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sexta-feira, 23 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24425: Notas de leitura (1591): "Negreiros Portugueses na Rota das Índias de Castela (1541 - 1556)", por Maria da Graça A. Mateus Ventura; Edições Colibri, 1999 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
A dissertação de Mestrado de Maria da Graça Alvares Mateus Ventura contribui para contextualizar o comércio negreiro feito por mercadores portugueses tanto ao serviço dos reis da Casa de Avis como dos Áustrias, fazia-se na circulação entre Sevilha, Rios da Guiné, Santiago e as Índias Ocidentais, aquele vasto e indefinido território da Senegâmbia deu muitos ancestrais a quem vive nas Antilhas, na América Central e na América do Sul. A autora veio mesmo aos arquivos e dá-nos um quadro surpreendente sobre a participação de portugueses no tráfico negreiro na hispano-américa no período compreendido entre 1492 e 1557 e mais, ficamos a conhecer o universo de todos estes agentes que permitiu aos portugueses lançarem-se nas rotas indianas movidos por um comércio lucrativo. Uma investigação que não pode ser descurada para quem estuda o tráfico negreiro e mesmo a história da Guiné e de Cabo Verde no século XVI.

Um abraço do
Mário



Sevilha, Costa da Guiné, Cabo Verde, Índias Ocidentais, Negreiros Portugueses no século XVI

Mário Beja Santos

A dissertação de Mestrado da Maria da Graça A. Mateus Ventura teve exatamente o título da presente obra, Edições Colibri, 1999. Como escreve no prefácio o professor António Borges Coelho:
“Os navios negreiros de que se fala neste texto não vinham ainda de Angola, mas do Cacheu, da Mina, do Rio dos Escravos, do Níger e principalmente do grande entreposto e armazém que era Cabo Verde. No novo continente, os escravos negros afeiçoaram a terra e seguiram nela o preceito bíblico: crescei e multiplicai-vos. Mas os seus filhos já nasciam escravos. Na América Espanhola esperava-os o trabalho brutal nas minas de ouro e de prata. Os grandes financeiros, genoveses e principalmente portugueses, estiveram envolvidos no negócio, mas eram os portugueses que dominavam as fontes de abastecimento e rapidamente o principal do trato firmou-se nas suas mãos. O contrato renderia à Coroa grossas somas e constituiria um dos mais lucrativos negócios privados desde o tempo do infante D. Henrique. A autora do presente trabalho identificou e acompanhou a trajetória de alguns destes negreiros portugueses como Gaspar de Torres e principalmente Manuel Caldeira, argentário cristão-novo que se tornou fidalgo da casa del-rei. O próprio Fernando de Noronha, cidadão de Lisboa no tempo de D. João II, cristão-novo, contratador do pau do brasil em 1502, aparece ligado ao trato dos escravos na costa da Guiné. Aliás, o contrato com o rei D. Manuel concedia-lhe não só o exclusivo da importação do pau do brasil como o autorizava a exportar índios escravos”.

A autora vasculhou na Casa da Contratação de Sevilha importante documentação destes contratos e licenças onde sobressaem negreiros portugueses, como ela escreve, “É um mundo onde pululam agentes, feitores, onde se constituem companhias efémeras, se retêm ou desembargam avultadas quantias, onde, em última instância, se digladiam ou complementar interesses públicos ou interesses privados”.

Os denominados Arquivo-Geral de Simancas e o Arquivo-Geral das Índias conservam documentação referente a Manuel Caldeira, os irmãos Torres têm contratos assinados em Antuérpia, e há no Arquivo Nacional Torre do Tombo alguns documentos complementares dos processos em Simancas. A autora dá-nos um quadro da organização do trato ao regime do comércio e ganha destaque o natural domínio dos portugueses como fornecedores ou contratantes, um universo onde se arriscavam pequenas fortunas num negócio de humana mercadoria, lida-se com o dinheiro dos outros, apura-se a presença de muitos judaizantes e cristãos-novos. Os memoriais permitem saber quais as áreas de exploração em África. No memorial que o mercador Jerónimo de Herrera apresentou à Coroa espanhola sobre a compra de escravos, em 1568, esclarece-se quais as principais regiões abastecedoras e fala concretamente em Brames, Beafadas, Nalus, Berberes, Cassangas e Jalofos. André Alvares de Almada no "Tratado Breve dos Rios da Guiné e Cabo Verde" descreve em 1594 as regiões onde se encontram estes povos.

