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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12000: Notas de leitura (516): "Le Naufrage des Caravelles", por René Pélissier (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
Esta capa de Pélissier não tem nada a ver com a Guiné, reproduz o forte de São José de Encoge (1759), em Angola, Pélissier estudou Angola a fundo.
A matéria deste trabalho prende-se com as consequências demográficas na guerra de guerrilhas, ele faz uma interpretação do que se passou na Guiné, com base nos dados das autoridades portuguesas e os apresentados pelo PAIGC.
Como se verá, ele não andou muito longe da verdade e não se deixou seduzir pelos cânticos das sereias.

Um abraço do
Mário


O naufrágio das caravelas, por René Pélissier

Beja Santos

“Le Naufrage des Caravelles, Etudes sur la fin de l’empire portugais (1961-1975)”, Editions Pelissier, 1979, reúne um conjunto de ensaios que o investigador publicou em diferentes periódicos entre 1967 e 1975, todos eles consagrados às colónias portuguesas em África. De um trabalho publicado em 1974 na Revista Francesa da História do Ultramar e intitulado “Consequências demográficas das revoltas na África portuguesa (1961-1970), ensaio de interpretação”, parece-nos interessante reproduzir algumas das suas afirmações sobre a situação então vivida na Guiné.

Ele recorda que ambas as partes na contenda usaram de propaganda para angariar apoios, por vezes sem nenhuns escrúpulos. Qualquer guerrilha leva a alterações demográficas, ao crescimento de alguns territórios em detrimento de outros, as partes em conflito brandem números sobre a população que se acolhe à sua causa. Neste trabalho, o autor não esconde que parte do postulado da validade das estatísticas portuguesas, considera que os recenseamentos portugueses constituem um ponto de partida particularmente sólido. E logo comparando as fontes portuguesas de 1960, em que se fala de uma população aproximadamente de 521 mil habitantes, refere dados exibidos por Basil Davidson em que a fonte do PAIGC refere 800 mil habitantes, em 1968, e não tem rebuço em dizer que as fontes dos nacionalistas têm tendência a empolar os efetivos das etnias que lhes eram favoráveis, minorando as que eram manifestamente opostas. E dentro desta comparação dos dados apresentados pela Agência-Geral do Ultramar e fontes do PAIGC, mostra como o PAIGC reduz a população Fula e Mandinga inflacionando a Balanta e a Manjaca. E adianta que o recenseamento de 1960 feito pelas autoridades portuguesas visava apurar com rigor por causa dos impostos e conhecer com exatidão possível a onda parava a mão-de-obra masculina.

A fuga de populações começou a ser um dado inicialmente menor entre 1961 e 1962, a partir de 1963 é a desarticulação na região Sul, com o tríplice efeito de concentrações na mata, em apoio ou com a coação do PAIGC, em fuga para as regiões fronteiriças da Guiné-Conacri ou com uma concentração à volta de povoados mais importantes como Aldeia Formosa, Bedanda, Tite, Buba, Catió, Cufar ou Gadamael Porto; este fenómeno da desarticulação com as inevitáveis consequências demográficas também se registou na região de Corubal, entre Xime e Xitole, portanto Leste, e afetou a região entre Mansoa e Bissorã (Morés) e Norte (região de Farim). É a partir daqui que se pode apreciar a evolução dentro dos conselhos e circunscrições: entre 1960 é incontestável o crescimento de Bissau e Bolama, de Bafatá, do Gabú e dos Bijagós e um decréscimo pode ser observado em Cacheu (muito ligeiro), em Mansoa, em Bissorã (relevante), São Domingos, em Farim (relevante), em Fulacunda (relevante) e em Catió (relevante). Os dados que dispomos sobre os refugiados no exílio não são suficientes. O alto comissariado das Nações Unidas para os refugiados só fez a recensão dos guineenses no Senegal, em 1971 considerou haver aqui cerca de 83 mil guineenses, mas nada se ficou a saber sobre os refugiados na Guiné-Conacri, e ignorou-se as comunidades guineenses de não refugiados residentes no estrangeiro. E para sermos rigorosos, uma população que vive no exílio não vive na dependência condicional do PAIGC.

Procurando analisar as consequências demográficas, Pélissier observa que o caso de Bissau tem a mesma analogia de qualquer capital de um país em guerra, procura-se segurança, trabalho. Bolama era uma ilha, dispunha de um centro militar, atraia recrutas e só era alcançável por mísseis. Os Bijagós, um pouco à semelhança dos Felupes, puseram-se à margem do conflito, igualmente que atraíram quem procurava segurança e atividades económicas. A estagnação demográfica de Cacheu tem a ver com o comportamento do chão Manjaco, uma certa fuga de população para o Senegal, até 1970 julgava-se, na ótica dos militares portugueses, que se recusaria o apoio ao PAIGC.

O Gabu, esse imenso concelho com uma longa fronteira com a Guiné-Conacri, contou com a hostilidade dos Fulas e as imensas reservas dos Mandingas, ambas as etnias não queriam embarcar na aventura coletivista nem desfazer-se de uma hierarquia do tipo feudal. Os territórios ditos sob o controlo do PAIGC (caso do Boé) eram áridos e com população muito reduzida. A região de Bafatá acolheu, tal como Bambadinca e o regulado de Badora populações inseguras e daí ter mais população em 1970 do que 1960. Aqui e acolá, Pélissier faz observações contundentes, por vezes o PAIGC afirmava controlar toda a região Leste, chegando ao ponto de incluir Contubuel em zona libertada, a estatística portuguesa referia, em 1970, cerca de 22 mil habitantes, o Xitole podia estar cercado por grupos armados mas de modo algum estava sob o total controlo do PAIGC.

Depois, na análise dos concelhos em baixa populacional, Pélissier refere as fugas para o Senegal, os litígios no rio Cacheu e o predomínio balanta onde, sobretudo em Farim, Bissorã e Mansoa, o PAIGC foi buscar o seu principal apoio. São Domingos aparece dividida entre o fator nacionalista, a presença muita próxima do Casamansa e a hostilidade Felupe, sobretudo. A sul do Geba, onde a implantação do PAIGC era inegavelmente forte, há a distinguir a razia demográfica em Fulacunda e Catió.

Que concluir? Há números que apontam para perdas superiores às migrações internas; há o bloco muçulmano das savanas do Leste, há os terrenos do tarrafo entre os rios Cacheu e Tombali. Portugueses e PAIGC guerrearam também com os números. Pélissier admite que em 1970, haveria no exílio 90 mil guineenses e 30 mil sob inteiro controlo do PAIGC e presume mesmo que este número poderá ser altamente contestado pelo PAIGC. É inaceitável falar-se de uma população de 800 mil habitantes e ainda por cima reivindicar o controlo de dois terços do território, a ser verdade isso significaria dominar mais de 440 mil pessoas, dez vezes mais que os números estabelecidos pelas fontes portuguesas. Como se saberá mais tarde, quando o PAIGC fizer recenseamento para as eleições da sua assembleia legislativa, os números apresentados não excederão os 80 mil eleitores.

Este estudo de Pélissier é hoje matéria para académicos, já não tem o trotil que se destinava a incendiar apoiantes e adversários. Dentro desta frieza, dá para apreciar o rigor que Pélissier usou nas suas considerações. E dá igualmente para refletir como estes trabalhos às vezes esquecem dimensões óbvias como sejam as melhorias sanitárias, a baixa da mortalidade infantil e, mesmo que conjuntural, o aumento da esperança de vida. As guerras guardam em si segredos que só podem ser revelados mais tarde: por exemplo, o estado sanitário dos britânicos melhorou consideravelmente durante o racionamento da II Guerra Mundial, menos açúcar, menos gorduras, etc. Os guineenses, a despeito do tumulto demográfico, não regrediram nas suas condições de vida. Mas isso é outra coisa que não vem ao caso neste trabalho de René Pélissier.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11993: Notas de leitura (515): "As Ausências de Deus", por António Loja (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11173: Bibliografia de uma guerra (68): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (2) (René Pélissier / Mário Beja Santos)

1. Lembrando a mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2013:

Queridos amigos,
Alguns meses atrás, recebi uma carta do Prof. René Pélissier solicitando-me livros e alguns contactos, ele continua indefetivelmente, infatigavelmente, a fazer recensões de livros em torno dos nossos conflitos coloniais. Daí nasceu a ideia, mais tarde, de sugerir a esta autoridade internacional na historiografia das nossas guerras que pusesse por escrito as suas reflexões sobre escritores e escritos de antigos combatentes.
Penso que este trabalho científico nos deve orgulhar e não escondo uma certa ufania em ter participado neste exclusivo que inclui fotografia inédita do historiador a mostrar leituras onde a Guiné é preponderante.

Um abraço do
Mário



Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (2)

René Pélissier

Um dos erros que um historiador não deve cometer, em absoluto, é o de a partir de uma dada situação num período preciso e generalizar conclusões. Cada mentalidade é uma ilha mais ou menos acolhedora ao leitor. Mário Beja Santos cultiva as relações humanas. É um autor que não nos vai ensinar muito sobre as operações militares. Ele não participa em grandes ofensivas. Não estará mesmo constantemente assediado pelos artilheiros cubanos do PAIGC. Vive num território onde a população não está ferozmente explorada por colonos brancos gananciosos, como em certas zonas de Angola ou Moçambique, o seu sector não é uma Disneylândia mas também não é o planalto dos Macondes nem a selva dos Dembos onde cada um sabe onde está o inimigo. Onde ele vive, há uma certa fluidez. O fator étnico, histórico e mesmo social deve ser sempre tomado em conta e nunca deve ser extrapolado à escala de todo um país em África. Uma das explicações da duração da resistência portuguesa à erosão nacionalista que, finalmente, a levará ao esgotamento, reside, apesar de tudo, no facto da guerra da Guiné ter sido conduzida no terreno por soldados oriundos de meios muito humildes, habituados à dureza da vida, e contra guerrilheiros ainda mais pobres do que eles, mas bem armados, cheios de esperança e bem aconselhados. Quanto aos portugueses, a sua esperança era a de regressar o mais rapidamente possível para junto dos seus entes queridos.

