Mostrar mensagens com a etiqueta Rio Udunduma. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Rio Udunduma. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4317: Os Bu...rakos em que vivemos (8): Estância de férias Mato de Cão, junto ao Rio Geba (J. Mexia Alves)

1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil da CART 3492, (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15, (Mansoa).

Caro Carlos

Tendo em vista a série Os Bu... rakos em que vivemos, lembrei-me do Mato de Cão, pois então, nome oficial segundo sei, da reconhecida estância de férias junto ao Geba, e que albergou durante largos meses o Bando do 52.

Ora bem, chegava-se ao Mato Cão, (tiro-lhe o de), vindo de Bambadinca, pelo rio Geba, de sintex a remos, aportando aos restos de um antigo cais(?), onde se desembarcava.

Se me não falha a memória, logo à esquerda, e com vista para a bolanha do lado do Enxalé, ficava o complexo dos balneários, sobretudo a zona de duches.
Dado o clima ameno e soalheiro, estes duches ficavam ao ar livre, e eram constituídos por um buraco no chão, que dava acesso a um poço, cheio de uma água leitosa, e que respondia inteiramente aos melhores padrões da qualidade de águas domésticas.

Os utentes colocavam-se à volta do referido buraco e, alegremente, todos nus em franca camaradagem, (nada de más interpretações!), utilizavam uma espécie de terrina da sopa, em alumínio da tropa, presa por umas cordas, e que, trazida à superfície cheia de água, era a mesma retirada da referida terrina com umas estéticas latas de pêssego em calda, derramando depois os militares a água sobre as suas cabeças para procederem aos seus banhos de limpeza.

Para se chegar ao destacamento propriamente dito, subia-se então uma ladeira íngreme, (o burrinho da água só a conseguia subir em marcha atrás), acedendo-se então à parada à volta da qual, mais coisa menos coisa, se desenvolvia todo o complexo militar.

À esquerda, salvo o erro, ficavam os espaldões de dois morteiros 81 e respectivas instalações, dormitórios do pessoal do pelotão de morteiros.

Um pouco mais à frente e do lado direito ficava o bar e a sala de banquetes, toda forrada a chapas de zinco e assim também coberta, sendo aberta do lado da frente para o exterior, como convém a instalações de férias em climas tropicais.

A arca a pitrol refrescava as cervejas que o pessoal ia com todo o prazer consumindo. Fazia também algum gelo para dar mais alegria aos uísques emborcados, sobretudo ao fim da tarde.

Para encurtar razões, e sobretudo o texto, os quartos de dormir eram todos situados abaixo do chão, cavados na terra, para que assim não se perdesse o calor que tanta falta fazia nas longas noites de Inverno da Guiné!

Por cima, o telhado, de chapas de zinco, era sustentado normalmente em paus de cibo, que assentavam em graciosos bidões cheios de uma massa de cimento e terra.
Lembro-me de como era agradável o jogo que então fazia, quando deitado na cama, os ratos, de quando em vez, passeavam por cima do mosquiteiro, e com pancadas secas os projectava contra o tecto, voltando depois a cair sobre o mosquiteiro.

Tal jogo e divertimento não se consegue nas melhores estâncias de férias das Caraíbas!

No espaço central deste planalto, (porque o Mato Cão era um pequeno planalto), erguiam-se as tabancas do pessoal africano do Bando do 52.

Tudo estava rodeado de umas incompreensíveis valas sobretudo para o lado Sinchã Corubal, Madina, Belel, junto à qual, se a memória não me atraiçoa, estava uma guarita térrea com uma metralhadora Breda.

Ao fim da tarde, e na esplanada do bar e sala de banquetes, bebendo umas cervejas e uns uísques, o pessoal esperava ansioso o ligar da iluminação pública, o que curiosamente nunca acontecia, talvez pelo facto de não haver gerador no Mato Cão.

Bem, o Mato Cão era um verdadeiro Bur…ako, tendo apenas a vantagem, valha-nos isso, do pessoal amigo do PAIGC não ter incomodado muito durante a minha estadia.

Há aliás um post no blogue, de alguém ligado à Força Aérea que faz uma descrição do Mato Cão, por onde passou de helicóptero, que é reveladora das condições de vida (**).

Ah,… uma coisa boa… tinha um lindíssimo Pôr-do-Sol!

Abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves

Mando fotografias que podem escolher obviamente.
Tenho pena de não ter nunhuma dos banhos!!!
Na 2024 está este vosso amigo com os Furriéis Bonito, Santos e Varrasquinho, por ordem de alturas!!

A chega à Estância era sempre um momento vivido com prazer

Para que não fiquem dúvidas quanto à qualidade do serviço, aqui fica a vista parcial das modelares instalações

Na sala de jantar imperava o conforto e era obrigatório o uso de traje formal, como documenta a imagem

Um pequeno descanso após as lautas refeições, era sempre bem-vindo

Os momentos de diversão eram proprcionados utilizando os mais modernos equipamentos à disposição. Indispensável a companhia de animais domésticos, seleccionados entre as melhores raças da espécie.

Mais um recanto. Cada hóspede tinha direito a dois colaboradores, sempre atentos às suas necessidades

O convívio e a camaradagem são notáveis. Reparem que o camarada da direita (Fur Mil Varrasquinho), para não correr o risco de estragar a sequência de alturas, se encolhe ligeiramente

Prova de que não estamos aqui a enganar as pessoas, é este lindíssimo pôr-do-sol em Mato Cão.

Fotos: © J. Mexia Alves (2009). Direitos reservados.
Fotos editadas e legendadas pelo editor



2. Comentário de CV:

Desculpem-me, mas é mais forte do que eu. Tenho que meter a colherada.

O camarada Mexia há muito que nos presenteia com alguns mimos literários, carregados de humor e ironia. Duas coisas indispensáveis quando queremos doirar a pílula.

O período entre o 25 de Abril e o 1.º de Maio é, por excelência, a época em que, como aves migratórias, aparecem os heróis da clandestinidade, que coitados, em países subdesenvolvidos como França, Bélgica, Holanda e equiparados, para evitarem a chatice de irem fazer a guerra colonial, sofreram as mais violentas agruras, disparando perigosas canções revolucionárias, enquanto figurões, como o Mexia Alves, se deleitavam em luxuosos aquartelamentos militares da Guiné, Angola e Moçambique, onde a falta de conforto era coisa impensável.

No caso particular, Burako de Mato de Cão (***), fala quem sabe, pois as Termas de Monte Real foram fundadas pela família deste nosso camarada.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Maio > Guiné 63/74 - P4288: Espelho meu, diz-me quem sou eu (1): Joaquim Mexia Alves

Vd. último poste da série de 27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4252: Os Bu... rakos em que vivemos (7): Destacamento de Rio Caium (Luís Borrega)

(**) Possivelmente o António Martins de Matos... Vd. poste de 11 de Março de 2009 >Guiné 63/74 - P4010: FAP (15): Correio com antenas... (António Martins de Matos, ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74)

... Mas não é. O Joaquim já descobriu qual é, é um poste, mais antigo, de 2 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1912: Um buraco chamado Mato Cão (Nuno Almeida, ex-mecânico de heli / Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 52)

Aqui vai um excerto: é uma história, bonita, de solidariedade entre a gente do ar e da terra:

(...) Mensagem de Nuno Almeida, ex-Esp MMA (Canibais), DFA Guiné, que vive em Lisboa (foto à esquerda, cortesia do blogue de Victor Barata, Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74), a quem agradeço, mais uma vez´, este depoimento, mas não volto a convidar para aderir à nossa Tabanca Grande, porque ele já cá está, de pleno direito... (LG):

Camarada Mexia Alves:

Estava a ler o blogue do Luís Graça e vi a sua referência a Mato Cão, o que me fez recordar um episódio, não sei se passado, também, consigo e que passo a relatar:

Fui mecânico de helicópteros da FAP e cumpri o ano 1972 na Guiné. Um dia, creio que no Verão de 1972, fui com um heli fazer o que, creio, se chamava o Comando de Sector (levar o [Ten-] Coronel de Bambadinca a visitar os aquartelamentos).

Fomos visitando vários locais e, quando sinto o piloto fazer manobra para proceder a uma aterragem, fico em estado de choque, pois não se vislumbrava nada no terreno que indicasse haver ali alguém ou algo minimamente capaz de albergar seres humanos. Inicialmente temi que o piloto tivesse detectado alguma falha no aparelho e fosse aterrar para que eu verificasse a condição do mesmo e poder continuar a voar. Mas quando aterramos (num espaço de mato desbravado e completamente inóspito), e a intensa poeira, levantada pelas pás do heli, começa a assentar, vejo surgirem, de buracos cavados no chão, homens em estado de higiene e aspecto físico degradantes (pelo menos aos olhos dum militar que dormia em Bissau e tinha água corrente para se lavar a seu bel prazer).

Chocou-me, e ao piloto também, a situação sub-humana em que esses homens estavam a viver.

A sua reacção, ao verem o [Ten-] Coronel, foi a de parecer que o queriam linchar, tal era a sua revolta pelo que estavam a ser obrigados a suportar.

