Mostrar mensagens com a etiqueta Rio Cumbijã. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Rio Cumbijã. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8933: Memória dos lugares (158): Cufar e o porto do rio Manterunga, extensão do inferno na terra : 2 de Março de 1974 (António Graça de Abreu)



Guiné > Região de Tombali > Cufar >   Sábado, dia 2 de Março de 1974, "dia do diabo"   

Entre Cufar e o porto do rio Manterunga, afluente do Rio Cumbijã, numa picada que não teria mais de cem metros, batida milhares de vezes pelos jipes e demais viaturas militares,  o IN deixou lá  uma potente brinquedo de morte: uma vulgar mina anti-carro, reforçada por uma bomba de um Fiat que não tinha explodido...

Um jipe do pelotão da Intendência, o PINT 9288, anteriormente comandado pelo Alf Mil João Lourenço (membro da nossa Tabanca Grande), acionou o engenho, a meio da tarde. Os cinco ocupantes, dois militares, brancos (o Fur Mil Pita e o Sold Santos, de alcunha O Jeová), e três civis, estivadores, guineenses, encontraram aqui a morte...

Mais à frente, outra mina, enterrada no lodo do rio, provocou ao fim da tarde a explosão, em cadeia, de batelões atracados ao cais e carregados de bidões de gasolina... 

Mais dezasseis estivadores guineenses,  civis, perderam a vida, num cenário dantesco de horror..."Vi coisas nunca vistas e que nunca mais quero ver", escreveu o António Graça de Abreu no seu Diário da Guiné...

(...) "O rio Cumbijã passa a dois quilómetros de Cufar, mas existe o rio Manterunga, um pequeno afluente, melhor um braço de rio que chega quase até à nossa povoação. A quinhentos metros daqui construiu-se um pequeno pontão, um cais de abicagem noManterunga.

"É aquilo a que chamamos o 'porto interior', utilizado por barcos de pouco calado que chegam carregados de Bissau e descarregam neste porto. Quando a maré está cheia, os batelões sobem o rio e ficam ancorados lá em baixo. A maré desce e os barcos pousam em cima do lodo do leito do rio que é mole e não lhes danifica o casco. Voltam a aproveitar uma maré-cheia para regressar a Bissau. São batelões pequenos, uma espécie de barcaças com motor que trazem para aqui muitos produtos de que necessitamos todos os dias, sobretudo gasolina para abastecer os aviões e helicópteros.

"Entre Cufar e o porto do rio Manterunga existe uma picada de terra batida com umas centenas de metros. Até ontem circulava-se nessa estradinha com o maior à vontade, considerava-se a estrada como fazendo parte dos caminhos de Cufar. Já passei por lá dezenas de vezes conduzindo os jipes e é um dos trajectos que costumo utilizar nos meus crosses" (...).


Fotos: © António Graça de Abreu (2011). Todos os direitos reservados.
________________

Nota do editor:

Último poste da série > 19 de Outubro de 2011 >  Guiné 63/74 - P8925: Memória dos lugares (157): Empada, região de Quínara, by air (António Graça de Abreu)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7802: Álbum fotográfico de Amaral Bernardo (Alf Mil Med, CCS/BCAÇ 2930, Catió, Cacine, Bedanda, Guileje, Gadamel, Tite, Bolama, 1970/72) (1): O reabastecimento de Bedanda, no tempo das chuvas, através do Nordatlas, com lançamento de pára-quedas






Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 1971 > Reabastecimento do aquartelamento e povoação através do Nordatlas e do lançamento  de géneros por pára-quedas,  durante a época das chuvas. Fotos do Álbum de Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Med, CCS / BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72)... Esteve em 1971 em Bedanda (*), onde foi rendido em Dezembro de 1971 pelo Mário Bravo.

Fotos: © Amaral Bernardo (2011). Todos os direitos reservados.


"Estive em Bedanda, durante 13 meses, sob o comando do capitão de cavalaria Ayala Botto [, CCAÇ 6]. Um grande comandante, um verdadeiro oficial de cavalaria... que nos derretia com mimos: ovos liofilizados e outras delícias, que vinham de Lisboa, de uma fábrica da família...
 
"Estive primeiro em Cacine, que era deslumbrante... Percorri todo o sul, acabando em Bolama, depois de passar por Bedanda, Gadamael, Guileje, Tite... A CÇAÇ 6 tinha fulas e um pelotão de balantas... Em Bedanda, os tipos do PAIGC apareciam nas minhas consultas, nas calmas, disfarçados com a população...
 
"Bedanda, no tempo das chuvas, era inacessível por terra, transformava-se numa ilha. Ficava entre dois rios, o Cumbijã, a oeste e o seu afluente, o Ungariol, a leste e a norte... Era abasteciada  pelos fuzileiros e pela força aérea...
 
"Em 2005 falei com o Nino sobre os ataques a Bedanda, quando ele era o comandante da região sul... Havia malta na tabanca que lhe fazia sinais de luz (com uma lanterna) para orientação do tiro... À terceira, eles acertavam todas...
 
"Os melhores abrigos, à prova do 120, eram os de Guileje... Mas o Spínola proibiu a construção de mais bunkers, queria que o pessoal fosse todo para as valas... Foram tempos muitos duros, tive uma [grande] actividade como médico... e eu próprio cheguei a desejar secretamente ser ferido para poder ser evacuado dali" (Amaral Bernardo, membro da nossa Tabanca Grande, desde Fevereiro de 2007).


 _____________
 
Nota de L.G.:
 
(*) Vd. poste de 16 de Fevereiro de 2011 > Guiné 7799: Os nossos médicos (22): Um pedido de desculpas por uma falsa informação a (e um firme repúdio pelas insinuações de) o ex-Cap Art Morais da Silva, comandante da CCAÇ 2769 (Amaral Bernardo)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5863: Histórias de heroísmo (3): A odisseia de uma escolta a Cabedu, em LDP, no Rio Cumbijã (José Colaço)


1. O nosso Camarada José Colaço (ex-Sold Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), enviou-nos a seguinte mensagem em 20 de Fevereiro de 2010:


A odisseia de uma escolta (*)



Tudo começou na manhã de 14 de Dezembro de 1963.

A companhia independente, CCaç 557 , comandada pelo então capitão Ares, vinda da Metrópole, tinha desembarcado no cais de Pidjiguiti, em Bissau, no dia 03/11/1963 e tudo corria normalmente, com o pessoal aquartelado num barracão na Bolola, com vista para o referido cais.

Nesse dia cerca das 9 horas, mais ou menos, o capitão chamou-me e fez-me a seguinte pergunta:
- Ó Colaço (nome por que sempre me tratou, dado eu na companhia ser conhecido pelo nome e não pelo número como seria normal), quantos homens de transmissões temos neste momento na companhia?.

A pergunta derivava do facto de haver vários especialistas de transmissões que tinham sido escalados para escoltas aos batelões destinados a levar os chamados géneros (mantimentos), para companhias que estavam no mato.

Lá dei a informação o melhor possível e a resposta do capitão foi: “
- Então,  tu e os teus colegas arranjem as vossas coisinhas, que à tarde têm de embarcar para o mato!.

Não nos disse para onde. Só na hora do embarque vim a saber que o destino era Catió, mas estava muito longe de saber que Catió era só uma miragem para um mini-estágio e, o destino final seria o Como [e a Operação Tridente].

A hierarquia sabia o grau de deficiência com que os chamados especialistas eram chamados para a guerra, porque uma coisa era apertar o gatilho de uma G3 que, em segundos, um atirador estava pronto a efectuar, outra,  que fiava um pouco mais fino, era receber mensagens e emitir outras tirando partido da saída da antena para que as ondas hertzianas se propagassem no espaço.

Assim, as transmissões eram um ponto fulcral para toda a organização estratégica de uma companhia ou de um grupo de combate, pois ficar incontactável era um dos problemas de difícil, ou nula, resolução.

A viagem até Catió foi normal e pernoitei no quartel de Bolama com tudo programado (cama e pequeno almoço).

Chegado a Catió fiquei adido ao BCAÇ 619, sendo o meu trabalho, único e quase exclusivo, passar os dias no posto rádio do batalhão a treinar, principalmente, a recepção de mensagens e o alfabeto fonético, que era o meio, com prioridade, utilizado no mato.

Só nas emergências e a comunicação entre grupos, em combate, era autorizado a utilizar a comunicação oral normal.

Mesmo assim, com alguns códigos à mistura, à noite, fui escalado (não sei quantas vezes), para fazer parte da secção que fazia protecção aos obuses que bombardeavam o Como (por períodos de cerca de 45 minutos a uma hora).

Isto serviu-me, para me ir habituando ao que me estava reservado.

Como a roda do tempo não pára, estávamos na semana do Natal de 1963, e, foi aqui, que surgiu a odisseia da dita escolta.

Era urgente reabastecer a CCaç 555 sedeada em Cabedu e adida ao BCaç 619 (**). Então o comando de Catió organizou um reabastecimento de mantimentos (os tais chamados géneros), numa LDP [, Lancha de Desembarque Pequena] com uma secção de atiradores comandada por um furriel miliciano, e eu fui integrado nessa escolta como elemento de transmissões para manter o contacto com Catió, e, quando este não fosse audível, sintonizaria Cabedu.

O rádio que me disponibilizaram, foi um ANPRC 10, cujo alcance era bastante limitado (só era muito bom para comunicar com os aviões, DO 27 ou T-6), quando nos sobrevoavam.