Nós estamos nos antípodas de uma guerra ultratécnica, de um lado, perante camponeses fanatizados (tipo Afeganistão e, mais longinquamente, o Vietname ou a Argélia) sem possibilidade de uma real aproximação humana, ao nível dos combatentes. Os portugueses estão condenados a perder, mas lentamente. E, sobretudo, esse sentimento está mais instalado na mente dos oficiais de carreira do que na superioridade esmagadora dos seus adversários. É uma guerra entre duas paciências.

De qualquer maneira, Mário Beja Santos é o autor que publicou mais livros sobre a Guiné: pelo menos cinco grandes volumes até ao início de 2013. E publicou-os através de editoras capazes de tocar um público numeroso. O mesmo não se pode dizer dos dois livros seguintes, seja qual for o valor literário ou documental destes títulos em apreço. Aqui, nós abordamos sem pudor uma questão delicada para um crítico, mas é preciso que fique claro. Para se vender bem um livro, é preciso que ele seja bem distribuído nas livrarias e que, no mínimo, haja bons contactos na comunicação social que permitam o conhecimento desta produção. Os autores-editores e os autores que pagam a um pequeno editor para que a sua obra seja publicada são, por vezes, bem-sucedidos a ganhar dinheiro quando apresentem um tema dito “do grande público”.

Infelizmente, as memórias da guerra colonial não fazem parte desse grande público, salvo honrosas exceções. O “grande público”, em todos os países, é um público de rebanhos que segue a moda ou em conformidade com o que se vê na televisão. Falar de Timor aquando dos massacres cometidos pelas milícias pró-indonésias era uma garantia de sucesso na época. Agora, seria sopa requentada numa panela velha: impensável! Ora, no contexto português atual, a guerra colonial da Guiné interessa a pouca gente, salvo precisamente os antigos combatentes, as suas famílias e os seus amigos. O que é insuficiente. Acresce, é preciso dizê-lo em muitos casos, os simples autores-editores não fazem nada para se fazerem conhecer, ou não têm meios para isso. Alguns limitam-se a dar algumas conferências em vilas de província, em reuniões de clubes, outros não ultrapassam o nível dos antigos camaradas das suas unidades militares, alguns mencionam um ISBN na ficha técnica mas não indicam o endereço ou as livrarias onde se podem fazer encomendas. Sei isto muito bem porque eu compro – ou muitas vezes procuro comprar – todos os anos dezenas de livros que as livrarias portuguesas não sabem mesmo aonde os encomendar. São livros fantasmas, desconhecidos das melhores bibliotecas estrangeiras e mesmo portuguesas. Ou sabe-se que eles existem, talvez, mas nunca lhes pomos a vista em cima.

O mínimo que devia respeitar um autor-editor seria fornecer nos livros e na publicidade à volta da sua obra, um endereço, seja postal, seja eletrónico, e responder aos potenciais compradores se ele não quer assegurar um serviço de comunicação aos raríssimos críticos que querem divulgar a obra. De igual modo, um jornalista ou um publicista deveria nas suas recensões dizer onde se pode obter a obra de que ele está a falar. Caso contrário, é amadorismo que revela uma ausência de confiança na qualidade do livro ou uma evidente falta de profissionalismo.

Pequeno ou grande, para mim, crítico e historiador, um livro desconhecido com uma tiragem de 300 exemplares tem o mesmo valor que um best-seller, se ele é original e me traz algo de novo, comparativamente ao que já foi publicado. Mas também é preciso saber que são muito raros os antigos combatentes que conhecem aquilo que já foi escrito, vai para uns três, cinco, dez anos antes, por um membro da sua própria unidade militar, a fortiori quando se trata de livros publicados por um autor que pertence a uma outra unidade. Cada um no seu pequeno cantinho faz, por conseguinte, a sua própria “cozinha” memorial, sem ir muitas vezes ao “restaurante” – uma biblioteca especializada, quero eu dizer – para comparar e verificar.

Compreendo que um avô queira deixar aos netos as suas memórias da guerra, dizer-lhes as experiências que teve, contar-lhe as operações nas quais ele talvez tenha participado, os seus estados de alma, as suas alegrias, a sua camaradagem com este ou aquele, mesmo os seus desesperos, a brutalidade do comandante, do inimigo, o seu horror face a crimes, os mortos, os hospitais, a rotina quotidiana, os seus medos, a imbecilidade de certos regulamentos, a sua indignação por o terem obrigado a deixar a sua aldeia ou o seu bairro, a vergonha de se ter sentido impotente ou manipulado, e mesmo – isto existe também nos textos de alguns antigos combatentes das tropas especiais – o seu sentimento de satisfação por terem pertencido a um corpo de elite e de se terem sentido “super-homens” durante alguns anos. Tudo isto é admissível, mas o que se destaca, sobre 10 ou 30 páginas, é a centésima versão da viagem para Bissau, Luanda ou Lourenço Marques, é que este material está muito longe de ser indispensável. Ou então que o autor seja um verdadeiro talento no campo do romanesco.

Entre os livros recentemente recebidos sobre a Guiné, assinalaremos ainda António Lobato, Liberdade ou Evasão. O Mais Longo Cativeiro da Guerra, 4ª edição aumentada, DG Edições, Linda-a-Velha, 2011, 277pp., fotos a preto e branco. Este livro foi inicialmente publicado pela Editora Erasmo, 1995, 214pp. com fotografias, analisei-o longamente (cf. René Pélissier, Angola-Guinées-Mozambique, op.cit, p.372), porque é um livro-documento importante sobre o tratamento dos prisioneiros portugueses e sobre a natureza da guerra praticada pela Força Aérea, Lobato acidentou-se em 22 de Maio de 1963, no regresso de uma operação na Ilha de Como. Como eu então cometi uma imprecisão, retifico-a agora. O autor, sargento da Força Aérea, não foi abatido diretamente pelos guerrilheiros, o seu avião simplesmente foi tocado em pleno voo. Ele pedira a um piloto de um outro T6 para verificar se o seu trem de aterragem não estava destruído, o outro piloto passou sob o seu aparelho. E foi durante esta manobra delicada que o avião do seu camarada colidiu com a hélice do avião de Lobato, este ficou ingovernável, o seu camarada despenhou-se e morreu enquanto Lobato aterrou numa bolanha de Tombali. Perderam-se assim dois aviões no dia 22 de Maio de 1963, Lobato foi feito prisioneiro, espancado, ferido e encarcerado em condições muito duras na Guiné-Conacri. Será libertado em 22 de Novembro de 1970 no decurso da operação Mar Verde, os Comandos Africanos assaltaram a prisão e trouxeram todos os prisioneiros portugueses que ali estavam. Na presente atualização da sua narrativa, em Fevereiro de 1999, Lobato foi convidado pelo Presidente ex-inimigo, “Nino” Vieira recebeu-o em pessoa em Bissau, tinha sido “Nino” Vieira a impedir que ele fosse mais mal tratado do que já tinha sido, no início do seu cativeiro: daí a adição de novas páginas (pp. 247-250) sobre este episódio menor mas sintomático da reconciliação. Assim, é necessário possuir esta 4ª edição.

É igualmente recomendado que se procure um romance histórico que decorre praticamente ao mesmo tempo que A Viagem do Tangomau…, op.cit.

Pensamos que Guilherme Costa Ganança, O Corredor de Lamel, 68 Guiné 69, 2ª edição, Chiado Editora, Lisboa, 2012, 418 pp., fotografias a preto e branco, é um romance autobiográfico que vem na sequência de outro volume, igualmente romanceado, sobre o período imediatamente anterior. Trata-se de um alferes da Madeira, da sua companhia, dos seus problemas com a hierarquia, dos seus amores epistolares e sobretudo das operações em que ele intervém em Contuboel, Bula, Cabedu, Catió e, finalmente, a partir de Farim, o famoso corredor de Lamel, que deve ainda hoje evocar muitas recordações. Uma das diferenças da Guiné relativamente a Angola é que o território sendo pouco extenso e o PAIGC militarmente muito mais ativo que a FNLA e o MPLA (e, acessoriamente, a UNITA) havia poucos sectores onde os portugueses viviam em calma ou segurança, com a exceção de Bissau e quatro ou cinco cidades do interior, nos Bijagós, e nos Felupes, e, de uma maneira mais compacta, na região dos Fulas. Dito de outro modo, à intensidade dos combates, à dureza do clima e à morbidade em geral, seria necessário juntar a raridade de sectores tranquilos para onde se podiam enviar as tropas para recuperação das energias. Na Guiné não havia Sá da Bandeira, Lunda, Bié ou vilegiaturas urbanas. A inquietação era geral e nós ainda não lemos uma só narrativa onde os soldados desmobilizados se tenham vindo a instalar na Guiné, situação que foi frequente em Angola e Moçambique. Era um Purgatório para todos e um Inferno para a maioria. Mesmo os ultrapatriotas ou os super-homens autoproclamados dos comandos, dos páras e dos fuzileiros só tinham em mira um objetivo: a peluda. Como é evidente, com o passar dos anos e com a juventude já no passado longínquo, certos autores não querem mais do que rememorar – seletivamente – os raros momentos em que eles estavam otimistas, mas se dispuséssemos de um corpus completo de todos os livros publicados pelos antigos soldados da Guiné, poder-se-ia estabelecer uma grelha de análise fina onde certamente se poderia constatar que as más recordações são mais frequentes que as reminiscências felizes. E isto ainda mais no Exército, em especial nos açorianos e nos madeirenses que foram enviados para a Guiné nos últimos anos da guerra.

Em última análise, todos estes autores (uma centena) não tiveram nem têm uma memória tão compassiva face aos guineenses como Mário Beja Santos que deve ter sido o alferes (1968 a 1970) mais atento à sorte dos seus homens, velhos e desesperados, vendo em que decrepitude caiu a Guiné, tal como ele a visitou em 1990, 1991 e 2010. Ele resumiu o quadro através de uma expressão fúnebre: “um buraco na escuridão” (p.509).

