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sábado, 13 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25381: Consultório Militar do José Martins (77): Dia 16 de Março de 1974 - Parte II - Antes do dia


Parte II de "Dia 16 de Março de 1974", um trabalho da autoria do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviado ao Blog em 10 de Abril de 2024. Neste ensaiou-se a primeira tentativa de derrube do regime vigente, conhecida por Levantamento ou Golpe das Caldas, por ter sido protagonizada por militares do antigo RI 5 das Caldas da Rainha.


Dia 16 de Março de 1974 - Parte II

Porta de Armas do extinto RI5
Foto com a devida vénia a heportugal

Antes do dia


No dia 3 de Fevereiro, nova reunião em casa de Otelo Saraiva de Carvalho, da Comissão Coordenadora. Perante a hipótese de que as forças, mais afectas ao Governo, como a GNR, PSP, GF (Guarda Fiscal), LP (Legião Portuguesa) e DGS, se oporem à acção do movimento, é sugerido que essas forças sejam devidamente estudadas.

É em casa de Marcelino Marques que, a Comissão Coordenadora, se reúne no dia 5 de Fevereiro, desta vez com um âmbito mais alargado. Nela estarão outros oficiais de confiança, a nível de Coronel e Tenente-Coronel, estarão presentes pela primeira vez, Garcia dos Santos, Costa Brás e Melo Antunes. O novo texto, elaborado por José Maria Azevedo a partir do texto apresentado em 26 de Janeiro, e já aprovado pela Comissão Coordenadora, é unanimemente rejeitado. Costa Brás, Melo Antunes, José Maria Azevedo e Sousa e Castro, são indicados para redigir um novo documento, sendo entregues, para destruição, de todos os exemplares do documento rejeitado.

No dia 7 de Fevereiro, Melo Antunes encontra-se com Almada Contreiras e Martins Guerreiro. O elo de ligação é o Alferes José Leal Loureiro, que conhecia Contreiras, através de um grupo de exilados em França, e conhecera Melo Antunes no RAL n.º 4, de Leiria, quando ali se deslocou em serviço.

O Movimento dos Capitães de Bissau envia uma carta, em 14 de Fevereiro, para o Movimento de Lisboa onde procura exprimir os sentimentos que prevaleciam na Guiné: «Há necessidade de conhecer os factores de aglutinação dos oficiais, traduzida por uma tomada de consciência dos problemas nacionais».

Reunião de oficiais em Nhacra, a Norte de Bissau, possivelmente em 14 de Fevereiro, com a presença do Tenente-Coronel Luís Ataíde Banazol, Capitão Carlos Matos Gomes, Capitão Miliciano José Manuel Barroso, Capitão Jorge Sales Golias, Capitão Miliciano Franco, entre outros, onde foi considerada e rejeitada a hipótese de uma revolta para tomar o poder em Bissau.

Em 18 de Fevereiro de 1974, António de Spínola entrega um exemplar do seu livro, «Portugal e o Futuro», com dedicatória a Marcello Caetano.

O Presidente do Conselho, Professor Marcello Caetano recebe, no dia 21 de Fevereiro de 1974, os Generais Costa Gomes e António de Spínola, que ocupam os cargos de Chefe e Vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, e desafia-os a reivindicar o poder, para as Forças Armadas, junto do Presidente da República Almirante Américo Tomas. Os generais recusam.
Obtida a autorização do General Costa Gomes, Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, a 22 de Fevereiro chega ao mercado o livro “Portugal e o Futuro”, no qual contesta a política colonial seguida pelo governo e defende a liberalização do regime, a adesão de Portugal à CEE, o fim da guerra e a constituição de uma federação de Estados, parcialmente soberanos, de que fariam parte Portugal, Angola, Guiné, Moçambique, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe.

No dia seguinte, dia 23, o Presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano, ameaça demitir-se, face ao significado das afirmações do livro de António de Spínola, o que repetirá pouco depois, quando o Presidente da República Américo Tomás insiste na demissão dos generais Costa Gomes e António de Spínola.

Rebenta, no dia 24, uma bomba nas instalações do Quartel-General da Guiné, ficando feridos o Brigadeiro Figueiredo e o Coronel Vaz.

No dia 24 de Fevereiro, em casa do Capitão Candeias Valente, reúne a Comissão Coordenadora. A preparação do «Plano de Operações» e a «Acção a Desenvolver» fica a cargo de Otelo Saraiva de Carvalho. Da «Direcção Política» é encarregado Vítor Alves, e o golpe é marcado para entre 22 e 29 de Março. Fica decidido interromper, qualquer contacto, por meio de circular.

A 28 de Fevereiro, a reunião é em casa de Vítor Alves, entre a Comissão Coordenadora e a Comissão da Arma de Engenharia. É apresentado um calendário das actividades para o mês de Março, elaborado por Pinto Soares, Mourato Grilo e Luís Macedo. Para dirigir a reunião do dia 5 de Março, em Cascais, cuja agenda tinha sido elaborado nesta reunião, são os nomes indicados de Vítor Alves e Morato Grilo.

No dia 2 de Março, realizaram-se duas reuniões: A Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães, encontra-se com a comissão dos oficiais oriundos de milicianos; a reunião dos oficiais do Movimento da Força Aérea, onde é preparado um documento programático.

A preparação da reunião a realizar em Cascais, é realizada em casa do Capitão Seabra, estando presentes representantes dos três Ramos. Na discussão do programa a apresentar, os representantes da Marinha, Almada Contreiras, Pedro Lauret, Costa Correia e Vidal Pinho, afirmam que só aceitam vincular-se a um programa que seja progressista, e que estarão em Cascais, como observadores. O documento a apresentar recebe o nome “O Movimento as Forças Armadas e a Nação”, de que os representantes da Força Aérea discordam, no que se refere ao problema colonial.

Na véspera da reunião de Cascais, dia 4, a Comissão Coordenadora reúne-se em casa de Luís Macedo, para preparar a reunião. Como no dia seguinte está anunciada uma comunicação à Assembleia Nacional pelo Presidente do Concelho, é decidido enviar Vasco Lourenço e Otelo Saraiva de Carvalho a um encontro com António de Spínola, procurando informações do teor da comunicação de Marcelo Caetano no dia 5.

No dia 5 de Março de 1974, sucedem-se, ou acontecem, três factos:

● Plenário em Cascais do Movimento de Oficiais das Forças Armadas, onde aprovam o documento “O Movimento das Forças Armadas e a Nação”, bases gerais programáticas deste movimento;

«Ao chefe militar que, em linguagem de verdade e com grande patriotismo, expôs a situação do Ultramar e hoje ocupa a alta função de Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, General António de Spínola», é o teor de uma declaração para recolha de assinaturas posta a circular, por um grupo de oficiais pertencentes ao Movimento, mas com ligações a António de Spínola;

● O Presidente do Conselho Marcello Caetano faz na Assembleias Nacional um longo e dramático discurso a atacar o federalismo e a garantir: “Ficaremos em África qualquer que seja o preço a pagar”.

Seguiu-se um debate emocional com o objectivo de ratificar a política do Presidente do Conselho. Apesar de tudo, este autoriza a exploração de contactos, através da França, com os elementos mais moderados dos grupos independentistas Africanos.

A 6 de Março, os Generais Kaúlza de Oliveira de Arriaga e Joaquim da Luz Cunha, elaboram um plano para acabar com a «subversão comunista dentro do Exército».

No dia 7, a Comissão Coordenadora do Movimento dos Oficiais das Forças Armadas, envia cartas para os oficiais do Movimento, com o decidido no plenário de Cascais e a forma da aplicação do plano aprovado.

No dia 8 de Março, é conhecido pelos visados, o despacho ministerial ordenando a transferência de: Os capitães Vasco Lourenço e Carlos Clemente, são transferidos para o Comando Territorial Independente dos Açores; o Capitão Antero Ribeiro da Silva, para o Comando Territorial Independente da Madeira; e o Capitão David Martelo, para o Batalhão de Caçadores 3, em Bragança.

No mesmo dia, reúne-se em casa de Luís Macedo, a Comissão Coordenadora do Movimento dos Oficiais das Forças Armadas e alargada a oficiais da Marinha e Força Aérea, onde foi criada uma Comissão Política do Movimento, constituída por Vítor Alves, Almada Contreiras, Vasco Gonçalves e Costa Brás. Em reacção à transferência dos oficiais, fica decidido sequestrar os mesmos, evitando que a ordem seja cumprida, enquanto fica marcada, para o dia seguinte pelas 16 horas, uma manifestação de protesto dos oficiais junto ao Ministério do Exército.

A manifestação não chegou a realizar-se por, no dia 9, ter sido ordenado a entrada em estado “de Prevenção Simples” a todas as unidades militares e paramilitares, o que não acontecia desde 1961, que foi variando de estado durante o dia e mesmo nos dias seguintes. Não encontrei informação do cessar dos “estados de alerta e/ou prevenção, mas devem ter existido alguns períodos de “acalmia”, pois existe no relatório do Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7, em que refere: «… por razões que julguei convenientes na altura: a semana anterior tinha sido fértil em altas e baixas nos estados de emergência».

No dia 9 de Março, os Capitães Vasco Lourenço e Ribeiro da Silva, que haviam sido sequestrados, foram apresentar-se no Quartel-General, em Lisboa, acompanhado por Pinto Soares, tentando que, com a sua entrega, fossem anuladas as transferências decretadas. O resultado foi que os três oficiais acabaram presos no Forte da Trafaria. No mesmo dia, e apesar do estado de prevenção, um grupo de oficiais do Movimento, ligados a António de Spínola, reúnem-se para ultimar os preparativos de uma acção militar, contra o regime. Pelas 18 horas, o estado de prevenção passou, em todo o território a “Estado de Vigilância”.

No dia 10, pelas 12 horas as unidades entram em “Estado de Vigilância", passando a “Prevenção Rigorosa” pelas 21 horas.

A 11 de Março, é aprovada a politica colonial do governo, pela Assembleia Nacional e, o Presidente da Republica Almirante Américo Tomás, renova a sua confiança no Presidente do Conselho Marcello Caetano, mas impõe a demissão dos generais Costa Gomes e António de Spínola. O Presidente do Conselho responde com o seu próprio pedido de demissão: “Sou efectivamente responsável por ter dito ao Ministro da Defesa que se lavrasse na informação do general Costa Gomes para autorizar a publicação do livro de general Spínola. Pelo erro cometido, devo pagar”. Américo Tomás não aceita a demissão de Marcello Caetano.

No dia 11, pelas 17 horas, as unidades militares e paramilitares recebem ordem para entram em “Estado de Vigilância”.

Na reunião do dia 11, o Movimento dos Oficiais das Forças Armadas decido a preparar rapidamente um plano de operações, atribuiu a responsabilidade operacional a Saraiva de Carvalho e a politica a Vítor Alves.

No mesmo dia, António Ramos, Ajudante-de-Campo de António de Spínola e a pedido deste último, encontra-se com Otelo Saraiva de Carvalho, sugerindo-lhe que o Movimento adopte, em relação à cerimónia de solidariedade dos oficiais-generais, do dia 14, uma posição de protesto.