Lembro-me de ter dado muitas informações aos pilotos dos T-6, para metralhar mais 40 ou 50 metros à esquerda, à direita ou à frente, em relação à picagem que tinha sido feita anteriormente. Não posso precisar, mas o alcance era de cerca de 5 a 6 km em boas condições de propagação das ondas hertzianas.

O contacto com Catió perdeu-se, logo que navegámos meia dúzia de milhas, e de Cabedu nem ruídos eu conseguia ouvir. Tudo totalmente mudo.

Como nem o comandante da escolta, nem o marinheiro maquinista da LDP, conheciam a zona, o já então carismático João Bacar Jaló forneceu-nos um dos seus homens, que ele pensava ser de inteira confiança, como guia conhecedor da zona.

Com tudo previsto quanto às marés, na parte da manhã rumámos com destino a Cabedu, e, após navegarmos pelo rio Cumbijã, cortamos numa bifurcação à esquerda, não sei se era um afluente ou uma ria.

O que eu sei é que conforme prosseguíamos, o caudal do rio era cada vez mais fraco, e a pergunta sacramental que se fazia ao guia era:
- Tens a certeza que vamos no rumo certo ?

Ele dizia:
- Sim, sim, é este o rio para Cabedu!

A dado momento, já nenhum de nós acreditava no guia, porque a informação que tínhamos é que até Cabedu não havia problemas quanto à falta de água para navegar, o que não era o caso. O comandante da escolta bem me dizia:
- Ó telegrafista,  comunica.

Disse-lhe, meio desorientado:
- Para já não sou telegrafista, sou de transmissões, e como é que comunico com esta m... se isto não presta, só dá para avisar quando estivermos próximo de Cabedu, ou se, por sorte, se neste momento formos sobrevoados por um avião dos nossos, uma DO ou um T-6 ?!

Estávamos numa zona de campo aberto, fazia lembrar o Alentejo na Primavera, viam-se ao longe vacas a pastar e nós, com receio que a lancha batesse no fundo e parássemos por falta de altura de água para navegar, ou, pior ainda, de atravessar a fronteira sem sabermos. Nós não fazíamos a mínima ideia onde nos encontrávamos.

Mas como é hábito dizer,  o tuga tem sempre sorte, se parte uma perna foi sorte não ter partido as duas, se parte as duas foi sorte não ter morrido e se morre teve sorte senão ficava a sofrer o resto da vida.

Surgiu então um pequeno lago, onde o marinheiro com muita perícia conseguiu inverter a marcha. Que alívio! Não há palavras para qualificar aquele momento feliz, por ter sido encontrado aquela pequena bacia de água, que nos permitiu pôr a salvo.

Logo que invertemos a marcha, o guia que vigiávamos com muita atenção, veio debaixo de prisão. A partir daí, uma das razões dele nunca ter tentado a fuga, era encontrarmo-nos numa zona ampla, com boa visão, onde ele seria abatido com muita facilidade. Se a zona fosse de Bolanha, e, ou, tarrafo, com a nossa preocupação presa no IN, bastava ele dar um salto para fora da lancha e nós não mais o víamos.

Chegados a Catió, o comandante da escolta fez o relatório e o guia foi entregue ao João Bacar Jaló. O João reprimia as traições com bastante dureza. Ele mostrou o pau com que agredia os traidores no estômago, mas a resposta do falso guia foi:
- Mim murre… mas não diz nada.

Um alfa bravo
José Colaço
Sold Trms da CCAÇ 557
____________

Notas de M.R.:


 
(**) Notas sobre o BCAÇ 619: Mobilizxdao pelo  RI 1, partiu para aGuiné em  8/1/1964. Regressou a 9/2/1966. Esteve sedeado em Catió. Comandante: Ten Cor  Inf Narsélio Fernandes Matias. Unidades de quadrícula: CCAÇ 616 (Bissau, Empada); CCAÇ 617 ( Bissau, Catió, Cachil); CCAÇ 618 ( S. Domingos, Binar)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4841: (Ex)citações (41): Contra-resposta ao Cor A.J. Pereira da Costa (Mário Fitas)

1. Contra-resposta de Mário Fitas (ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 763, Cufar, 1965/66), a A.J. Pereira da Costa (*), enviado em mensagem do dia 18 de Agosto de 2009:

Caro Pereira da Costa

Analisei e reflecti não só sobre o meu comentário, mas também sobre a tua resposta.

Não tive professor de filosofia pelo que me fico por Pitágoras lendo algumas coisas de Sto. Agostinho.

Brincávamos nós na antiga TAP:

Um país para o ser tinha de ter três coisas, uma bandeira, um hino e uma companhia de aviação. Só que havia um parceiro que sempre retorquia:

E terra!... para poderes por as rodas no chão. Clarividente!

Desculpa camarada, mas plagiando:

“É um modo de dizer ou, dizendo, nada acrescentar”

“Ponhamos então as rodas no chão”.

É verdade!

Temos a União Europeia “A Velha Europa das Nações” o berço da “Igualdade, Fraternidade e Liberdade”.

Temos então a velha Europa representada por uma Bandeira, sem complexos de Credo, Cor ou Raça.

Tudo isso desmistifica a tua dissertação sobre este assunto, a não ser o ponto em que estou completamente de acordo quanto à confusão, em que acrescento problemas como os nossos irmãos Galegos e o pior a questão do Povo Basco no Reino de Castela que também é Europeu.

Sem parecer, um simples furriel miliciano de 1963 no CISMI, ainda sabe algumas coisas. Sabe tanto, que te posso afirmar caro camarada, que África não foi nenhum CALDO mas a vergonha do Povo Português.

Poderia ser de outra maneira? Pois podia!

A conjuntura era pressionante? Pois era! Porquê? Porque abandonámos os que ainda acreditavam em nós. E porque não somos como os outros que roubaram e encheram os cofres, enquanto nós ainda nos preocupamos com eles e os recebemos de braços abertos, tentando criar laços que muitos julgam incompreensíveis.

Responde-me camarada Coronel, por que foi o Norton de Matos foi apodado de comunista?

Diz-me!

Falei nos anos 60 e na Africanidade para não usar Negritude que não é ofensivo, mas uma realidade escrita.

Não há racismos! Negros, brancos ou mestiços nascidos na Guiné, são Guineenses. Todos desde a formação do Futa Jalon, têm direito à sua Terra ao seu Chão, uma bandeira é mais complicado.

Sobre a independência, desculpa, mas temos conceitos completamente diferentes, pois ela foi feita de forma vergonhosa. Assumo o que escrevo! Há muito escrito sobre isso.

Tenho aqui a meu lado entre muitos:

ARISTIDES PEREIRA - “O meu testemunho

Uma luta
Um partido
Dois Países

É digno de se ler e analisar!

“A História é feita por vencedores: O PAIGC neste caso!”

Pobre povo da minha querida Guiné!

E agora neste preciso momento, meu amigo Coronel do Exército Português, desculpa, não fujas e diz-me: Se não tivessem desarmado, aldrabando, aqueles que com certeza muitas vezes te safaram? Como seria?

A resposta de não ter estado no palco não me convence! Retornados e Abandonados, acredito que não estejas dentro da nossa História! O problema é teu!

Envio um abraço do tamanho do maravilhoso rio Cumbijã que infelizmente só conheces como regato,

Mário Fitas
__________

Notas de CV:

- Para não esgotarmos este assunto em respostas sucessivas, entre os dois, peço aos meus camaradas e amigos Mário Fitas e Pereira da Costa que continuem esta troca de impressões por mail ou então na forma pública de comentário no respectivo poste.

(*) Vd. poste de 18 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4831: (Ex)citações (40): Resposta a um comentário de Mário Fitas (A.J. Pereira da Costa)

domingo, 3 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4278: Blogpoesia (44): A história de Portugal em sextilhas (II Parte) (Manuel Maia)

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cantanhez > Cafine > Destacamento da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74) > A beleza dum rosto sereno numa criança cafinense

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Cafine > Destacamento da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74) > Distribuição de água à população de Cafine, antes da feitura do poço.

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Cafine > Destacamento da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74) > O imenso Cumbidjã (da pesca à granada, quando era possível...)

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Cafine > Destacamento da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74) > Antes da mais uma partida em Sintex para o reabastecimento de frescos e correio (Cufar ou Cadique).

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Cafine > Destacamento da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74) > Uma canoa, barco IN. O 2º a ser utilizado pelo homem desde o período pré-histórico. o 1º fôra concebido de pele de animais...

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Cafine > Destacamento da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74) > O Manuel Maia, "pilando em Cafine"

Fotos (e legendas): © Manuel Maia (2009). Direitos reservados.


1. Mensagem do Manuel Maia, com data de 2 do corrente. (O Manuel Maia, formado em história, foi Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74; salvaguardadas as devidas proporções, é já considerado o Camões do Cantanhez , o bardo de Cafal Balanta (*)


Caro Luis, o meu sincero agradecimento pela edição da minha História de Portugal em Sextilhas (**), que aproveitarei para acabar de enviar de forma faseada. [No total, são mais de três centenas e meia]

Com o que ora envio,fica concluída a dinastia Afonsina.