Tantos mortos, tantas esperanças para ter que ver um antigo coronel do PAIGC mendigar-lhe um saco de arroz.
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Nota do editor

Vd. poste anterior de 26 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11159: Bibliografia de uma guerra (67): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (1) (René Pélissier / Mário Beja Santos)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11159: Bibliografia de uma guerra (67): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (1) (René Pélissier / Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2013:

Queridos amigos,
Alguns meses atrás, recebi uma carta do Prof. René Pélissier solicitando-me livros e alguns contactos, ele continua indefetivelmente, infatigavelmente, a fazer recensões de livros em torno dos nossos conflitos coloniais. Daí nasceu a ideia, mais tarde, de sugerir a esta autoridade internacional na historiografia das nossas guerras que pusesse por escrito as suas reflexões sobre escritores e escritos de antigos combatentes.
Penso que este trabalho científico nos deve orgulhar e não escondo uma certa ufania em ter participado neste exclusivo que inclui fotografia inédita do historiador a mostrar leituras onde a Guiné é preponderante.

Um abraço do
Mário



Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (1)

René Pélissier

É com toda a franqueza que confesso ter hesitado em publicar esta pequena crónica num blogue de antigos combatentes portugueses na Guiné. E porquê? E, finalmente, como é que eu cheguei aqui? Antes de mais, não sou nem antigo combatente nem mesmo português, nem até alguma vez pus os pés na Guiné. Nem – nunca – alguma vez estive implicado em qualquer outro conflito tropical. Contento-me em estudá-los atentamente há mais de 50 anos, sempre que me interessam. Depois, procurando encontrar argumentos plausíveis, disse a mim próprio que os frequentadores deste blogue terão passado, na maior parte dos casos, de 20 a 26 meses no tarrafo e nas picadas da Guiné, enquanto eu, pura e simplesmente, passei mais de 4 intensos anos a escrever uma história da ocupação militar deste território. Isto não se compara com os sofrimentos suportados pelos jovens- ou menos jovens – soldados, sargentos e oficiais que arriscaram a sua pele e a sua saúde para defender, a despeito do que pensavam, um mito. Eles andavam nos Unimogs, procuravam detetar as minas, viviam em destacamentos fortificados, enquanto eu, no meu escritório, procurava,mas mais tarde (1984-1988) organizar centenas e até mesmo milhares de informações que poderiam ajudar a explicar porque é que eles tinham sido enviados para um país que lhes tinham dito ser Portugal mas que, a seus olhos, não tinha muitas semelhanças com os Açores ou o Minho. É um eufemismo da minha parte. Enfim, a minha qualidade de historiador da colonização portuguesa moderna em Angola, em Moçambique, na Guiné e em Timor, não era argumento suficiente para falar a pessoas que, como todos os antigos combatentes do mundo, gostam de se reencontrar para falar da sua história pessoal vivida no terreno, mas que têm pouco interesse pela história militar do passado.

Mas a minha segunda identidade de crítico de livros publicados por antigos combatentes é ainda mais conflituosa. Um historiador deve conservar uma distância profissional com o que estuda. É o mínimo de imparcialidade que se espera dele. Esta condição é raramente alcançada quando o historiador e os atores têm a mesma nacionalidade ou o mesmo credo político ou religioso que o autor e, pior ainda, quando as nacionalidades e as posições são antagónicas. Acreditem na minha experiência, os historiadores militares são quase sempre historiadores comprometidos. Veja-se como divergem as suas interpretações sobre Naulila, no sul de Angola, em 1914, na perspetiva portuguesa ou alemã. A mesma coisa para os combates de Cuíto Cuanavale (1987-1988), quando se é angolano, cubano, soviético ou sul-africano. Quando se quer passar uma determinada opinião sobre um acontecimento é certo e seguro que vai trazer descontentamento a dois, três ou quatro adversários, e, em primeiro lugar, às testemunhas que o viveram. Conhece-se a suscetibilidade – por vezes patológica – de autores e editores em geral, e a dos portugueses em particular; o ofício de crítico é o melhor meio de fazer inimigos e de se ver ligado a polémicas em cadeia. Detesto polémicas, mas não posso dizer o contrário do que penso se o livro é mau. Eu respeito o meu leitor e procuro não o enganar induzindo-o em erro. Graças a Deus, poucas vezes passo o meu tempo a falar das qualidades e dos defeitos literários dos autores. Não possuo as competências para tal, é coisa que não me diz respeito.

Enquanto historiador, o que me interessa é o valor documental, a sua pertinência, se possível a sua cronologia, se ela até se apoia num diário de operações. Desconfio da memória, se bem que aprecie a exposição de estados de alma para conhecer o ambiente local num dado período, os ajustes de contas pessoais, as críticas ad hominem entre “camaradas” não me entusiasmam. Em contrapartida, as críticas que incidem sobre a condução das operações ou as insuficiências deste ou daquele oficial são preciosas. Os casos mais notáveis são os que se referem a Spínola na Guiné, genial, corajoso e visionário para uns, insuportável, pretensioso e péssimo estratega para outros.

Em suma, a minha dupla identidade de historiador africanista e de Timor, por um lado, consumidor de literatura memorial e, por necessidade, divulgador de novas perspetivas com vista a uma hipotética história da última guerra colonial portuguesa, por outro lado, não me predispõe para falar de novidades num fórum ou num ambiente de camaradagem em que os elogios mútuos são muitas vezes a regra de ouro.

Acontece que vocês me estão a ler no vosso blogue. Quem venceu as minhas hesitações foi Mário Beja Santos, que eu nunca encontrei e tem, pelo menos, um editor (Temas e Debates e Círculo de Leitores) que nunca se dignou a enviar-me uma só informação ou livros para recensão, provavelmente porque eu escrevo geralmente em revistas que não têm impacto sobre as grandes vendas, e outro editor (Âncora Editora) que nunca mais me enviou nenhum livro talvez por ter sido demasiado crítico a propósito de um dos seus autores, ou, sabe-se lá, porque os livros estão muito caros.

Suponho, observador longínquo da cena mediática portuguesa, que Mário Beja Santos goza de alguma notoriedade em Portugal. Em todo o caso, não foi a sua posição social que me decidiu a ultrapassar as minhas reticências iniciais, foi, acima de tudo, o facto de que ambos praticamos em dose elevada o mesmo ofício: o da crítica de livros ultramarinos e porque ele é, tanto quanto sei, o primeiro em Portugal a ser bem-sucedido com uma iniciativa espetacular: a de coligir em volume dezenas e dezenas de resenhas e longos comentários, que publicou em diferentes meios de comunicação social, por os ter classificado em categorias (romance e conto; memórias; ensaios; poesia; reportagem; história; diários), sintetizando-os e classificando-os pela sua devida importância. E, finalmente, encontrou um editor (Âncora Editora), bastante corajoso e profissional para publicar o resultado final (Mário Beja Santos, Adeus, Até ao meu Regresso, Âncora Editora, Lisboa, 2012, 408 páginas).

Sem qualquer adulação da minha parte, considero, enquanto autor precursor com três recolhas de (cerca de 3000) recensões de livros espalhados por uma cinquentena de revistas e jornais publicados numa meia dúzia de países(1) , que Adeus, até ao meu Regresso é não só um livro indispensável para todos os antigos militares que combateram na Guiné, mas que deveria estar disponível pelo menos em 100 bibliotecas universitárias ou públicas portuguesas. E porquê? Porque o autor enfatiza a necessidade de estudar seriamente este ramo da literatura portuguesa, não só para satisfazer os antigos combatentes que a sociedade atual tende a esquecer e mesmo a desprezar, ou a denegrir em certos casos, mas também porque, pela primeira vez depois dos Descobrimentos e até ao século XVII, esta literatura exótica tornou-se parte integrante da história portuguesa, não se pode ficar indiferente à abundância destas publicações. Se se comparar o número de livros publicados em Portugal sobre a Guiné entre 1840 e, digamos, 1940, com o número de publicações de essência guineense aparecidas depois da guerra colonial, é fácil concluir que a explosão atual anuncia, pela primeira vez, a entrada desta Guiné nas preocupações de muitos portugueses.

Com efeito, é o fator colonial a corpo inteiro e as suas desditosas realidades que penetram nas casas de centenas de milhares de famílias, tanto as dos antigos combatentes como as dos retornados de Angola e Moçambique. Mesmo se eles não comprarem muitos livros, o fenómeno durará muito após o desaparecimento dos protagonistas e provavelmente durante, pelo menos, a geração que está para vir. Veja-se o que se está a passar com o impressionante movimento editorial francês que invade atualmente as livrarias com recordações e estudos referentes à I Guerra Mundial.

Mas regressemos a Mário Beja Santos, pondo-lhe uma questão ligeiramente impertinente. Se ele tivesse publicado há 50 anos um livro sobre a Guiné ele teria posto “do Tangomau” no seu título? Vejamos o que nos diz a 11ª edição do Grande Dicionário Português/Francês de Domingos de Azevedo, 1998. “Tangomau”, V. “Tanganhão”. “Tanganhão” = 1º) [Mercador de escravos]; 2º) [Negociante de gado, vigarista, adelo, vivaldino]. Mário Beja Santos, defensor do consumidor, a vender escravos em África? Impossível.

Historiador da Guiné, sei e já o sabia, o que a palavra quer dizer na Senegâmbia, mas o grande público e os próprios autores do dicionário não sabem. Eu quero provar, neste caso, que uma aceitação tão pejorativa do termo era corrente no regime de Salazar, mas agora que África é menos estranha à população letrada, pôr o sentido guineense do termo no título de um livro destinado a uma vasta difusão não choca ninguém. Estando o Império morto há mais de uma geração, assistimos à africanização da língua. Paradoxo da História.

Por conseguinte, Mário Beja Santos, A Viagem do Tangomau. Memórias da Guerra Colonial que Não se Apagam, Temas e Debates, Círculo de Leitores, Lisboa, 2012, 518 pp. é uma espécie de livro-balanço que começa pela narrativa de um estudante politicamente vigiado, se bem que simplesmente cristão de esquerda, que foi obrigado a sair da universidade para ser transformado num futuro alferes, será punido e afetado à colónia mais perigosa para a sua saúde física e mental. Evidentemente que falo da Guiné.