Para elaborar um «Plano de Operações», reúnem-se no dia 12 de Março, em casa de Casanova Ferreira, além do anfitrião, Otelo Saraiva de Carvalho, Manuel Monge, José Maria Azevedo, Geraldes, Luís Macedo e Garcia dos Santos.

No Clube Militar Naval, em 13 de Março, reúnem-se 130 oficiais da Armada, que se solidarizam com os oficiais do Exército presos. Também neste dia, Otelo Saraiva de Carvalho reúne-se com os oficiais da Escola Prática de Cavalaria e com os paraquedistas. Estes acham que o plano de operações é incipiente e recusam-no, ficando então responsáveis para, no prazo máximo de 10 dias, apresentarem um novo plano.

Ainda nesse dia, Gosta Gomes e António de Spínola são recebidos por Marcelo Caetano, que o informam que não estarão presentes na cerimónia dos oficiais-generais, que terá lugar no dia 14. Marcello Caetano diz-lhes que «nesse caso seriam destituídos».

No dia 14, dezenas de oficiais generais, que ficaram conhecidos como a “brigada do reumático”, manifestam o seu apoio à política africana do governo e lealdade ao Professor Marcello Caetano, numa cerimónia realizada em S. Bento. Os generais Costa Gomes e Spínola, não estão presentes. Na cerimónia, o Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, diz: “O país está seguro de que conta com as suas Forças Armadas”.

Perante a ausência dos chefes máximos das Forças Armadas, o Presidente do Conselho de Ministros, demite os generais Francisco da Costa Gomes e António Sebastião Ribeiro de Spínola. O novo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas será o General Luz Cunha, enquanto o lugar de Vice-Chefe é extinto.

Nesse dia 14, após a demissão dos Generais, o Capitão Virgílio Varela, do Regimento de Infantaria 5, das Caldas da Rainha, informa Casanova Ferreira que, caso a Comissão Coordenadora do Movimento não reaja à demissão, ele sairá sozinho com a sua unidade. Casanova Ferreira tenta convencê-lo a adiar a acção, mas Virgílio Varela não desmobiliza o seu pessoal e decide mantê-lo em «estado de prontidão».

Pelas 17 horas do dia 14, as forças militares e militarizadas, entram em estado de Prevenção Simples.
“A brigada do reumático”, manifesta o seu apoio à política africana do governo e lealdade ao Professor Marcello Caetano

Poder-se-á dizer que, o dia 15 de Março, foi um dia farto em acontecimentos, não necessariamente, pela ordem seguinte:

● Pelas 11 horas, as forças militares e militarizadas, entram em estado de Vigilância;

● Um dia após a demissão do Chefe e Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, a Associação dos Antigos Alunos do Colégio Militar, decide atribuir aos seus membros Francisco da Costa Gomes, António Sebastião Ribeiro de Spínola e Venâncio Augusto Deslandes, a Medalha de Ouro da instituição; nesse mesmo dia António de Spínola é eleito presidente da Mesa da Assembleia-Geral da associação;
.
● O Contra-almirante António Tierno Bagulho é demitido do cargo de Secretário-Geral Adjunto do Departamento da Defesa Nacional;

● Embarque do Capitão Vasco Lourenço para Ponta Delgada e do Capitão Antero Ribeiro da Silva para o Funchal, transferidos para unidades das Ilhas Adjacentes;

● Almoço do General António Spínola com o Coronel Rafael Ferreira Durão, Tenentes-Coronéis Dias de Lima e João de Almeida Bruno e o Capitão António Ramos, no Hotel Embaixador, em Lisboa, onde foi equacionada a hipótese de um golpe militar a desencadear brevemente;

● O Tenente-Coronel Horácio Lopes Rodrigues toma posse como novo Comandante do Regimento de Infantaria n.º 5, nas Caldas da Rainha, afirmando estar determinado a «cumprir e fazer cumprir ordens, exclusivamente, na dependência hierárquica do Comandante da Região Militar de Tomar»;

● Reunião do Tenente-Coronel João de Almeida Bruno com oficiais afectos ao General Spínola, na Academia Militar, entre os quais o Coronel Rafael Ferreira Durão e Major Joaquim Mira Mensurado;

● No editorial do Jornal Português de Economia e Finanças interroga-se: «que lucrou o país com este livro infeliz? Perdeu um general na reserva da República para ficar apenas – necessariamente – com um general da República na reserva»;

● Reunião do Movimento dos Oficiais das Forças Armadas com a presença dos Majores Otelo Saraiva de Carvalho, Manuel Soares Monge e Luís Casanova Ferreira e Capitão Armando Marques Ramos, durante a qual são informados telefonicamente pelo Capitão Manuel Ferreira da Silva de que o Centro de Instruções de Operações Especiais, de Lamego, se encontra em situação de insubordinação contra a demissão dos dois generais;

● O Capitão Armando Ramos, após a reunião em Lisboa, chega ao Regimento de Infantaria 5 (Caldas da Rainha), cerca das 23 horas;

● O Capitão Farinha Ferreira é detido pela PIDE/DGS à porta da casa do Tenente-Coronel João de Almeida Bruno, pouco antes da meia-noite.

(continua)

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Nota do editor

Vd. poste de 12 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25378: Consultório Militar do José Martins (76): Dia 16 de Março de 1974 - Antes do dia - Parte I

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25378: Consultório Militar do José Martins (76): Dia 16 de Março de 1974 - Parte I - Antes do dia


O nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), em mensagem do dia 10 de Abril de 2024, enviou-nos um desenvolvido trabalho de sua autoria dedicado à primeira tentativa de derrube do regime vigente, ocorrida no dia 16 de Março de 1974, conhecida por Levantamento ou Golpe das Caldas, por ser protagonizada por militares do antigo RI 5.


Dia 16 de Março de 1974 - Parte I

Porta de Armas do extinto RI5
Foto com a devida vénia a heportugal

Antes do dia

Procurando atenuar, as carências em termos de quadros militares intermédios, fundamentais para a continuação da Guerra do Ultramar, o governo de Marcello Caetano permite, através do Decreto-lei n.º 353/73 de 13 de Julho, a passagem dos oficiais milicianos ao quadro permanente das armas de Infantaria, Artilharia e Cavalaria, mediante a frequência de um curso intensivo de dois semestres, consecutivos, na Academia Militar.

Quatro dias depois da aprovação do Decreto-lei supra citado, começam a surgir as primeiras contestações ao mesmo, primeiro quase em surdina, mas que rapidamente subiu de tom, com o aparecimento, no dia 20, de modelos para exposições, individuais, para exposições de contestação ao decreto-lei. 

Mesmo em África, apesar da guerra que se travava, em 29 de Agosto, reuniu-se em Bissau um grupo de oficiais, que seria o embrião do movimento, na Guiné. No dia seguinte, dia 30, surgem em diversos quartéis as primeiras reacções públicas de descontentamento dos oficiais do quadro permanente, provenientes da Academia Militar, face às disposições “permissivas” previstas pelo Decreto n.º 353/73 de 13 de Julho.

Perante a contestação, a 14 de Agosto de 1973, em Mafra, na comemoração do Dia da Infantaria, há o anúncio de que o Ministro do Exército, Sá Viana Rebelo (General, na reserva), encara o recuo do Decreto-lei, objecto da contestação.

A 17 de Agosto de 1973 é entregue, ao Director do Serviço de Pessoal, uma exposição manifestando o desagrado dos oficiais oriundos da Academia Militar.

A publicação do decreto-lei 409/73 de 20 de Agosto, corrige alguns aspectos do DL 353/73, referente às carreiras dos oficiais do Exército. Os oficiais superiores ficam de fora do regime geral, mas mantém-se para capitães e subalternos.

O ambiente vivido nas Forças Armadas, na sequência do Decreto-lei n.º 353/73 de 13 de Julho, leva a que, em 21 de Agosto, se reúnam clandestinamente em Bissau, cinquenta e um oficiais descontentes com as situações concretas de âmbito profissional, quer com a forma com que o governo insistia em perspectivar o problema ultramarino. Aprovam o teor da exposição a enviar às mais altas entidades das Forças Armadas, nomeadamente do Exército e ao Ministro da Educação. Esta reunião é considerada como sendo a reunião fundadora do “Movimento dos Capitães”.

A reunião dos oficiais, em Bissau no dia 25 de Agosto, decidem assinar colectivamente a exposição anteriormente aprovada, elegem uma comissão do “Movimento dos Capitães”, constituída pelos Capitães Almeida Coimbra, Matos Gomes, Duran Clemente e António Caetano, substituído, depois, por Sousa Pinto.
Dirigida ao Presidente da Republica, Presidente do Conselho, Ministros da Defesa, do Exército e da Educação Nacional, assim como ao Subsecretário de Estado do Exército, 51 oficiais do Quadro Permanente, sendo 45 capitães e 6 subalternos, assinam, em 28 de Agosto de 1973, o documento entretanto elaborado. O mesmo é assinado, entre outros por Manuel Monge. Jorge Golias, Salgueiro Maia, Matos Gomes, Duran Clemente e Otelo Saraiva de Carvalho.

Para preparar a reunião agendada, para o dia 9 de Setembro, houve um encontro em casa de Diniz de Almeida, onde estiveram presentes Ponces de Carvalho, Sousa e Castro, Bicho Beatriz, Vasco Lourenço, Rosário Simões, Marques Júnior e o anfitrião, onde ultimaram os preparativos para o encontro alargado.

Nessa reunião, com vários oficiais de todas as armas e serviços, realizada no dia 9, em Monte Sobral, perto de Évora, a maioria dos cento e trinta e seis militares presentes decide assinar um documento dirigido ao Presidente do Conselho, com conhecimento ao Presidente da Rehpublica. O documento seria posteriormente posto a circular para recolha de assinaturas, dando continuidade ao processo de contestação iniciado na Guiné em 21 de Agosto, reagindo aos Decretos-Lei n.º 353/73 e 409/73.

Em 10 e 12 de Setembro e à semelhança do que se passou na Guine em 28 de Agosto, foi a vez de se pronunciarem os oficiais do Quadro Permanente, nas então províncias de Angola e Moçambique. A 10, em Angola, 94 oficiais, assinam uma exposição que enviam ao Presidente do Conselho, em que realçam que a entrada em vigor dos Decretos-Lei 353/73 e 409/73, provocará «uma onda de descontentamento generalizada pelo menos na classe de oficiais do quadro permanente directamente afectados». No dia 12, em Moçambique, foi a vez de 107 oficiais em serviço, assinarem uma exposição de teor idêntico.

Reunião do Movimento de Capitães em Luanda, no dia 21 de Setembro, onde se decide a apresentação de um pedido individual de demissão de oficial do exército, caso se verifique a entrada em vigor dos documentos contestados. É constituído o Movimento dos Capitães em Angola, com uma comissão constituída pelos Capitães Vilas Boas, Sousa Guedes, Américo Moreno, Soares e Rui Tomás.