Quando regressámos a Bambadinca, o piloto foi ao bar e comprou dois pacotes de tabaco Marlboro, escreveu neles algo que creio foi: "com a amizade da Força Aérea", e quando passámos à vertical de Mato Cão largámos esses pacotes, querendo demonstrar a nossa solidariedade para com quem tão maltratado estava a ser.

Mais tarde, em [25 de] Novembro de 1972, fui ferido [com gravidade], ao proceder a uma evacuação, na mata de Choquemone, em Bula, e aí melhor me apercebi das privações e sobressaltos que, a todo o momento, uma geração de jovens, na casa dos 20 anos, foi obrigada a suportar, adquirindo mazelas físicas e, principalmente, psicológicas, que ainda hoje perduram, e que muitos teimam em não aceitar que existem e estão latentes no nosso dia-a-dia.

Abraços, do ex-1º cabo FAP Nuno Almeida (o Poeta)
(...)

(***) O sítio, paradisíaco, do Mato Cão era tão popular na época que no nosso blogue há mais de três dezenas de referências com este descritor: Vd. marcadores ou palavras-chave na coluna do lado esquerdo...

Esta estância (turística) também era muito frequentada por outros camaradas nossos como o Beja Santos (Pel Caç Nat 52, 1968/70), Luís Graça e Humberto Reis (CCAÇ 12, 1969/71), Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63, 1969/1)... Mas nesse tempo não ainda havia as luxuosas infra-estrtuturas hoteleiras aqui tão bem descritas pelo J. Mexia Alves (devem ter construídas e inauguradas depois, em 1972)... O turistame fazia lá campismo selvagem... Bons tempos! Nessa altura o Rio Geba era muito concorrido, até se faziam comboios entre o Xime e Bambadinca e até mesmo Bafatá (no chamado Geba Estreito)... Dizem-nos que o rio agora está assoreado, por aquelas bandas... (LG)

segunda-feira, 9 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4005: Para amenizar, quem conhece a NEP das abelhas? (J. Mexia Alves)

1. Caros camaradas, atentemos à mensagem do nosso camarada Joaquim Mexia Alves(*), com data de 6 de Março de 2009, que nos traz uma questão, que tempos idos teria uma importância primordial. Felizmente hoje as nossas abelhas são bem mais pacíficas, eu que o diga pois experimentei ataques daqueles insectos lá e cá.

Quem estiver em condições de esclerecer o nosso camarada Mexia Alves, faça o favor de se apresentar.


Caros Luis, Virgínio, Carlos e todos os camarigos.

Vamos lá então amenizar a coisa que isto por aqui está muito denso!

E então lanço um desafio aos camarigos que souberem da coisa, para darem ao conhecimento da Tabanca, uma célebre NEP, de que no meu tempo muito se falava na Guiné.

Era conhecida pela NEP das abelhas e eu nunca a vi e nunca a li, mas ao que me diziam, continha coisas de "bradar aos céus".

Segundo diziam, a NEP preconizava entre outras coisas, em caso de ataque de abelhas, a entrada imediata no curso de água mais perto...

Dizia-se também que a mesma aconselhava o rebentamento de granadas de fumo, talvez com o intuito de dar a conhecer ao inimigo a nossa posição!!!

Não sei se a NEP existia ou não e se continha tais "conselhos", mas embora nunca tenha tido nenhum ataque de abelhas, sei que era uma coisa terrivel, que fazia o pessoal atacado entrar num descontrole total e lembro-me de ouvir referir, que um Alferes de uma Companhia Independente teria morrido na mata de vido às multiplas picadas de um ataque de abelhas.

Alguém sabe alguma coisa sobre isto, da NEP, ou mortes causadas pelas abelhas?

Abraço camarigo a todos do
Joaquim Mexia Alves

(*) Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp, CART 3942 (Xitole), Pel Caç Nat 52 (Mato Cão / Rio Udunduma) e CCAÇ 15 (Mansoa)
__________

Nota de CV:

Vd. poste da última intervenção de Joaquim Mexia Alves de 2 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3965: Nuvens negras sobre Bissau (7): Ao combatente Nino Veira, um poema de Joaquim Mexia Alves

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3382: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (4): Rio Udunduma, destacamento do Xime

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > CART 2520 (1969/70) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > 1969 > Foto 6 > "Lembro-me de poucos momentos, desse tempo, a cores… Ponte do Rio Udunduma onde nos banhávamos e, à falta de um aparelho de pesca capaz, houvesse quem apanhasse peixe à granada… Vê-me, Luís, esse par de bidões, e diz-me se não são uma ternura!"...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > CART 2520 (1969/70) > 1969 > Foto 8 > "Eis-me, quase de corpo inteiro e, considerando o meu aspecto, sem motivos para manifestações narcísicas… Estava mesmo estourado, depois do regresso de uma incursão pela mata. Em que dia? Foram de mais para saber qual".

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > CART 2520 (1969/70) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > 1969 > Foto 9 > "Udunduma. Quem seria o dono da Piroga? Sei é que o rio era estreito e os putos que chegavam pela hora do almoço, na expectativa de umas sobras, acabavam por infundir-nos alguma tranquilidade… Ora, como poderia o IN flagelar-nos na presença deles? Mas a partir do entardecer, o coaxar das rãs era mesmo infernal!"...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > CART 2520 (1969/70) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > 1969 > Foto 18 > "A Ponte do Rio Udunduma não se vê, mas asseguro que ficava a um quarentena de passos. O soldado, pai da criança, passou por ali, com a sua mulher que confessa o propósito de abandonar o marido"...


Fotos (e legendas): © Renato Monteiro (2007). Direitos reservados (*)

(Continuação da publicação do álbum fotográfico do Renato Monteiro) (**)
___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)

(**) Vd. postes anteriores desta série:

13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3199: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (1): Contuboel (1968/69)

16 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3210: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (2): O mítico cais do Xime (1969)

2 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3263: Álbum fotográfico do Renato Monteiro (3): Xime, o sítio do meu degredo

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3172: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (42): Cartas de um militar de além-mar em África... (5)


Texto de Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Operação Macaréu à vista

Episódio XLII

CARTAS DE UM MILITAR DE ALÉM-MAR EM ÁFRICA PARA AQUÉM EM PORTUGAL (5) E OUTRAS PARAGENS EM ÁFRICA

Beja Santos

Para Comandante Avelino Teixeira da Mota, em Luanda


Sr. comandante e meu querido amigo,

Cá recebi as suas notícias, vejo que está asfixiado em papel e sempre a investigar nas poucas horas disponíveis. Surpreende-me vê-lo tão indiferente com as atracções de Luanda. Peço-lhe que não se esqueça de contactar o meu primo José Augusto Gândara de Oliveira, ele está ansioso por o conhecer. Estou agora nos Nhabijões, o reordenamento é enorme, mais de mil e seiscentas pessoas estão envolvidas, a obra de engenharia é de grande fôlego, estamos a fazer policiamento, tem havido raptos, roubos e episodicamente os nossos vizinhos de Madina lançam umas canhoadas da outra margem do Geba. Não percebo muito bem para quê, é puro fogo de vista, eles sabem que nós sabemos que é aqui que se abastecem, aqui têm familiares que lhes dão informações. Depois dos policiamentos, aproveito as últimas horas de luz, leio o que posso.

Venho revelar-lhe o meu espanto quanto a um documento de que já me tinha falado, confessando-lhe que a sua leitura foi uma feliz surpresa. Trata-se do relatório do administrador da circunscrição de Geba, Vasco Calvet de Magalhães, referente a 1914. Foi uma neta do régulo Mamadu Sissé que mo emprestou através de uma professora de Bambadinca. Nunca li nada igual, o desassombro, o recorte literário, o entusiasmo das descrições tanto dos usos e costumes como das lutas entre etnias; Calvet de Magalhães fala inclusivamente de termos linguísticos locais e até da maneira como se deve resolver o assoreamento do rio Geba.