Recorde-se que durante todo o século XVI, Cabo Verde, por Santiago, foi a feitoria mais importante a nível do fornecimento de contingentes de escravos, só virá a ser superada por S. Tomé. Enquanto Cabo Verde controlava os rios da Guiné, São Tomé iria absorver os escravos dos reinos que povoavam a região do Níger. Angola só no século XVII se tornaria o principal centro negreiro. Convém também não esquecer o arrendamento do trato da Guiné a Fernão Gomes que ficou obrigado a explorar a costa ocidental africana. Os contratos de arrendamento dependiam da Casa da Índia, mas havia quem contratasse diretamente com Castela, caso de Manuel Caldeira. Comércio lucrativo, mas com todos os riscos inerentes à pirataria, ao corso e aos naufrágios, isto para já não falar no contrabando e nos negócios particulares dos feitores. A autora descreve os negócios dos irmãos Torres, influentes negreiros portugueses durante a União Ibérica, foram os principais fornecedores da província de Honduras.

A autora dá-nos o quadro das viagens, a natureza das cargas, as operações da compra e do transporte, as fortunas destes mercadores, o português Gaspar de Torres era de longe o mais poderoso. E dá-nos o estudo de Manuel Caldeira, sobre o qual há imensa documentação, foi-lhe possível compor a biografia, os parentescos, por onde andou, o que contratou, até o seu testamento é altamente esclarecedor. Manuel Caldeira não foi um mercador sedentário, viajou de Lisboa à Serra Leoa, a Azamor, à Flandres, e andou por terras de Castela. Caldeira integrava em 1556 a lista de banqueiros credores de Filipe II, era cavaleiro da Casa Real, e cavaleiro e comendador da Ordem de Cristo. Seria cristão-novo, a autora classifica-o assim: “Homem de muito comércio e negócio, abonado para todas as finanças, envolto em numerosos pleitos, autor de grandes embaraços, traficante de coisas indevidas, eis um retrato possível deste negreiro português, de cujo percurso nos aproximámos, afigura-se mercador rico e caudaloso além de excelente gestor de influências nas esferas de poder das cortes ibéricas. O seu testamento dá exatamente conta das quantias que ele deixa para descanso da sua alma".

E cuidadoso no estabelecimento de redes sociais:
“Interioriza os valores do seu tempo, orientado pelo valor do dinheiro. Casa o primogénito com a filha de um embaixador castelhano e institui um morgado. Garante a continuidade do seu nome e a inalienabilidade de parte significativa dos seus bens. Insiste no casamento como forma de consolidar laços de poder. Casara com Guiomar, filha de um sócio, ligou os Roiz aos Caldeira. Casa André com Catarina, ligando os Caldeira também aos Hurtado de Mendonça. Duas alianças, dois poderes – o dinheiro e a influência política. Para Beatriz, filha mais velha, quer casamento rico. Di-lo no testamento. Parece tê-lo conseguido, se foi ela a esposa de Luís Mendes de Vasconcelos, célebre pelos cargos na Índia e pelos textos que deixou. Enfureceu-se com os filhos desobedientes pelo facto de não lhe terem dado ouvidos sobre o seu matrimónio. Só lhes perdoa se forem pobres, agora que não sabe deles lá pela Índia.
O comércio da pimenta levou-o à Índia, o trato de escravos levá-lo-ia à América. Com a pimenta e a armação de navios, ligou-se aos mercadores e banqueiros portugueses e estrangeiros que prosperavam em Portugal. Com os escravos negros de Cabo Verde e São Tomé, gozando já dos favores de D. João III, liga-se a Castela. Feitor do rei de Portugal, tesoureiro da Sereníssima Princesa de Portugal, Manuel Caldeira sintetiza a atitude dos mercadores portugueses que, alheios a questões de nacionalidade, viam nos negócios com Castela e as suas Índias um prometedor espaço de prosperidade”
.

A autora anexa documentos importantes, caso da relação da partida de escravos. Obra com muito significado para quem estuda o tráfico negreiro, particularmente o que se exerceu na região da Guiné e Cabo Verde, no século XVI.