Em reunião de 26 de Setembro, o Conselho Superior do Exército reúne-se, tendo na agenda a discussão do “problema" dos capitães. Só o General Costa Gomes, Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, argumenta a favor da revisão dos decretos. Nesse mesmo dia, em São Bento, é entregue ao Presidente do Conselho, pelo Major Hugo dos Santos e pelo Capitão Vasco Lourenço, o documento assinado por 107 oficiais em serviço em Moçambique.

O Exército e a Marinha iniciam, em 1 de Outubro, os primeiros contactos. A partir desta data há contactos com os Capitão-Tenente (equivalente a Major) Costa Correia e Almada Contreiras, por parte da Armada, e pelo Exército os Majores Hugo dos Santos e Vítor Alves. Para elementos de ligação, pela parte da Marinha, o 1.º Tenente Vidal Pinho e o 2.º Tenente Pedro Lauret, a quem, mais tarde, se juntará o Capitão-Tenente Vítor Crespo. O posto de 1.º e 2.º Tenente corresponde a Capitão e Tenente.

Reunião, no dia 3 de Outubro, o Movimento dos Capitães com a presença de um representante de Angola, reúne-se em Lisboa, em que é sugerida a comissão representativa deverá rodar os seus elementos.

A 6 de Outubro, na reunião alargada do Movimento dos Capitães, em Lisboa e realizada em quatro locais simultaneamente, nas casas dos Capitães Rui Rodrigues, Mendoza Frazão, Antero Ribeiro da Silva e Diniz de Almeida. Além dos delegados da quase totalidade das unidades e estabelecimentos militares, assim como um delegado de Angola. Na troca de impressões, que duram até de madrugada, ficam três hipóteses:
i) Apresentação, individual e/ou colectivamente, a demissão de oficial;
ii) Ausência do serviço, mantendo-se fora do quartel ou estabelecimento;
iii) Manter-se no quartel ou estabelecimento, sem desempenhar as funções.

Vence a primeira hipótese e são elaborados dois documentos, para demissão individual ou colectiva, que a Comissão Coordenadora fará circular para serem assinadas, que devolvidas, ficariam à guarda da Comissão. Estes documentos nunca serão utilizados, pois os decretos serão revogados.

O Movimento de Capitães, a 7 de Outubro, consolida as ligações, a solidariedade e os canais de divulgação de informações, dentro dos quartéis, na metrópole e no ultramar. É eleita uma Comissão Coordenadora, que passa a liderar o processo de contestação.
Perante o desagrado e contestação dos Decretos-Lei, que têm vindo a ser referidos, em 12 de Outubro de 1974, a 1ª Repartição do Estado-Maior do Exército (Operações e Informações), remete, a todas as unidades do Exército, uma circular que anuncia que está a estudar, caso a caso, a situação de todos os oficiais abrangidos, pelo que, na prática, é suspenso. Nesse mesmo dia, a Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães, alerta para a necessidade de não haver desmobilização, pela suspensão dos decretos.

Porém, em 15 desse mês de Outubro de 1973, o Movimento dos Capitães de Moçambique, reúne-se em Nampula, decidindo prosseguir os objectivos do movimento, apesar da suspensão dos decretos-lei.
O Movimento dos Capitães, das então províncias de Guiné e Angola, reunidos nas cidades capitais das províncias, manifestam seguir os objectivos do movimento.

Para que não houvesse desmobilização, com o anúncio da possível revogação dos Decretos-Lei 353/73 e 409/73, a Comissão Coordenadora emite, em 19 e 23 de Outubro, dando nota das acções levadas a efeito pelo movimento e a necessidade de continuar; e a 29 envia, aos oficiais do movimento nos Açores, uma carta de esclarecimento sobre esta necessidade.

Por circular do Movimento dos Capitães, os oficiais do movimento são alertados que, por ter sido assinado um documento colectivo, os oficiais em serviço na Guiné poderão vir a sofrer consequências disciplinares. Estava-se a 1 de Novembro de 1973 e era Governador e Comandante-Chefe o General Bettencourt Rodrigues.

Em 4 de Novembro de 1973, os oficiais do quadro oriundos de milicianos, reúnem-se em Porto de Mós, elegendo uma comissão do respectivo movimento
Na reunião realizada, em 6 de Novembro de 1973, em casa de Mariz Fernandes, manifestam-se os primeiros atritos no âmbito da Comissão Coordenadora, e é discutida uma agenda de trabalhos, bastante longa. Foi então aprovado um regulamento da mesa, para utilização nas reuniões seguintes.

Nova reunião da Coordenadora, a 10 do mesmo mês, em que se acentua o conflito já existente.

Dois dias depois, na reunião do dia 12 em Aveiras de Cima, o conflito mantém-se: por um lado, Mariz Fernandes e Sanches Osório defendem que apenas se deve visar a solução dos problemas profissionais, enquanto, Vasco Lourenço e Dinis de Almeida defendem o avanço do movimento não excluindo qualquer hipótese. A Comissão Coordenadora demite-se, ficando em gestão até nova eleição.

A 22 de Novembro, num comunicado do Movimento, é defendida a necessidade de manter a mobilização em torno dos objectivos traçados. Nesse dia, em documento elaborado por Lavoura Lopes, Calvino e Guerreiro, reivindicando para os deficientes das Forças Armadas, o mesmo que o Movimento dos Capitães. Reunião do Movimento dos Capitães, realizada na Parede em 24 de Novembro, o Tenente-Coronel Luís Banazol diz que: « [ … ] Não tenhamos ilusões: o governo só sai a tiro e os únicos capazes de o fazer somos nós, mais ninguém!».

Reunião em Óbidos, em 1 de Dezembro de 1973, do Movimento dos Capitães, em que é eleita uma comissão coordenadora alargada e votados os nomes dos oficiais generais a contactar pelo movimento: Generais António de Spínola e Costa Gomes.
No Dia da Artilharia e da sua Padroeira Santa Barbara, dia 4 de Dezembro, o ministro Alberto de Andrade e Silva, discursando nas cerimónias anuncia que vão haver benefícios salariais para os oficiais das Forças Armadas.

A 5 de Dezembro de 1973, na Costa da Caparica, reúnem-se os membros da Comissão Coordenadora e os oficiais Eurico Corvacho, Tomás Ferreira, Ataíde Banazol e Vasco Gonçalves, para discutir as hipóteses saídas da reunião de Óbidos, sendo aprovada, por maioria, a terceira: «continuar a apresentar ao governo reivindicações de carácter exclusivamente militar, e com a maior realidade, mas de natureza tal que o executivo não tenha possibilidades de as satisfazer, originando-se assim uma forma de pressão que, na melhor das hipóteses, leve à demissão do próprio governo, e, na pior, ao devido encaminhamento para a primeira hipótese». É eleita a direcção da Comissão Coordenadora, que irá manter-se até 25 de Abril. Constituem-na Vasco Lourenço (organização interna e ligações), Vítor Alves (orientação política) e Otelo Saraiva de Carvalho (secretariado). A eles ficam ainda associados Hugo dos Santos e Pinto Soares.

No decorrer de uma aula, em 17 de Dezembro, no Instituto de Altos estudos Militares, o major Carlos Fabião denuncia publicamente o facto de os sectores ultra conservadores do regime e das Forças Armadas estarem a preparar um golpe de Estado.

No dia 20 de Dezembro, foi dada ordem de embarque imediato, para a Guiné, de alguns oficiais do Batalhão de Caçadores n.º 4616/73 comandado pelo Tenente-Coronel Luís Ataíde Banazol. A unidade e as suas companhias orgânicas, só embarcariam no dia 30 desse mês, via marítima.

São mandados apresentar, no Quartel-General, em Lisboa, no dia 21 de Dezembro de 1973, os Capitães Vasco Lourenço e Dinis de Almeida, que são detidos e enviados, o primeiro para o Regimento de Cavalaria n.º 7 e o segundo para o Batalhão de Caçadores n.º 5.

No Diário do Governo n.º 296 da I série, do dia 21 de Dezembro, são publicados quatro Decretos-Lei, de carácter militar:
● O Decreto-Lei n.º 683/73, do Ministério da Defesa Nacional – Gabinete do Ministro, que cria o cargo de Vice-Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, expressamente para o General António de Spínola.

● O Decreto-Lei n.º 684/73, do Ministério do Exército, que aumenta o quadro de oficiais com o posto de Coronel, das Armas de Infantaria, Artilharia e Cavalaria, no conjunto, em mais 10 oficiais.

● Os Decretos-Lei n.ºs 685/73 e 686/73, do Ministério do Exército, alteram as regras dos Decretos-Lei n.ºs 353/73 e 408/73, no entanto sem mencionar a sua revogação, criando novas condições de acesso ao Quadro de Oficias, de Sargentos do Quadro Permanente e de Oficiais e Sargentos do Quadro de Complemento. Cria o Quadro Especial de Oficiais.

Dez dias depois da detenção de oficiais oriundos da Academias Militar, toca a vez aos oriundos de Milicianos. No dia 1 de Janeiro de 1974, o Capitão Alberto Ferreira, que estava colocado na Academia Militar, é transferido para Estremoz.

Na reunião da Direcção da Comissão Coordenadora, realizada no dia 7 de Janeiro de 1974 em casa de Vítor Alves, é tomada a decisão de devolver aos signatários, os pedidos de demissão, que tinha sido aprovado na reunião de 6 de Outubro transacto.

A reunião da Comissão Coordenadora, no dia 12 de Janeiro, foi em casa do Major Fernandes da Mota. Consideram ser prematura a ligação com o General Costa Gomes, além de utópica. Nota-se a necessidade de existir um documento para discussão em todos os Ramos que, o Secretariado deverá apresentar no prazo máximo de duas semanas, para ser difundido pelos oficiais.

Na sequência da morte da esposa de um fazendeiro português em resultado de uma acção da Frelimo, no dia 14 de Janeiro, ocorrem em Moçambique incidentes entre colonos brancos e as Forças Armadas, sendo atingida a sua maior gravidade, na noite de 17 para 18 de Janeiro. Os primeiros acusam os segundos de não se empenharem suficientemente na destruição do terrorismo, no restabelecimento e na defesa dos interesses portugueses em África.

No dia 14 ou 15 de Janeiro, dependendo das fontes, é dada posse ao General António de Spínola, como Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, de acordo com o Decreto-Lei n.º 683/73 de 21 de Dezembro. Apesar de ter proferido a frase “As Forças Armadas não são a guarda pretoriana do poder”, o seu discurso de posse não foi tão contundente como fizera crer aos capitães, mas a televisão abstém-se de cobrir o acto. Quando é recebido por Marcelo Caetano, informa-o de que está para breve a apresentação de um livro sobre a situação ultramarina. O Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, volta a recusar a ideia de um encontro com Senghor para discutir a questão da Guiné.

Aquando do funeral, em Manica das vítimas do ataque de 14 desse mês, realizado no dia 16, milhares de colonos brancos, manifestam-se junto do encarregado do Governo. Nos dias seguintes, 17 e 18, nova manifestação, contra as Forças Armadas, da população branca da zona centro de Moçambique, há confrontos físicos entre os manifestantes e os militares, de que resultam alguns feridos.