É evidente que não lhe estou a dizer nada que não saiba, quem foi apanhado de surpresa fui eu. Pergunto-me se este relatório é único, tal o inédito destas informações. Por exemplo, fico a saber que o régulo do Cuor, na época, se chamava Abdul Jujaz (não era Abdul Indjai?). Ele escreveu este relatório para o governador em Bolama ou queria fazer chegar as suas preocupações a Lisboa, candidatar-se a um qualquer cargo político? Não acredito que fosse comum na época escreverem-se coisas como estas: "O corpo de guardas é insuficiente! Não chegam mesmo para policiar a população; daí resulta que esta administração tem constantemente de encarregar diversos indígenas para irem desempenhar funções inerentes aos guardas, sem receberem remuneração alguma"; "Estes indivíduos recebem apenas uma instrução superficial e quando já sabem soletrar e juntar duas letras dão por finda a sua instrução, sendo, no futuro, uns descontentes, porque não vêem realizadas as suas aspirações, na escola não lhes criaram hábitos de trabalho"; "Os sírios começaram a aparecer em 1911 e são hoje uma elevadíssima colónia... O indígena é uma vítima nas mãos destes indivíduos que sem consciência nem escrúpulos o exploram". Estes são exemplos avulsos da linguagem crua de Calvet Magalhães. Penso que no futuro não se poderá estudar a situação da Guiné nesta época sem o ter em conta. Tomei nota do que ele escreve sobre os empregados aduaneiros: "Quando tomei posse do lugar de residente nesta circunscrição, em 1909, havia apenas um posto fiscal a que se chamava posto fiscal do Boé. Nunca houve, porém, posto algum no Boé, pois o que havia era em Pai-Ai, muito aquém do Boé. O aspirante ali destacado fazia o que queria. Apreendia borracha, mercadorias e dinheiro aos indígenas do nosso território, enfim, um verdadeiro salteador de estradas e nunca um funcionário da Alfândega. O que é, porém, uma verdadeira lástima, é o corpo de guardas fiscais. São recrutados entre indivíduos que já têm longa permanência na província, cheios de vícios e de uma indisciplina inacreditável. O guarda que estava em Bambadinca embriagava-se todos os dias, acabando por querer agredir o chefe de posto daquela localidade com um faca. O que estava em Che-Che encontrei-o no caminho a chorar, dizendo-me que ia para Bafatá, porque não podia viver sozinho no mato! O que foi para Che-Che substituir o primeiro não vem a Bafatá quando é chamado pelo chefe de posto fiscal e cada mês apresenta apenas o rendimento de cinquenta a sessenta centavos... Isto é para que V. Exa. possa avaliar a qualidade de pessoas que existe na classe de guardas fiscais!" Ele devia ser esforçado, procurou conhecer os rudimentos da etnografia e da antropologia. Fala da raça fula como formada por nómadas que vieram residir para os territórios dos mandingas e beafadas. E escreve: "A cor do fula varia entre a cor do bronze florentino e o negro mais carregado. Reputam-se brancos, a estatura é regular, têm a fronte bem desenvolvida, nariz aquilino, boca grande, os incisivos proeminentes, os membros perfeitamente bem modelados. Uma diferença enorme existe entre a mulher fula e a mulher fula-preta. A primeira tem glândula mamária perfeitamente esférica enquanto que a segunda tem-na em forme de pêra... Os mandingas têm as espáduas altas, o pescoço mais curto, o esqueleto mais forte do que os fulas". Decididamente, ele tinha pendor por estes estudos etnográficos, escreve sem hesitar, como se dominasse a matéria. "Todos os fulas-pretos ou fulas cativos da região Geba guardam respeito aos fulas forros. Todos os fulas-pretos da região são descendentes de mandingas, beafadas e soninqués... As crianças, criadas de pequeninas no meio dos fulas, e vivendo com eles em comunidade, herdavam-lhes todos os hábitos e esquecendo as suas línguas primitivas só falavam a fula. Daí resulta o chamar-se-lhes fulas pretos porque sendo os fulas forros de tez acobreada e não se julgando pretos fizeram esse distinção". Desculpe estar a ser enfadonho, até pretensioso, falando-lhe do que conhece muito bem. Mas tomei este Calvet Magalhães como um funcionário raro na observação, na crueza da narrativa, embalado por encontrar soluções, por combater a corrupção, por querer conhecer a religião, a organização social, a língua dos povos que administra.

Para lhe ser sincero, sinto que a minha missão aqui está prestes a findar. Vi partir os meus camaradas com quem convivi praticamente vinte e três meses, os que acabam de chegar parece que não precisam da minha experiência. Muitos dos meus soldados partem também, o contingente actual não tem praticamente nada a ver com aquele que eu conheci em Agosto de 1968. E é ingrato repetirmos dia após dia, semana após semana, as mesmas colunas de reabastecimento, as idas ao correio, as emboscadas nocturnas, a protecção das populações. Não é cansaço que sinto, é falta de aproveitamento. Ninguém nos pergunta como tem evoluído a guerra, como responder à implantação do inimigo no terreno. Não o incomodo mais com os meus desabafos, vou pôr agora os meus aerogramas a Bambadinca e passo a noite a montar segurança na ponte de Udunduma, sempre com o meu pelotão repartido. Até breve e, por favor, continue a escrever-me.

O comandante Teixeira da Mota, em aerograma de Agosto de 1969, falou-me pela primeira vez nos sónôs, perguntou-me se já vira alguma e se não me importava de perguntar junto das gentes do Cuor. Ele escreve numa comunicação que apresentou em 1963: "Objectos constituidos por hastes de metal com cerca de 1,20m de altura e com a parte inferior adelgaçada ou terminando em ponta de seta. Ao longo da haste há por vezes braços laterais, terminando frequentemente em pequenas figuras de bronze, quase sempre representando fuguras humanas. No topo da haste principal estão encaixadas esculturas de bronze representando cavaleiros. São simbolos da realeza ou da chefia, antes da islamização". Contituem um património de incalculável valor sobre a velha arte animista, bem gostava de ter um.


Teixeira da Mota vive afogado em papéis, no Comando Naval, em Luanda, viaja pelos rios Zaire, Zambeze, Cuíto e Cuanza. Fala da sucessão de Amílcar Cabral e suspira por regressar ao Centro de Estudos de Cartografia Antiga, onde, aliás, irá produzir as suas últimas magníficas obras de investigação.


Para Ruy Cinatti

Ruy, Dear Father,

Chegaram os seus livros, comecei logo a ler "Cien años de soledad", de Gabriel García Márquez. Meu Deus, que livro assombroso, mesmo não percebendo eu muitas da expressões deste castelhano da Colômbia. Já devorei quase cem páginas, a família Buendía e a povoação de Macondo vão ficar na literatura universal, estou absolutamente certo: magia , feitiço da palavra, a atmosfera das Caraíbas, gente retirada da literatura das fadas e dos génios de encantar. Muito obrigado por tudo.




Capa dos estúdios das Publicações Europa-América, tradução de Eliane Zagury. O exemplar que li devolvi-o ao Ruy Cinatti em 1970, era edição em espanhol, bem sofri mas deslumbrei-me. É um dos livros da minha vida, embora prefira Amor em tempos de cólera, a paráfrase do amor eterno. Todos os elogios apoucam ouvir falar deste colosso literário e não o devorar, primeiro, saboreando-o, a seguir: Muitos anos depois,diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo... Penso que o livro surgiu entre nós aí por 1971, continua êxito imparável.



O que se passa por aqui tem pouco interesse: estou nos Nhabijões, vejo uma nova povoação crescer, ando entretido com várias lides, desde destruir canoas do inimigo, a fazer autos de justiça militar, regresso às tarefas de professor, às emboscadas e apoio, quando me pedem, com informações o novo batalhão que acaba de chegar a Bambadinca. Em princípio será assim até ao fim do mês, parece que depois irei montar a segurança de uma estrada que está a ser alcatroada a partir do Xime, até Bambadinca.

Todo o tempo que posso reservar aos meus cadernos é destinado a leituras sobre a Guiné, aqui não há bibliotecas, nem mesmo em Bafatá encontro publicações que permitam conhecer o meio local, leio o que me emprestam. Imagine que eu já tinha a separata que me ofereceu sobre a casa timorense, comunicação que V. apresentou num congresso internacional de etnografia, em 1963. Pois as actas desse congresso foram-me agora emprestadas, reli o seu artigo que vem junto à comunicação de Teixeira da Mota, a dele sobre os bronzes antigos, os sónôs. O comandante já me tinha escrito em Agosto do ano passado a pedir-me para eu perguntar no Cuor e aqui em Bambadinca se havia vestígios de sónôs. Ninguém tinha visto essas esculturas que são ferros com mais de um metro e vinte de altura que têm braços laterais, também de ferro, que terminam frequentemente em pequenas figuras de bronze, quase sempre representando figuras humanas. De acordo com o nosso comum amigo, são símbolos da realeza ou de chefia antes da islamização. Certos actos importantes para a vida colectiva, como fazer a guerra, não eram decididos sem previa consulta ao sónô. Estas esculturas entraram em declínio no século XIX, com a islamização dos soninqués. Estes registos que vou fazendo despertam-me para a realidade dos meus estudos, se é verdade que ainda tenho deveres com os meus soldados, os Nhabijões têm metas próprias, não me provocam o fascínio de Missirá, não são a minha gente. Qualquer dia estou por aí, tenho muitas saudades suas, não pode imaginar como a sua presença é poderosa, as suas cartas têm sido um dos pilares da minha resistência. Mais uma vez muito obrigado por tudo e que Deus cuide da saúde do Dear Father.


Tinha estado a ler o livro de Apollinaire, que Ruy cinatti me enviara. É poesia sem interesse nenhum, é mesmo a última incursão no género. Retive 2 ou 3 imagens com alguma expressão intrínseca: «abicagem da galáxia numa cabana»; «falo do amor no açude dos tímpanos»; «ano versado, na parede brota um palavrão: guerra», nada mais. Mas senti os meus 25 anos, queria recomeçar a vida, estava apreensivo pela separação em marcha da solidariedade cimentada com os meus soldados.