Amigo de Teixeira da Mota (o oficial de Marinha historiador que acabará a sua carreira como almirante e com quem eu encarei a hipótese, um pouco antes do seu falecimento, de coordenarmos um livro em 5 ou 6 volumes sobre a história colonial integral de Portugal, obra que não existia nos primeiros anos após a queda do antigo regime), o nosso autor embarca para África, e, se eu entendi bem, apaixona-se pela Guiné e pelas populações com quem convive. Não é um caso excecional na literatura dos antigos combatentes, mas não é, de facto, a norma. Não vamos segui-lo nas suas deambulações, mas não devem ter sido muitos os jovens oficiais que frequentavam o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa entre duas consultas no Hospital Militar de Bissau. Que pena que a minha História da Guiné (Editorial Estampa) tenha aparecido em 1989, 20 anos demasiado tarde para que ele tenha podido andar com ela. Ele teria visto que estava numa zona de rebeldes (o Cuor) à dominação portuguesa, no princípio do século XX.

Após o termo da guerra, ele regressará por três vezes à Guiné (1990, 1991 e 2010), irá rever os antigos combatentes da milícia e os caçadores nativos que comandou no seu tempo de alferes. E aqui as coisas tornam-se sombrias no livro: execução dos “traidores”, deliquescência, afundamento da economia, etc. Este “caderno de um regresso ao país quase natal” não se aconselha a toda a gente, mesmo a um leitor sentimental. Retrospetivamente, a idade de ouro era talvez o tempo dos portugueses, pelo menos para os que estavam do seu lado.

(continua)
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(1) Cf. René Pélissier, Africana. Bibliographies sur l’Afrique Luso-Hispanophone (1800-1980), 1981, 206p ; Du Sahara à Timor, 700 Livres Analysés (1980-1990) sur l’Áfrique et l’Insulinde Ex-Ibériques, 1991, 350p. ; Angola-Guinées-Mozambique-Sahara-Timor, etc. Une Bibliographie Internationale Critique (1990-2005), 2006, 748 p. 

Estas três obras descrevem cerca de 3000 livross e brochuras publicados em 20 línguas, em que uma cinquentena de páginas é dedicada a Portugal. Só para a Guiné, considerada individualmente, esta três obras referem 167 livros e para a Guiné inclusive nas obras existem muitas páginas, cerca de 200 outros livros. De acordo com uma sondagem feita pela Porbase, dois terços destes 367 títulos estão ausentes das bibliotecas universitárias ou públicas portuguesas, incluindo a Biblioteca Nacional de Lisboa. Estes três livros foram publicados por Éditions Pèlissier, 78630 Orgeval (França), viapelbooks@wanadoo.fr
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 20 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10969: Bibliografia de uma guerra (66): A morte de Amílcar Cabral no livro "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu" (Manuel Luís Lomba)

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10485: Notas de leitura (414): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
O segundo e último volume da história da Guiné de René Pélissier abarca a última década do século XIX até à última campanha de pacificação, em 1936. Temos, pois, o período da confirmação de fronteiras, das dolorosas guerras de Bissau, das guerras luso-mandingas e de um interminável número de expedições por todo o território, ficando bem claro que mesmo com a chegada da República a vida dentro de Bissau não era segura; as campanhas de Teixeira Pinto irão revolucionar o modo de relação ente animistas e muçulmanos e a autoridade portuguesa.
A bibliografia citada por Pélissier é gigante, fica-se com a quase certeza que demorará muito tempo a aparecer um investigador como ele.

Um abraço do
Mário


A história da Guiné por René Pélissier (3)

Beja Santos

A seguir à Convenção Luso-Francesa (1886) as fronteiras do enclave conhecido poe Guiné portuguesa ficam praticamente definidas (haverá campanhas de demarcação), impunha-se uma ocupação efetiva do território, a celebração de acordos de paz com etnias recalcitrantes, a compra de vassalagens e a exploração de alguns conflitos interétnicos. No princípio, tudo se revela difícil: os Papéis à volta de Bissau andam constantemente agressivos, Mussa Molo, diretamente ou por entreposto agente, devasta até ao Geba, o que leva a que, em Janeiro de 1892, Sousa Lage vá à frente contra Mali Boiá, a expedição sobe ao regulado de Mancrosse, arrasam-se tabancas e seguem depois para Mansoná, prossegue-se para Gussará, a resistência é mínima, a coluna sairá vitoriosa e depois regressará a Geba. Mas Mussa Molo não cede, ele detém o poder real no Alto-Casamansa, é o senhor do Firdu, também no Casamansa. Em 1893, Mussa Molo pede ao comandante de Farim para atravessar o posto e o rio a fim de fazer a guerra na região do Geba, parece uma fanfarronada, de imediato vêm canhoneiras defender Farim e travar as ambições de Mussa Molo. As autoridades portuguesas pedem às autoridades francesas para porem cobro às ameaças de Mussa Molo. O torno luso-francês está em marcha para esmagar este dirigente insubmisso, incómodo para as duas partes. Prosseguem as guerras em Bissau, dispendiosas e em que as populações dentro da fortaleza estão permanentemente inseguras. A autoridade portuguesa alarga-se no final do século. Em 1896, há postos militares em Geba, São Belchior, Sambel-Nhanta, Contabane, Cacine, Bolola, Cacheu, Farim e Buba. Com êxito, procede-se contra os manjacos de Caió. Em 1897, parece que se pôde obter a paz contra os Mandingas e os Soninquês. É o exato momento em que Infali Soncó, régulo do Cuor, ganha posições e pretende fechar o Geba ao comércio dos portugueses. Infali Soncó será uma permanente dor de cabeça até 1908, altura em que uma expedição militar de grande envergadura porá o régulo em fuga.

As campanhas militares serão uma constante até 1936: o governador Júdice Biker lança-se no Oio contra os Soninquês e consegue impor o imposto de palhota (1902), o Oio fica aparentemente domesticado; haverá frequentes expedições contra os Papéis e de repente surge um aventureiro senegalês ao serviço dos portugueses, Abdul Indjai, irá revelar-se um fiel apoiante de Teixeira Pinto mas mais tarde será deportado devido aos seus excessos; o governador Muzanty fará uma expedição aos bijagós e depois ao Cuor, segue-se a campanha de Badora contra o Beafadas e também contra os Beafadas do Quinara, por fim contra os Felupes de Varela. René Pélissier traça o quadro dfe Adbul Indjai esse mercenário tão complexo: inicialmente foi um comerciante ambulante que passou por Ziguinchor; terá entrado na Guiné em 1894, ao serviço de uma casa francesa e depois apresenta-se ao lado do governador Sousa Lage; parece ter-se ficado em Geba no início dos anos 1900, encarregando-se de fazer com que o imposto fosse pago pelos Soninquês; teria um bando de senegaleses ao seu serviço e ter-se-ia instalado no Ganadu de onde pilhava aldeias de Mandingas e Fulas; em 1906 foi deportado durante ano e meio para São Tomé pelo governador Muzanty; perdoado, teria regressado à região de Geba, onde foi alistado na campanha de Muzanty contra os Beafadas de Badora e do Cuor; corajoso condutor de homens, era um senhor da guerra em toda a acepção do termo; com os sucessos do Oio e a fuga de Infali Sonco, Muzanty nomeou-o régulo do Oio e do Cuor.

É neste contexto de campanhas intermináveis, de embaraçantes guerras fiscais, de operações contra os balantas, e tendo ocorrido a queda da monarquia e o aparecimento da República, que René Pélissier elenca um conjunto de factos de importância indiscutível: a criação da liga guineense, formada por notabilidades, comerciantes que reclamavam uma maior autonomia, atraindo para a sua causa funcionários e profissões liberais; com a República e o reconhecimento do direito à greve, ocorrem greves logo em Junho de 1911, em Bolama; persistindo as sublevações, repensa-se um plano de conquista e o capitão João Teixeira Pinto (1913-1915) entrou em ação. René Pélissier diz a seu respeito: “Não veremos em Teixeira Pinto um brilhante produto de uma escola de guerra pois que, sem grande diferença, retoma os métodos de todos aqueles que tiveram de se bater com a ajuda de irregulares na Guiné, desde Marques Geraldes em 1886, Sousa Lage, em 1891-1892, Graça Falcão em 1897 e, em certa medida, Júdice Biker, em 1902, no Oio. Onde a sua superioridade se anuncia com mais clareza é na sua minúcia e na sua perseverança. Além disso, beneficia de 3 circunstâncias favoráveis e de um trunfo inestimável: a) o seu teatro de operações está inteiramente circunscrito entre os rios Cacheu e Geba, de onde uma centralidade colonial que lhe evita fricções com os Franceses e encurta singularmente as suas linhas de abastecimento; b) chefe de um Estado-maior de um governador pacífico (Carlos de Almeida Pereira) a quem tem de forçar a mão; c) tem muito poucas tropas, mas alguns bons oficiais e, sobretudo, sabe encontrar e utilizar chefes de mercenários à altura das suas aspirações. A esse respeito, um Abdul Indjai ou um Mamadu Sissé vão compensar pela sua coragem e pelo seu ascendente a fraqueza dos efetivos portugueses; d) obsidiado por uma ideia fixa: ser o liquidador das bolsas animistas, não tem naturalmente muitos escrúpulos em utilizar os islamizados contra esse reduto insubmisso”. Segue-se a descrição das diferentes campanhas de Teixeira Pinto que culminam com a pacificação da Península de Bissau, tudo termina com a rendição de Biombo em 20 de Julho de 1915.

Teixeira Pinto é chamado à metrópole e inicia-se um período que vai levar à prisão de Abdul Indjai, ocorrem novos focos de revoltas, em 1915 Calvet de Magalhães manda construir a primeira pista rodoviária de Bafatá a Bambadinca e em 1921 surge um governador que deixará rasto, Velez Caroço. O autor designa-o por um verdadeiro mouro de trabalho e obnubilado pelo exemplo do general Norton de Matos em Angola. Será ele quem transformará a Guiné fluvial numa Guiné terrestre: rasgam-se caminhos para Farim, Bafatá, Cacheu e destas para além fronteiras. É um tempo febril de construções no sertão, Velez Caroço é um homem de estradas e pontes. Não obstante, no seu tempo ocorre uma sublevação dos balantas de Nhacra, prontamente sufocada. Velez Caroço adverte que não contemporizará com quaisquer sublevações. Em 1925 obriga à submissão os Bijagós rebeldes.