No dia 17 de Janeiro de 1974, partida do general Costa Gomes para a Beira, Moçambique, para se inteirar dos acontecimentos ocorridos no território, em que estiveram envolvidos civis brancos e militares. O Estado-Maior General fica entregue ao General António de Spínola.

Chega, no dia 18, ao Movimento dos Capitães uma carta dos oficiais do movimento e em serviço em Moçambique, uma carta em que, no ponto “9” da mesma, são relatados os acontecimentos que envolveram a tropa e a população branca.

António de Spínola, no dia 20 de Janeiro, recebe Alberto Ferreira, Andrade Moura, Pais de Faria e Armando Ramos, que constituem uma delegação dos oficias oriundos de milicianos. António Ramos, ex-miliciano e ajudante-de-campo do General, assiste à reunião, onde os presentes lhe solicitam que advogue a sua causa junto do Governo, entregando-lhe um documento assinado por cerca de 200 oficiais. O General aconselha os oficiais a tentarem um entendimento com os oficiais oriundos de cadetes.

Em 21 de Janeiro, envio para Lisboa de telegrama, da comissão do Movimento dos Capitães em Moçambique, sobre os acontecimentos da Beira. Exortam o movimento a manifestar-se e declinando responsabilidades pela situação, que ameaça prolongar-se, em desprestigio das Forças Armadas.

No dia 22, Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço, encontram-se com o General Spínola, que o informam dos acontecimentos em Moçambique e da indignação manifestada por muitos oficiais, informando, o General, da intenção de difundir uma circular sobre o caso. António de Spínola adverte-os, mas não se opõe.

No dia seguinte, dia 23 de Janeiro, o Movimento dos Capitães divulga informações sobre a situação criada em Moçambique. Exige que os militares deixem de ser enxovalhados. Denuncia a possibilidade de as Forças Armadas virem a ser apresentadas como responsáveis pelo fracasso da política ultramarina do regime. Aventa, finalmente, a hipótese de aqueles acontecimentos terem por objectivo criar condições para a estruturação em Moçambique e Angola de regimes de apartheid semelhantes aos já existentes na África do Sul, na Namíbia e na Rodésia.

Na reunião da Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães realizada em 26 de Janeiro de 1974, em casa de Vasco Lourenço, onde é constatada a necessidade de elaborar um documento que defina as seus objectivos políticos, aprovando um texto elaborado por José Maria Azevedo, que servirá de introdução a um documento programático, a ser aprovado.

A 27 de Janeiro, é posto a circular um abaixo-assinado elaborado pela comissão regional do Movimento dos Capitães, na Beira, Moçambique, sobre os últimos acontecimentos.

Envio, para Lisboa e para as comissões regionais, em 29 de Janeiro, pela comissão do Movimento dos Capitães, em Nampula, de um relato circunstanciado dos acontecimentos da Beira. A Comissão Coordenadora, reunida em casa de Hugo dos Santos, analisa a documentação de que dispões acerca dos acontecimentos havidos em Moçambique, decidindo manifestar total solidariedade com os seus camaradas e com qualquer atitude que os mesmos possam vir a tomar.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 9 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24302: Consultório Militar do José Martins (75): D. Pedro, Duque de Coimbra (José Martins)

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24507: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (1): CIOE / Rangers - Especialidade em Lamego (Parte 1)

João Moreira, instruendo do 1.º pelotão da 1.ª Companhia, no RI 5.
O Comandante de Pelotão era o Ten Sidónio Ribeiro da Silva e o Comandante de Companhia era o Ten Carvalho.
Foram os dois mobilizados para a Guiné


"A MINHA IDA À GUERRA"

1 - CIOE / RANGERS - ESPECIALIDADE (Parte 1)

João Moreira[1]


Em Abril, após a recruta no RI 5, fui para o CIOE, em Lamego, para tirar a especialidade de operações especiais, mais conhecida por "rangers".

Para quem não passou pelo CIOE não terá a noção da dureza da especialidade. Por isso vou contar algumas situações que "só acontecem lá".
RI 5 - Caldas da Rainha - Da esquerda para a nossa direita: João Moreira, Castro, Seco e Jorge. Os outros três não me lembro o nome deles mas também eram do 1.º Pelotão.

Aproveitávamos o sol, para estudar para os testes e para engraxar as botas, para não haver castigos. Como podem ver,  tive um par de botas novas e um par de botas antigas, que apertavam com fivelas. Os 3 primeiros (eu, Castro e Seco) fomos para Lamego. Eu fui para o hospital militar e perdi a especialidade. Eles completaram a especialidade e depois foram para os "comandos". Seguidamente foram mobilizados para Moçambique, donde regressaram sem problemas.

Quando chegámos a Lamego fomos instalados numa camarata que ficava ao cimo de uma escadaria com cerca de 30 a 40 degraus, que tinha de ser subida e/ou descida sempre que tínhamos que lá ir fazer qualquer coisa. 

 Para além do fardamento que nos estava distribuído, desde que assentamos praça, deram-nos farda camuflada, farda azul, do género da usada pelos especialistas das viaturas de combate usadas em cavalaria.

Como isso fosse pouco, ofereceram-nos 1 G3, 1 Mauser e 1 canhangulo, mais botas de lona como as usadas na Guiné e botas que apertavam com fivelas.

Para nossa distração e sanidade mental a caserna estava equipada com aparelhagem sonora, e para nos "divertir" tocava 24 horas por dia, 7 dias por semana.

Para facilitar a memorização da letra dessa música, era sempre a mesma que tocava (desde o primeiro ao último dia da especialidade).

Como não queriam aborrecer-nos, de vez em quando paravam a música e proclamavam os "mandamentos do ranger" que eram 10, tal como na religião Católica Apostólica Romana.

Para não cairmos na "monotonia", de vez em quando - no meio da música privada e durante a noite - surgia uma voz que dizia qualquer coisa deste género:

"RANGER TENS 3 MINUTOS PARA FORMAR NA PARADA EXTERIOR COM A FARDA X, A ARMA Y E AS BOTAS Z", etc.

E os rangers, que estavam cansados dos "trabalhos diários", tinham que dormir com um ouvido alerta, para poderem levantar-se e cumprir as ordens enviadas por altifalante.

Depois de nos prepararmos, tínhamos que fechar os armários com os aloquetes, descer a tal escadaria de 30 ou 40 degraus, atravessar a parada exterior em passo de corrida - não se podia andar a passo na parada - e apresentar-se ao comandante do pelotão que estava à nossa espera.
De acordo com o atraso éramos "premiados" com 30, 40 ou mais "completas" - ainda se lembram quais os exercícios que as compunham e quantas eram de cada exercício?

Como os instruendos se queixavam que era pouco tempo, os comandantes diziam que era o tempo mais que suficiente, porque ainda dava para fumar um cigarro.

Deu-nos algumas dicas de como proceder para chegar à parada dentro do tempo previsto e ainda poderem fumar o tal cigarro:

  • Dormir com os armários abertos. O receio do roubo foi esconjurado com a pena que estava destinada a quem tentasse roubar. E realmente nunca ouvi ninguém queixar-se de ter sido roubado.
  • Nos 3 ganchos do armário colocar uma das 3 fardas, exceto a nº 2.
  • Nos cantos dos armários colocar 1 das 3 armas.
  •  Calçar as meias.
  • Vestir as calças e prendê-las com o cinto igual ao que usávamos na Guiné para enfiar os carregadores.
  • Enfiar o quico.
  • Pegar na arma e na camisa.

Durante o trajeto até ao local da formatura vestia e apertava a camisa e as calças. Chegados ao local da formatura,  acendia o cigarro, apertava as botas e esperava que o tempo se esgotasse enquanto acabava de fumar.

Ao fim de 3 ou 4 semanas, fui ao médico, porque já não suportava as dores na coluna e perdia a acção muscular.

Eu queria dizer ao médico o nome da minha anomalia mas não me ocorria o nome, porque naquele tempo dizia-se em latim (spina bífida). O médico do CIOE era ortopedista, e pelos sintomas disse que era uma espinha bífida congénita, e aí já pude confirmar o nome. Pediu-me a radiografia e o relatório, porque com aquele problema eu não tinha condições para ser militar, muito menos "ranger".

Quando viu a radiografia e o relatório, disse que me ia mandar para o hospital militar regional, do Porto, porque ele não podia fazer nada.

Chegado ao Porto, e ao hospital militar na Boavista,  fizeram-me os exames e confirmaram a minha deficiência, mas, em vez de mandarem para o hospital principal em Lisboa,  deram-me alta. Regressei a Lamego, e mandaram-me para casa porque tinha perdido a especialidade por faltas

Em Julho voltei ao CIOE, em Lamego. Fui logo falar com o médico, para tentar resolver a situação sem ter que perder a especialidade.

Em resultado do que se tinha passado no hospital, no Porto, o médico optou por pedir a minha reclassificação por não ter condições físicas para a especialidade.

Mas, como eu não tinha "cunha",  atribuíram-me a especialidade de atirador de cavalaria e lá segui eu para a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, onde se repetiu o meu martírio.


(continua)
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Nota do editor

[1] - Vd. poste de 20 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24490: Tabanca Grande (550): João de Jesus Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que se vai sentar no lugar 878 do nosso poilão

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24298: Notas de leitura (1580): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Sinto-me agradecido à probidade e incisão da narrativa forjada por José Matos e Zélia Oliveira, penso que este ensaio de 200 páginas possui a matéria fundamental dos acontecimentos ocorridos entre fevereiro e abril ao nível do regime, se alguma dúvida subsistisse quanto à força motriz que desencadeou o 25 de Abril, aqui se dá pleno esclarecimento. É evidente que subsistem dúvidas, designadamente quanto ao pensamento de Caetano em ganhar tempo para resolver o problema colonial, a conjuntura mundial alterara-se profundamente em 1973, desapareceu seguramente muita documentação privada de Caetano. Fui condiscípulo do seu secretário pessoal, Alexandre Carvalho Neto, que desde a madrugada de 25 de Abril incinerou na residência de S. Bento documentação, como aliás veio esclarecido nos jornais dos dias seguintes. Nunca se apurou o que ficou reduzido a cinzas. Muitos anos mais tarde, encontrei o Alexandre na Av. da República e pedi-lhe encarecidamente que deixasse um documento sobretudo quanto fora incinerado, estava em seu poder uma revelação histórica seguramente de grande significado. O Alexandre já faleceu e desconheço inteiramente se cumpriu a promessa que me fizera.

Um abraço do
Mário



Os últimos meses do Estado Novo, como a guerra colonial fez baquear um regime (3)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", Guerra e Paz, Editores, 2023, por José Matos e Zélia Oliveira, o primeiro investigador em História Militar, a segunda, jornalista e com uma tese de mestrado sobre a crise final do marcelismo. Estão aqui registados numa narrativa que prende o leitor do princípio ao fim os três últimos meses que antecederam o 25 de Abril. Basta ver a bibliografia para perceber que os autores consultaram centenas de documentos de arquivos nacionais e estrangeiros, temos aqui um olhar sobre aquele que terá sido o período mais tumultuoso do marcelismo, aqui se registam os principais ingredientes que conduziram ao seu colapso.