Foi indiscutivelmente um grande poeta, inclassificável, um ilustre antropólogo, um amigo devotado de Timor. Deu-me uma companhia exemplar nos dois anos da Guiné, tenho legítimo orgulho em referir as suas cartas, os seus poemas que ali recebi, guardo a profunda saudade dos seus cuidados, comigo e com os meus soldados feridos. Encarou com o maior estoicismo a sua morte, em 1986, no Hospital de Santa Marta. Legou todos os seus bens à Casa do Gaiato.

Para Cristina Allen Santos

Meu adorado amor,

Bambadinca mudou muito com a partida destes amigos a quem tanto devo. Penso que o David Payne em breve vai para Lisboa, levei ao Xime o Augusto e o Calado, foi a segunda e a última leva do BCaç 2852. Não me perguntes como vai ser o meu futuro, aguardo instruções do novo comando. Por ora, a minha base está nos Nhabijões, mas não penses que são férias, as idas ao Xitole, as noites na ponte de Udunduma, as patrulhas às populações em autodefesa fazem parte do meu quotidiano. Também o pelotão começa a estar irreconhecível: partiu o Queirós, perdi um dos meus colaboradores mais preciosos, o Cruz, que viera substituir Alcino, baixou ao hospital com doença tropical. O Domingos já tinha partido, não resta nenhum dos cabos do tempo em que aqui cheguei.

Esta atmosfera não é a de Missirá, embora as populações do Cuor não percam uma visita a Bambadinca para me cumprimentar. Aliás, vieram convidar-me a ver a instalação eléctrica, o gerador está finalmente em funcionamento. Disse inicialmente que não, depois disse que sim, trouxe aquele gerador a ferros da engenharia de Bissau. O Mamadu Camará e o Queta Baldé vão partir para os Comandos, o Cherno já me informou que também partirá quando eu abandonar o pelotão, o mesmo me disse Adulai Djaló, o Campino. Fazemos toda a rotina mas aqui não há a chama de todo o regulado do Cuor, não me sei explicar. Leio muito, mas as tarefas de rotina também têm o seu peso: quase uma vez por semana vamos ao Xitole, ando a tratar do processo de Bacari Soncó para receber o prémio "Governador da Guiné", o processo de atribuição da Cruz de Guerra ao Mamadu Camará foi-me devolvido para dar informações complementares, voltei a ir a cerimónias de condolências. Desta vez, fui cumprimentar Fatu, a minha lavadeira, está inconsolável com a morte do seu Zé, um furriel dos Comandos que chegou a andar em operações comigo, pertencia ao pelotão do Saiegh, nos Comandos em Fá, ficou despedaçado por uma mina anti-pessoal na bolanha de Ponta Varela.

Bom, sigo agora para os Nhabijões, fico lá dois dias. Depois vou combinar com a D. Leontina dos Correios e telefono-te. Os meus soldados Serifo Candé e Ussumane Baldé foram premiados e vão passar férias a Bolama, podes imaginar o orgulho que sinto.

Depreendo da tua carta que não tens parado de procurar casa para nós. Sei que vais ser bem sucedida, vamos ter uma casinha muito bela e tu vais fazer milagres com o teu talento de decoradora. Mil beijos, toda a devoção, toda a minha saudade, está próximo o nosso sonho de Agosto, o nosso reencontro.

Para Emílio Rosa, em Bissau

Meu querido Padrinho,

Só duas palavrinhas para te agradecer tudo: a casa que nos emprestaste com a Elzira, a companhia que nos ofereceste com os Payne, os pequenos mas tão agradáveis passeios a Ponta Biombo, a Safim, a Nhacra. Foste um padrinho exemplar, tornaste a nossa lua-de-mel aprazível nessa cidade fardada. Por aqui o tempo corre, oiço música, acabo de ler "De Profundis", de Oscar Wilde, um Simenon memorável, estou a ler um colombiano de nunca ouvi falar, Gabriel García Márquez, toma notas dos livros que me emprestam sobre a Guiné (acalento o sonho de escrever sobre ela, mais tarde ou mais cedo), o resto é rotina, há mesmo um certo marasmo na actividade operacional de parte a parte, parece que o PAIGC está a avaliar o novo batalhão que chegou a Bambadinca.

Perguntas-me quando é que passo por Bissau. Recebi hoje uma convocatória do tribunal militar, vai ser julgado o meu soldado Quebá Sissé, por homicídio involuntário de outro, o Uamsambo. Será uma viagem muito rápida, não deixarei de te comunicar, vamo-nos encontrar, para mim é sempre uma grande alegria estar contigo. Fica a aguardar as minhas notícias, recebe a profunda estima do afilhado a quem forneceste toneladas de material de construção civil e toneladas de cordialidade e apreço.

Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Minha querida Mãezinha,

Obrigado pelas suas notícias, folgo que esteja muito melhor do seu reumático. Está ansiosa por me ver, que direi eu? É previsível que em Agosto, na pior das hipóteses Setembro, eu esteja de regresso. A guerra por aqui está muito calma, houve mudança de tropa em Bambadinca, passo a maior parte do meu tempo numa povoação que está a ser construída na margem esquerda do Geba, Nhabijões. Obrigado pelas notícias que me dá do Paulo, do Fodé e do Alcino. O estado de saúde do Paulo é muito preocupante, o Fodé adapta-se á prótese, o Alcino coxeia, penso que vai ficar com deficiência para toda a vida. A Cristina continua a procurar casa para nós, está a fazer exames, sei que tudo vai correr muito bem. Penso que dentro de dias vou de fugida a Bissau, terei o cuidado de lhe telefonar. Um dos meus camaradas de Bambadinca que dentro de dias segue para Lisboa ofereceu-se para lhe levar umas lembranças, espero que goste dos tecidos que lhe mando e uma pulseirinha em prata. Não esteja preocupada comigo, gozo de saúde, voltei a fazer ginástica, sinto o prazer de dar aulas aos meus soldados sempre que é possível. Prometo-lhe escrever amanhã uma carta mais longa, vou para os Nhabijões, à noite tenho um petromax e conto-lhe com mais tempo tudo quanto tenho feito Receba muitos beijinhos deste filhos que nunca a esquece e que tento lhe deve.
______________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3120: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (41): Um mês nos Nhabijões

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2513: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (19): O Natal de 1969 em Bambadinca e na Ponte do Rio Udunduma

Capa do disco de ópera Carmen, de Bizet, com a Maria Callas... "A prenda que me ofereci no Natal de 1969...É nas andanças da procuração de casamento, em Bafatá, muito perto do Natal, que vou à casa Teixeira onde me mostram um acontecimento musical que acaba de chegar: a última gravação da Maria Callas numa ópera integral. De facto, foi a Carmen a última ópera que a Callas cantou por inteiro. A partir de 1964, a Divina só aceitou actuar em concertos ou em master classes. Esta gravação da Callas foi objecto de apreciações tensas e contraditórias. O fundo orquestral é de uma beleza ímpar (estou à vontade, só como melómano é que de vez enquando oiço a Carmen, que classifico como ópera bonita mas fácil nos seus efeitos), Nicolai Gedda era seguramente um grande tenor do seu tempo, e cumpre a preceito o Dom José. O barítono Robert Massard é para mim o grande achado da ópera, um toreiro fogoso e viril. Gosto da voz assanhada da Callas, mas hoje é um registo bastante ultrapassado. Custou-me 400 escudos, paguei em dois meses, já estava a preparar o casamento em Bissau. A ópera foi muito bem aceite na caserna, o Alf Abel[, da CCAÇ 12,] gostava de a ouvir por sua iniciativa. Veio comigo, é uma relíquia desse Natal de 1969, onde me faltou a festa como nos Açores e em Missirá, as minhas inesquecíveis festas de Natal".

Digitalização da capa: uma gentileza do Humberto Reispara quem vai um abração.

Foto: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Ponte do Rio Udunduma, na estrada Bambadinca- Xime > Pel Caç Nat 52 (1968/70) > Natal de 1969 (2) > Os bravos soldados do 52, que o Mário considerava os melhores soldados do mundo... O famigerado destacamento da Ponte do Rio Udunduma resumia-se a uns bidões de areia, umas valas, umas chapas ... como tecto e milhões de mosquitos. Este rio era uma fluente do grande Geba... Foto do ex-Fur Mil João Sousa Pires, a quem agradecemos a gentileza de nos autorizar a sua reprodução (LG).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 11 de dezembro de 2007:

Luis, recordo que tens aí a fotografia do dia de Natal na ponte de Udunduma, enviei já as ilustrações do Claude Simon e S. S. Van Dine, tens igualmente a ópera Carmen. Vou começar já o episódio n.º 20, temos que fazer tréguas no Natal. Muitíssimo obrigado pelo teu esforço na recolha e preparação dos materiais que vão ilustrar Na Terra dos Soncó. Segue pelo correio o conjunto de aerogramas que ainda tinha em meu poder, referentes a 1969. Vou telefonar para marcarmos o almoço de Natal. Um abraço do Mário.