Um grande abraço. Manuel Maia


A História de Portugal em sextilhas (II parte, até ao fim da 1ª Dinastia)

36-Com clero foi rei Sancho algo incapaz,
mas seu irmão Afonso, mui sagaz,
ao acertar co´a Igreja, a quem exorta.
Chegado de Paris,"visitador",
o "defensor" do reino,"curador",
mais tarde faz d´acordo letra morta.


37- Marido de Matilde de Bolonha,
com ceptro português, Afonso sonha,
sondado o tinha o clero lusitano.
Intrépido, domina os partidários
de Sancho, renitentes,solidários
do rei "Capelo", vítima de engano...


38-A aceitação de Afonso teve entraves,
alcaides houve com recusa às chaves
dos seus castelos ao novo senhor.
O cerco a Guimarães e a Faria,
igual pressão que Óbidos sentia,
mostrou daqueles grande pundonor.


39-Para acudir no reino às despesas,
Afonso abriu mão das suas presas,
vendendo as herdades confiscadas.
No campo militar, Faro conquista,
e p´ra manter Algarve tem em vista
medidas por acordos rubricadas.


40-Assim el-rei Afonso, "O Bolonhês",
Algarve luso garantiu de vez,
impondo uma fronteira por tratado.
"O Sábio" em troca o casamento quis,
de Afonso com bastarda Beatriz,
mau grado o lusitano ser casado...


41-Em Badajoz acordo foi selado
p´ra ser, depois nove anos, consumado...
denúncia de Matilde fracassara...
Recusa Afonso ao Papa explicações,
de bigamia enjeita acusações,
devolução do dote,nem pensara...


42-Reinando já decénios "Bolonhês",
a Igreja prestigia um português,
p´ra Papa um lusitano é distinguido.
Seu nome Pedro Hispano ou Julião,
p´ra Igreja, XXI como João,
por nebulosa morte surpreendido...


43 - "Das letras um egrégio varão"...
é magnum in scientia,diz-se então
do Papa que foi mestre em medicina.
Um lente em matemáticas, soberbo,
filósofo, senhor de rico verbo,
que os ramos do saber todos domina...


44-E reza a lenda,el-rei dissera um dia,
que a outro casamento acederia
se um novo dote assim lhe fosse dado...
Acordo em Badajoz selou fronteira
nas cortes de Leiria,vez primeira,
o povo passa a ser representado,,,


45-Dinis,o rei chamado "Lavrador",
da armada lusitana fundador,
poeta de miltrovas bem famosas...
desposa d´Aragão, rainha santa
que faz o tal milagre que encanta,
ao transformar do manto, o pão em rosas...


46-D´aragonesas terras, Deus o quiz,
saindo p´ra casar com D.Diniz,
chegou D.Isabel, bela princesa.
Trazendo na bagagem por missão
fazer da caridade devoção,
encantaria a gente portuguesa...


47-El-rei Diniz seria o criador
da escola de estatuto superior
de formação de lentes, embrião.
Desenvolveu as feiras e mercados,
fortaleceu a indústria dos pescados,
matais e linhos pôs em ascensão.


48-"O Bravo", Afonso Quarto, oitavo rei,
seguindo os pais ns rédeas da grei,
enceta guerra acesa com Castela.
O genro foi razão motivadora,
em causa o tratamento,vida fora,
imposto p´ra Maria, filha bela...


49-Mau grado a desavença e o agravo,
pediu Castela ajuda ao luso "Bravo"
na guerra ao sarraceno no Salado.
Afonso não enjeita a ocasião
para apoiar o genro,pois então,
ataque ao Mouro assume-se sagrado...


50-Como aia de Constança, de Castela,
chegou Inês de Castro, moça bela
por quem Infante Pedro se enamora.
Mau gradoo casamento co´a primeira,
presença da galega à sua beira
fará crescer paixão a toda a hora...


51-Bastardos vão nascer da ligação
mais tarde transformada em união,
após precoce morte de Constança.
Enlace faz sentir a corte em p´rigo...
familiares de Inês são inimigo
que se insinua,trai,nunca descansa...


52-Validos pressionam noite e dia
dizendo estar em risco a sob´rania,
levando el-rei a crime bem nefando.
A ideia é posta,clara,sem rodeios,
Inês tem de morrer por quaisquer meios,
há risco p´ro futuro de Fernando...


53-Misericórdia, roga Inês, prostrada,
os olhos marejados,mui cansada,
ao rei Afonso IV, empedernido.
Os filhos do regaço lhe arrancaram
e a jugular, num golpe, lhe cortaram
matando assim amor tão proibido...


54-O medo do futuro da Nação
roubou a Afonso, a dor, a compaixão,
deixando o filho Pedro, tresloucado.
Chegado ao poder este entroniza,
cadáver já ossada, e oficializa
enlace tão brutalmente ceifado...


55-P´ra uns "O Crú" e outros "Justiceiro",
monarca novo, el-rei Pedro primeiro,
nas Cortes d´Elvas seu povo protege.
Impõe travão ao clero, sustém nobres,
ganhando a adoração das gentes pobres,
o sofredor de amor dez anos rege.


56-Virá depois Fernando,"O Formoso",
versátil e também mui belicoso,
Castela o fez três vezes perdedor...
Reinado seu não foi apenas guerra,
deu "lei das sesmarias" para a terra
e às naus vai imprimir forte vigor.


57-Castela viu Trastâmara matar
herdeiro Pedro e seu trono ocupar,
ouvidos são rumores de insurreição...
Achando ter direito àquela c´roa
el-rei Fernando parte de Lisboa
co´a ajuda de Granada e Aragão.


58-Sedento de conquista,"O Inconstante",
julgando sairia triunfante,
acorda o casamento de seguida...
A noiva,Leonor, linda princesa
da reputada corte aragonesa
"p´ra tia" ficaria, preterida...


59- Derrota humilha o rei da lusa gente
que altera o seu noivado,de repente,
um nome igual tem nova candidata...
Segunda Leonor,é de Castela,
do rei que quis depor,é filha bela,
de novo,o nó de enlace, ele desata...


60- E outra Leonor,pior das três,
provou, que "à terceira foi de vez",
impondo ao rei Fernando ida ao altar...
O povo sai à rua em alarido,
dizendo barregã havia sido
aquela com que o rei se vai casar...


61-Recebe o rei a dita por consorte,
em Leça do Bailio, cá no Norte,
secreto foi enlace, acto brejeiro,
Razão o povo a tinha,foi provado,
que o diga Álvaro Pais,envergonhado,
por vê-la meretriz do Conde Andeiro...


62-Na terra não forjou seus cabedais,
burguês, comerciante, Álvaro Pais,
que foi chanceler-mor de Portugal.
Estatuto social então vigente
que assenta no poder terratenente,
em si ganha inimigo figadal...


63-Serviu os reis D.Pedro e D.Fernando,
deixando cargo vago,logo quando,
indignidades viu em Leonor...
Pretexto foi doença que o minava,
cansaço da função que se arrastava,
p´ro impedir de dar o seu melhor...


64-Detendo em Fernão Lopes atenção,
visível,bem diferente é a versão,
daquilo que, em verdade, Pais sentia.
"Gram nojo que pela desomrra del rei"
comum é sentimento em toda a grei,
"segumdo ha maa fama rainha avia"...


65-Morrendo el-rei, não há filho varão,
a Leonor,regente, se diz não,
e nem se aceita D. Beatriz.
Sucumbe a dinastia Afonsina.
p´ra dar lugar à nova,Joanina,
que vai ter fundador "Mestre de Aviz" ...


66-Chegado p´ras exéquias reais,
sentindo o mestre a ofensa ser demais,
ataca,enraivecido,o Conde Andeiro.
Guiado pelos nervos seu punhal,
produz um ferimento não letal,
de pronto "corrigido" por escudeiro...


67-A honra lusitana foi lavada
a golpes de punhal e de uma espada,
tombado foi o biltre, finalmente.
A amásia Leonor deixou o paço,
fugindo, a sete pés, para o regaço
d´outro qualquer amante, certamente...


68-Sabendo dominar a oratória,
João das Regras mostra a vitória
do mestre entre os quatro pretendentes.
Foi "filha do pecado", Beatriz,
os outros, por traição, Cortes não quis,
a escolha agradou às lusas gentes...

manuel maia

[Fixação / revisão de texto: L.G.]

____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 14 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3890: Tabanca Grande (119): Apresentação de Manuel Maia ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)

(...) Fui Furriel Miliciano da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 que rumou, depois do necessário IAO do Cumeré, para Bissum/Naga.

Aí nos mantivemos uns sete a oito meses para sermos apanhados na famosa operação do Cantanhez que implicou a ida de dois Grupos de Combate, (entre os quais o meu...) para Cafal - Balanta, ficando adstritos à Companhia residente (que ali se encontrava apenas há dias...) vivendo em condições infrahumanas em buracos escavados no solo sem a possibilidade de protecção de "tecto" pois o homem do monóculo não autorizava senão panos de tenda e folhas de palmeira.

Esta parceria com Cafal durou uns três a quatro meses até à chegada do resto da minha Companhia que foi destacada para Cafine (distando cerca de 2 km dali...)

Então, já reunidos, passámos a viver em tendas de campanha até termos concluída a feitura dos reordenamentos, consubstanciada em largas dezenas de habitações para a população. Só então procedemos à construção de mais algumas para serventia da companhia...