No dia seguinte à última remodelação ministerial, ocorre a chamada revolta nas Caldas, que teve na sua origem, e num quadro já de grande instabilidade nas Forças Armadas, a organização atabalhoada de uma marcha sobre Lisboa que acabou única e exclusivamente por contar com um contingente do Regimento de Infantaria 5, os oficiais descontentes quiseram mostrar uma posição de força. Como escrevem os autores, “o MFA não estava ainda em condições de apoiar uma revolta militar, dado que não existia ainda uma ordem de operações definitiva nem um programa político”. Nem Spínola e os oficiais que lhe eram afetos consideravam que ainda não era o momento adequado para qualquer ação, o que era correto, a polícia política já fazia vigilância de oficiais considerados revoltosos e tinha telefones sobre escuta. Também no quartel de Lamego se presumia haver movimento militar, o importante é que o ministro do Exército ordenou que todos os quartéis entrassem em prevenção rigorosa. A coluna das Caldas avançou em direção à capital convencidos de outras solidariedades. A três quilómetros de Lisboa serão notificados por gente amiga de que o golpe fracassara, nenhuma outra unidade tinha saído. Sufocada a revolta, o governo teve a ilusão de que tudo iria voltar a uma certa normalidade: “Para Caetano, o facto de ter sido apenas uma unidade militar a revoltar-se, e, para mais, por influência de oficiais externos à unidade, era positivo, assim como o facto de as restantes unidades terem obedecido às ordens do governo e de não ter havido agitação pública.” Mas há uma outra leitura, um reverso que contará para o plano de operações do 25 de Abril, Otelo pôde constatar a resposta improvisada ou a tamancada do governo e ficou com a convicção que “uma ação militar bem planeada e estruturada, com um comando centralizado venceria rapidamente qualquer resistência que o regime conseguisse mobilizar.

Os autores anotam igualmente o ceticismo do lado da oposição política portuguesa, o PCP publica um manifesto onde se lia que “o Governo e o regime não cairão por si próprios nem tão pouco por ação de umas dezenas de oficiais do exército, mesmo que corajosos e patriotas. A sublevação do 16 de março mostra-o mais uma vez”. Em 24 de abril, durante um jantar em Bona com elementos do Partido Social Democrata alemão, o ministro das Finanças disse a Mário Soares que a ditadura portuguesa estava para durar: “O Governo alemão tem informações da nossa embaixada em Lisboa, dos nossos serviços secretos, no âmbito da NATO, e informações fidedigna da CIA e dos ingleses. Todos os nossos informadores nos asseguram que a ditadura portuguesa está de pedra e cal e para durar.” Mário Soares estava convencido do contrário.

Persistem, quanto a atuações desencadeadas neste período, perguntas que ainda não obtiveram uma resposta cabal. É o caso da missão que Rui Patrício delegou no então cônsul em Milão, José Manuel Villas-Boas, para ir a Londres falar com representantes da guerrilha do PAIGC. A iniciativa deste encontro terá partido de diplomatas ingleses da embaixada britânica em Lisboa. Patrício consultou Caetano e este autorizou a ida de um emissário português à capital britânica. “Patrício explicou a Villas-Boas que Portugal estava a perder a guerra na Guiné perante uma guerrilha fortemente armada com mísseis terra-ar, e que era necessário encetar conversações com o PAIGC, que deviam ser mantidas no maior segredo. Villas-Boas levava consigo uma oferta de independência da Guiné-Bissau em troca de um cessar-fogo, mas sem referir datas específicas.” É sabido como tais conversações pressuponham outras posteriores, veio, entretanto, o 25 de Abril. Inclino-me para a tese de que se tratava de uma tentativa de ganhar tempo, creio que Calvet Magalhães, então secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros e envolvido nesta missão secreta, terá razão quando diz que o governo português aguardava receber os mísseis Redeye para usar na Guiné, o regime não entendia que o PAIGC dispunha de trunfos, desde o reconhecimento à sua independência até à chegada de novo equipamento militar que iria introduzir a matriz da guerra convencional.

É nesta atmosfera ensombrada que cresce o receio de um golpe de extrema-Direita em Portugal, Caetano ainda profere uma última conversa em família e será ovacionado no Estádio de Alvalade no dia 31 de março, fora assistir a um jogo entre o Sporting e o Benfica. Os autores elaboram uma exposição bem detalhada sobre os preparativos do 25 de Abril, não conheço algo de tão preciso, conciso e esclarecedor. Dão igualmente notícia de tentativas de conversações em França, os aviões Mirage eram dados como cruciais. A 23 de abril realiza-se o último conselho de ministros. “A 24, desconhecendo a iminência do golpe que tinha lugar nessa noite, Rui Patrício encontra-se com o embaixador francês em Lisboa para tentar desbloquear a venda de 32 caças Mirage-3 que o governo português queria comprar para usar em África, principalmente na Guiné. Na conversa que teve com o embaixador, Patrício alegou que precisava dos caças na Guiné para responder a um eventual ataque aéreo vindo da Guiné-Conacri.”

Há vários jantares de Estado na noite de 24, não há nenhuma informação alarmante que chegue ao Governo, pelas dez da noite Otelo chega à Pontinha, são emitidos os dois códigos que sinalizam o início da operação, seguem-se as movimentações militares, há várias unidades ainda reticentes, prendem-se comandantes, cerca-se o Rádio Clube Português (RCP) e a RTP. Às 4h26 da madrugada, Joaquim Furtado lê o primeiro comunicado do MFA aos microfones do RCP, pouco depois Marcello Caetano é avisado destas movimentações, Silva Pais aconselha Marcello a refugiar-se no quartel do Carmo, telefonema que foi escutado na Pontinha, Otelo sabe para onde vai o chefe do governo. Seguem-se peripécias de todos conhecidas, não deixa de ser saborosa a referência aos protestos de uma mulher da limpeza dos correios no Terreiro do Paço irada com Salgueiro Maia, tinha de ir trabalhar e ele não a deixava passar. “Ó, minha senhora, vá para casa, hoje é feriado. E para o ano também.” Dá-se o cerimonial da entrega do poder, Caetano e outros governantes seguem para a Pontinha, a eles se juntará o almirante Tomás. E, por último, dá-se a tomada da PIDE/DGS, Spínola telefona a Silva Pais e exige a rendição, este coloca-se às ordens do novo poder, pela manhã, uma comitiva de oficiais e jornalistas entrou na sede da polícia política, os ocupantes são desarmados. “Ao contrário do que seria de esperar, os arquivos da polícia política que continham milhões de fichas foram encontrados aparentemente intactos. Nas mesas de alguns agentes também encontraram algumas revistas Playboy e Penthouse, que não se vendiam em Portugal. No gabinete de Silva Pais permaneciam três quadros fixos na parede com as imagens de Américo Tomás, Marcello Caetano e Salazar. São dadas ordens para os retirar e Silva Pais prontifica-se para tal, mas o de Salazar era mais difícil por estar mais alto. Diz-se que alguém foi então buscar um escadote e o retrato de Salazar foi removido. O fim do regime estava consumado.”

De leitura obrigatória.

José Matos
Zélia Oliveira
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24288: Notas de leitura (1579): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23814: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte I - "e toma lá com o edital!" e Caldas da Rainha

1. Damos hoje início à publicação de um excerto do livro "Um Olhar Retrospectivo", de Adolfo Cruz (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72), parte que diz respeito à sua vida militar.



(extracto do meu livro ‘um olhar retrospectivo’ 2018 - adolfo cruz da pág 407 à 483)

I - "e toma lá com o edital!"

E Daniel, esta foi forte!...
Sábado, dia 4 de Outubro, perto da hora do jantar, o meu pai resolve massacrar-me com a história do resultado negativo da matemática e com a vida que eu continuava a ‘cultivar’, embora eu defendesse que estava feito e não podia voltar atrás - resposta fácil…
E aproveito para lembrar que poderia vir a ser chamado para o serviço militar, em virtude do chumbo que impedia um eventual pedido de adiamento.
O meu pai logo explode dizendo que tinha muito tempo para pensar em serviço militar, que era muito cedo para isso.
Acaba de dizer isto e tocam à campainha.

Vou abrir e vejo o Zé Luís da Deusa, de Arcos de Valdevez, que me diz:
 - Até que enfim encontro a casa! Procurei, procurei, até conseguir que alguém me dissesse onde morava o Dr. Cruz!
- Gosto em vê-lo, Zé Luís, mas o que faz por aqui?!
- Fui colocado aqui no CICA 2, para fazer a especialidade, e trago uma notícia para si, de um edital que colaram numa das montras lá do nosso café.

Passa-me o papel e lá está o meu nome, para me apresentar no RI 5 (regimento de infantaria), nas Caldas da Rainha, no dia 6 de Outubro!
Mostro o papel ao meu pai e continuo a conversa com o Zé Luís, pois tinha curiosidade em saber notícias sobre malta dos Arcos de Valdevez, em geral, sem esquecer o Atlético, claro, onde ambos tínhamos jogado.
Perguntou-me quando tencionava lá ir, pois tinha pessoas a perguntarem por mim, o que era natural, pois tinha lá vivido, embora pouco tempo, mas o suficiente para criar amizades e com algumas histórias.

Depois disto, preparar as coisinhas para uma nova etapa, esta, sem interesse nenhum!
Tinha o dia seguinte, domingo, para tratar de tudo.
Nesse mesmo dia, após o jantar, a esposa de um croupier do casino, em conversa com a minha mãe, sobre o serviço militar e possibilidades de eu ir parar ao ultramar, o que era um susto para as famílias, sugere que eu aproveite uma oportunidade: ir para Londres.
Lá, tinha um primo bem colocado na General Motors e eu tinha lugar garantido, casa, carro da empresa, pagamento de curso superior, com facilidades, era só um telefonema.

A minha mãe ficou como que num beco sem saída, pois achava boa ideia, apesar da dificuldade e risco do ‘salto’, mas dizia que nunca mais me via, dadas as circunstâncias.
Aliás, situação idêntica já tinha sido equacionada, França ou Suécia, mas ficou no tinteiro, pelas mesmas razões.
O amor misturado com o egoísmo, sempre perspectivando a possibilidade de eu ficar na metrópole, o tempo todo.
E eu também não estava muito para aí virado, talvez mais por comodismo e também pensar que o ultramar acabaria por não me tocar, mas o pior aconteceu, um ano depois…
"Adolfo, nessa altura, como sou uns meses mais velho do que o Adolfo, já eu tinha uns meses de tropa e já estava no Casão Militar.
Eu tinha entrado em Abril de 69 e completei três anos em Abril de 72.
Comecei a trabalhar a seguir ao Verão."


caldas da rainha…

Oito da manhã de segunda feira, dia 6 de Outubro de 1969, data marcante: RI 5, aqui estou, meus senhores!
O que encontrei era o que me diziam, mais ou menos, mas não contava com tamanhas e frequentes filas, para isto e para aquilo, durante três dias, alternando com exercícios diversos.
Mas, confesso, nada que me metesse medo.
Como sempre detestei filas, andei à civil durante os três dias, para fugir às filas, embora tivesse de fazer alguns exercícios, vestido daquela maneira, os que não consegui evitar, e não era nada agradável.
Sempre que confrontado com aquela situação:
"Já não há o meu número e disseram-me para esperar.
Os meus colegas conseguiram, tiveram mais sorte do que eu."
"Colegas?! Aqui não há colegas, há camaradas!"