Chegou o período da Ditadura Nacional, o sucessor de Velez Caroço é Leite de Magalhães, antigo governador do Cuanza Norte, as últimas rebeliões serão sufocadas, com destaque para a dos Felupes de Susana. Parece que se chegou a um clima de aceitação do poder português: cobram-se impostos, criam-se estradas e pontes, e em 1936 o autor regista um problema de fundo, o relacionamento entre os portugueses metropolitanos na Guiné e os cabo-verdianos, os brancos dizem abertamente que estes cabo-verdianos instruídos têm uma mentalidade de guarda de forçados das galés em relação aos negros. A tal propósito escreve o autor: “A Guiné volta a ser uma colónia de Cabo Verde, ou melhor, de certos cabo-verdianos, bem mais claramente que durante o período de 1879-1909. Em 1936, metade dos funcionários de craveira média são cabo-verdianos. Nos 6 mil civilizados e assimilados da Guiné, em 1933, avalia-se que mais de metade são cabo-verdianos”.

Em 1936, com a 4ª e última campanha de Canhabaque, nos Bijagós, chegou oficialmente a pacificação. A Guiné irá ficar ordeira até à luta armada, em 1963. Entretanto, com o pós-guerra, a Guiné irá conhecer uma fase de franco desenvolvimento graças a um governador de exceção, Sarmento Rodrigues. Mais adiante, recorrendo ao trabalho de António Duarte Silva, iremos falar desse tempo.
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Nota de CV:

Vd. postes da série de:

28 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10447: Notas de leitura (412): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (1) (Mário Beja Santos)
e
1 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10462: Notas de leitura (413): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10468: Carta aberta a... (8): Meu amigo português de Cufar, António Graça de Abreu (Cherno Baldé)

1. Mensagem de 1 de outubro, do Cherno Baldé, em resposta á cara aberta do AGA, no poste P10448 (*)

 
Caro amigo Luís Graça,

O título desta carta, ficava melhor assim: Carta aberta ao meu amigo Guineense (Cherno) Cufar... (Baldé), porque não creio que ela seja endereçada a mim, pois o mais provével é ter o AGA [, António Graça de Abreu], o grande vencedor, ter feito esta carta para se exorcizar ou melhor reconciliar-se com os seus fantasmas de Cufar que, pelos vistos,  continuam a incomodá-lo.

Primeiro, porque eu não sou propriamente um militante anti-colonialista visto que, feliz ou infelizmente, tanto eu como os meus familiares próximos e longínquos, não aderimos a luta anticolonial, bem ao contrário. 

Em segundo lugar,  não sou dos que vêm a história e o mundo a preto e branco pois, ainda criança, desafiei tudo e todos ao quebrar, por iniciativa própria, todas as barreiras sociais e culturais levantadas pela nossa gente para de seguida atravessar os arames farpados levantados à volta dos soldados portugueses e partilhar com eles momentos de alegria, tristeza, medo e angústias ,próprios de uma guerra sem rosto que não poupava a ninguém. 

Parece-me que entre o lúcido e comedido AGA que escreveu o Diário da Guiné e o ultranacionalista e super-herói "vencedor" AGA que agora se nos apresenta neste Blogue, há uma grande diferença. 

De resto, não estou interessado em alimentar controvérsias a volta de manifestações de um patriotismo tardio, ainda que tenha, também, por ele todo o respeito deste mundo.

No post da tua autoria (*), o sentido das minhas palavras ficou incompleto sem a inclusão da última parte do meu comentário, pois embora tenha reconhecido que nem sempre concordei com a linguagem utilizada pelo historiador [, René Pélissier,] , no fim acrescento que factos são factos e que não adiantava tentar tapar o sol com as mãos, o que significa que posso concordar com o conteúdo e não estar, necessariamente, com a forma. 

Mas, é como dizem: uma vez jornalista, é-se jornalista para sempre. 


Um grande abraço,
Cherno Baldé
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segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10462: Notas de leitura (413): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Continuamos à volta da história da Guiné, de René Pélissier, seguramente uma das obras incontornáveis para o estudo da Guiné entre 1841 e 1936.
Importa esclarecer que há muitíssimo pouco acerca do período pré-colonial (a grande exceção é a tese de doutoramento de Carlos Lopes intitulada “Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais”, de que falaremos oportunamente), segue-se a história da Guiné de João Barreto (muito ultrapassada), a história da Guiné portuguesa de Teixeira da Mota (obra fundamental), temos depois René Pélissier e haverá que ter em conta os trabalhos de António Duarte Silva e a guerra da Guiné propriamente dita em que o livro do coronel Fernando Policarpo é indispensável.

Um abraço do
Mário


A história da Guiné por René Pélissier (2)

Beja Santos

René Pélissier é seguramente, tal como Teixeira da Mota, a referência obrigatória para o estudo da história da Guiné, no período colonial. É patente que o século XIX foi de grande turbulência: ficou esclarecida a dimensão do território, confinado a uma fração do que fora a Guiné de Cabo Verde dos séculos XVI-XVII, que começava na foz do Senegal e ia até à Serra Leoa; na primeira metade do século, portugueses e lusitanizados vivem junto aos rios, em tensões com as populações nativas e a presença de outros concorrentes estrangeiros; a perda do tráfico negreiro irá alterar a atividade comercial; todo o trabalho de interiorização irá custar sucessivas campanhas que se prolongarão até 1936. Como é óbvio, ainda há outros factos a anotar, como é o caso da separação completa da Guiné de Cabo Verde, a despeito de metade dos funcionários administrativos serem provenientes do arquipélago.

As insurreições à volta de Bissau são uma constante, ainda na primeira metade do século XIX; mas também em Cacheu e mais esporadicamente no Geba. O autor documenta rigorosamente todos estes conflitos, hostilidades e insubordinações, deixa bem claro como é frágil e poroso o domínio territorial. Por vezes, os contingentes militares têm que pedir auxílio às forças estrangeiras.

“À imagem das suas superfícies contraditórias e imaginárias, a Guiné de Cabo Verde, antes de 1879, é o império das incertezas. Incertezas não só na sua extensão, mas na sua própria existência. Como, efetivamente, conservar feitorias que se esboroam e cuja vida económica está dependente, exclusivamente do estrangeiro, a sobrevivência política dos socorros pedidos ao exterior e a identidade de uma crioulização de geometria variável?”. A tão inquietante pergunta procura responder o historiador. Queixa-se da falta de documentação, mas é possível identificar os vários nomes de maior influência história: Caetano José Nosolini e Honório Pereira Barreto, não se poderá entender a diplomacia a apagar fogos juntos dos grumetes de Bissau e de Farim, a travar as perturbações no Geba, nos conflitos internacionais que vão envolver Bolama e a região do Casamansa, a intervenção francesa em Bissau, o florescimento do amendoim no rio Grande de Buba, sem a atividade destes dois proprietários, que muito provavelmente tiveram comércio negreiro. A segunda metade do século XIX, eles vão estar presentes no combate às perturbações, de Norte a Sul da colónia, e fazendo frente à avidez de franceses e britânicos. Até agora acantonados à volta de Bissau, Cacheu e Geba, os portugueses lançam-se no Geba e hasteiam bandeira em Bambadinca, Fá e Ganjarra, isto a um tempo em que os Papéis se vão sublevar no Norte e que surge outro fenómeno inquietante que as autoridades portuguesas não têm capacidade para controlar, as invasões Fulas no Gabu (a grande batalha de Kansala ou Cam-sala terá ocorrido em 1864 e representa a perda de poder dos Mandingas a favor dos Fulas.

Entrou-se assim num período de ameaças estrangeiras, da exploração económica do Rio Grande de Buba (comércio do amendoim), de expedições contra os Papéis do Norte e de uma clarificação dos estabelecimentos portugueses. Em 30 de Dezembro de 1878 ocorre o desastre de Bolor, uma significativa derrota do exército na Guiné e em que os vencedores são os Felupes de Jufunco. Em 18 de Março de 1879 o distrito da Guiné será desafetado da província de Cabo Verde. Dali em diante, a Guiné torna-se numa verdadeira província com um governador totalmente independente do governador-geral na Praia. A lição tirada do desastre de Bolor é de que as autoridades têm mesmo de avançar e ocupar território. O autor recorda que em 468 meses (1845-1878) o Exército e a Marinha portugueses combateram pelo menos 9 vezes, não tendo aí resultado o domínio do território. Se até agora o importante era manter a alfândega, a ideia de ocupação é um princípio vital, segue-se um período em que a Guiné está permanentemente em armas. Já não chega as concentrações comerciais em Ziguinchor, Cacheu, Farim, Bissau, Geba e Bolama, a fronteira francesa parece querer asfixiar tudo. Enviam-se destacamentos para os Bijagós, para o Rio Grande de Buba, para o Geba e mais acima, no Casamansa. A despeito desta ofensiva, da procura de ganhar posições no Sul da Guiné, haverá uma vitória dos Beafadas contra os portugueses em Jabadá, os incidentes franco-portugueses no Casamansa será uma constante e é neste período que ganha notoriedade o alferes Marques Geraldes, um militar que terá sido o primeiro a percorrer a Guiné desde o centro até ao Casamansa, praticamente sozinho, o que lhe granjeará um enorme prestígio. Ao tempo surge um problema inesperado na fronteira do antigo Gabu, ocupado pelos Fulas-Pretos. Um insurgente, Mussa Molo, começa a praticar razias junto dos Beafadas, toda a região do Geba vai entrar em convulsão. É por esta época também que a região do Cuor passa a ter importância dado que aqui se assegura ou se corta o trânsito com Bissau.

E ao tempo em que se celebra a Convenção Luso-Francesa de delimitação de fronteiras (Maio de 1886) que as forças militares espadeiram em todo o território: no Rio Grande de Buba, no Cubisseque, junto ao Casamansa, no Mansomine. Portugal terá cedido à França o Casamansa para obter apoio ao projeto da imensa faixa inter-oceânica entre Angola e Moçambique. Como observa Pélissier, em troca daquilo que nada lhe custa (a concessão a Portugal da sua liberdade de ação na África centro-austral), a França vai engolir as duas margens do Casamansa e levar as suas posições até à proximidade do rio Cacine. Concretamente, a Guiné portuguesa perdeu profundidade continental. Após um período de vitórias, a que se pode associar o nome de Marques Geraldes, entra-se numa fase que Pélissier classifica de anos medíocres, a Guiné é no essencial uma colónia fluvial.