Foi um trabalho insano, mas que nos deu plena satisfação e que permitiu, estou certo, - a juntar ao episódio da captura algo fortuita de Rafael Barbosa, líder guinéu do PAIGC (em rota de colisão com os dirigentes caboverdeanos...) - a saída precoce da região, a título de prémio, creio bem...

Foram nove ou dez meses ali passados, naquela zona minguada de tudo menos de mosquitos e balas... (...)


(**) Vd. postes de:

2 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4274: Blogpoesia (43): A história de Portugal em sextilhas (Manuel Maia)

20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3915: Cancioneiro do Cantanhez (1): De Cafal Balanta a Cafine, Cobumba, Chugué, Dugal, Fatim... (Manuel Maia)

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2757: Poemário do José Manuel (8): Nhacobá, 1973: Naquela picada havia a morte



Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > Proximidades de Nhacobá > Dois guerrilheiros mortos no decurso de uma operação, em finais de 1973, que envolveu, pelo lado das NT, diversas forças (Batalhão de Comandos Africanos, a CCAV 8351, aquartelada em Cumbijã, a CART 6250, a unidade de quadrícula de Mampatá, a que pertencia o José Manuel Lopes, Fur Mil Op Esp)...

Na primeira foto vê-se o Fur Mil Gomes, madeirense (hoje a viver no Canadá), do Pel Caç Nat que estava sediado em Mampatá (o José Manuel não se lembra do nº desta sub-unidade)... Foram os soldados e as milícias africanos que despojaram os cadáveres dos seus pertences (armas, roupa e haveres pessoais), uma prática que dificilmente os graduados conseguiam evitar, prevenir e muito menos reprimir...

Este é um dos lados brutais da guerra: já não basta matar, é preciso profanar o cadáver do Inimigo, destruir-lhe o resto de humanidade, de dignidade, que deve ter um morto, mesmo que seja um combatente inimigo... O José Manuel andava sempre com a sua máquina a tiracolo... Foi ele o fotógrafo... Chegou já tarde, depois da morte e do saque... Mas o fotógrafo esteve lá. Imagens que são raras, e que ainda hoje nos chocam... Põe-se a questão (ética) de as publicar ou não.- O meu entendimento editorial, é que as devemos divulgar neste blogue: têm interesse documental, sócio-antropológico, historiográfico e didáctico... Somos decididamente contra a exploração (comercial, mediática, ideológica ou outra) da estética da violência e da morte, o voyeurismo, a morbidez, mas somos também contra o falso pudor, o cinismo e a hipocrasia.(LG)


Gente do 1º e 2º Gr Comb da CART 6250, envolvidos na oeração acima referida...Na altura já a estrada em construção (que vinha de Quebo) tinha chegado a Nhacobá... O PAIGC procurou opôr-se, com tenacidade, à sua construção, já que ela atravessava o estratégico corredor de Guileje (que, vindo da Guiné-Conacri, passava por Guileje, Mejo, Salancaur...) (1).

Com o 25 de Abril, a estrada parou em Salancaur (vd. Carta de Guileje). Hoje o alcatrão desapareceu, depois de Quebo... Há uma amostra, esburacada, entre Quebo e Mampatá (vd. Carta de Xitole)... Na foto, um dos camaradas do José Manuel está deitado, sobre o ombro esquerdo, junto a uma arvore, com um pano branco sobre a coxa direita... Foi atingido por um estilhaço de RPG e aguarda evacuação por helicóptero...

O Capitão da companhia era um miliciano, Luís Marcelino, "um amigo, antes de ser capitão" (leia-se: amigo, apesar do posto, do cargo, dos galões...), um homem por quem o José Manuel ainda hoje nutre um sentimento de respeito e de amizade... Nesta companhia, é de assinalar a deserção do Alf Mil Fragata, em circunstâncias que o José Manuel um dia poderá contar, se assim o desejar e entender.

A CART 6250, que vai apanhar o 25 de Abril em Mampatá, sofreu um único morto em combate, numa mina A/P ou A/C... É esse morto a que se refere o poema do dia que hoje publicamos, em homenagem a todos aos muitos mortos, de um lado e de outro, que esta guerra provocou.

Temos falado aqui dos "nossos mortos", espalhados por centenas de cemitérios improvisados nas muitas matas e povoações da Guiné... É justo também lembrar os mortos do PAIGC, combatentes e população que ficaram insepultos ou enterrados, sem dignidade nem honra... Haverá milhares de sítios na Guiné, onde repousam os restos mortais de homens e mulheres, mortos ao longo dos anos da guerra colonial / luta de libertação, e que nem sequer estão sinalizados...

Alguma das ideias que estão agora em discussão entre os organizadores do Simpósio Internacioanld e Guiledje (Guiné-Bissau, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008) passam também por levar a cabo um conjunto de iniciativas que melhorem "a auto-estima dos Combatentes da Independência", incluindo:

(i) divulgação da a exposição “Amílcar Cabral, a Frente Sul e Guiledje”, da Fundação Mário Soares, nas escolas e agremiações culturais de todas as regiões do país, explicada directamente por Combatentes, visando fundamentalmente os jovens que nasceram no pós-independência;

(ii) construção da sede regional dos Combatentes em Farim (Cantanhez);

(iii) recenseamento dos Combatentes de Cubucaré;

(iv) Reabilitação da Base Central na zona de Daresalam;

(v) Identificação e sinalização de todas as barracas da luta [acampamentos temporários], na mata de Cantanhez;

(vi) Continuação da recolha em DVD de testemunhos dos Combatentes;

(viii) E, por fim, e não menos importante, Dignificação das campas dos Combatentes enterrados em Cubucaré... (Ideias pós-Simpósio, que me foram transmitidas pelo Pepito, e que estão em debate) (LG).

Fotos: © José Manuel (2008). Direitos reservados.

1. Texto e fotos enviados a 12 de Abril último, pelo José Manuel Lopes (2):

Naquela picada havia a morte
havia a morte naquela picada
de vinte e quatro
foi tirada a sorte
para um foi a desgraça
o diabo o escolheu
ou foi Deus que o esqueceu
havia a morte naquele caminho
naquela picada havia a morte.

Estrada de Nhacobá, 1973
josema
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2650: Uma semana involvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (6): No coração do mítico corredor de Guiledje

17 de Março de 2008 > Guine 63/74 - P2655: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (7): No corredor de Guiledje, com o Dauda Cassamá (I)

17 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2656: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (8): No corredor de Guiledje, com Dauda Cassamá (II)

(2) Vd. postes anteriores:

27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

3 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...

9 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2619: Poemário do José Manuel (2): Que anjo me protegeu ? E o teu, adormeceu ?

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2630: Poemário do José Manuel (3): Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2665: Poemário do José Manuel (4): No carreiro de Uane... todos os sentidos / são poucos / escaparão com vida ? / não ficarão loucos ?

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...

5 de Abril de 2008 Guiné 63/74 - P2723: Poemário do José Manuel (6): Napalm, que pões branca a negra pele, quem te inventou ?

10 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2739: Poemário do José Manuel (7): Recuso dizer uma oração ao Deus que te abandonou...

terça-feira, 18 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2659: Histórias da Marinha (1): Um ataque à LFG Lira em 1967, em Cadique, no Rio Cumbijã (Manuel Lema Santos)


O NRP Lira - P 361, foi a terceira de seis LFG - Lanchas de Fiscalização Grandes, a ser construída nos Estaleiros Navais do Alfeite e a sétima de 10 idênticas, pertencentes à mesma classe Argos. Foi aumentada ao efectivo dos navios da Armada em 19 de Junho de 1964.
Montou chapa balística de protecção, de 1/4 de polegada, na ponte e no costado, na zona da casa das máquinas. A LFG Lira deixou Lisboa em 1 de Outubro com destino a Bissau onde chegou a 13 do mesmo mês, depois de ter escalado os portos do Funchal, S. Vicente de Cabo Verde e Praia. Na Guiné, desempenhou missões de simples cruzeiro, patrulha, fiscalização, transporte de fuzileiros e de militares de outros ramos das FA, incluindo feridos e prisioneiros, tendo participado em diversas operações naquele teatro de guerra. Esteve iualmente empenhada em escoltas à navegação comercial e transportes de tropas, apoio à oceanografia com colocação de bóias e reparação de marcas. Foi abatida ao efectido dos navios da Armada em 30 de Setembro de 1975, em Luanda. Efectuou na totalidade, entre 1964 e 1975, cerca de 7.817 horas de navegação.
Fonte: Foto e legenda > Blogue do Manuel Lema Santos, 8º CEORN - 1965 > Reserva Naval > 30 de Setembro de 2006 > NRP Lira (com a devida vénia...)

1. Mensagem do Manuel Lema Santos,

Assunto - As LFG da Classe Argos e os Comboios do Cumbijã


A todos os tertulianos,

Não resisto a enviar um apontamento do que foi a vida das LFG da classe Argos, desde finais de 1963 e até meados de 1968, nas temíveis passagens mensais do rio Cumbijã, frente ao Cantanhez. Com periodicidade mensal, rara era a vez em que os comboios não eram atacados, de forma mais ou menos intensa, em toda a frente compreendida entre a foz do rio Cobade e o porto-cais de Impungueda que servia Cufar, especialmente nas zonas de Catesse, Darsalame, Cafine, Cafal Nalu, Cafal Balanta e Cadique (1).