Aquilo mexeu com algumas células mentais e levou-me para cenários ideológicos, políticos, conotados com a esquerda, nada de acordo com os motivos e objectivos que me tinham sido impostos, levando-me para o serviço militar…
Terminados os três dias, já não tinha de andar em filas e acabei por receber as roupas e tudo o mais.
Nunca esquecerei aquela caserna, com frio das janelas que pareciam facas, com camas de ferro em beliche, colchões com recheio em palha, roupa nojenta, casas de banho, ou coisa parecida, com manchas por todo o lado.
Consegui arranjar um soldado que me tratava da cama, me pregava os botões, me engraxava as botas e limpava as instalações, sempre que me calhava em escala.
Tudo o que tinha de fazer, a contar para classificação, tentava que ficasse com nota média, pois pensava que poderia ficar cá, sem ter de ir ao Ultramar, segundo orientações que me tinham dado.

Uma coisa tinha de conseguir: não ficar no quartel um só fim de semana que fosse, e consegui!
Fácil: pagava a quem fizesse o serviço por mim, pois havia malta de longe, que não tinha interesse em ir de fim de semana e podia ganhar umas massas.
Assim foi acontecendo a recruta, com alguns momentos razoáveis, sempre com fins de semana na Figueira da Foz ou Lisboa, nem outra coisa eu poderia aceitar…
Já nos finais da recruta, Dezembro, um frio de rachar, e chegam as célebres patrulhas pela Serra do Bouro.

Nomeiam-me comandante de uma patrulha e lá vamos, estrada fora, até à Serra do Bouro, onde está escuro como breu, sem se conseguir perceber de que lado é a cidade, de que lado é o mar, pois os barquinhos de pesca nocturna, com as luzinhas, confundem-se com as luzes da cidade.
Cada passo, uma espécie de miragem, pois cada vulto parece uma casa, uma árvore, mas nada é o que se pensa ou imagina.
A certa altura, mesmo no cimo da serra, três militares, sem saberem quem são.
Afinal, eram três comandantes de patrulha que tinham perdido as respectivas patrulhas!
Falámos e conseguimos descer a serra até encontrarmos uma casita antiga, com uma luz muito ténue no interior.

Batemos e atende uma senhora idosa que logo nos oferece, além de um sorriso espontâneo e meigo, uma malguinha de café e um pedaço de pão saloio, uma verdadeira delícia!
Continuámos a descer até chegarmos à cidade, onde dispersámos, cada um seguiria um caminho diferente, até ao quartel, de forma a disfarçar o insucesso das nossas missões.
Eu, em vez de ir direito ao quartel, passei por um restaurante que conhecia, já fechado, mas lá estava alguém ainda a tratar de contas, a filha mais nova, que eu já conhecia, e me abriu a porta, mas logo se desfez em pedidos de desculpa por já não ter nada de comida feita, claro.
Consegui convencê-la a arranjar-me qualquer coisita, uns ovos mexidos, a única coisa possível e que muito agradeci.

Eu estava com a barba grande, de farda número três, a designada farda de trabalho, toda suja, de arreios, bornal, cantil, G3 e cartucheiras.
Ali estava eu, a conversar com a miúda, enquanto fazia os ovos, quando alguém bate no vidro da porta de entrada.
A irmã aparece, abre a porta e entra um indivíduo que logo me pergunta o que faço ali, àquela hora e naquele estado.
Respondo, naturalmente, que tinha estado em exercícios nocturnos e que estava de regresso ao quartel, mas tentando comer alguma coisita.
A outra faz-me um sinal, dando-me a entender qualquer coisa desagradável, logo, fiquei de pé atrás.
O indivíduo mandou-me sair, sem me deixar comer os ovos, e fazendo notar que era melhor assim.
Na dúvida, era melhor zarpar, o que fiz, sem pestanejar.

Voltando à nossa tentativa de disfarçar o insucesso da operação, o disfarce não pegou e fomos castigados, pois tínhamos perdido as nossas patrulhas, grave.
Castigo: banhos e massagens na estância balnear e termal da Foz do Arelho!
Ordem de partida do quartel, rumo à Foz do Arelho, a pé, uns bons quilómetros e, depois, várias vezes a percorrermos a praia de um lado para o outro, junto à água, carregados de material, e voltar ao quartel a pé, sem descanso - muito duro!
Só o percurso quartel - Foz do Arelho - quartel, cerca de vinte quilómetros.
Dois dias depois, passei pelo tal restaurante e perguntei à miúda quem era o namorado da irmã: um tenente do quadro do quartel RI 5!...

Terminada a recruta, desfile pela cidade e formatura na parada, de todas as companhias, perante a tribuna de honra, no edifício do comando.
Estamos formados e achamos alguma familiaridade em três dos oficiais que compunham a tribuna, mas era difícil descobrir porquê.
Discursam, discursam, até que se ouve um deles a enunciar uma lista de instruendos destinados a Lamego:
-………………
-………………
-Adolfo (…) Cruz
-………………
-………………

Eu fiquei de boca aberta e ansioso por poder perguntar o que queria dizer aquilo.
Logo que pude falar, mostrei estranheza e desagrado ao comandante do pelotão, o alferes Macedo, um alferes do quadro, rigoroso e duro, que me mandou calar, que era assim, e mais nada!
No final da sessão, falei com ele e perguntei como era possível ter sido seleccionado, dadas as minhas fragilidades e problemas de saúde.
Só me responde que estava tudo registado e eu tinha todos os exercícios com nota muito bom, embora os tivesse feito nos intervalos, para esconder as minhas capacidades, e que alguém esteve a seguir-nos, desde o início da recruta.

Resumindo: aqueles três oficiais que estavam na tribuna e nos pareciam familiares, andaram o tempo todo vestidos de trabalhadores da construção, em fato de macaco, misturados com os verdadeiros que faziam umas obras no quartel!

Não fiz mais nada e fui agarrar-me a um médico do quartel queixando-me de tudo e mais alguma coisa, nomeadamente, problemas de estômago, lesões na coluna e nas pernas, etc.
Afinal, já ninguém me tirava o ser atirador de infantaria e preferia ir para Tavira, fazer a especialidade, o que me daria uns bons momentos de Algarve, nada que se parecesse com o frio gelado do Norte, principalmente, naquela zona de Lamego, e com tempo de inverno.
"Teve razão em evitar a especialidade em Lamego, pois sempre ouvimos falar da violência dos treinos e preparação para o ultramar, além do frio e neve…"

Pois, mas já verá que não foi assim tão boa opção…


(Continua)
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Notas do editor

- Ortografia de acordo com o texto original

Vd. poste de 8 DE ABRIL DE 2017 > Guiné 61/74 - P17222: Tabanca Grande (431): Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 (Gadamael, Vicente da Mata, Ome (Bijemita), Quinhamel, Biombo e Bissau, 1970/72)... Grã-tabanqueiro n.º 740

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22765: Tabanca Grande (528): Victor Manuel Ferreira Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974). Senta-se no lugar n.º 855, à sombra do nosso poilão


Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Victor Manuel Ferreira Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72, com data de 27 de Novembro de 2021:

Camarada Luís Graça:

Há cerca de dois meses que tenho conhecimento desta vossa iniciativa e desde então que tenho seguido uma pequena parte das vossas publicações, mas nem preciso de ver mais para considerar este trabalho muito importante para que se escreva a verdade histórica sobre o que foi a Guerra Colonial e em particular na Guiné.

Não há em Portugal consciência da coragem manifestada por estes combatentes neste teatro de Guerra, apesar da insuficiência quer em quantidade quer na qualidade do nosso equipamento Militar, comparado ao do IN.

É também a nossa obrigação, darmos a conhecer aos nossos netos este período da nossa vida, resistirmos e denunciarmos a manipulação dos factos feita por alguns jornalistas sobre os nossos heróis com o intuito de apagar a história, nomeadamente o 25 de Novembro de 1975.

Todos nós temos opiniões diferentes sobre os vários temas abordados, mas ainda bem que é assim, da discussão nasce a luz e já temos idade suficiente para sabermos ouvir mantendo as nossas convicções.

Penso ter em meu poder alguns documentos classificados sobre o MFA na Guiné do período pós-25 de Abril, que ainda não vi publicados. Se acharem que o tema tem algum interesse, estou à vossa disposição para os dar a conhecer.

Sinto que pertenço a esta cruzada e pretendo entrar nesta casa desde que o permitam.

O meu nome é Victor Manuel Ferreira Costa, sou natural da freguesia de S. Julião da Figueira da Foz e resido na freguesia de Lavos do mesmo concelho, nasci a 17 de Abril de 1952, fui recenseado pelo DRM 12 de Coimbra, com o NM  01271573.

Fui incorporado em 26 de Abril de 1973 no RI 5 das Caldas da Rainha, que constam da minha Carta Militar.

No fim da recruta, fui transferido para o CISMI de Tavira, tendo completado o curso de Sargentos Milicianos de Infantaria na especialidade de Atirador de Infantaria e de acordo com a minha classificação passo à categoria de rendição individual.

Colocado no CICA 2 da Figueira da Foz, exerço a função de instrutor, durante 4.º Turno de 73 e o 1.º Turno de 74.

Mobilizado em 4 de Março de 1974 para a Guiné, beneficio de 10 dias de licença e no dia 16 de Março do mesmo ano, a bordo de um Boeing 727 da FAP, chego ao aeroporto de Bissalanca e daí em transporte rodoviário para Bissau, a fim de render um camarada Fur Mil, morto em combate na região de Bafatá.

Fico instalado no QG e aguardo ordens, que chegam uns dias depois. Fazer o espólio de guerra do camarada acima citado.

No final do mês de Março sou colocado na CCaç 4541/72 em Safim.

Nesta Unidade é-me atribuído o comando de uma Secção constituída por mim, 3 Cabos e 7 praças e dou início à minha actividade operacional realizando patrulhas e controlos em João Landim Sul, Impernal, arredores da BA 12 e Capunga. A Norte do Rio Mansoa no destacamento de João Landim Norte, segurança e patrulhas do Rio Mansoa até Bula.

Em Maio de 1974, fui eleito membro da Delegação do MFA na CCaç 4541/72.

Regresso à Metrópole a 3 de Outubro desse ano em avião da FAP.

Com os melhores cumprimentos,
Victor Costa


BI Militar


Certificado Internacional de Vacinação ou de Revacinação contra a Cólera
Declaração de passagem à disponibilidade a partir de 1/11/74

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Comentário do editor:

Caro Victor, sê bem-vindo à nossa tertúlia. Ficas no lugar n.º 855, bem à sombra do nosso poilão.  Ficas registado como Victor Costa, como podes verificar na coluna estática do nosso blogue, lado esquerdo, na  TABANCA GRANDE - LISTA ALFABÉTICA DOS 855 AMIGOS & CAMARADAS DA GUINÉ.