Maqueta alusiva ao transporte de escravos e mercadorias rentáveis no comércio negreiro, modelo do Museu Nacional da História Americana, Smithsonian Institution
Imagem de tráfico negreiro
Pintura maneirista dos finais do século XVI, Igreja de São Sebastião de Lagos, vejam-se as embarcações de um porto algarvio que esteve ligado ao tráfico negreiro
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24423: Notas de leitura (1592 ): "Uma ilha no nome: pequena crónica dos dias líquidos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário do meu querido e saudoso amigo, o arquiteto José António Boia Paradela, 1937-2023) (Luís Graça)

quarta-feira, 22 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24162: Historiografia da presença portuguesa em África (360): As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Corresponde a um período em que Carreira desbravou imensa documentação nos arquivos, toda esta pesquisa sobre o comércio negreiro destinado primordialmente ao continente americano. Esta análise sectorial mostra claramente a crescente vigilância inglesa nas águas destes pontos da costa africana, mas igualmente muito ativa nas Antilhas. Resistiu-se por todos os meios, tentou-se enganar a vigilância, e a ninguém assombra que a escravatura tivesse recrudescido entre os povos da região, à falta da exportação. Ao tempo começa o comércio da mancarra, é uma nova lógica comercial que se instala, incentivar culturas e propor novos mercados de exportação, favoráveis aos propósitos coloniais. Aqui se deixa o testemunho de agradecimento a todos estes trabalhos pioneiros de Carreira, a historiografia anterior sempre fugiu a decifrar e a mostrar os cenários deste hediondo comércio.

Um abraço do
Mário



As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde

Mário Beja Santos

A Junta de Investigações Científica do Ultramar deu à estampa em 1981 um trabalho de António Carreira intitulado “O Tráfico de Escravos nos Rios de Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)”. Aqui se tem feito referência ao conjunto de obras de Carreira sobre o comércio negreiro, ele foi um pioneiro nestes estudos que hoje conhecem franco desenvolvimento. Aqui se pretende somente fazer referência, formalmente abolido que estava o tráfico, à sua repressão, o investigador alega escassez de informações nas pesquisas arquivísticas que fez. Atenda-se ao que ele escreve:
“Tudo indica que os negociantes de escravos residentes em Cabo Verde se tornaram extremamente dinâmicos a partir dos primeiros anos do século XIX – talvez na razão do aperto da fiscalização. Pelo menos é o que se conclui dos relatos das comissões mistas, quer a sediada na Boa Vista, quer a da Serra Leoa e pelo próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros português.
Os navios espanhóis apoiados em Cabo Verde navegavam com bandeira portuguesa e passaporte concedido pelo governo de Cabo Verde. À sombra dessa proteção acolhiam-se armadores espanhóis e um ou outro brasileiro, isto se falar numa espécie de caçadores furtivos procedentes de outras áreas.
Das listas oficiais de navios apresados, de 1835 a 1839, com escravos a bordo ou por simples indícios de se dedicarem ao tráfico e dos que foram declarados suspeitos de implicação no tráfico pelas comissões missões, referenciamos 36 armadores com um total de 55 navios. De entre os condenados, 14 transportavam escravos e 25 teriam a bordo mercadorias próprias para o negócio da escravatura.
Também estavam sujeitos a apresamento e confisco do casco os navios que tivessem: escotilhas com grades abertas; repartimentos, coberta corrida ou separações em maior número que é costume; tábuas aparelhadas para formar segunda escotilha; gargalheiras, algemas, anjinhos, cadeias ou outros instrumentos de contenção; maior quantidade de água em pipas ou tanques do que é necessário para o consumo da tripulação; quantidades extraordinárias de selhas, gamelas ou bandejas para a distribuição do rancho do que a necessária para o uso da equipagem; quantidade extraordinária de arroz, feijão, carne, peixe salgado, farinha de pau, mandioca, milho ou outras farinhas.
Pode dizer-se que se preparava o caminho que viria a permitir aos ingleses a imposição a Portugal das estipulações do Tratado de 3 de julho de 1842”
.