No pequeno exemplo inserido no blogue [ Reserva Naval] [...] , pretendi incutir apenas uma ideia facilmente compreendida por quem os visita, omitindo voluntariamente alguns pormenores da estratégia naval global que tornariam pesada a apresentação. Todas as LFG passaram por situações idênticas no Cantanhez e algumas - não sei exactamente quais - chegaram mesmo a aportar a Bedanda, caso da LFG Orion.

Blogue Reserva Naval > 15 de Março de 2008 > Guiné, 1967 - Rio Cumbijã: Um ataque à LFG Lira em 4 de Abril de 1967

(....) "Estas linhas são editadas como uma singela homenagem a todos as guarnições de LFG’s, LDG’s, LFP’s, LDM’s, DFE’s, CF’s, que durante anos, nunca deixaram de abastecer os aquartelamentos que disso dependiam ainda que para isso fosse necessário enfrentar o temível Cantanhez. Em todas aquelas unidades a Reserva Naval da Marinha de Guerra esteve sempre presente.

"Homenagem extensiva aos aquartelamentos de Catió, Bedanda, Cufar, Cabedu, Cacine e Gadamael que sempre nos apoiaram e receberam com Camaradagem e Amizade, sem esquecer igualmente a Força Aérea que representou, muitas vezes, a diferença decisiva entre o combóio passar ou não" (...). (2)


Um abraço para todos,

Manuel Lema Santos

_________________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 12 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2626: Fórum Guileje (1): E Cameconde ? Cabedu ? E a nossa Marinha ? (Manuel Lema Santos / Jorge Teixeira / Virgínio Briote)


(2) Excerto do artigo do nosso camarada Manuela Lema Santos, com a devida vénia (recomenda-se a leitura do original, enriquecido com fotos e um ficheiro de som):


(...) "Naquele dia, 4 de Abril de 1967, cumprida a rota de ida sem incidentes, iniciou-se então a viagem para juzante, em postos de combate, com o apoio da aviação, rumo à confluência dos rios Cumbijã e Cobade, comboiando duas embarcações civis carregadas com arroz proveniente de Bedanda.

"Tanto embarcações civis como unidades navais navegavam estrategicamente em coluna com uma LDM na testa e a outra na cauda, aproveitando a maré na vazante com os batelões encaixados a meio da coluna. Cada uma das embarcações civis levava uma guarda de fuzileiros constituída por 4 elementos. Comunicações em cima.

"A LFG 'Lira', em cruzeiro na área e vinda do rio Cacine para o Cumbijã para apoio e escolta ao comboio, mantinha-se interposta entre a cauda do comboio e a margem, ligeiramente caída para ré. Com cerca de um quarto de hora de navegação, para jusante, ouviu-se fogo de rajada de metralhadoras ligeiras da margem esquerda.

"A LDM da frente informou serem de flagelação inimiga pela amura de BB, sem que fosse possível localizar correctamente a origem. Foram dadas instruções para manter o silêncio de fogo para que, visualmente, fossem melhor localizadas as armas, pela chama à boca, evitando manobras de diversão do inimigo com o intuito de desviar a atenção do centro de fogo principal, instalado mais a montante. O desenrolar dos acontecimentos veio corroborar a hipótese.

"Pelas características hidrográficas do rio Cumbijã, na curva frente a Cadique, delimitando um estreito canal de navegação existente, o comboio via-se forçado a navegar a uma distância de 30 a 40 metros da margem.

"Precisamente nessa zona, numa extensão de cerca de milha e meia, foi desencadeado violento ataque. Quando a zona provável de origem da flagelação se encontrava no enfiamento do través do navio testa, toda a margem, numa vasta extensão de cerca de 600 metros que abarcava todo o comboio, irrompeu num fogo intenso de armas, com metralhadora pesada e ligeira, pistolas-metralhadoras e bazucas visando, sem distinção, todas as unidades do comboio.

"Quase de seguida, foi desencadeado ataque de morteiro com salvas contínuas de projecteis, algumas com o tiro bem regulado, outras com enquadramento sistematicamente longo, com as granadas a deflagrar para lá de meio do rio.

"As unidades navais reagiram instantaneamente e, em conjunto, bateram sistematicamente com Bofors, Oerlinkon e MG 42 toda a área de ataque apoiadas pelos aviões T-6 que sobrevoavam a zona, picando em sucessão e metralhando o local de ataque. A LFG, com máquinas a vante, toda a força, interpôs-se entre o comboio e o fogo, protegendo a coluna e batendo cadenciadamente a margem com as peças Bofors de 40 mm apoiadas pelas MG 42 montadas nas asas da ponte, pelo fogo das LDM’s reforçadas pelos fuzileiros.

"A cadência de fogo de barragem provocava um ruído ensurdecedor e obrigava a arrefecer os canos das anti-aéreas Boffors com as mangueiras de água ligadas. Os invólucros de latão espalhavam-se pelo convés junto ás peças de vante e de ré.

"Com alguma certeza e à medida que a navegação prosseguia, puderam contar-se diversas bocas de fogo de bazuca postadas ao longo do percurso, possivelmente actuadas por atiradores colocados em abrigos, bem como atiradores com armamento portátil.

"A intensidade de fogo e a extensão da frente inimiga permitiu estimar o grupo em mais de uma centena de homens, todos colocados junto à margem, deitados na bolanha ou em abrigos cavados. Observaram-se mesmo movimentação de alguns, dada a curta distância.

"De Cafal, quase simultaneamente, foi feito fogo de canhão sem recuo, embora apenas três ou quatro disparos e mal direccionados. O campo de tiro a partir daquela zona, não era tão afectado pela limitação natural provocada pela diferença de altura das marés. Seria possível vir a enquadrar, no mesmo enfiamento, todas as unidades que navegassem no local, para montante ou para juzante, oferecendo ao inimigo condições quase ideais para interditar a passagem à navegação.

"Provavelmente posicionado a cerca de 400 metros do comboio porquanto se ouvia distintamente o disparo, sentia-se o sopro do projécteis passando sobre as unidades para, decorrido tempo sensivelmente igual, rebentarem na margem oposta junto à agua, na bolanha.

"Na foz do rio Macobum, o comboio inflectiu o rumo para a margem contrária continuando a ser batido intensamente do lado de Cadique, sobretudo com metralhadora pesada e armas ligeiras, enquanto de Cafine rompia também fogo com armas automáticas e morteiro.

"Entretanto a LFG, ao chegar àquela zona inverteu o rumo e manteve-se frente a Cafine, a efectuar a cobertura de protecção do comboio, voltando a fechar a cauda da coluna, batendo sistematicamente as posições do ataque e calando o inimigo pouco depois.

"Tinha decorrido uma longa hora e um quarto, sem quaisquer baixas mas com diversos impates nas embarcações e nas LDM’s. Baixas prováveis no inimigo mas carecendo de confirmação".

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2443: Pami Na Dono, a Guerrilheira, de Mário Vicente (8) - Parte VII: O prisioneiro Malan é usado como guia (Mário Fitas)

Guiné > Região de Tombali > CCAÇ 763 (1965/66) > Área de actuação dos Lassas, aquartelados em Cufar, entre Catió e Bedanda (posições das NT, assinaladas a verde)... A partir da margem esquerda do Rio Cumbijã, estendia-se a mítica mata do Cantanhez, onde o PAIGC estava fortemente implantado.

Guiné Cufar > CCAÇ 763 (1865/66) > Os Lassas na estrada Catió-Cufar. Na foto vê-se um dos oitos cães de guerra (pastores alemães) que os Lassas usavaram em operações, a título experimental.


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) A bela Miriam, a lavadeira que fazia converso giro com O Furriel Mamadu...

Fotos: Mário Vicente, Putos, Gandulos e Guerra. Ed. de autor (Cucujães, 2000).



PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA (1)
por Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos, Cor
Capa: Filipa Barradas
Edição de autor
Impressão: Cercica, Estoril, 2005
Patrocínio da Junta de Freguesia do Estoril
Nº de páginas: 112


Edição no blogue, devidamente autorizada pelo autor, Mário Vicente Fitas Ralhete (ex Fur Mil Inf Op Esp, CCAÇ 726)

Revisão do texto, resumo e subtítulos: Luís Graça.

Parte VII - Os Lassas utilizam o prisioneiro Malan como guia (pp. 52-61)

(i) Em novo interrogatório, o Furriel Rafael ameaça matar a professora de Flaque Injã

Já esquecida dos interrogatórios (2), Pami estremeceu quando em princípios de Setembro [de 1965], é novamente levada para interrogatório. A cena da primeira vez, Quêba intérprete, o alferes Telmo com o seu caderno, e o furriel Rafael com a sua pistola.

Foram repetidas todas as perguntas do primeiro interrogatório, o que levou Pami a um terrível esforço, para não cair em contradição. Depois da repetição, os militares olharam-se e o alferes disse:
- Certo, agora vamos fazer a invenção da Míriam, O.K.?
- Vamos então! - retorquiu Rafael, sentando-se no chão, junto de Quêba. Voltou a puxar pelo cigarro como da primeira vez e falou para Quêba:
- Pergunta-lhe lá se ela conhece a Míriam!

Queba foi traduzindo:
- Sim! Diz que é mulher de pessoal que está na Catió.
- Muito bem! O que é que ela lhe disse de mim, e dos militares.

Pami estremeceu e pensou o pior. Não podia mentir, seria extremamente perigoso. Tinha de descrever as conversas havidas entre ela e a lavadeira do furriel.
- Diz que lava a roupa e que quer um filho do furriel.