Quase, quase te libravas da chatice da guerra. Foste dos camaradas que fecharam o conflito, e daqueles que felizmente não sofreram uma sombra daquilo que nós os mais velhos sofreram. Ficámos felizes por isso.

Como dizes, queremos que o nosso Blogue, além de um repositório de memórias, seja um sítio onde se possa discutir abertamente o problema da guerra na Guiné, particularmente, sem prejuízo de se abordar genericamente o que se passou nos outros TO. Só pedimos às pessoas que respeitem as diferenças de opiniões. Une-nos o mais importante, o enorme rol de sacrifícios passados, a incerteza do regresso, o temor de cada passo dado, a fome, a sede, etc.

Aceitamos o teu desafio pelo que ficamos à espera que nos envies a documentação que tens e aches importante para retratar os últimos dias de guerra que antecederam a paz na Guiné.

Estamos ao teu dispor nos e-mails constantes na aba da nossa página.


Para ti, um abraço dos editores e da tertúlia.
CV

PS - Temos, no nosso blogue, duas referências a um camarada da tua companhia, o José Guerreiro, natural de Portimão, e que procura camaradas como tu... Será que te lembras dele? Vê aqui (**). 

Ele ainda não respondeu ao nosso convite para integrar a Tabanca Grande, tu és pois o único representante da CCAÇ 4541/72 que antes de ti andou pelo sul, pela região de Tombali: Caboxanque, Jemberém, Cadique, Cufar. O José Guerreiro tem conta no Facebool, desde 31/3/2010.
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Notas do editor

(*) Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22661: Tabanca Grande (527): António G. Carvalho, a viver em Ponta Delgada, ex-fur mil op esp, CCAÇ 2592 / CCAÇ 14 (Bolama e Cuntima, 1969/70). É Deficiente das Forças Armadas. Senta-se no lugar nº 853, à sombra do nosso poilão

(**) Vd postes de:

sábado, 6 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21976: Em busca de... (311): Ex-Soldados Instruendos do CSM - 3.º Turno de 1971, RI 5 - Caldas da Rainha, Luís Filipe Calado José da Costa e Luís Alberto Costa Pereira do 2.º Pelotão/5.ª Companhia (Carlos Jorge Pereira, ex-Fur Mil IOI)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Jorge Pereira, ex-Fur Mil IOI do COP 3, Bigene e Guidage, 1972/74, com data de 4 de Março de 2021, solicitando a publicação de uma foto do seu tempo de Recruta nas Caldas da Rainha na expectativa de encontrar os camaradas que estão retratados com ele:

Caro Carlos
Anexo fotografia tirada nas Caldas da Rainha em 4 de Agosto de 1971.
Assentamos praça no Curso de Sargentos Milicianos do 3.º turno de 1971, no 2.º Pelotão da 5.ª Companhia.


Caldas da Rainha, 4 de Agosto de 1971 > Da esquerda para a direita: Luís Filipe Calado José da COSTA, Carlos Jorge Lopes Marques PEREIRA e Luís Alberto COSTA PEREIRA.

Seguimos para Tavira e daí para o Ultramar.
Nunca mais soube deles. Não me recordo para onde foram.


Será que podes fazer uma publicação para tentar saber deles?

Um abraço
Carlos Jorge

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Nota do editor

Último poste da série de 31 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21715: Em busca de... (310): Hilário Peixeiro, capitão que conheci no Forte da Graça, em Elvas, em 1973/75 (João Rico, ex-fur enfermeiro)

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21272: Meu pai, meu velho, meu camarada (62): Lembrando, no centenário do seu nascimento, a popular figura do lourinhanense Luís Henriques, o “Ti Luís Sapateiro” (1920-2012) - Parte I



Lourinhã, jardim da Senhora dos Anjos, c. agosto / setembro de 1947 > 
Luis Henriques (1920-2012)  com o filho primogénito, Luís Graça,   
ao colo da mãe, aos 8 meses, Maria da Graça (1922-2014)   
Foto: arquivo da família.


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



Lembrando,  no centenário do seu nascimento, a popular figura do lourinhanense Luís Henriques, o “Ti Luís Sapateiro” (1920-2012) - Parte I



1. Figura muita popular e querida da sua terra, nasceu há 100 anos, na Lourinhã, em 19 de agosto de 1920 e morreu com 91 anos, os últimos cinco dos quais passados no Lar e Centro de Dia de N. Sra. da Guia, na Atalaia.

Devido à atual pandemia de Covid-19, a família e os amigos vão ter que adiar a singela homenagem que tencionavam fazer-lhe, no corrente mês de agosto, a 22, no centenário do seu nascimento.

Haverá no entanto um missa em Ribamar, Lourinhã, terra da sua avó materna, no próximo sábado, dia 22, às 18h30. Os familiares e amigos que puderem e quiserem comparecer (dentro do limite dos menos de 100 lugares disponíveis na igreja da paróquia de Ribamar) serão bem vindos.

Está prevista ainda, em tempo oportuno,a publicação, pela família,  de um pequena brochura, incluindo pequenos depoimentos daqueles que com ele ainda conviveram, nomeadamente filhos, netos e antigos jogadores do Sporting Clube Lourinhanense, das camadas mais jovens, que ele acarinhou, treinou e formou.  Haverá também um almoço de "confraternização" entre família e amigos, bem como um jogo de futebol entre antigos jogadores treinados por ele.

A família recordo-a, pelo "grande exemplo de vida que nos deu na sua passagem pela terra" e como "lourinhanense que amava a sua terra, as  suas gentes, a sua família"... "Conversador incansável que falava em verso, contador de histórias, que em todos via um amigo, apaixonado pelo futebol, pelos jovens que com amor treinou e ensinou, e com um coração enorme que sabia repartir por quem tinha menos do que ele" ("Alvorada",  7 de agosto de 2020, pág. 28).

Apresentamos hoje um breve resumo da sua história de vida que é também a história de  muitos portugueses da sua geração, mobilizados durante a II Guerra Mundial,  para defender a soberania portuguesa, nomeadamente nas ilhas atlânticas (Madeira, Açores e Cabo Verde)...

O jornal quinzenário "Alvorada", com sede na Lourinhã, na sua última edição (nº 1285. de 7 de agosto de 2020 , pp. 26-27), publicou um extenso texto, da autoria de Luís Graça e família, e que tomamos a liberdade de  reproduzir com as necessárias adaptações, acrescentando-lhe mais fotos e texto de um brochura em preparação.


Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > 1941 > Luís Henriques.
1º Cabo Inf da 3ª Companhia do 1º Batalhão do RI5. unidade mais tarde
integrada no RI 23. Foto:arquivo de família.


Luís Henriques (1920-2012), pai do nosso editor, Luís Graça, tem mais de 40 referências no nosso blogue, e nomeadamente na série "Meu pai, meu velho, meu camarada".

Era casado com Maria da Graça (1922-2014), doméstica.  Deixou, como descendentes, 4 filhos (Luís, Graciete, Maria do Rosário e Ana Isabel), 12 netos, 8 bisnetos. Era filho de Domingos Henriques Severino, natural do Montoito, e de Alvarina de Sousa, natural da Lourinhã, mas com raízes em Ribamar. 

Tinha raízes, pelo lado do pai, Domingos Henriques Severino, no Montoito, e pelo lado da avó materna, Maria Augusta de Sousa, em Ribamar. Ficou órfão, aos 2 anos, de sua mãe, Alvarina de Sousa, natural da Lourinhã.

O meu avô paterno, que ainda conheci na infância, terá morrido também com 91 anos. Usava muletas e fumava a sua “beata”: é a imagem que eu tenho dele. Dizia o meu pai que ele “tinha ficado mal das pernas por causa dos resfriados do  mar”:  como muitos agricultores das zonas ribeirinhas (Montoito, Atalaia, Areia Branca, Ribamar, Porto Dinheiro...), era também nos tempos livres um mariscador, dedicando-se à apanha tradicional de polvos e crustáceos.

Domingos Henriques Severino [, ou só Domingos Henriques,] foi homem de teres e haveres (, tinha “sete fazendas e três pinhais”, dizia-me o meu pai), tendo casado três vezes. Do primeiro casamento, não teve filhos: a esposa era de Torres Vedras, de uma família conhecida, os Fonsecas, ligada ao comércio automóvel; do segundo matrimónio, teve o meu pai (Luís Henriques, de seu nome completo),  e o meu tio (e padrinho de batismo), Domingos Inocêncio Severino, já falecido. É estranho os dois irmãos não terem o mesmo apelido, mas era frequente na época, um filho ficar com um primeiro apelido do pai (neste caso, Henriques), e outro filho ficar com o segundo  apelido paterno (, no outro caso, Severino).

Do terceiro casamento, o meu avô teve "uma equipa de futebol e um suplente", como dizia, com graça, o meu pai. Casou com um senhora que era mãe solteira, natural da Zambujeira ou Serra do Calvo. (Trazia pela mão o Manuel “Ferrador”, o “suplente”.)

De entre esses meios- irmãos, destaca-se o Afonso Henriques, o “Afonso das Bicicletas”, também figura popular na sua terra, pela sua paixão pelo ciclismo. (Tinha uma oficina de reparação de bicicletas e motorizadas, a Casa Osnofa,  na Rua Miguel Bombarda, nº 17)



Alvarina de Jesus Sousa: s/d, c. 1920.  
Foto: arquivo da família.


A mãe do meu pai era a Alvarina de Jesus Sousa [, foto acima], filha de Francisco José Sousa, da Lourinhã, comerciante de peixe, e de Maria Augusta, de Ribamar.

Morreu jovem, em 1922, de tuberculose, terrível doença da época, facto que  marcou o meu pai para toda a vida: a mãe nunca lhe pôde dar um beijo, punha-lhe apenas a mão, ou a ponta de um dedo,  na cabeça, na testa ou na face… (Pergunto-me: como é que um miúdo de dois anos pode ter essa recordação ?... Muito provavelmente, os tios contaram-lhe.)

E, nos seus três últimos dias de existência, em que eu tive o privilégio de o acompanhar no seu leito de morte, evocou o nome da mãe Alvarina,  por mais de um vez.

 


Maria Augusta de Sousa  (Ribamar, 1864- Lourinhã, c.1934). S/ d.

Foto: arquivo da família.

 

A sua avó materna, Maria Augusta, nasceu em 28 de outubro de 1864, em Ribamar, ou melhor, em Casais de Ribamar, hoje integrados na vila de Ribamar. Pertencia ao clã Maçarico: filha de Manuel Filipe e Maria Gertrudes. ( A sua ascendência está documentada até, pelo menos, a meados do séc. XVIII.)  