E assim nos aproximamos concretamente do comércio negreiro nos rios da Guiné e Cabo Verde. Carreira faz referência a uma carta de maio de 1835, o embaixador inglês Howard de Walden comunica ao ministro português que fora apresada em 14 de agosto de 1834 na ilha de Cuba a escuna Felicidade transportando a bordo 174 escravos pertencentes ao governador de Bissau. Desembarcados os escravos, a escuna foi levada para Serra Leoa e aí entregue à comissão mista. A escuna Felicidade estava inscrita no arquivo da Praia, nota-se, no entanto, uma discrepância em vários elementos, mas não deixa de ser flagrante a coincidência do nome do navio e o número de escravos apresados. Entre 1836 e 1839 terão sido apresadas embarcações com uma média anual de cerca de 1000 escravos. Interrogando-se quanto aos portos em que teriam sido embarcados os escravos, Carreira diz que talvez se possam apontar os rios Casamansa, Cacheu, Geba, ilhas de Bissau e dos Bijagós ou nas rias do Sul – Nuno, Pongo e ilha dos Ídolos – como sendo as áreas de procedência da maioria das carregações.

Continuamos a citar António Carreira:
“Para o volume de escravos apresados, os 41 transportados pela escuna Liberal que navegava com passaporte passado pelo governo de Cabo Verde, e detectados pelo brigue brisk, a 14 de abril de 1839, constituíram uma gota de água no imenso oceano de tráfico ilícito. E daquele número unicamente 3 foram dados como pertencentes a Honório Pereira Barreto, por cuja infração foi condenado pela comissão mista à pena de incapacidade de exercício de funções públicas por 5 anos, agravada com a multa de 2 contos de réis! Foi inegavelmente uma condenação política, a que talvez não tivesse sido estranha a influência dos próprios patrícios que lhe invejam a posição preponderante que desfrutava.
No actual estado das pesquisas arquivísticas sobre a matéria (arquivos de Lisboa e de Cabo Verde – já que na Guiné há absolutamente nada) apenas podemos indicar outro caso de tráfego ilícito, não por apresamento de navios e/ou escravos, este registado na correspondência da comissão mista da Serra Leoa e o Ministério da Marinha e do Ultramar. Ao dar a conhecer ao governo de Cabo Verde as conclusões da referida comissão, o Ministério dizia: O rio Nuno há 3 anos que não tem sido visitado por um navio de escravos; contudo, tem sofrido a influência do muito ativo comércio estabelecido em Bissau, de onde são enviados agentes ao rio Nuno a fim de comprar escravos que mandam para Bissau em ocasião oportuna. O negociante Caetano Nosolini tem tido a maior parte deste negócio e emprega para este fim em rio Nuno dois agentes europeus, além de gente de cor empregada em seu serviço. De 1841 em diante, a documentação encontrada alude com frequência a navios suspeitos em circulação nos rios de Guiné e a navios usando ilegalmente a bandeira portuguesa”
.

Tudo levava a crer que o comércio negreiro sofrera uma baixa sensível em quase todos os bens conhecidos mercados da costa africana, tão intensa era a vigilância dos cruzeiros britânicos. Carreira reflete do seguinte modo:
“É muito possível que em uma ou outra região os naturais tivessem assaltado e destruídos as instalações de recolha de escravos, libertando-os; mas isso sem carácter generalizado, pois na altura os régulos islamizados haviam já lançado a campanha contra os animistas, reduzindo-os à escravidão, e vendendo uns aos negreiros europeus (através dos Djilas) e outros no interior do continente, onde os utilizavam como força de trabalho, necessária à manutenção de todo o séquito próprio de régulos Fulas e Mandingas”. Carreira observa ainda que o tráfico ilícito continuava nas ilhas de Cabo Verde e mostra documentação. Há um relatório do Diretor da Alfândega de Bissau, datado de 22 de dezembro de 1857 e dirigido ao Visconde de Sá da Bandeira onde se afirma que em 1842 cessou completamente a exportação de escravos de Bissau e Cacheu. Carreira observa que esta informação não lhe parecesse inteiramente exata quanto a Bissau, pelo menos, e cita documentação contraditória. E, escreve mais adiante: “Tudo indica que houve um recrudescimento do tráfico ilícito nas zonas do interior que utilizavam Bissau como o melhor porto de saída de escravos, sobretudo oriundos de Geba. Por essa altura já havia sido desencadeada a guerra (1840) entre Fulas e Mandingas, e que viria a terminar com a derrota dos últimos, em 1853. E os vencidos nestas lutas, como era norma, foram vendidos nos mercados do interior e outras vezes levados para os portos da costa e negociados com os europeus, ou então passavam a engrossar os exércitos dos régulos e utilizados em trabalhos agrícolas e outras atividades de interesse mais direto dos chefes políticos e religiosos, designadamente no cultivo da mancarra”.