Operação Macaréu à vista > Episódio XIX (3)

O NATAL EM BAMBADINCA E NA PONTE DE UDUNDUMA
por Beja Santos


(i) Os preparativos do Natal, a história de um poemacto alucinante

Começam a chegar as iguarias natalícias provenientes de Lisboa, bolo rei, broas castelares e de milho, coscorões, rabanadas, entre outras. Um alferes Rodrigues que até hoje nunca consegui identificar (logo ficou claro que não era o Rodrigues da CCaç 12, esse quando se apresentou de férias vinha com alguns discos de vinil debaixo do braço), deixara em Bafatá um pacote de doces no comando do Agrupamento e lá fui buscá-lo a propósito de mais um episódio com a procuração para o meu casamento, a que se juntou o atestado de residência.

No fim do ano escreverei à Cristina:

“Espero que o Ismael te tenha telefonado em Bissau, aqui os telefones deixaram de funcionar, as minhas insónias têm-me impedido de escrever com regularidade. Não é nada de grave, já não sei se é o desgaste físico que abala o psíquico ou vice-versa. O destacamento da ponte de Udunduma é escabroso, sem qualquer segurança, umas valas mal amanhadas, custa conciliar o sono dentro daquele buraco. O Vidal Saraiva quer pôr-me num quarto de repouso em Bissau, talvez uma semana seja o suficiente para eu recuperar. Parte das minhas economias deste mês foram para substituir a roupa esburacada, calças e camisas na fímbria... Agradeço-te do coração o novo Chopin, mas confesso-te que houve um pequeno desastre, saí uma manhã destas para ir às tabancas próximas, deixei-o fora do estojo, quando voltei estava ondulado. O Samson François não merecia este castigo! Li 'Guerra e Paz' na tradução da Isabel da Nóbrega e do João Gaspar Simões, o português é escorreito mas não sabe a nada. Começaram as medidas de prevenção que irão até ao Ano Novo.

"A grande notícia é que os documentos da procuração estão novamente prontos, não sei se te contei que descobri no meio dos meus livros a procuração anterior, mais uma vez anulada porque faltava a data de nascimento do teu pai. Não percebo porque é que uma procuração tem que ter estes pormenores, em que a data de nascimento do pai da noiva é crucial. Por aqui, não se pode dizer que a guerra se tenha agravado. Há de vez em quando incêndios de moranças nas redondezas de Bambadinca, assaltos aos Nhabijões quando os naturais não oferecem vacas nem outros mantimentos aos rebeldes, houve agora um grande ataque ao Enxalé e pouco mais. O ano está quase a acabar e o futuro espera-nos. Aconteça o que acontecer, confio que Deus nos quer juntos no próximo ano. Peço-te muito que descanses e não te aflijas. Logo que resolva o problema das insónias tudo vai voltar à normalidade”.


Desço a rampa e vou conversar com o Zé Maria. Já sei que o dia de Natal será passado na ponte de Udunduma, a ver se ele consegue preparar uns frangos para eu almoçar com a malta do pelotão no dia 24. É uma negociação difícil, o Zé Maria começa por me pedir o couro e o cabelo, vai descendo, faz as contas a doze frangos, arredondo para quinze, um grande tacho de arroz, canja e depois papaia, sendo a bebida a laranjada, acertamos a verba e subo novamente a rampa para entrar nas lides burocráticas.

Cá em cima, na secretaria, tenho de rectificar nomes de uma proposta feita ainda em Missirá. Enviara o ofício n.º 366, processo 200.03, dirigido ao comandante do BCaç 2852, SPM 5188, com os seguintes dizeres “Em virtude de recentes desfalques nos quadros orgânicos destes dois pelotões de milícias, dada a circunstância de faltar um comandante de secção em Finete e um cabo em Missirá, sugiro a V. Ex.ª se digne promover ao posto de 2º sargento o 1º cabo Ieró Baldé do Pel Mil 102 e a 1º cabo o soldado Dauda Jamanca do Pel Mil 101”. Sempre com o cenho carregado, o tenente Pinheiro argumentava:
- Beja, V. só me dá trabalhos, o homem não se chama Ieró Baldé mas Inderissa Baldé, não é a mesma coisa, fazíamos as folhas de pagamentos e depois tínhamos o Inderissa a pedir um vencimento que só existe para o Ieró, acontece que V. já tem cá dois Ieró para aumentar a balbúrdia!

Se estava de cenho carregado, o semblante do tenente Pinheiro, enquanto eu escrevia ou garatujava uns papéis freneticamente não disfarçava o pasmo:
- Beja, V. está a ouvir-me, o que é que está a escrever?.

Depois de lhe ter perguntado se ele estava mesmo interessado em saber o que se estava a passar na minha cabeça, respondi-lhe na mais completa das inocências:
- Pinheiro, estou a tentar escrever uma carta ao Deus menino, a dizer que o amo muito. Como não sou poeta, vou ajeitando, vou acomodando as palavras nestes papéis, à espera de uma inspiração. Se quer saber, aqui escrevi "aeroplano de papel', “nesta pétala encravada em minas de salgema”, “é uma sarça ardente em labareda, avermelhando o arvoredo”, “daquela fundura, chegam-nos os odores dos mangais e dos limoeiros, é então que me fere uma dor maturescente”, “Bambadinca está acima da savana, vai pipilando entre candeeiros de petróleo, envolvidos no orvalho do amanhecer”.

O rosto do tenente Pinheiro congestionava-se:
- V. veio gozar-me, vem misturar trabalho com coisas da sua cabeça desarranjada. Se isso é cultura, vou ali e já venho. Acabemos por aqui, antes que eu me irrite.

Pôs a boina na cabeça e atirou a porta com todo o estrondo. O 1º cabo Olival parecia estar a assistir a uma cena do outro mundo, inclinava bem a cabeça sobre os papéis, atarefava-se com a sua escrita ornamentada, floreada.


(ii) E chegámos ao poemacto alucinante

Pedi duas folhas de papel ao 1º cabo Olival, arrumei o dossiê dos expediente a tratar, inclusive todos estes rabinhos de palha de Missirá e Finete, há deprecadas urgentes a expedir, também, olhei os apontamentos garatujados, os que estavam em cima da mesa e os que me saíram dos bolsos, pus a Montblanc em movimento:

“Ao meu querido Deus menino, Tu, detentor do mais lindo sorriso do mundo, vê se me podes ajudar com os teus bracinhos abertos lá no presépio, cativado, protegido por teus pais, pastores e reis magos. Conto com o teu lindo, cúmplice sorriso, protegido na noite estrelada que eu desenhava nos presépios da minha infância. Vem dizer-nos que nos protegerás sempre quando partimos nas colunas de reabastecimento ou nos estradões e picadas que levam ao combate, em todos os momentos de dúvida quanto ao nosso feliz regresso. Vem dar-me fé sobre a sumaúma que se desprende dos bissilões, como cabelo ao vento, neste tempo da época seca. Impõe a Tua inocência benfazeja nesta cintura da guerra. Traz-nos o consolo da cola, do sal e do pão ázimo, cuida dos meus soldados, dá um sinal de misericórdia entre os nossos consanguíneos. Sei que Te estou a pedir muito, como se de um milagre se tratasse: Menino amado, ilumina-nos a mata, aparece como sarça ardente, com uma angra de promessas, dá-nos um sinal do teu perdão nesta enseada de sangue coalhado. Assina um lorde gentílico, numa guerra repartida, à espreita de ver o arvoredo com cores de incêndio, dá, imploro-Te, o Teu sinal como sarça ardente nessa noite de Natal”.

O 1º cabo Olival viu-me atarefado, escrevendo e refazendo, deu-me, solícito vários aerogramas aonde se copiou o pretenso poemacto, que seguiu para algumas partidas do mundo. Nalguns casos, nada mais se dizia a não ser o teor da mensagem ao Deus menino. Noutros, escreviam-se algumas outras banalidades, tais como: a existência de boatos de que Amílcar Cabral estava tuberculoso e que já havia uma luta de poder nos bastidores, isto segundo a propaganda emitida pela rádio; que, devido à acção do calor, pois saíra de madrugada e deixara a luz acesa, o disco com trechos de obras de Wagner, a Sinfónica de Chicago dirigida por Fritz Reiner, ficara em gelatina, só me apercebera quando quisera ouvir a Marcha Fúnebre de Siegfried e saíram uns sons cavos; que o jogo do xadrez se presta a agressividades, numa noite atrás dois oficiais, parceiros pacatos, desataram aos gritos e aos insultos, tabuleiro e peças andaram pelo ar, ninguém percebeu porquê, já nos bastam as cenas com a comida em que uma simples observação pode dar dez dias de prisão; que Cibo Indjai, o mais valoroso caçador do Cuor, me veio perguntar se pode voltar para Missirá, tem saudades de caçar, pedi-lhe para esperar, por enquanto há só um furriel, há cabos em falta e soldados doentes, não posso dispensar os melhores soldados; regressou o Campino e temos mais um apontador de bazuca e recebemos um fula educadíssimo, Dauda Bari; que na véspera do dia de Natal almoçaremos juntos, seguiremos para Bafatá onde vou buscar a ópera “Carmen”, que é a prenda que me ofereci, mais os doces, a procuração e o atestado de residência que seguirão directamente para Lisboa; que jantaremos todos muito tarde e que haverá uma consoada no quartel; e que ao amanhecer do dia de Natal partiremos por quatro dias para a ponte de Udunduma; àqueles que mais me estimam ainda sou capaz de lhes confessar o meu sofrimento com as insónias. Só me apetece dormir, a luz fere-me os olhos, todos os sons mudaram de volume. Assim acabei o correio de antes do Natal.