Os três homens riram efusivamente. Mas o alferes baralhou tudo, quando solicitou a Quêba para perguntar se conhecia Caboxanque. Pami, sempre atenta, disse que sim. E aqui começou uma autêntica caça nas perguntas e respostas:
- Quantas vezes esteve no Cafal?
- Diz que passou uma vez lá, quando foi a Cabedu, mas não conhece.
- O que é que os militares fizeram em Flaque Injã?
- Não sabe! Mas ouviu falar que tropa queimou morança e escola. E matou pessoal.
- Ela fazia conversa giro só com militar ou com outro pessoal!?

Pami viu-se quase a entrar na ratoeira. Pensou um pouco, e só depois respondeu. O intérprete meneou a cabeça em sinal de negação, e disse:
-Este gaja, meu arferes, é mesmo maluco. Diz que nunca fez aquele conversa, só uma vez pessoal levou ela na mato e tirou cabaço.
- Então porque mentiu?

Rafael tirou a pistola do coldre, puxou a culatra e deve ter metido uma bala na câmara, e disse:
- Mentiu? Então vai morrer.

Aproximou-se de Pami e sorriu. A Queba ordenou que lhe dissesse tudo o que ele ia dizer:
- Então tropa dá-lhe de comer, deixa ela estar sossegada e descansada no quartel, trata ela como uma princesa! E ela paga com a mentira? Assim só pode morrer, foi ela que escolheu!


(ii) Pami teme que os Lassas faça de novo uma operação do outro lado do Rio Cumbijã, utilizando Malan como guia...


Pami começou a soluçar, não era medo. Não fazia mal morrer, e o melhor seria o maldito militar, despejar o carregador todo na cabeça dela. Não suportava era aquele jogo, ao mínimo descuido poderia ser levada a trair os seus e isso ela nunca o quereria fazer. Tentou levantar a cabeça, num assomo de dignidade, e pedir para a matarem. Mas raciocinou. Eles não poderiam ser mais fortes que ela. Jogaria até ao fim! Se um dia conseguisse sair dali, levaria um manancial de informações que seriam de capital importância para o Partido. Limpou com o pano que lhe cobria o corpo, os lacrimejantes olhos e, olhando para o furriel falou, e o milícia foi traduzindo:
- Ela diz que tem vergonha de dizer mentira, mas está com medo de furriel, porque Miriam diz a ela que furriel não tem medo de ir na mato. Pensava que estavam a brincar com ela. Ela disse tudo verdade, só mentiu naquele coisa de conversa giro! E que gosta de tropa ali da Cufar e quer ficar aqui sempre.

Instintivamente, o furriel tirou o carregador da pistola e mostrou este vazio e a câmara sem bala. Olhou para a prisioneira. Mostrou, sorriu e para o alferes disse:
- Só estamos a perder tempo com esta merda! Queba, pergunta-lhe lá se é capaz de nos levar à nova Casa de Mato de Flaque Injã.

Estremeceu toda, e ao intérprete apenas respondeu com uma negação de cabeça.

Agora sim, a prisioneira apercebeu-se de toda a manobra no interrogatório e ficou a saber muito mais do que os militares calculavam que ela soubesse, pois continuaram conversando num à vontade total, com plena certeza de que a prisioneira não entenderia nada sobre o assunto. O alferes encostou-se à parede, puxou uma longa fumaça, começou a deitar círculos de fumo para o ar e entrou em diálogo com o furriel:
- O gajo que vem do Batalhão deve saber tudo! É aquele que trouxemos de Cobumba, quando veio esta gaja. É bem possível que o gajo da PIDE lhe tenha dado a volta.
- Certo, Telmo! Mas se vier para enganar e foder a malta, como o outro gajo que andou connosco às voltas em Cabolol, até nos enfiar na emboscada das abelhas, em que morreu o Martinho?
- Se armar em esperto, foge como o outro e fica por lá para o enterrarem!
- Achas que sim?
- É, pá, o que é que nós podemos fazer?
- Sim, tens razão! O terreno já está mais ou menos conhecido. Mas... a casa de mato? Aí é que é o busílis!
.-O Alfa conhece aquilo bem, vais ver que depressa se localiza! Preocupa-me mais alguma emboscada, aquela zona é fodida!
- Arferes Telmo tem razão! Ali tem manga de chatice com emboscada, se pessoal do Cafal tem tempo e chegar ali! – pronunciou Queba, entrando na conversa. O alferes olhou para o furriel e este encolheu os ombros, num gesto de logo se vê.

O alferes Telmo mandou o milícia levar a prisioneira, e ficou, continuando a conversa com o furriel.

Pami apercebeu-se de tudo. Os Lassas iam voltar ao outro lado do rio. Mas ficou aterrorizada, seria que o alferes se estava a referir a Malan? Não!... não seria possível ele trair o seu povo. Nuvens negras toldaram o pensamento da professora. Teria possibilidades de ainda rever Malan? Tinha de estar atenta a todos os acontecimentos e verificar as movimentações dentro do aquartelamento nas próximas horas.

A meio da tarde, a professora de Flaque Injã apercebeu-se de uma avioneta, a sobrevoar o Cantanhez, na direcção de Cabedu para Bedanda. Passado um tempo, viu sair uma autometralhadora seguida de uma viatura com soldados. Momentos depois uma avioneta, fazia a aterragem na pista de Cufar. Não havia dúvidas, estavam a preparar tudo. Pami pensou quão preciosas seriam as informações que tinha em seu poder. Seria maravilhoso podê-las transmitir à guerrilha. Mas como assim?... Pela sua cabeça, passou a hipótese de evasão. Não conseguiria!... Era impossível. Ainda pensou em aliciar Meta ou Míriam, mas seria loucura, estas não iriam trair os militares. Teria de ficar passiva e isso entristeceu-a bastante.

(iii) Pami apercebe-se de que nem todos os Lassas estão ali, na guerra, de livre vontade

Agora sim, tomou a noção do que era ser prisioneira, embora pudesse circular à vontade. A avioneta levantou e tudo regressou ao normal, à exclusão da entrada para o Comando, dos oficiais e sargentos, os quais saíram em silêncio e sem falarem com ninguém. A seguir ao jantar, o Aquartelamento tomou um movimento fora do normal. O pessoal da milícia preparava o seu armamento e os soldados recolheram aos seus abrigos. Pami ouviu o comentário de dois desses incógnitos soldados que, vindos do jantar, se dirigiam para o abrigo da metralhadora pesada, virado na direcção Norte para a mata de Cufar Nalu. Dizia o mais alto:
- Cabrões, não dizem nada! Só à última da hora é que avisam a malta!

O outro mais baixo e gordinho retorquiu:
- É para a malta não se baldar. Assim já não podes imbentar nada e ficares doente, carago.
- É o caralho! Anda aqui um gajo a dar o cabedal, para os ricaços andarem a gozar em Lisboa! Foda-se esta merda toda! Esses é que se baldam a esta porra!

O gordo atalhou:
- E se não lebarmos ,um tiro nos cornos, estamos cheios de sorte, carago.

Pela primeira vez, Pami teve conhecimento que nem todos ali estariam voluntariamente, muito menos por gosto. Já noite escura os militares começaram a concentrar-se em frente ao comando. Devidamente equipados, viam-se os cinturões repletos de carregadores. Os homens das metralhadoras ligeiras, com serpentes de munições em volta de todo o tronco. Enquanto outros com um cordel a servir de bandoleira, carregavam granadas de bazooka. Os bornais completamente cheios, levariam granadas de mão e munições de reserva.

Aí estavam os Lassas preparados para mais uma incursão novamente ao outro lado do rio. A prisioneira verificou depois que cada chefe de equipa, após confirmar os seus homens, transmitia ao furriel que informava o alferes comandante do grupo de combate, e a serpente humana, em fila de pirilau, começou a deslizar rumo à saída Porta de Armas.

Junto ao Leão de Cufar, Pami, apesar da noite estar escura, conseguiu observar um soldado com uma corda à cintura, cuja ponta passava em laço, em volta do pescoço de um negro. Mesmo de costas não se enganou, a silhueta do homem que seguia preso como um animal, era a de Malan Cassamá. Tentou sair da proximidade da palhota prisão, mas de imediato foi interceptada por um soldado milícia que lhe proibiu o afastamento. Verificou que os seus passos não eram assim tão livres como pensava. Alguma liberdade, mas só de dia.

A professora prisioneira não se enganou. Não dormindo, apercebeu-se do roncar silencioso das lanchas, Cumbijã acima.

Manhã cedo ouvia os comentários que iam passando de boca em boca, dos que tinham ficado, e que geralmente se juntavam junto das transmissões, para seguirem os acontecimentos.

Pami atenta apercebeu-se que novamente o acampamento de Flaque Injã tinha sido destruído, e que os militares tinham capturado material. A meio da manhã, para lá do rio, começaram a ver-se nuvens de fumo, e a ouvirem-se sons cavos, lá longe, de rebentamentos. Pela localização das colunas de fumo, Pami apercebeu-se de que Caboxanque e Flaque Injã eram pasto das chamas. Novamente as duas povoações tinham sido vítimas e destruídas, pelo poder dos Lassas.