O investigador reconhece que traçou um panorama necessariamente parcelar e incompleto, teve mesmo que desistir de tentar fazer a contabilidade do número aproximado de escravos movimentados e portos onde teriam sido embarcados.


Castelo de São Jorge da Mina, construído pelos portugueses na Costa do Ouro (hoje Gana) em 1482, de onde saíram mais de 30 mil escravos rumo ao Brasil, em navios portugueses.
Foto com a devida vénia a vinteculturaesociedade

Cartaz do previsto Simpósio Internacional Cacheu Caminho de Escravos, bem procurei documentação, nada encontrei, provavelmente foi cancelado atendendo à pandemia
Foto com a devida vénia a Plataforma9

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Veja-se o pormenor da capa deste livro, parece objeto estranho, mas é peça em chapa de ferro espessa, destinada à prisão de escravos pelos tornozelos e pelos pulsos, simultaneamente. O indivíduo era obrigado a permanecer sentado, sem se poder levantar; a peça é provida de um fecho com chave, tem 35cm de comprimento, e é proveniente de Ouro Preto, pertence à coleção do Museu Nacional de Etnologia. No seguimento da primeira narrativa, estamos chegados agora à existência de companhias majestáticas, António Carreira encontrou documentação do maior interesse nos arquivos, refere os dois grandes mercados do tráfico, a Senegâmbia e Angola e a importância de Santiago, daqui "a mercadoria" partia para o Brasil e Cuba. Obra fértil em explicações quanto à importância da economia cabo-verdiana, a contabilidade das companhias majestáticas, ficamos a saber como era identificados os escravos, a conhecer os tipos de instrumentos de prisão, de tortura ou de humilhação, a dor maior virá na descrição dos tipos de castigos corporais, é arrepiante. Obra pioneira, é justo aqui realçá-la por ter aberto portas a estudos mais fundamentados para o conhecimento de aspetos do nosso colonialismo que permaneceram muito tempo na penumbra.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (2)

Mário Beja Santos

O livro Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos, por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O comércio negreiro feito por portugueses irá sofrer uma profunda alteração em 1755 com a criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que iria atuar numa área entre o Cabo Branco a Angola, limites que vieram a ser restringidos para a área entre o Cabo Branco e o Cabo das Palmas, limitação que tinha em vista a formação de uma outra empresa, a Companhia de Pernambuco e Paraíba, atuando no setor de Angola. Interessa-nos falar da primeira, António Carreira encontrou farta documentação sobre este tráfico e procura explicações para o seu reduzido volume: a existência entre grupos étnicos de cultura islâmica de um forte poder dos régulos, em particular dos Mandingas; o desvio de levas de escravos para os mercados do interior (no Senegal, no Mali, e zonas periféricas). É uma pertinente investigação, que ele assim remata: “A conclusão a tirar da análise da evolução do tráfico através dos tempos e dos sectores é de que foi a Angola a grande sacrificada. O sector Senegal-Serra Leoa gozou de verdadeiro privilégio. O território angolano sofreu uma sangria demográfica em benefício da América do Sul (em especial o Brasil) e central (Cuba)”. Mas também esclarece o seguinte: “Por reduzidos que tivessem sido os contingentes saídos dos rios de Guiné e de Cabo Verde, não podiam ser tão insignificantes. E se não tivéssemos levado a efeito o levantamento da contabilidade da empresa monopolista do século XVIII, pouco ou nada se podia apresentar”.

A posição portuguesa que fora de relevo no século XVI e até às primeiras décadas do século XVII não suportou a concorrência da Inglaterra, da Holanda e da França, que passaram a ter um papel dominante nesta área do Atlântico. E tece o seguinte comentário: “O nosso traficante era tímido e hesitante. Não se aventurava a empates de dinheiro a médio ou longo prazo. Tanto na Inglaterra como na Holanda as casas reinantes e a alta finança investiam no tráfico e em navios para o corso. O século XVII marcou a viragem para a formação de companhias fortemente apetrechadas, destinadas aos tratos e aos resgates. A situação na Guiné e em Cabo Verde continuou a piorar e levou à formação da Companhia de Cacheu, Rios e de Comércio da Guiné, mal terminou o prazo concedido a esta empresa foi criada a Companhia do Estanco, do Maranhão e Pará, empresa que foi muito mal recebida. Anos volvidos é formada outra empresa, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde”.

O investigador António Carreira analisa um conjunto de fenómenos sociopolíticos e económicos suscitados pelo aparecimento do ouro e de diamantes no Brasil, que vai criar um entusiasmo entre os portugueses para ali irem viver, e disserta sobre as relações económicas entre a colónia brasileira e Lisboa. Os dados que compulsou permitiram-lhe apresentar dados sobre os escravos comprados pela Companhia do Grão-Pará e Maranhão, o papel económico desempenhado pela urzela de Cabo Verde, os panos de algodão produzidos nas ilhas de Cabo Verde, a natureza de subsídios, donativos e outras taxas, as alcavalas cobradas na última fase do tráfico e assim chegamos à marcação a ferro quente dos escravos. Escreve Carreira: “Numa primeira fase a marcação tinha por finalidade principal a identificação dos escravos pertencentes à Coroa, fossem eles adquiridos, fossem recebidos em pagamento de direitos ou de rendas pelos contratadores. Poucos anos depois, os contratadores, para não serem defraudados, passaram igualmente a marcar os seus escravos”.

Refere também a identificação dos escravos, e desperta-nos para alguns aspetos curiosos quanto a designações:
“Adultos: cabeça; peça; marfim ou ébano de Guiné; escravo ou negro lotado; escravo ou negro com ponta de barba; escravo ou negro boçal; escravo de grilhão; escravo mulato; escravo mascavo ou mascavado.
Adolescentes: moleque ou moleca; moleque ou moleca lotado; molecão ou molecona; molecona de peito atacado (a que tivesse os seios bem formados); mocetão ou mocetona.
Crianças: minino; cria de peito; cria de pé (a que anda).
Peça-de-Índia definia o escravo jovem, alto, robusto e sem defeitos físicos. Em época adiantada do tráfico, usou-se a bitola de 1,75m de estatura para designar a peça-da-Índia.
Escravo ou moleque lotado era aquele que, pela sua compleição física, podia fazer parte de um lote para efeito de venda.
Escravo barbado ou com ponta de barba correspondia ao adolescente com barba bem formada. Era já homem.
Escravo boçal era todo aquele que não se soubesse expressar em crioulo ou português, e não tivesse ainda sido submetido à catequese e batismo.
Escravo ladino era o escravo esperto que se fazia compreender facilmente em crioulo ou português, ou que tivesse alguma profissão ou ofício.
Escravo de grilhão era todo aquele que tivesse sido alguma vez castigado com a pena de prisão com grilhão nos pés.
Escravo mulato correspondia ao produto de mestiçagem de sangue entre homem branco e mulher preta ou mesmo de pais mestiços.
Escravo fujão era aquele que tivesse propensão para fugir ao trabalho ou à tutela do seu senhor.
Escravo mascavado era aquele que possuísse aleijão ou deformidade física.”


Carreira também nos dá uma lista de tipos de instrumentos de prisão, é uma lista horrível, inclui instrumentos de tortura, de prisão ou de humilhação, devem ter sido copiados e aperfeiçoados os modelos usados pela Inquisição. Esta lista de castigos corporais merece a Carreira bastante detalhe, custa ler tanta violência, tanta severidade e tanta desumanidade.

É vasta e muito útil a bibliografia que António Carreira anexa sobre o tráfico português de escravos. Obra pioneira pois, é justo relembrá-la pelo timbre de rigor e a abertura que deu a novas investigações.