Começa um novo período, que se estenderá até 1908, prosseguem as campanhas, na maioria dos casos bastante tímidas, deu-se a liberalização alfandegária, previram-se grandes sociedades interessadas em explorar a Guiné, falou-se em capitalistas franceses (caso do conde de Butler) e de um consócio ítalo-português, envolvendo o marquês de Liveri de Valdausa e António da Silva Gouveia, facto é que se irá criar a Companhia de Comércio e Exploração da Guiné, a Casa Gouveia que só se extinguirá em 1974.

Prosseguem à guerras à volta de Bissau, os papéis estão mais renhidos do que nunca, e Mussa Molo continua a ser uma dor de cabeça sobretudo no Gabu e em Pachisse. Em 1895 consegue-se obter uma posição no Forria. Dá-se uma inversão da preponderância dos franceses no negócio do amendoim, os alemães continuam muito ativos. O imposto de palhota continua a ser praticado em Farim. Aos poucos, sente-se que as populações nativas estão cansadas de se revoltar contra os portugueses mas é exatamente neste período que começam as guerras luso-mandingas, que se estendem de Farim, passando pelo Oio, até ao Geba. A Pax Lusitana, a despeito de um estado latente de insubmissões e guerras de fisco, é quase uma realidade.

(Continua)



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Nota de CV:

Vd. poste de 28 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10447: Notas de leitura (412): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10448: Carta aberta a... (7): Meu amigo guineense Cherno Baldé: O(s) nosso(s) esclavagismo(s) e a arrogância do sr. René Pélissier (António Graça de Abreu)

1. Carta aberta ao Cherno Baldé

[, foto à esquerda, 1972, no CAOP1, em Teixeira Pinto, TO da Guiné]

Tenho por ti todo o respeito do mundo e as diferenças de opinião fazem parte do que somos e enriquecem naturalmente a nossa vida.

Há uns postes atrás, num comentário a comentários, um deles meu, dizes que concordas com a afirmação do Réne Pélissier que volto a citar:

"Para a história colonial portuguesa basta consultar os autores de língua inglesa. Há séculos que a maior parte a denuncia como negreira, arcaica, brutal e incapaz: a quinta essência do ultracolonialismo sob os trópicos".

O francês Pélissier fez esta afirmação, em entrevista a Lena Figueiredo, publicada no jornal Diário de Notícias, Artes, de 02.04.2007 [, Clicar aqui para ler a entrevista na íntegra. LG]. (*)

Isto é uma opinião, ou arrumar de vez com a história colonial portuguesa "quinta essência do ultracolonialismo sob os trópicos?" Isto é uma afirmação de quase ódio a Portugal e aos portugueses. Claro que não fomos santos, mas esta não é a nossa História, tanta vez mal contada.

E aqui não estamos no reino das opiniões.

Por isso, meu caro Cherno [, foto à direita, 1989, em Kiev, Ucrânia], saúdo a tua verticalidade e honestidade intelectual ao acrescentares ainda no mesmo rol de comentários, em referência outra vez ao René Pélissier:

“Nem sempre concordei com a sua linguagem arrogante e de desprezo para com os portugueses e seus aliados.”

A questão, meu caro Cherno, é termos no blogue tantos camaradas que gostam não só enaltecer o trabalho de Pélissier (que nunca foi à Guiné e é uma espécie de rato de biblioteca, rato reaccionário de esquerda, mas rato) mas também de concordar com o que tu chamas “a sua linguagem arrogante e de desprezo para com os portugueses”. E é pena, e às vezes, dói.

Sabemos como funcionava no século XIX muito do recrutamento (chamemos-lhe assim!)
de escravos africanos que embarcavam pela força nos navios negreiros, de bandeira norte-americana, inglesa e francesa (havia navios negreiros portugueses?) rumo ao Brasil, às Caraíbas, à América do Norte?

É ou não verdade que muitos desses infelizes negros, que morriam às centenas em cada viagem transatlântica, eram entregues, vendidos aos capitães negreiros brancos pelos chefes tribais negros dos territórios que se estendem do Senegal até Angola e eram resultado de infindáveis lutas fratricidas entre diferentes etnias? Quem vencia capturava os seus escravos e depois vendia-os aos negreiros ingleses, franceses e norte-americanos.
Estarei a inventar?

Não questiono o colonialismo português. Existiu, com certeza, cometeram-se muitos crimes contra os povos das colónias. E os povos africanos não cometiam constantemente crimes entre si?

Será que é correcto pôr nos pratos da balança, de um lado os brancos, os maus, do outro, os negros, os bons? É assim tão simples, tudo a preto ou branco? Ou o mundo felizmente é a cores, a todas as cores do universo.

Bons e maus existem, coexistem sempre em gente de múltiplas cores.

Estamos em 2012.  
Os tempos são outros, os povos africanos conseguiram a sua tortuosa independência.
Pós independência quase todos os novos dirigentes africanos cometeram outros tantos incontáveis atentados e crimes contra os seus povos. Vê só as lutas tribais no Congo, no Ruanda, no Sudão com milhões de mortos.

Também sei que o neocolonialismo existiu e existe e também tem fomentado muitos conflitos. Mas será o responsável, por exemplo, por quase trinta anos de guerra civil em Angola?

Hoje, cinquenta anos após as mais variadas independência, continuar a acusar os colonialistas portugueses de serem "a quinta essência do ultracolonialismo sob os trópicos", é mentira e não fica bem a quem o faz, ainda por cima um francês que passa uma esponja encharcada mas “limpinha” sobre o colonialismo da França.

Os africanos, tal como alguns brasileiros -- ou até os cubanos, com Fidel de Castro em Havana diante de João Paulo II, há uns anos atrás, a acusar o colonialismo espanhol das desgraças de Cuba, cem anos após a independência da ilha - , os africanos, alguns brasileiros e cubanos, dizia eu, têm tudo a ganhar em se libertaram do complexo anticolonialista. Povos que não conseguem libertar-se dos traumas verdadeiros ou fictícios de um passado que já nem sequer conheceram, com que procuram sempre justificar as suas incapacidades e incompetências, não crescem e permanecerão não vítimas do colonialismo mas reféns de si próprios.


É muito fácil acusar os colonialistas que deus (ou o diabo!) tenha. Muito mais difícil é construir um país e lutar por uma vida melhor para os seus povos.

Abraço,

António Graça de Abreu


[Subtítulo da responsabilidade do editor]
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7294: Carta aberta a... (2): Professores António de Oliveria Salazar e Marcello Caetano (António Graça de Abreu)

(*) Entrevista dada ao DN, a propósito do livro:

Título: 
Campanhas Coloniais de Portugal 1844-1941, As
Autor: René Pélissier
Coleção: Histórias de PortugalCategoria: Ciências sociais e humanas
Editora, local e ano: Editorial Estampa, Lisboa, 2006
Nº pp. 448
Brochado, 14x20,5 cm,  €21,95

Pela primeira vez, este livro revela a história global da conquista do enorme império colonial que Portugal chegou a construir em África, na Índia e na Insulíndia, a partir de 1844. 

Marcada por guerras quase permanentes no início do século XX, esta conquista durou até 1941. No seu apogeu, a extensão do império português foi proporcionalmente igual à do império francês. Como é que, sem dinheiro nem emigrantes numerosos, mas por meio de armas, este pequeno e pobre reino, que as grandes potências queriam desapossar, foi capaz de conseguir uma tal empresa? 

É o que nos conta esta obra minuciosamente documentada. Abundante em informações, este livro magistral esclarece toda uma vertente de História quase desconhecida, cujas consequências não cessam de se repercutir no nosso mundo contemporâneo.

Guiné 63/74 - P10447: Notas de leitura (412): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Julho de 2012:

Queridos amigos,

Por exigência do ofício, vou agora rondar pelas histórias da Guiné, imperativo que me é imposto pelo novo trabalho que tenho em mãos quanto a um roteiro que faz o arco entre a Guiné Portuguesa e a Guiné-Bissau.
É uma tentação este texto de René Pélissier, o investigador aparece bem documentado, é por vezes muito brusco e torna a leitura palpitante graças às suas descrições onde não faltam aventuras, guerras e a consideração que ele mostra pelo esforço dos portugueses em internarem-se no mato para consolidar posições. Deita por terra o mito da nossa presença ao longo de cinco séculos, o que é verdade é que mal se saiu da orla marítima, quase sempre dentro das praças e dos presídios. Sim, é apaixonante ler este René Pélissier que ainda se encontra nas livrarias.

Um abraço do
Mário


A história da Guiné,  por René Pélissier (1)

Beja Santos

No âmbito do trabalho que estou a desenvolver com o Francisco Henriques da Silva e que se intitula “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro”, tem total cabimento afoitarmo-nos a fazer uma incursão pelas diferentes obras que falam da Guiné. A primeira história da Guiné foi a de João Barreto, um médico goês, curioso pelo passado da Guiné e que deu à estampa o seu trabalho em 1938.

É mais uma obra de divulgador que de especialista, tem incontestáveis méritos e revela abundantes insuficiências, como mais tarde se destacará. Em 1954, o então comandante Avelino Teixeira da Mota publica um estudo detalhado, a história da Guiné Portuguesa, que durante anos foi a peça de referência e ainda hoje é de leitura obrigatória em certos domínios. E veio a seguir René Pélissier com a sua História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia, 1841-1936, dois volumes, Editorial Estampa 1989.

A historiografia posterior aparece parcelada, António Duarte Silva escreve o seu incontornável “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, um olhar que permite ao estudioso e ao interessado pelas coisas guineenses entender a importância da obra de Sarmento Rodrigues e a fase da Guiné como província ultramarina, até chegarmos aos alvores da causa nacionalista. Como igualmente importante se revela a Guiné, 1963-1974, de Fernando Policarpo (QuidNovi, 2006),  porventura o estudo nos oferece a melhor síntese do período correspondente à luta de libertação.