(iii) O dia de Natal na ponte de Udunduma

A 24 [de Dezembro de 1969], coube-nos reabastecer quem estava nos Nhabijões, fomos buscar doentes a Samba Juli para ir à consulta do Vidal Saraiva, levaram-se munições para o pelotão de milícias em Amedalai, seguiu-se para Bafatá, deixei no correio um punhado de cópias do poemacto, tratei dos documentos, voltei ao correio e meti-os numa carta que seguiu para a Cristina, fui buscar a minha prenda de Natal, o Cherno olhava para a senhora do estojo da ópera, eu disse-lhe:
- É a Callas, via-a em Lisboa há onze anos, gosto muito da sua voz.

O Cherno limitou-se a pegar no embrulho e comentou:
- Agora quem ouve a gritaria são os outros lá do teu quarto!.

Seguimos para Bambadinca, ficámos no Zé Maria, onde já estava o resto do pelotão, não sem ter pedido ao Xabregas que trouxesse o Setúbal, os condutores de Missirá pertenciam à família. E tratou-se de uma almoço em família, eles eram a minha gente, eu bem pedia a Deus que não houvesse mais infortúnios nos próximos sete, oito, nove meses em que seria o seu comandante. Agradeci-lhes muito a companhia e o seu heroísmo, a sua capacidade de sacrifício, de tarde ainda iríamos a Galomaro, nessa noite não haveria emboscada nem reabastecimentos, seguiríamos às 7h da manhã para a ponte de Udunduma, revezando um dos grupos de combate da CCaç 12.

Pela meia noite, brindámos na messe de oficias, abriram-se iguarias (da minha parte, escondi ao máximo as minhas para as oferecer no dia seguinte no local mais desagradável que vi a imitar um refeitório), fizeram-se votos, recolhemos cedo, os operacionais sabiam que não haveria tréguas no dia de Natal. Lembro-me de ter conversado com o major Cunha Ribeiro, pedindo-lhe toda a compreensão para o facto de precisar de mais sargentos. Com o novo ano, sairá o Pina e virá o Vitorino Ocante, mais tarde chegará um militar destemido, o sargento Manuel Cascalheira, que tanto me ajudou na operação Rinoceronte Temível.

Vão seguir-se quatro dias de suplício na ponte, um local onde nada acontece, no dia de Natal ainda nadei umas braçadas no rio Udunduma, enquanto houve luz li e escrevi, as noites vou passá-las praticamente em claro, é um período sem história, não consegui ter argumentação para convencer o major de operações a olharmos a ponte de Udunduma doutra maneira, fazer patrulhamentos envolvendo Amedalai, Demba Taco e Moricanhe, na resposta eram só dificuldades, havia sempre obstáculos que tudo inviabilizavam. Com o cansaço, desisti de argumentar. E voltámos para Bambadinca, para o torvelinho das rotinas.

A 30, li num aerograma que mandei à Cristina, visitou-nos o Spínola: “Esteve cá o Spínola depois de ter ido a Missirá. Altivo, monóculo faiscante, perguntas em tom abrupto”. O que eu não disse à Cristina foi que ele se passeou com a sua comitiva e diferentes dos nossos oficiais pelos abrigos, interpelando com contundência Jovelino Corte Real enquanto entravam e saíam dos abrigos. Lá para os lados da caserna dos soldados, à entrada de um desses abrigos um prego apanhou a camisa do comandante no cós das costas, a camisa rasgou-se e transformou-se numa fralda deixando a carne à mostra.

Com toda a dignidade possível, Cunha Ribeiro passou a dialogar com Spínola enquanto Jovelino Corte Real foi mudar de camisa. No fim da visita, o comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné bradou que iria voltar em breve e que haveria consequências caso não fossem tomadas as providências que ele exigia.

A 31, pelas 6h da manhã, um jogo de futebol, finalmente o 52 derrotou a equipa da CCS, assisti da bancada, sem qualquer energia para jogar dez minutos. Nessa noite, o conjunto pop do batalhão deu uma récita com guitarras eléctricas e bateria. Por essa altura, recebi muitas cartas amigas, o Ruy Cinatti procurou dar-me estímulo, o Ferreira de Castro pedia notícias. Peguei num jornal atrasado e soube da morte do Alves Redol e do José Régio.

Fui à capela de Bambadinca rezar por todos os meus entes queridos, pedi paz, supliquei para que o novo ano nos trouxesse menos sofrimento. Depois partimos para o Bambadincazinho, vamos fazer a emboscada na missão do sono. Regressarei pelas 6h da manhã com um moribundo nos braços e uma camisa perfurada pelo ocaso das balas. É uma camisa ensanguentada que o Cherno vai exibir por Bambadinca, a sua prova definitiva de que eu sou um baqué, aquele guerreiro mitológico que nenhuma bala pode matar.


(iv) Uma grande descoberta, Claude Simon


Comecei a ler um livro extraordinário, uma prenda da minha Mãe, A Casa Grande de Romarigães, de Aquilino Ribeiro. Leio devagar, a saborear uma prosa alquímica que nos fala do Minho rural, a posse da terra, a construção da riqueza fundiária, os preconceitos, o peso das superstições. Leio e releio, não paro de me assombrar: como é que é possível abrir um romance com este toque mágico, inultrapassável:

“O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Voltou a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da sela e pulou no espaço”.



Capa do livro O crime do Dragão, por S.S.Van Dine. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 97) . "Um grafismo com reminiscências surrealistas, como é compreensível em toda a obra do Cândido da Costa Pinto. A tradução é de Roberto Ferreira. Tive uma grande alegria quando recuperei este livro na Feira da Ladra. Foi uma leitura estimulante, perto do Natal de 1969, livro comprado em Bafatá" (BS).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


É melhor parar aqui, isto é um português de lei que tenho de mastigar, assimilar, respirar todos os odores. Oxalá tenha forças e lucidez para ler, perceber e amar. O livro policial que me acompanhou nas emboscadas foi O crime do Dragão, de S.S. Van Dine. Desta feita, a tragédia inicia-se numa piscina nos arredores de Nova Iorque, num local quase lendário, a Piscina do Dragão, propriedade da família Stamm. Alguém mergulhou e não reapareceu. Tinha havido uma festa e um galã propôs um banho nocturno, a própria vítima. Philo Vance, um detective super chique e super culto, acompanha as investigações e vai deslindar uma trama diabólica em que o Dragão é um mergulhador vingativo que desfaz as suas vítimas e acabará por ser punido, sendo esmagado por um rochedo da piscina. Um dos pontos fortes do romance é Van Dine ir conduzindo a investigação para um falso criminoso invertendo aparatosamente o rumo da investigação até ao desenlace espectacular. Pelo meio, Philo Vance dá uma lição aos polícias e aos leitores sobre a importância do Dragão em todas as mitologias e religiões.

Palace, de Claude Simon, veio lembrar-me a prosa de William Faulkner a embriaguez da palavra, uma narrativa poderosa feita de minúcias em que os actores são o estudante , o homem-espingarda, o americano, o mestre-escola e o calvo. Tudo se passa em Barcelona, durante a Guerra Civil espanhola, o estudante volta lá quinze anos depois e tudo vai relembrar, é um reencontro hipnótico, o estudante vê e revê os ambientes por onde deambulou, o que era o Palace durante a guerra e em que se transformou o Palace, no pós guerra.



Capa do romance de Claude Simon, Palace. Lisboa: Ulisseia, 1966. "Palace é uma escrita arrebatadora,uma grande surpresa.Desconhecia Claude Simon, nunca me impressionou o novo romance, mas este este livro alterou-me o conceito dos cânones literários. Logo a seguir pedi ao meu Padrinho O Vento, que fora publicado na Colecção Contemporânea, da Portugália. Ainda bem que lhe atribuíram o Nobel de 1985. A capa é uma beleza, tem a chancela do Espiga Pinto, que se iria impor nas artes plásticas. A tradução é de ferando Cascais Xavier. Ulisseia,1966" (BS).



Foto : © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Tudo começa com um inventário minucioso de objectos e detalhes do interior do Palace, dos locais por onde o estudante se passeia, parece que o autor leva um caderno e regista detalhes ínfimos, enquanto se ouvem as vozes da guerra. Segue-se uma narrativa do homem-espingarda, a prosa de Claude Simon torna-se ainda mais densa, chega o americano...

É assim, em linguagem oficinal que o tempo é relembrado até chegarmos ao Palace, em que se encerra a imponente narrativa, olhando a fachada, recordando as marcas das balas, o voo dos pombos ao sol por cima dos telhados, é uma escrita compulsiva como se segue:

“... o Sol desapareça atrás das colinas, a Oeste, por trás das carcassas descarnadas das torres e das grandes rodas do luna-parque abandonado sob o céu agora cor de salmão, a própria cidade também ao abandono, solitária, sob a invariável luz verde-eléctrico dos globos e dos lampadários complicados que se acendem uns após outros como a ribalta de um teatro, semelhante a uma dessas rainhas em parto, abandonada no seu palácio, porque ninguém a deve ver nesse momento, parindo, expulsando dos seus flancos, encharcados pelo suor o que deve ser parido, expulso, algum monstrozinho macrocéfalo, inviável e degenerado - e, por fim, tudo se imobiliza, recai, e ela fica ali, jazendo esgotada, expirante, sem esperança que aquilo venha acabar, esvaziando-se numa ínfima e incessante e vã hemorragia...”.

Fiquei a gostar tanto de Claude Simon que logo escrevi ao meu Padrinho a pedir-lhe que me mandasse O Vento, que fora publicado na Colecção Contemporânea da Portugália Editora. Foi mesmo muito bom acabar o ano de 1969 a conhecer a literatura de Claude Simon.

___________


Notas de L.G.:


(1) Vd. poste de 3 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2024: A discoteca de Missirá ou alguns dos discos da minha vida (Beja Santos) (1): De Verdi a Beethoven



(2) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2370: O meu Natal no mato (7): Destacamento do Rio Udunduma, 1969, Pel Caç Nat 52 (Beja Santos)

(3) V. último poste desta série > 1 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2498: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (18): Operação Punhal Resistente

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2370: O meu Natal no mato (7): Destacamento do Rio Udunduma, 1969, Pel Caç Nat 52 (Beja Santos)

Guiné Sector L1 > Bambadinca > Pel Caç Nat 52 (1968/70) > Destacamento (!) da Ponte do Rio Udunduma, na estrada Bambadinca- Xime. Natal de 1969. Destacamento, é favor: uns bidões de areia, umas valas, umas chapas ... como tecto. Este rio era uma fluente do grande Geba...

Foto : © Beja Santos (2007). Direitos reservados.






Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Rio Udunduma > CART 2339 (1968/69) > 1969 > Pôr do sol.

Foto: © Carlos Marques Santos (2005). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Estrada Xime - Bambadinca > 1997 : Ponte (velha) do Rio Udunduma. Tudo (ou quase...) como dantes... Em 1969/71, no nosso tempo (CART 2339, do Torcato Menodnça e do Carlos Marques dos Santos, do Pel Caç Nat 52, do Beja Santos, da CCAÇ 12, do Henriques, do Reis, do Levezinho...) a segurança desta ponte, construída em 1952, era de importância vital para toda a zona leste (regiões de Bafatá e Nova Lamego). Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No ataque em força, a Bambadinca, em 28 de Maio de 1969, os guerrilheiros do PAIGC tentaram dinamitá-la. Embora parcialmente destruída (era de bom cimento armado...), continuou operacional (até à construção da nova estrada. já inaugurada em 1971), e por cima dela continuaram a passar inúmeros batalhões, viaturas blindadas, Matadores rebocando peças de artilharia, auto-gruas da engenharia, camiões civis e militares...

Já sabemos que a partir daí passou a ser defendida permanentemente por uma força a nível de pelotão, a cargo das unidades do BCAÇ 2852, como foi o caso por exemplo da CART 2339 (Mansambo) . A partir de 16 de Dezembro de 1969 a segurança permanente passou a ser feita pelos Gr Comb da CCAÇ 12 e pelo Pel Caç Nat 52 (Bambadinca) .

Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas em zê comunicando entre os precários abrigos individuais. O destacamento (!) assentava sobre uma elevação de terreno, sobranceira ao rio e à ponte. (LG)

Foto: © Humberto Reis (2005) . Direitos reservados.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Rio Udunduma > Destacamento da CCAÇ 12, 2º Grupo de Combate > 1970 > O Tony (Levezinho) e o Humberto sentados na manjedoura... Era ali, protegidos da canícula, que tomavámos em conjunto as nossas refeições, escrevíamos as nossas cartas e aerogramas, jogávamos à lerpa, bebíamos um copo, matávamos o tédio... Os nossos soldados africanos, desarranchados, tinham que cozinhar a sua própria bianda e arranjar o mafé (conduto) ... Caricato: andavam com o saco de arroz às costas... O rio era rico em peixe, que se pescava à granada de sopro... Durante o dia, brincavam como putos, dando saltos para o rio e andando de canoa... (LG)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


Série O meu Natal no Mato > Destacamento do Rio Udunduma, 1969, Pel Caç Nat 52

O texto aseguir é do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70). Por razões que se prendem com o stresse de Natal, não nos é possível publicar o episódio semanal da série Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos).
Ao nosso bom amigo e camarada Mário, e a todos os visitante deste blogue, as nossas amáveis desculpas e votos de boa continuação desta quadra festiva que, na Guiné, em tempo de guerra, tinha uma termendo significado para nós... Em geral, para muitos de nós, operacionais, a noite de 24 para 25 de Dezembro era passada no mato, ao frio e aos mosquitos... E, Dezembro, a temperatura atingia, à noite, valores (cerca de 15º!) que nos fazia bater o queixo, tornando ainda mais insuportável a solidão, a distância, a saudade... (2) (LG)


Tudo aquilo era horrível na ponte [o Rio Udunduma ] que protegia Bambadinca, mas estou rodeado de camaradas inesquecíveis, com quem partilhei as broas, os sonhos, os bolos e até os frutos secos, tão bem recebidos.

Podia dissertar sobre qualquer um desses camaradões, escolho o Mamadu Djau, o primeiro à esquerda, de pé, o nosso bazuqueiro de elite, Cruz de Guerra de 3ª classe. Destemido nas flagelações de Missirá, devo-lhe o governo das tropas depois da mina anticarro, em Canturé, Outubro de 1969.

Irei visitá-lo em 1991 ,será o reencontro mais comovente de todos. Recebeu-me vestido à europeia, em Amedalai, a caminho do Xime. Tirámos fotografias com todos os familiares.Quando julgava que a nossa despedida fosse simples, ele marcou-me para o resto da vida:
- Tu não me vieste buscar? Tenho tudo pronto para partir contigo. Depois do que sofri pela nossa bandeira, tinha essa esperança de que me vinhas buscar depois do que vivemos juntos.

Beja Santos (3)
_______

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores desta série, Um Natal no mato:
16 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2355: O meu Natal no mato (1): Jumbembem, 1965: Os homens às vezes também choram... (Artur Conceição)

17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2356: O meu Natal no mato (2): Bissorã, 1973: O Milagre (Henrique Cerqueira, CCAÇ 13)

17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2357: O meu Natal no mato (3): Banjara, 1965 e 1966: um sítio aonde não chegavam as senhoras da Cruz Vermelha (Fernando Chapouto)

18 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2361: O meu Natal no mato (4): Cachil, 1966: A morte do Condeço e do Boneca, CCAÇ 1423 (Hugo Moura Ferreira / Guimarães do Carmo )

19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2364: O meu Natal no mato (5): Mato Cão, 1972: Com calor, muito calor, e longe, muito longe do meu clã (Joaquim Mexia Alves)

19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2366: O meu Natal no Mato (6): Peluda, 1969: a Fátria, Manel (Torcato Mendonça)

(2) Vd. outros posts sobre o nosso Natal em tempo de guerra: série Feliz Natal, Próspero Ano Novo e Até ao Meu Regresso:

17 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1373: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (1): As Nossas Festas... Quentes e Boas (Luís Graça / José Martins)
17 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1374: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (2): Seguindo a Estrela, de Missirá a Belém (Beja Santos)
18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1375: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (3): A LFG Sagitário no Rio Cacheu (Manuel Lema Santos)
19 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1379: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (4): Mansambá, 1970 (Carlos Vinhal, CART 2732)
19 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1380: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (5): Poema: Missirá, 1970 (Jorge Cabral)
19 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1381: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu regresso (6): comandos de Brá em 1965, crime e castigo (João S. Parreira)
19 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1382: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (7): No longínquo ano de 1968 em Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis)
20 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1383: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (8): CART 2732, Mansabá, 1971 (Carlos Vinhal)
21 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1387: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (9): Catió, 1967 (Victor Condeço)
22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1390: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (10): Os Maiorais de Empada, 1969 (Zé Teixeira)
2 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1396: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (11): 1969, na Missão do Sono, em Bambadincazinho (Luís Graça)

(3) Outros textos do Beja Santos e de outros camaradas sobre o Natal:
26 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2216: Os nossos vídeos (1): Feliz Natal e até ao meu regresso (Tino Neves)
22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1392: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (26): Missirá, 1968, um Natal (ecuménico)
18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1376: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (25): O presépio de Chicri

12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)

sexta-feira, 20 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1196: Rios: o Geba e o seu afluente, o Udunduma (Carlos Marques dos Santos)

Guiné > Bambadinca > 1969 > No Zé Maria, comendo lagostins do Rio Geba... A dolce vita dos milicianos da CCAÇ 12, entre duas operações: na ocasião, o Alf Mil Cav Rodrigues (natural de Lisboa, já falecido) e os furriéis milicianos Tony Levezinho e Humberto Reis, nossos queridos tertulianos. A chapa foi batida - salvo erro - por mim, membro assíduo desta tertúlia gastronómica. O pobre do Zé Maria, que era tuga, tinha fama de ser turra (por vender vacas, panos, mosquiteiros, bianda, etc., ao PAIGC)... e fazia-nos pagar caro os lagostins, "pescados no Geba em zona de grande risco"...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Entrada principal, pelo lado leste (sentido Bafatá), do aquartelamento. Ao fundo o Rio Geba. E, do lado direito da estrada, já na curva, a loja e o bar do Zé Maria...
Como devem imaginar, o problema depois era subir a rampa de acesso ao quartel... O major Cunha Ribeiro, o nosso querido major eléctrico acabou, precoce e ingloriamente, a sua comissão na Guiné (e porventura a sua carreira militar), nesta rampa, ao volante do seu jipe, debaixo de toneladas de toros de madeira (cibes), destinados ao reordenamento de Nhabijões... (LG).

Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006)


Post original, de 9 de Março de 2006, publicado no Blogue-fora-nada > Guiné 63/74 - DCXXI: Os rios (e os lugares) da nossa memória (3): Geba, Undunduma (Carlos Marques dos Santos)

Em tempos cometi um erro e um lapso: um erro, ao escrever Undunduma, e que passei a replicar sistematicamente; ora o Rio chama-se Udunduma; aí passei/passámos (eu e o resto dos meus camaradas da CCAÇ 12, da CART 2339, da CCS do BCAÇ 2852, do Pela Caç Nat 52, do Pel Caç Nat 63 e outros) muitos dias e muitas noites...

Resolvi, por isso, repescar este post e (re)publicá-lo no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné... com outro título, mas com algumas alterações no conteúdo e ilustrações... De futuro, será mais fácil fazer pesquisas sobre o famoso destacamento da ponte do Rio Udunduma, e não Undunduma. Por aqui passavam milhares de homens e toneladas de material, desembarcados das LDG que aportavam ao Xime, a caminho da Zona Leste (Baftá e Nova Lamego). (LG).

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba. A tabanca, em autodefesa, guarnecida pelo Pelotão de Milícia nº 102, é visível ao fundo. No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (se não erro), vê-se o Fur Mil Reis e o 1º Cabo Branco (LG).

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).


Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Texto do Carlos Marques dos Santos, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), afecta ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70).



Guiné > Rio Geba, junto ao Xime > Travessia de canoa para o Enxalé (1969),
Foto: © Carlos Marques Santos (2005), Direitos reservados.

Guiné > Rio Geba > Cais (1969)
Foto: © Carlos Marques Santos (2005). Direitos reservados.

Luís:

1. O tema do rio Geba levou-me a ir repescar estas velhas fotos. A qualidade não é famosa, mas apesar de tudo é o rio Geba retratado.

E eu que estive muitas vezes perto dele, vigiando a passagem dos barcos vindos de Bissau. Finete, os seus mangais e cajueiros. A Bor e o macaréu. Som impressionante da água, em força, a lutar contra aquilo que era natural.

Os rios correm para o mar. Este não! Ciclicamente corre contra o seu rumo natural. E as suas margens enlameadas, onde, enterrados até à cintura, recolhíamos os tão saborosos camarões (1).
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > Rio Udunduma, afluente do Rio Geba >
Foto: © Carlos Marques Santos (2005). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > SEctor L1 > Bambadinca > 1969 > Rio Udunduma > Pôr do sol.
Foto: © Carlos Marques Santos (2005). Direitos reservados.


2. Já agora e porque não, outro pequeno rio, o Udunduma, também motivo de memórias (2). O nascer e o pôr do sol serão inesquecíveis, apesar das condições em que vivemos neste cenário. Memórias de um tempo vivido e que passou.

Um abraço.
CMS
_______
Notas de L.G.:
(1) Eu a pagá-los a 50 pesos, o quilo, na tasca do Zé Maria, à saída de Bambadinca!...
(2) Vd. posts de:
2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1019: O ataque a Bambadinca (28 de Maio de 1969) (Carlos Marques dos Santos)
29 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1130: A CART 2339, em socorro de Bambadinca, e na defesa da ponte do Rio Udunduma (Carlos Marques dos Santos)
29 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1131: Um dia (feliz) na ponte do Rio Udunduma, com o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (Luís Graça)
30 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1132: Spínola e os seus 'Cães Grandes' na ponte do Rio Udunduma (Luís Graça)

quinta-feira, 9 de março de 2006

Guiné 63/74 - P602: Os rios (e os lugares) da nossa memória (3): Geba, Undunduma (Carlos Marques dos Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba. A tabanca, em autodefesa, guarnecida pelo Pelotão de Milicia nº 102, é visível ao fundo. No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (se não erro), vê-se o Fur Mil Reis e o 1º Cabo Branco (LG).

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).

Texto do Carlos Marques dos Santos, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), afecta ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1).


Guiné > Rio Geba, junto ao Xime > Travessia de canoa para o Enxalé (1969),
© Carlos Marques Santos (2005)

Guiné > Rio Geba > Cais (1969)
© Carlos Marques Santos (2005)

Luís:

1. O tema do rio Geba levou-me a ir repescar estas velhas fotos. A qualidade não é famosa, mas apesar de tudo é o rio Geba retratado.

E eu que estive muitas vezes perto dele, vigiando a passagem dos barcos vindos de Bissau. Finete, os seus mangais e cajueiros. A Bor e o macaréu. Som impressionante da água, em força, a lutar contra aquilo que era natural.

Os rios correm para o mar. Este não! Ciclicamente corre contra o seu rumo natural. E as suas margens enlameadas, onde, enterrados até à cintura, recolhíamos os tão saborosos camarões.

Guiné > Zona Leste > Rio Undunduma, afluente do Rio Geba > 1969 >
© Carlos Marques Santos (2005)

Guiné > Zona leste > Rio Undunduma > Pôr do sol (1969)
© Carlos Marques Santos (2005)


2. Já agora e porque não, outro pequeno rio, o Undunduma, também motivo de memórias (1).

O nascer e o pôr do sol serão inesquecíveis, apesar das condições em que vivemos neste cenário.

Memórias de um tempo vivido e que passou.

Um abraço.
CMS
_______

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de

4 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVIII: Os dias felizes na ponte do Rio Undunduma (CCAÇ 12)

4 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIX: Os Solitários da CART 2339 na Ponte do Rio Undunduma e em Fá
3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma

terça-feira, 3 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P397: Herr Spínola na ponte do Rio Udunduma (Luís Graça)




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Estrada Xime - Bambadinca > 1997 : Ponte (velha) do Rio Udunduma.



Em 1969/71, a segurança desta ponte era vital para as NT. Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No célebre e pavoroso ataque a Bambadinca, em 31 de Maio de 1969, o IN tentara dinamitá-la.

Desde Junho de 1969 a ponte era defendida por duas secções da CART 2520 (Xime). A partir de 16 de Dezembro de 1969 a segurança permanente passou a ser feita pelos Gr Comb da CCAÇ 12 e pelos Pel Caç Nat 63 e 52 (Bambadinca). Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas comunicando entre os abrigos individuais.

Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá). Todos os direitos reservados.


1. Excertos do Diário de um Tuga (L.G.)

Ponte do Rio Udunduma, 3 de Fevereiro de 1971

De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de cães grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande, o Caco Baldé). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivente da Wermacht nazi.

Mas o que é que faz correr este velho soldado, como ele próprio gosta de se chamar ? É difícil adivinhar-lhe a sua paixão secreta, o seu móbil, sob a sua impassibilidade de samurai (ou de figura de cera?): a mitomania, o culto da personalidade ou, hélàs!, a presidência da república ?

Há qualquer coisa de sinistro na sua voz de ventríloquo, no seu olhar vidrado ou no seu sorriso sardónico: talvez seja a superioridade olímpica do guerreiro.

Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba…

A visita-surpresa do Deus-Todo-Poderoso foi o meu único monumento de glória em toda esta guerra… Ao fim de vinte meses!... Só quero regressar, são e salvo, a casa, daqui a um mês e, se possível, levar comigo a barba que deixei crescer… na Guiné, longe do Vietname.

2. Referência a este episódio na História da CCAÇ 12 (1969/71) (Cap. II. 45):

“Em 1 de Fevereiro de 1971, foram detectados 6 elementos IN a cambar o Rio Udunduma em direcção a Samba Silate. Feito o reconhecimento pelo 2º Gr Comb, verificou-se que o trilho aberto na bolanha conduzia ao reordenamento de Nahibijões.

“A partir de 2, a segurança diária à estrada Bambadinca-Xime passou a constituir uma acção (patrulha com reconhecimento no trilho de Chacali).

“Em 3 de Fevereiro, Sexa General Com-Chefe, de visita aos trabalhos de construção da estrada (cuja importância para a estratégia militar e fomento económico do chão fula é absolutamente nevrálgica), esteve no destacamento da ponte do Rio Udunduma, tendo feito uma pequena alocução às praças africanas do 4º Gr Comb. (….)”.