O céu estava encoberto, com nuvens relativamente baixas. As comunicações abrandaram, e o regresso deveria estar a processar-se. Passado que seria uma hora, os militares muito agitados, correram novamente para o centro de transmissões, e do lado de lá do rio, ouviam-se agora perfeitamente grandes rebentamentos. O céu continuava um pouco nublado. Junto ao seu presídio, Pami ouviu a conversa de soldados que se concentravam junto ao Comando.
- O que é que se passa, meu alferes? Que barulho é este?
- A Companhia foi emboscada! A coisa está preta e os cabrões dos T6 não podem actuar, por causa das nuvens!
- Então é uma porra! Estamos fodidos! Será que já há feridos?
- Julgo que de momento estamos a reagir bem, mas se os aviões não aparecerem depressa, a coisa está mesmo má.
- Meu alferes, escute!?

(iv) Um bombardeiro T-6 é atingido poelo fogo do IN e obrigado a fazer uma aterragem de emergência em Cufar

Fez-se silêncio e ouviu-se o roncar dos motores de aviões, muito alto. O sol descobria agora por entre as nuvens que aos poucos se dissipavam.
- São eles! Haja Deus! Velhinhos, mas aquilo dá uma força dentro de nós! ... Grandes homens aqueles que andam naquela merda.

Os dois militares correram para as transmissões. Pami ficou observando o horizonte, por cima da igreja em construção. Voando em círculo, dois bombardeiros faziam evoluções. Uma nuvem de fumo vermelho apareceu por sobre o lado esquerdo de Caboxanque. Um dos aviões fez uma evolução, passando quase por cima do tarrafe de Impungueda e, passado uns segundos, viu-se novamente subindo quase a pique. Daí a momentos, ouviram-se fortes rebentamentos. O avião voltou a fazer nova evolução, agora menos visível, por ser do lado contrário. Nova subida e novos rebentamentos. Os militares junto ao posto de transmissões, gritavam agora, dando vivas e batendo palmas.

O bombardeiro voltou a fazer evoluções, passando por sobre o tarrafe, e desaparecendo por detrás deste, em direcção ao cais de Caboxanque. Nova subida, e agora sons cavos de roquetes se ouviram. De repente, Pami verificou que a efusão e alegria dos soldados se desfazia e que começavam em movimento louco a correr por todos os lados. Os homens das autometralhadoras arrancaram com os seus blindados em direcção à pista. E logo pouco depois duas viaturas carregadas de gente. Que teria acontecido? Interrogava-se a prisioneira. Mas breve teve a resposta, um soldado, passando a correr, gritava para os camaradas:
- É, pá! Preparar rapidamente! Os cabrões dos Turras atingiram um T6, o piloto vai ver se consegue aterrar aqui na pista!

Pami sorriu e fez força para que ele caísse do outro lado do rio para os seus companheiros o poderem apanhar.

Mas não, o avião passou a rasar por sobre o aquartelamento e aterrou na pista. Ficou sem saber mais nada, apenas se apercebeu da entrada do piloto no Comando.

Agora era nítido o fragor e a intensidade dos rebentamentos. Ouvia agora, junto à varanda do comando, a conversa entre o piloto do bombardeiro, o tenente médico e o alferes que tinha ficado no comando do aquartelamento.
- Parabéns, meu tenente, se o motor falha, aquela merda vem directamente cá para baixo! Não é!?

O alferes transmitia assim a sua solidariedade, ao tenente piloto que ainda não estava completamente consciente, como tinha escapado daquela.
- A vossa companhia está em terreno descoberto junto ao tarrafe, a norte de Caboxanque, e os gajos estão a avançar da mata junto ao cais de Caboxanque.
- Mas porque é que a nossa companhia aparece na bolanha? - pergunta o tenente médico, pouco sabedor desta matéria. Pois o trabalho dele, era tratar as causas da guerra e não fazê-la. Olharam-se interrogativamente, os militares uns para os outros e seguiram-se entretanto uns minutos de silêncio. O alferes cofiou a barba e em tom calmo falou:
- Eu não sei bem o que se está a passar mas, pelas informações do rádio, a malta terá sido emboscada e teria divergido no sentido Norte pela bolanha, para não cair na zona de morte. Aquela descida para o cais de Caboxanque é perigosa e as forças que estão no terreno cheiram-me a E.P. [exército popular]. O capitão deve ter cheirado qualquer coisa. Para pedir a ajuda do Vaso de Guerra, e das lanchas, a complicação é grande.
- Sim! Quando piquei pela primeira vez, só via dezenas de Turras a rebolarem no chão, eles devem ter lá muita malta, vejam que os gajos fizeram-me próximo de vinte furos no avião e furaram o depósito do óleo. Hoje é de facto o meu dia de sorte!

Mas o médico voltou de novo à carga:
- É, pá! Não percebo, nem o comando aéreo aparece! Ainda não vi a avioneta, nem tão pouco helicóptero, para o caso de alguma evacuação! Eu não percebo bem isto!
- Não!? - atalhou, o piloto - É que o céu estava encoberto! Mas eu ainda entrei em contacto com a Dornnier do CA [comando aéreo], que estaria a levantar de Catió com o oficial de operações. E deve estar a chegar outro grupo de T6!
- Olha lá, parece ela!... Mas vem bem alto! - pronunciou o médico, apontando para o céu.


(v) O desânimo de Pami: será que o seu sonho de uma Pátria Livre é irrealista ?


Entretanto por sobre o Cantanhez, mais dois bombardeiros T6 aparecem. Ouve-se o barulho de um helicóptero, que aterra em Cufar. O grupo da varanda no Comando retirou-se e a prisioneira ficou sem mais informações.

A meio da tarde as viaturas saíram, regressando pouco depois com os Lassas. Pelas conversas que ouviu junto dos milícias, a Companhia ter-se-ia esquivado a uma emboscada, junto ao cais de Caboxanque. Detectando a segurança à retaguarda, os Lassas mataram esses elementos e, saindo do caminho que vai dar ao cais, divergiram para a bolanha para não entrarem na emboscada, que deveria ter muita gente do PAIGC.

Sobre Malan o qual tinha seguido como guia, a prisioneira nada conseguiu saber.

Uns dias mais tarde, Míriam contou a Pami tudo o que tinha acontecido, conforme lhe descrevera o furriel Mamadu. O pessoal do PAIGC mais uma vez tinha sido humilhado, pelos Lassas. Tinha sofrido grandes baixas, vários mortos e muitos feridos. A professora de Flaque Injã chorou e pela primeira vez o desânimo entrou no seu pensamento. Seria que o sonho de uma Pátria era irrealista?

(Continua)
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores desta série:

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2307: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (3) - Parte II: A formação político-militar (Mário Fitas)

5 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2328: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (4) - Parte III: O amor em tempo de guerrilha (Mário Fitas)

10 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2340: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (5) - Parte IV: Pami e Malan são feitos prisioneiros (Mário Fitas)

18 de Dezembro de 2007 > Guine 63/74 - P2363: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (6): Parte V: O primeiro interrogatório da prisioneira (Mário Fitas)

30 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2391: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (7) - Parte VI: Malan é entregue à PIDE de Catió (Mário Fitas)

(2) Resumos dos posts anteriores:

(i) A acção decorrer no sul da Guiné, entre os anos de 1963 e 1966, coincidindo em grande parte com a colocação da CCAÇ 763, como unidade de quadrícula, em Cufar (Março de 1965/Novembro de 1966)…

No início da guerra, em 1963 Pan Na Ufna, de etnia, balanta, trabalha na Casa Brandoa, que pertence à empresa União Fabricante [leia-se: Casa Gouveia, pertencente à CUF]. A produção de arroz, na região de Tombali, é comprada pela Casa Brandoa. Luís Ramos, caboverdiano, é o encarregado. Paga melhor do que a concorrência. Vamos ficar a saber que é um militante do PAIGC e que é através da sua influência que Pan Na Ufna saiu de Catió para se juntar à guerrilha, levando com ele a sua filha Pami Na Dono, uma jovem de 14 anos, educada das missão católica do Padre Francelino, italiano.

O missionário quer mandar Pami para um colégio de freiras em Itália mas, entretanto, é expulso pelas autoridades portugueses, por suspeita de ligações ao PAIGC (deduz-se do contexto). Luís Ramos, por sua vez, regressa a Bissau, perturbado com a notícia de que seu filho, a estudar em Lisboa, fora chamado para fazer a tropa.

É neste contexto que Pan Na Una decide passar à clandestinidade, refugiando-se no Cantanhês, região considerada já então libertada.

(ii) De etnia balanta, educada na missão católica, Pami Na Dondo, aos catorze anos, torna-se guerrilheira do PAIGC. Fugiu de Catió, com a família, que se instala no Cantanhês, em Cafal Balanta. O pai, Pan Na Ufna entra na instrução da Milícia Popular. Pami parte, com um grupo de jovens, para a vizinha República da Guiné-Conacri para receber formação político-militar, na base de Sambise. O pai, agora guerrilheiro, na região sul (que é comandada por João Bernardo Vieira 'Nino') , encontra-se muito esporadicamente com a filha. Num desses encontros, o pai informa a filha de que a mãe está gravemente doente. Pami fica muito preocupada e quer levá-la clandestinamente a Catió, enquanto sonha com o dia em que se tornará companheira do pai na Guerrilha Popular.