Veio a  casar na Lourinhã, com um peixeiro, Francisco José de Sousa (1864-1939). O casal teve 7 filhos.   Terá morrido com “cerca de 88 anos”, segundo o meu pai, ou seja no início dos anos 50, o que ponho em dúvida. Já li ou ouvi  algures outras datas: 1920, 1934…

O Luis Henriques, órfão aos dois anos, viveu nos primeiros anos de infância com a nova família do pai, que casou pela terceira vez. Ao todo teve uma dúzia de irmãos.

Fez a instrução primária (na época quatro anos de escolaridade) na velha Escola Conde de Ferreira,  (demolida pelo camartelo camarário antes do 25 de abril), sob a direção do saudoso Prof José António Simões Silva (1898-1964) que ainda conheci na minha infância e adolescência, pai do nosso conterrâneo Jorge Pedro e sogro da minha professora do ensino primário (da 2ª `4ª classe) e da admissão ao liceu, a dona Maria Helena Perdigão (, felizmente ainda viva).



Lourinhã, c. 1950/60: traseiras da escola Conde Ferreira, para rapazes (à direita) e raparigas (à esquerda). Edifício infelizmente demolido pelo camartelo camarário, "em nome do progresso"... 

Em segundo plano, a igreja matriz da Lourinhã (séc. XVII) e a sua torre sineira. Fazia parte do convento de Santo António (fundado em finais do séc. XVI). Em primeiro plano, junto ao muro do recreio da escola das raparigas, o urinol público... 


Foto: cortesia de Lourinhã Noutros Tempos, página do Facebook editada pela ADL Lourinhã - Associação de Desenvolvimento Local da Lourinhã




Lourinhã > Rua Miguel Bombarda, equivalente hoje ao nº 36 > 
Loja de Manuel Lourenço da Luz: Artigos Fotográficos…
Mas também vendia “fazendas de lã e algodão, chapéus e sombrinhas”… S/d. 


Foto: cortesia de Lourinhã Noutros Tempos, 
página do Facebook editada pela ADL Lourinhã - Associação 
de Desenvolvimento Local da Lourinhã

O seu primeiro emprego, em 1929¸ ainda com nove anos,  foi como… “máquina registadora e de calcular”, nas duas lojas do fotógrafo e comerciante Manuel Lourenço da Luz, que veio da Praia da Vieira (n. 1903), para a Lourinhã, na segunda década do séc. XX, e que foi pai do conhecido fotógrafo lourinhanense António José Ferreira da Luz (Foto Luz) (, mais tarde, estabelecido em Angola). 

Não sei em que circunstâncias ele foi trabalhar, depois de acabada a 4ª classe. Tinha apenas nove anos....Por um lado, era órfão de mãe e o pai tinha uma família numerosa a sustentar. Por outro, ele era “bom nas contas de cabeça”, razão por que terá sido contratado pelo comerciante Manuel Lourenço da Luz.

O meu pai recordava-se de, no verão, estar na loja da Praia da Areia Branca (, cujo plano de urbanização data dessa época, c. 1919/20), e de à segunda-feira ir com o patrão, caçar patos e perdizes, na foz do Rio Grande bem como ao longo do rio e nas dunas. (Essa loja situava-se na artéria principal na Praia, hoje Av António José do Vale, numa das primeiras casas térreas que se terão contruído nos anos vinte, ao lado do atual café Topa Mar, talvez no nº 40).

Tendo o seu pai casado pela terceira vez, e tendo este uma prole numerosa, aos 13 anos, por volta de 1933/34, o Luís Henriques terá uma nova família de acolhimento, a do seu tio materno, Francisco José de Sousa  Jr. (de alcunha, “Fofa”), industrial de sapataria e músico, membro da então Banda dos Bombeiros Voluntários da Lourinhã (, atual Banda da AMAL - Associação Musical e Artística Lourinhanense, cujo presidente da direção é um seu neto, Paulo José de Sousa Torres).

Aprende, como tio,  o ofício de sapateiro. É criado com os seus primos António Francisco Sousa, Carlos Andrade de Sousa e Maria de Lurdes Andrade de Sousa, “Milu” [, esta felizmente ainda viva; e todos eles com excelentes dotes musicais: o António tocava saxofone e fundou a primeira "banda de música ligeira” da terra,  o conjunto Sol Do Ré Mi, onde tocou, também, entre outros o Manuel “Swing” (, estava na moda, no pós-guerra, o jazz); o Carlos era um especialista em pratos na banda da Lourinhã; e a “Milú” uma bela menina de coro, mãe do atual diretor da AMAL, Paulo José de Sousa Torres)].

Curiosamente, o meu pai nunca teve inclinação por nenhum instrumento, se bem que fosse sócio e admirador entusiástico da Banda, e gostasse de cantarolar.

Em 5 de setembro de 1940, “vai às sortes”, é apurado para todo o serviço militar.

 Aos 20 anos assenta praça no Regimento de Infantaria nº 5 (RI 5), Caldas da Rainha, que ficava a trinta quilómetros de casa. Ia e vinha à Lourinhã, de bicicleta, aos fins de semana, por estradas ainda macadamizadas... Até aos setental e tal anos, andava, todos os dias de bicicleta, até ao dia em que as pernas comneçaram a falhar: tinha treino e constituição de atleta.

Em 18 de julho de  1941 parte para o Mindelo, Ilha de São Vicente, Cabo Verde, como expedicionário, com o posto de 1º Cabo de  Infantaria da 3ª Companhia do 1º Batalhão do RI5, que vai integrar, mais tarde,  o RI 23.  Namora já a futura esposa, Maria da Graça, que era natural do Nadrupe e que trabalhava  em Lisboa (e depois na vila)  como “criada de servir”.


Lourinhã > 5/9/1940 > “Os meus camaradas no dia das sortes”, lê-se no verso 
da fotografia Luís Henriques é o do meio, na fila de pé. 
Foto: arquivo da família


Caldas da Rainha > "15/7/41. A despedida das tropas expedicionárias  
de Cabo Verde. R.I. 5, Caldas da Rainha.   Luís Henriques"
 [1º Cabo Inf da 3ª Companhia do 1º Batalhão do RI5]. 
Foto: arquivo da família.

A viagem das forças expedicionárias do RI 5 (e de outras unidades)  foi no T/T "Mouzinho", da Companhia Colonial de Navegação,   com partida no Cais da Rocha Conde de Óbidos, conforme notícia do "Diário de Lisboa",  desse dia 18/7/1941.  Salazar, em pessoa, assistiu à cerimónia. O navio chegou ao Mindelo em 23/7/1941.



Diário de Lisboa (diretor: Joaquim Manso),
sexta-feira,  18 de julho de 1941, p. 5, 
 Cortesia da Fundação Mário Soares > Casa Comum > A
rquivos > Diário de Lisboa / Ruella Ramos.

As viagens dos nossos navios de transporte de tropas (T/T), para as diferentes partes do "império",  não eram isentas de risco... O oceano Atlântico foi palco de sangrentas batalhas durante a II Guerra  Mundial. Países neutrais como Portugal tinham de pintar os seus navios de pesca e da marinha mercante com gigantescas bandeiras e o nome do país nos cascos das embarcações. 

Os nossos navios eram frequentemente intercetados tanto pelos Aliados como pelas potências do Eixo (e em especial pelos alemães, cujos submarinos "infestavam" o Atlântico...). Onze navios, sob bandeira portuguesa, foram afundados, durante a II Guerra Mundial, entre 1940 e 1943, não obstante as embarcações estarem claramente identificadas como sendo oriundas de Portugal, "país neutral": 1 em 1940; 4 em 1941; 4 em 1942; e 2 em 1943.



Ilha da Madeira > Funchal > s/d [c. 1941] > "O Paquete Mouzinho. Oferecido 
pelo meu amigo [e conterrâneo, da Lourinhã] José B[oaventura] Lourenço [Horta] 
no dia em que o fui visitar ao Hospital em São Vicente. 26 de Julho de 1942." É provável que o José Boaventura Horta tivesse adquirido a foto a bordo. E, se não erro, o amigo do meu pai, meu conterrâneo e meu vizinho (no tempo em que vivi na Lourinhã, menino e moço) era da arma de artilharia (6ª Bateria Antiaérea do Grupo de Artilharia Contra Aeronaves) 
Foto: arquivo da família


Os portugueses, hoje,  não conhecem de todo  o enorme esforço militar, humano e financeiro que o país fez, na época da II Guerra Mundial, para garantir a soberania portuguesa nos territórios ultramarinos. Portugal manteve um exército  de cerca de 180 mil homens  nessa época. Em Cabo Verde chegou a temer-se a invasão dos alemães e dos italianos, dado o valor estratégico do arquipélago, à semelhança do arquipélago dos Açores, cobiçado pelos aliados.

Tal como no caso dos Açores (cuja guarnição militar foi reforçada com 30 mil homens), para a defesa de Cabo Verde, e sobretudo das  três  ilhas com maior importância geoestratégica, a ilhas de São Vicente, Santo Antão e  Sal, foram mobilizados 6358 militares, entre 1941 e 1944, assim distribuídos:  

(i) 3361 (São Vicente): 
(ii) 753 (Santo Antão);  
e (iii) 2244 (Sal). 

Mais de 2/3  dos efetivos estavam afetos à defesa do Mindelo (, ou seja, do porto atlântico,  Porto Grande,  ligando a Europa com a América Latina, a par dos cabos submarinos).

Só havia “vapor” (barco), com mantimentos e correio, de dois em dois meses… A saudade da terra era mitigada pela presença de diversos lourinhanenses, o furriel miliciano António Correia Caxaria (1917-2020), o Jaime Filipe, ambos da Atalaia, o Boaventura Horta, da Lourinhã, o Leonardo, da  Serra do Calvo, e outros,  que pertenciam à mesma unidade (RI 23, constituído na Ilha de São Vicente, 1941/44).

Numa época de elevado analfabetismo (, mais de 40% no grupo etário dos 20-24 anos, em 1940), sacrificava os seus tempos livres escrevendo dezenas de cartas por semana em nome de muitos dos seus camaradas. Aos 91 anos ainda se lembrava dos números de tropa (!) de alguns dos seus camaradas, e até das moradas (!) para onde enviava as cartas.

A seca e a fome que assolaram Cabo Verde nessa época, e que fizeram milhares e milhares de mortos [inspirando o romance de Manuel Ferreira (1917-1992), “Hora di Bai”, publicado em 1962, tiveram impacto na consciência de bom português,  bom cristão e bom lourinhanense, que era o 1º cabo Luís Henriques. O seu "impedido", o Joãozinho, que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e de doença, em meados de 1943.

Os antigos expedicionários de Cabo Verde desta época continuaram a encontrar-se durante muitos e muitos anos, até à década de 1990... O Luís Henriques  costumava ir aos encontros do 1º Batalhão do RI 5, nas Caldas da Rainha... até que as pernas começarem a falhar e a maior parte deles, dos seus camaradas, acabou por morrer. O mesmo se passava com os outros regimentos: RI 7 (Leiria), RI (11 (Setúbal), RI 15 (Tomar)... Cabo Verde, a sua “morabeza”,  ficou-lhes no coração para sempre...

(Continua)
___________

Nota do editor: