir à boleia ou a pé. Em qualquer dos casos eu assumiria as consequências do que eventualmente pudesse acontecer.

Verdade seja dita que, sendo açoriano, sempre tive algum espírito aventureiro. Fiz-me ao caminho na companhia do soldado José Francisco Serpa, florense como eu, homem da minha confiança, e a quem atempadamente pus ao corrente da situação. Este soldado era um dos que mais sofria com a falta de correspondência. Para além de ser muitíssimo chegado à família, andava muito preocupado com a sorte de dois irmãos gémeos que estavam a entrar para o serviço militar. Tinham metido requerimento para amparo mas ainda não tinham obtido resposta, portanto, preocupações acrescidas para ele, não fossem todos a virem a encontrar-se no Ultramar. Por ironia do destino, foi o que veio a acontecer, dois na Guiné e um foi para Timor.

Escusado será dizer que o nosso regresso a Brá, carregados com os sacos de correspondência, foi recebido com extrema alegria por todos e alguma admiração. Tudo tinha sido mantido em segredo. Poderia acrescentar, sem medo de errar, que os soldados da minha Companhia me passaram a ver como sendo um homem de bom coração.

A alegria que eu vi estampada naqueles rostos de bebés está entre as melhores recordações que guardo da Guiné.

A minha outra recompensa foi o facto de também ter recebido a primeira carta da minha Madrinha da Guerra em terras da Guiné. Respondi-lhe assim:

Carta de 10 de Fevereiro de 1971:

Recebi a tua carta. E com ela a vontade firme em ajudares-me; acredita-me que a carta é o melhor remédio para quem, longe, anseia pela palavra de uma pessoa amiga. A carta é, para mim, alegria, dor, saudade, angústia, prazer, amor, vontade de viver. Sim, a carta é tudo isso. Ajuda a fazer desaparecer os tormentos e as angústias do dia-a-dia. É lida a correr porque o tempo voa nesse instante de leitura. A carta fala, comunica. Vem ao encontro de outra que se presta para partir. Juntam-se e animam-se.
Depois… fica a certeza de que alguém reza pela nossa protecção, nos anima, nos acarinha.


Carta de 25 de Fevereiro de 1971

Já se passaram quinze dias desde que recebi a última carta. E dos meus pais também não recebi. Até parecem combinados.

Estas duas cartas que eu escrevi exemplificam as dificuldades que nós, açorianos, tínhamos em receber correspondência. Esse aspecto agudizava-se muito mais para aqueles que eram oriundos das ilhas das Flores e Corvo, onde, no Inverno, os barcos apenas lá iam uma vez por mês caso o mar e as condições atmosféricas o permitissem. Ainda em outros casos, como o meu, tínhamos os nossos familiares emigrados nos Estados Unidos da América ou Canadá. As distâncias eram, de facto, muito grandes naqueles tempos.

A disciplina, melhor dizendo, o uso e abuso do RDM (Regulamento de Disciplina Militar) martirizou e condicionou a CCaç 3327 para toda a comissão. Muitos furriéis foram decapitados da sua autoridade moral pelas punições sofridas. Ficaram-se, em parte, pela autoridade militar, forma triste de comandar tropas em qualquer cenário militar e, muito particularmente, num cenário de guerra. Acrescento que todos estes furriéis eram militares competentes, e que as punições só aconteceram porque a comandar o AGRBIS estava um militar que desconhecia, por completo, que por detrás de cada farda estava um ser humano.

Era comandante do AGRBIS o Coronel Santos Costa, o célebre Onze, e a quem me referi em escrito anterior.

Para que se tenha uma ideia do que então aconteceu, aqui fica um sumário das punições:

1 Furriel Mil com 15 dias de detenção,
1 Furriel Mil com 10 dias de detenção
2 Furriéis Mil com 5 dias de detenção cada
1 Furriel Mil com 2 dias de detenção
2 Cabos com 5 dias de prisão cada
2 Soldados com 10 dias de prisão cada
2 Soldados com 5 dias de prisão cada

Carta de 1 de Abril de 1971

Há 72 horas que me encontro de serviço. O trabalho tem decorrido normalmente. Cansativo e aborrecido como sempre.
Ontem, a coisa esteve feia. Estive de Sargento de Dia à minha Companhia. Todos os soldados presentes no refetório tentaram fazer um levantamento de rancho. O Oficial de Dia, um Capitão de Cavalaria, obrigou-me a participar de todos os soldados da minha Companhia que não quiseram comer. Ao todo foram vinte e sete (27) participações. Podes calcular como estou, até porque os soldados tinham razão: a comida não se levava de maneira nenhuma.


Quando entreguei as participações ao Comandante da minha Companhia, pedi-lhe que não desse seguimento disciplinar até ao limite permitido pelo RDM que, se a memória não me falha, era de 30 dias, pois era minha intenção retirar as participações. Nessa altura já sabíamos que a Companhia iria seguir para o interior no dia 6 de Abril. Foi assim que vinte e sete (27) soldados escaparam a uma punição, no mínimo, de cinco dias de detenção cada um.

Recentemente tive a ousadia de pedir a um dos furriéis punidos se ainda se lembrava dos motivos da sua punição. Esta é a resposta que me deu por Email:

O castigo que tu referes foi dado num dia que eu estava de Sargento de Dia. Eu já tinha pedido licença ao Oficial de Dia para o pessoal ficar à vontade e caminhar para o refeitório. Quando já estava quase metade da Companhia dentro do mesmo, apareceu o Comandante e procurou quem era o Sargento de Dia e mandou chamar-me. Fui ter com ele. Perguntou se não o tinha visto. Eu disse que não. Voltou-se para mim e disse:

- Os soldados que vão ficar à tua ordem vão morrer todos! (e disse ainda mais alguma coisa que já não me lembro). Parece que isso aconteceu quando estávamos adidos a um batalhão no Agrbis. Vê se te recordas...
O furriel em causa foi punido com dois dias de detenção pelo simples facto de não ter visto o tal Onze. Como não viu não cumprimentou. Levou com a porrada na mesma.

Assim se praticava a (in)justiça no AGRBIS

José Câmara
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4730: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (5): Os primeiros passos na Guiné