O trabalho de Pélissier aparece prefaciado por Leopold Senghor. É muito belo o que ele nos escreve aqui:

“Os meus antepassados fulas e mandingas provêm de Gabu, no nordeste da Guiné portuguesa, para se integrarem em Sérères do Sine, mais exatamente na Petite Côte do Senegal, onde Joal, minha terra natal, é um porto banhado pelo Oceano Atlântico. Além disso, o meu apelido Senghor tem origem na palavra portuguesa Senhor, tal como o nome da minha cidade natal, Joal, é igualmente um apelido português. Acresce ainda que, além de outras coisas, tenho sangue português. Last but not least, no Senegal predominam os nomes e, portanto, o sangue português, sobre os nomes e o sangue franceses. Para compreender este facto bastará ler o livro de Pélissier. Aliás, no Casamansa fala-se ainda o crioulo português como dialeto regional (…) o que René Pélissier, ou melhor, mostrar, é a originalidade da colonização portuguesa e, sobretudo, o seu carácter nem racista, nem fanático (…) O leitor europeu não ficará pouco surpreendido ao verificar isto: estas campanhas, mais exatamente estas repressões ou estas guerras são quase sempre dirigidas não tanto contra os revolucionários das cidades, os mestiços, os cristãos, até mesmo os muçulmanos, mas contra os povos animistas: os Papéis, os Balantas, os Felupes e outros Beafadas”.

Senghor considera que esta obra proporciona uma leitura apaixonante e dou-lhe toda a razão.

Na introdução, o autor explica-nos ao que vem. Primeiro, contribuir para desfazer o mito dos cinco séculos da colonização-exploração portuguesa; segundo, tentar encher um vazio no conhecimento da África Ocidental pelos francófonos, cujos historiadores, praticamente todos, cessaram as suas investigações nas fronteiras da Guiné. Sem aparentemente se aperceberem de que este enclave não só tinha uma história própria como ainda uma certa importância; terceiro, um estudo dirige-se principalmente aos guineenses para eles considerarem a resistência/colaboração dos seus avós à conquista colonial. Neste ponto, o autor é esclarecedor:

“A Guiné, entre 1841 e 1936 foi uma terra de violência, repetitiva e de uma intensidade que não foi igualada nos territórios de extensão comparável na África Ocidental: perto de três vezes mais que no Casamansa. Com 81 campanhas, expedições ou simples operações que envolveram um mínimo de cerca de 8500 soldados regulares e cerca de 42000 guerreiros e auxiliares alistados do lado português, para consolidar uma colonização que, até ao começo do século XX não sabia se não teria de fazer as malas e pôr-se a andar. Ver-se-á, ao longo do texto, que a razão essencial desta acumulação de choque está ligada com a fraqueza intrínseca do poder português que só avança verdadeiramente para o interior das guerras depois dos grandes massacres de animistas de 1913-1915”.

Nos primórdios tínhamos a Guiné de Cabo Verde (1841-1844), de cedência em cedência a presença portuguesa fica confinada à Guiné de Cabo Verde, uma fração da Guiné de Cabo Verde dos séculos XVI-XVII que começava na foz do Senegal e ia até à Serra Leoa. Esta Guiné é a dependência de Cabo Verde, um género de colónia de uma colónia, pontificam tanto no tráfico negreiro como na administração incipiente os cabo-verdianos, a despeito do tratado luso-britânico de 19 de Fevereiro de 1810 pelo qual o tráfico negreiro era proibido na Guiné.

Pélissier desvela as práticas desse tráfico e os seus protagonistas. Interpelando o que era a Guiné neste período responde:

“Em 1841-1844, a Guiné dos portugueses e dos lusitanizados é, em primeiro lugar, os rios. A isto se junta, em equilíbrio precário nas suas margens, algumas escalas mestiças que sobrevieram à concorrência estrangeira”.

 Explica quais são os limites da Guiné, a sua fronteira marítima de cerca de 450 quilómetros e tece novas considerações:

“Na prática, o problema dos portugueses do litoral, no século XIX, consistirá em fazer com que a França e a Grã-Bretanha admitam que esta costa lhe cabe sem partilhas. Ora, contrariamente a Moçambique e principalmente a Angola, que aumentarão a sua extensão, a Guiné fictícia de 1841-1844 perderá quase metade das suas margens antes de se reduzir às fronteiras que lhe conhecemos. Esta costa é disputada não só nas chancelarias como até já no terreno”.

Seguir-se-á o trabalho de interiorização, os portugueses afanosamente acabarão por criar uma verdadeira colónia. As receitas, nesta fase ainda de tutela de Cabo Verde, resumem-se aos rendimentos da alfândega de Bissau e as despesas aos soldos das guarnições e de alguns funcionários civis, bem como às raras obras de consolidação dos edifícios públicos.

René Pélissier afirma que não há conhecimento exato do comércio das feitorias e argumenta:

“Com a exceção de dois ou três navios americanos, a exclusividade da navegação lícita pertence às escunas e chalupas inglesas e francesas de Gâmbia e de Goreia, que visitam duas ou três vezes por ano, cada uma, os postos portugueses. Os produtos declaráveis são o marfim, os couros e peles, a cera, o óleo de palma, as tartarugas, algum ouro e as madeiras”.

Há um prudente silêncio sobre o tráfico negreiro. Todo o comércio se baseia na troca e nos pagamentos em espécie. Quanto à topografia político-militar, o autor refere duas capitanias-mores, a de Cacheu e a de Bissau que estão unificadas numa comarca que tem à cabeça um subperfeito, residente em Bissau, isto antes de 1842 ano em que a Guiné volta a dividir-se em dois distritos autónomos, cada um com um governador dependente do governador-geral de Cabo Verde. Os portugueses ocupam Zinguichor, de há muito cobiçada pelos franceses, há registo de um enorme esforço de Honório Pereira Barreto para suster esta presença francesa, mas o Casamansa português está num completo declínio.

Na bacia do rio Cacheu, a presença portuguesa é dada pelo presídio de Bolor, pela povoação de Cacheu e a sua antena de Farim. No rio Geba espalha-se uma série de guarnições a começar por Bissau, depois Fá, Geba e Ganjarra, quase em frente à feitoria de Geba; há uma ténue presença no Rio Grande de Buba, no arquipélago dos Bijagós a presença portuguesa ocorre em Bolama e na Ilha das Galinhas. Por esta data inicia-se a “Questão de Bolama”. Só no final do Século XIX é que os portugueses se afoitarão à região Sul, depois do acordo celebrado com os franceses em 1886. Mas a vida em Bissau é terrível, está sujeita a guerras permanentes, como se passa a descrever.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10436: Notas de leitura (411): "Rumo a Fulacunda", de Rui Alexandrino Ferreira (Belarmino Sardinha)

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10259: (Ex)citações (192): Ainda as afirmações do senhor René Pélissier àcerca do nosso blogue (António Melo)

1. Mensagem do nosso camarada António Melo (ex-1.º Cabo Rec Inf, BCAÇ 2930, Catió e QG, Bissau, 1972/74), com data de 31 de Julho de 2012:

Amigo Carlos Vinhal
Aqui me encontro de novo e, como todos os dias, acabo de ler o blogue que para mim já faz parte do meu dia a dia. Repassando algumas coisas de que foi publicado, vou comentar a avaliação que o sr. René Pélissier fez ao nosso blogue, porque já afirmei que estava em total desacordo com ele, mas quero-me alongar um pouco mais.

O sr. René é francês e como francês que é não cumpriu o serviço militar como nós portugueses, que entre os anos sessenta e setenta e quatro, do século passado, na sua esmagadora maioria, tiveram que ir para África ou para Ásia e cito, Cabo Verde, Guiné, São Tomé, Angola, Moçambique, Índia (Goa, Damão e Diu), Macau e Timor. E é isso que nos diferencia do tal senhor que com demagogia faz uma ideia errada do nosso modo de pensar e das nossas recordações que só se apagarão quando fecharmos os olhos e pare para sempre o bater do coração, aquele que levamos dentro de nós, aquele que nos doeu e sangrou, aquele que se sentia apertado quando algum dos nossos camaradas caía morto ou ferido. Camaradas que tínhamos como família porque aqueles que estão a nosso lado dia e noite, que vestiam como nós, que comiam o que nós comíamos, que percorriam as mesmas picadas e que afinal eram a nossa sombra, aqueles que durante o tempo em que estávamos nessa frente de guerra, sorriam connosco e choravam quando nós chorávamos, aqueles com quem desabafávamos quando nos sentíamos impotentes para fazer alguma coisa para que esses camaradas não morressem ou ficassem sem uma perna, um braço, uma vista ou qualquer outra coisa, aqueles sim eram a nossa família.

Era bom saber escutar o amigo, saber estar calado quando a situação assim o requeria, ou então seguires a sua conversa e responder moderadamente sem o ferir mais do que já estava nesse momento, ser o seu conselheiro o vice-versa porque por vezes éramos nós que precisávamos de ajuda.

Eu tive momentos em que me afastei para um sitio onde ninguém me ouvisse gritar ao vento com todas as forças que tinha dentro de mim, depois voltava mais aliviado de toda a tensão acumulada.

Fomos para lá jovens inocentes e voltamos homens feitos e curtidos pelo sol abrasador, pelos sustos de varias índole, pelas noites dormidas em qualquer lado menos numa cama, pela fome e sede que passamos, mas aqui estamos, uns lendo, outros escrevendo, eu por mim falo, grande liçao de vida e dor apaziguada pelos anos dos que não voltarão.

Tu que hoje és pai e avô fecha os olhos e pensa um pouco, pensa nesses pais que viram partir os seus filhos e que ainda hoje os estão esperando.

Por tudo isto digo que o tal senhor René Pélissier não sabe do que fala, porque se passasse lá dois anos como nós passámos, teria seguramente outra opinião.

Também fala de como aqueles povos eram por nós subjugados e que o que a historia conta não é verdadeiro, que aquelas terras nunca nos pertenceu de pleno direito. Que sabe esse senhor? Só nos criticam aqueles que querem ser como nós.