Entretanto, o destino prega-lhe uma partida cruel: na instrução, na carreira de tiro, tem um grave acidente, a sua mão esquerda fica decepada. No hospital, conhece Malan Cassamá, companheiro de guerrilha de seu pai, que recupera de um estilhaço de morteiro, que o atingiu na perna, no decurso da Batalha do Como, em Janeiro de 1964 (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964, levada a cabo pelas NT) . Malan fala a Pami da coragem e bravura com quem seu pai se bateu contra os tugas.

Pami é destacada para dar aulas ao pessoal do Exército Popular e da Milícia Popular, em Flaque Injã, Cantanhês. No dia da despedida, canta, emocionada, o hino do Partido, 'Esta é a Nossa Pátria Amada', escrito e composto por Amílcar Cabral. Segue para Flaque Injã, com o coração em alvoroço, apaixonda por Malan Cassamá. De regresso à guerrilha, a Cansalá, Malan fala com o pai da jovem, e de acordo com os costumes gentílicos, Pami torna-se sua mulher.

(iii) Na actual região de Tombali (Catió), no sul da Guiné, o PAIGC, logo no início da guerra, ganha terreno e populações (nomeadamente, de etnia balanat). A resposta das autoridades portuguesas não se fez esperar, com uma grande contra-ofensiva para reconquista a Ilha do Como (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964).

Entretanto, começam a chegar a Catió chegam reforços significativos. O Cantanhês, zona libertada, assusta o governo Português. Em contrapartida, no PAIGC, Nino, o mítico comandante da Região Sul, manda reforçar os acampamentos instalados nas matas de Cufar Nalu e Cabolol.

Em finais de 1964, Sanhá, a mãe de Pami, morre de doença na sua morança na tabanca de Cadique Iála. O guerrilheiro Pan Na Ufna, acompanhado da sua filha, faz o respectivo choro, de acordo com a tradição dos balantas.

Em Março de 1965, os homens da CCAÇ 763 - conhecidos pela guerrilha como os Lassas (abelhas) - reconquistam ao PAIGC a antiga fábrica de descasque de arroz, na Quinta de Cufar, e respectiva pista de aterragem em terra batida. Nino está preocupado com a actuação dos Lassas, agora instalados em Cufar, juntamente com o pelotão de milícias de João Bacar Jaló, antigo cipaio, agora alferes de 2ª linha.

Entretanto, Pami e Malan continuam a viver a sua bela estória de anor, em tempo de guerra, de sacrifício e de heroísmo. Ela, instalada em Flaque Injá, onde é professora. Ele, guerrilheiro, visita-a sempre que pode.A 15 de Maio de 1965, os Lassas destroem o acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu. A guerrilha sofre baixas mas, durante a noite, consegue escapar com o equipamento para Cabolol. Na semana seguinte, os militares de Cufar tentam romper a estrada para Cobumba. Embrenham-se na mata de Cabolol, destroiem várias tabancas na zona.

Em princípios de Junho de 1965, os Lassas (abelhas) vão mais longe, destruindo o acampamento de Cabolol. Em Cafal, o comando político-militar do PAIGC está cada vez mais preocupado. Em Julho, Pami chora de dor, raiva e revolta ao ver a sua escola destruída, em Flaque Injã. Grande quantidade de material desaparece ou fica queimado. As casas de Flaque Injã ficam reduzidas a cinzas.

Mas a luta continua... Psiquicamente recuperada, a população começa a reconstrução de Flaque Injã e Caboxanque. A guerrilha recebe mais reforços e armamento novo. Pami entra voluntariamente numa coluna de reabastecimento que a leva à República da Guiné. Segue o corredor de Guilege, e sobe de Mejo para Salancaur, daqui para o Xuguê [Chuguè, segundo a carta de Bedanda,] terra de seus avós paternos. Desce até Cansalá, onde se encontra com seu marido. Não encontra seu pai, pois este fora transferido para o Cafal, e ali integrado numa companhia do Exército Popular.

Em meados de Agosto de 1965, Pami Na Dondo desce com Malan Cassamá até Cobumba. Malan e o seu grupo levam a cabo várias acções contra a tropa e o quartel de Bedanda. O grupo regressa a Cansalá. Uma delegação da OUA visita as zonas libertadas, a convite do PAIGC.

(iv) Madrugada de 24 de Agosto de 1965, Pami e Malan dormiam nos braços um do outro quando a tabanca, Cobumba, sofre um golpe de mão do exército português, que tem a assinatura dos Lassas.

No grupo de prisioneiros que são levados para Cufar, estão Malan e Pami que terão destinos diferentes. Pami estão integrada num grupo de cinco mulheres e procura nunca denunciar a sua condição de professora. Em caso algum falará recusará falar em português ou em crioulo. Mas os seus olhos de águia vão observado tudo, no caminho até ao quartel dos Lassas. No rio Cadique o grupo embarca em lanchas da Marinha. O Alferes Telmo não deixa que ninguém toque nas mulheres. Fala em psico, uma palavra que Pami desconhece. O grupo é entregue à guarda ao Furriel Mamadu.

Pami mal reconhece a antiga fábrica de descasque de arroz, a Quinta de Cufar, onse se instalaram os Lassas. Os prisioneiros são recebidos por militar dos óculos que, mais tarde Pami vem a saber tratar-se de Carlos, O Leão de Cufar, comandante do aquartelamento. Homens e mulheres são instalados em sítuios diefrentes. Malna e Pami entrecuzram o olhar, sem se denunciaram. Sabem que dizem ali adeus para sempre. Lágrimas nos olhos, Pami sente a dor da separação. )Pami e as prisioneiros ficam à guarda da milícia de João Bacar Jaló. Recusa-se a comer, bebe só água. No dia seguinte, a vida no aquartelamento retoma o seu ritmo. Pami pode agora ouvir e até ver perfeitamente, por entre as frestas das paredes de capim ao alto entrançado com lianas, tudo o que acontece por fora da palhota onde tinha passado a noite.

(v) Começam os interrogatórios dos prisioneiros, em Cufar. Um soldado milícia, da torpa de João Bacar Jaló, vem buscar Pami. Pelo caminho, Pami vai-se preparando mentalmente para mentir aos seus captores e sobretudo para não comprometer Malan. Entretanto, com os seus olhos de águia, vai observando e registando todos os pormenores da vida no aquartelamento dos Lassas.

Um milícia serve de intérprete. O interrogatório é conduzido pelo Alferes Telmo, acompanhado pelo Furriel Rafael (de alcunha, Mamadu), um e outros reconhecidos de imediato pela Pami. Respondendo apenas em balanta, diz chamar-se Sanhá Na Cunhema (nome da mãe) e ter nascido na Ilha do Como.
Os militares decidem mudar de táctica. Rafael encosta-lhe o cano da pistola ao seu ouvido, e pergunta-lhe, através do intérprete, o que aconteceu à sua mão esquerda... Um pouco trémula, diz que, quando era criança, fora mordida por uma cobre, tendo o pai sido obrigado a cortar-lhe a mão para a salvar...

Pami parece não convencer os seus interlocutores. Os dois Lassas entram em provocações de teor sexual, pensando tratar-se de uma eventual prostituta ao serviço da guerrilha... O interrogatório irá continuar nos dias seguintes. Pami regressa, exausta, para junto das suas companheiras de infortúnio. Mas, ao mesmo tempo, sente-se orgulhosa por. neste primeiro round, não ter traído os ideais de seu pai, Pan Na Ufna e de seu marido, Malan, valentes guerrilheiros do PAIGC.

(vi) Pami está exausta e confusa, depois do primeiro interrogatório com os rangers Telmo e Rafael (ou Mamadu). Próximo da hora de almoço do dia seguinte, Pami foi levada novamente para ser interrogada. Só que para surpresa sua, o interrogatório não era com os mesmos do dia anterior. Sente que tem de ter muito cuidado. Não pode cair em contradição, ou ceder qualquer pista, pois não sabe nada sobre o que está a acontecer ao seu marido Malan Cassamá, e agora tinha muitas mais razões para a sua inquietação, resultante das revelações feitas pelos seus inquiridores. Sim, ficou a saber que Telmo e Rafael pertenciam a tropas especiais. Porquê a sua inclusão numa companhia normal do exército colonialista, interroga-se ela?

Entretanto Malan é denunciado como guerrilheiro do Exército Popular e é entregue à PIDE de Catió. A professora apercebe-se que os seus companheiros, homens, estão a ser interrogados com a ajuda de cães para aterrorizar mais. Entre as mulheres prisioneiras, já teria havido confissões. Uma, pelo menos, foi alvo de abusos sexuais. As que colaboram com os Lassas são soltas.

Entretanto, a balanta Pami torna-se confidente de fula Miriam e sente um ódio profundo pelo Furriel Rafael (Mamadu, segundo o seu nome de guerra). Os Lassas, por sua vez, voltaram a ir ao outro lado do Rio Cumbijã. Meta, casada com um milícia e amiga da Miriam, contou que tinham andado por Cadique Iála, e que tinham morto muita gente, e queimado as casas todas. E não tinham tido nem mortos nem feridos.

Pami apercebeu-se que de facto as coisas deveriam ter corrido bem, porque houve grande festa no Comando. Mas também poderia ser festa de anos do furriel Rafael, como afirmara Miriam. Era certo que quando algum furriel ou alferes fazia anos, havia sempre grandes festas. Era uma forma de criar corpo de unidade, delineado pelo macaco velho do Leão de Cufar, o chefe dos Lassas.