Será que não devia ler mais um pouco sobre as invasões francesas? Ficaria a saber como nós sofremos, assim como os espanhóis, para evitar sermos dominados.

E agora resumindo dou a minha humilde opinião, que sendo eu um nada pois não sou escritor, politico ou qualquer outra coisa com significado, sou e com orgulho um simples operário da construção civil, mas com direito a ter minha opinião e estar de acordo ou em desacordo com o que oiço, vejo e leio.

Que houve excessos da parte de alguns dos portugueses que lá estavam não duvido, mas quem não tem telhados de vidro?

Saíram os portugueses e entraram Cubanos, Chineses e demais nacionalidades da nova geração, como pude verificar localmente em 2009. Fica a pergunta se agora esses países estão a fazer mais e melhor que os portugueses. Não foi o que vi.

Caros tertulianos, esta é a minha opinião com que podem estar ou não de acordo. Eu penso assim, mas como cada cabeça sua sentença, quem não estiver de acordo comigo que me respeite porque eu respeitarei a dos outros. Perdoem o meu desabafo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10251: (Ex)citações (191): Ainda guerra perdida e a guerra ganha (Juvenal Amado)

terça-feira, 10 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10137: Blogoterapia (212): Veterano, nostálgico? Sim, ai quem me dera ter outra vez vinte anos... mas saber o que sei hoje (António J. Pereira da Costa, cor art ref)


[Imagem acima: dois coronéis reformados, o pilav Miguel Pessoa, e o artilheiro António Costa. Infografia de Miguel Pessoa, a quem desejamos um rápido restabelecimento da sua saúde, depois do acidente que o levou ao hospital e à "faca"...]


1. Mensagem do nosso camarada António J. Pereira Costa, com data de 30 de junho passado, e em resposta à nossa última sondagem ("Um blogue de veteranos nostálicos da sua juventude ?"):


Assunto - Os Nostálgicos

Conheço alguns trabalhos de René Pélissier. A Biblioteca do Exército tem diversas obras suas. Identifico-me, sem dificuldade, com as ideias que expressa, especialmente no que toca aos antecedentes das “guerras de libertação” em África. Por isso resolvi responder à “sondagem”.

Creio que a minha primeira intervenção no blog versou o tema: “Quem somos nós?”. Queria “atabancar-me” bem e, por isso, considerei interessante definir o perfil do ex-combatente. Num texto de quatro páginas, procurei fazê-lo e as consequências, para mim, foram devastadoras. Felizmente, eu usava capacete…

O perfil que tracei poderá, até certo ponto, servir de contraditório à afirmação de Pélissier.

Aceito agora o desafio do Luís Graça e regresso ao tema, expondo o meu ponto de vista, depois de ter lido as considerações do historiador francês. O tempo que nos é dado e curto. Contudo, tratando-se de uma sondagem, a resposta terá de ser dada com brevidade.

Comecemos com a formação ou mentalização inicial de que fomos alvo, desde bem cedo, nos bancos das Escolas. Convém não esquecer que somos apenas o produto do meio que fomos criados, como dizia António Aleixo. Vivíamos num país desfasado dos padrões de vida europeus do tempo e cujas autoridades dificultavam o contacto com o “estrangeiro”. As diferenças que encontrávamos quando, por sorte, saíamos do país deixavam-nos admirados e invejosos.

Alimento, cada vez mais a ideia de que se tratava de um fenómeno sociológico previsível e previsto por vários visitantes (Henrique Galvão, entre outros,) e residentes naquelas terras, a quem os responsáveis não deram ouvidos e depois… As tensões entre os diferentes grupos sociais, as diferenças rácicas e as tensões acumuladas, ao longo de séculos (Ver René Pélissier) criaram as condições propícias para o sucedido. Chamo aqui a atenção para os textos antigos, que têm vindo a ser divulgados, descrevendo o Ultramar e nos quais, directa ou indirectamente, é possível descobrir as deficiências do colonialismo.

Fomos.

E sobrevivemos a dois traumas seguidos, por vezes separados por poucos dias ou horas até: o choque da chegada a uma cidade militar (e a um teatro de operações num país que, começámos a logo a perguntar se seria efectivamente nosso), e a vida diária no quartel do mato, numa localidade pequena do interior, cujos habitantes nos eram estranhos, não falavam a nossa língua e tinham hábitos e religiões de que só vagamente tínhamos ouvido falar. De que lado estariam e porquê? Perguntávamo-nos porque seria que alguns recusavam a protecção e as condições de vida que lhes dávamos e preferiam uma ligação ao “inimigo”. Mas, se todos tinham nascido e sempre vivido ali, quais seriam as razões para tal?

Amadurecíamos. Ou melhor: envelhecíamos, sem darmos por isso. O esforço diário, o trabalho de equipa, a entreajuda e as horas de incerteza mostravam-nos o lado mais genuíno da vida.

Cada vez, me restam menos dúvidas de que participámos na História do nosso país de um modo com que todos tínhamos sonhado, ao aprendermos a nossa História, nos bancos da escola, mas também nunca tínhamos pensado que pudesse acontecer.

Já defendi, numa revista militar que desde a primeira hora, a guerra estava perdida. E não saiu ninguém a contradizer-me. Tivemos de descobrir à nossa custa que era essa a realidade. Tenham em conta a grande resistência ao “ocupante” que se traduziu em continuar, ao fim de cinco séculos, a usar as línguas tradicionais e a recusar a aprendizagem do português, numa espécie de resistência passiva, que se estende a outros sectores como hábitos e, principalmente, às religiões e hábitos similares (por mais primitivos que fossem).

Mas à chegada à “Metrópole”, vinha a grande desilusão. Julgávamos ser cidadãos-patriotas ou soldados-heróis, mas não éramos mais do que um corpo estranho que lembrava aos políticos a sua incapacidade, e à sociedade um problema que ela tinha, mas que não sabia como resolver e, por isso, varria para baixo do capacho. Sentimos a frustração de não sermos ouvidos, e o desinteresse de vizinhos e conterrâneos, perante a nossa mensagem e, por fim, num fenómeno que a psicologia clínica talvez explique, tentámos esquecer o sucedido. Isso levou-nos a cumprir um período de resguardo de alguns anos durante os quais evitávamos falar “naquilo”.

Havia outras tarefas. Era necessário organizar a vida e desfrutar da luta diária, no fundo a razão de ser dos homens.

Julgo que a curiosidade de sabermos o que seria feito daqueles com quem partilhámos a nossa existência durante dois anos foi determinante. Primeiro a curiosidade, depois as saudades. Entretanto ficámos velhos. E os velhos têm mais necessidade de recordar para se sentirem gente ao contemplarem a vida. Daí aos convívios foi um passo.

Mas, afinal porque nos irmanamos à volta de uma mesa?

Porque todos temos em comum o facto de termos sido os homens que estavam na esquina errada da História. Fomos apanhados num turbilhão e não pudemos fazer nada para sair dele. Nadámos num troço de águas revoltas do rio do tempo.

Por mim não sinto nada “nostálgico” em relação à guerra ou à Guiné. Já disse num Post que, para mim a guerra, se a houve, terminou com a independência e não me sinto mais ligado àquele país do que a qualquer outro. O passado comum, que por vezes se evoca, envergonha uns e revolta os outros e não me sinto nada responsável pelo que de bom ou mau por lá se passa.

Considero, agora, que é essencial que lutemos contra o esquecimento. Não podemos deixar que nos suceda o que aconteceu a tantos outros que andaram pelas Àfricas, durante a I Guerra e especialmente nas chamadas Campanhas de Pacificação ou da Ocupação (fim do Séc. XIX – inícios do Séc. XX). A pouco e pouco vamos descobrindo “coisas”, como os sacrifícios dos nossos compatriotas e o grau de violência praticado de parte a parte. Temos de deixar a nossa assinatura na marcha do tempo.

Além disso, fizemos uma guerra pobre. Era pobre a nossa logística e os meios operacionais escassos. Os meios operacionais do inimigo evoluíam a olhos vistos e os nossos mantiveram-se perigosamente estacionários, como ultimamente temos vindo a ver. As guerras ou se perdem ou se ganham. E nós perdemos,  o que foi mais outra marca na nossa personalidade.

Como diz o Idálio [Reis]: “para quê e porquê?” Enfim, tudo terminou bem, ou menos mal, e isso foi o mais importante.

Nostalgia? Dos vinte e poucos anos? Sim! “Ai quem me dera ter outra vez vinte anos” diz o fado (*), mas saber o que sei hoje, acrescento eu. Mas da guerra e dos dois anos de sacrifícios impostos a troco de nada, não.

E o António Levezinho pergunta: “se não se deve voltar a um sítio onde se foi muito feliz, porquê voltar a um onde se foi particularmente infeliz”?

Não sou nostálgico e creio que o esquecimento é o pior que nos pode suceder, num mundo onde a ignorância é cada vez maior, embora a disponibilidade do conhecimento seja anormalmente enorme. Quero dar testemunho e evitar que aqueles 13 anos possam ser reduzidos a meia página de um compêndio de História.

Um Ab e desculpa o desenvolvimento e o atraso na resposta

António J. P. Costa (**)
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Notas do editor:

(*) O meu primeiro amor [, fado interpretado por grandes fadistas como Amália Rodrigues iou Cidália Moreira]

Letra de Nelson Barros; música de Frederico Valério (c. 1955)

Ai, quem me dera
Ter outra vez vinte anos,
Ai! como eu era,
Como te amei, Santo Deus,
Meus olhos
Pareciam dois franciscanos
A espera
Do céu que vinha dos meus.

Beijos que eu dava,
Ai! como quem morde rosas,
Ai como te esperava
Na vida que então vivi,
Podiam acabar os horizontes,
Podiam secar as fontes
Mas não vivia sem ti.

Ai! como é triste,
Eu dizer não me envergonho,
Saber que existe
Um ser tão mau e ruim
Que eras um ombro para o meu sonho,
Traíste o melhor que havia em mim.

Ai! como o tempo
Pôs neve nos teus cabelos,
Ai como o tempo
As nossas vidas desfez,
Quem me dera
Ter outra vez desenganos,
Ter outra vez vinte anos.