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24111: Historiografia da presença portuguesa em África (357): História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira; Edição do Autor, 1983 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Das suas andanças pelo Arquivo Histórico Ultramarino, António Carreira catou alguns documentos que haviam escapado ao grande pesquisador que foi o Padre António Brásio, autor de uma notável coletânea (5 volumes, de 1342 a 1650) dos melhores repositórios sobre a área dos rios de Guiné e Cabo Verde. "Estudados detidamente, pensei logo em divulgá-los, com anotações e comentários, alguns deles em edição fac-similada. Só que nenhuma instituição cultural e/ou científica se mostrou interessada em fazê-lo. Não é de estranhar. É a eterna contradição que caracteriza a sociedade portuguesa designadamente no campo da cultura. Apregoa-se insistentemente a existência de Centro de Estudos Africanos destinados a apoiar e a orientar este tipo de investigação; mas salvo uma ou outra exceção não o podem fazer dada a posição de apagada e vil tristeza em que vivem. Daí que a investigação de campo e o estudo e a publicação dos seus resultados se confine, em regra, a tarefas individuais de uns tantos maduros e destituída de apoios das instituições estatais e privadas". E António Carreira fez edição de autor, temos hoje livro raríssimo, obra que faz falta em qualquer desses Centros de Estudos Africanos, pôs na capa um dragoeiro, cuja goma ou resina foi utilizada durante largos anos na farmacopeia. Como ele escreveu: "Como se fala agora com tanta insistência na proteção da natureza, parece que ela deve ser objeto de medidas especiais que impeçam a sua destruição".

Um abraço do
Mário



O dom de investigar, o dom de saber comentar:
António Carreira, aquele historiador sempre indispensável


Mário Beja Santos

A obra intitula-se Documentos para a História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira, Edição do Autor, 1983. Explica a razão da publicação: “Divulgação de documentos de grande interesse para o conhecimento da ação dos portugueses na costa ocidental africana nos anos de 1600 até final de 1700. Eles mostram as vicissitudes por que passaram os contratos de arrendamento de tratos e resgates, e as falcatruas cometidas pelos contratadores, falcatruas essas facilitadas pela impossibilidade do Governo controlar os negócios; e de outro lado, o contrabando de escravos e a desenfreada concorrência comercial de Franceses, Ingleses e Holandeses, por vezes apoiada na guerra de corso, visando pôr termo às atividades dos portugueses na costa a partir do Cabo Verde até à Serra Leoa”. É uma documentação úbere de informações de tempos e lugares em que a presença portuguesa esteve permanentemente em causa, tanto pela hostilidade de estrangeiros como pela guerrilha dos autóctones. O estudioso tem acesso a relatórios, cartas, pareceres, regimentos, despachos que permitem conhecer a agressividade dos régulos em torno da Praça de Bissau, os problemas alfandegários, a situação comercial na região, contratos de arrendamento, regimento do presídio e alfândega de Farim, reclamações dos comerciantes contra as taxas de direitos.

António Carreira foi um investigador modelar, encontrava nos arquivos manuscritos e sabia comentá-los como ninguém. Veja-se como ele introduz a questão do termo Rios da Guiné, que era a expressão mais utilizada na documentação antiga, precedeu o uso da expressão Guiné, mas sempre com sentido indefinido, fazia parte da área da jurisdição da Capitania de Cabo Verde, cujo governador entregava regimento ao capitão mor de Cacheu, o regimento de 1614 recomendava: a difusão da religião católica através da catequização dos gentios; a fiscalização da navegação e do comércio de e com os estrangeiros, impedindo a venda de escravos, de cera, de marfim e de ouro; impedir por todas as formas a entrada em Cacheu de algodão proveniente da Gâmbia e de outros pontos; exercer o controlo dos preços de compra dos escravos. Carreira comenta que os princípios de que os capitães mores, feitores e ouvidores dos rios de Guiné de estarem subordinados ao Governador das ilhas de Cabo Verde não tinha significado efetivo e real.

Aborda depois o investigador topónimo Guiné que designava uma larga zona sem limites compreensíveis. E recorda que o Padre Baltazar Barreira em carta escrita em Santiago a 1 de agosto de 1606 procurou esclarecer assim os limites da Guiné: “Esta parte de África que os portugueses propriamente chamam Guiné começa no rio Senegal e corre pela costa até a Serra Leoa, obra de 180 léguas de norte a sul”. Viajando no tempo, Carreira dá-nos conta dos ciclos económicos enquanto se apertava o cerco à presença portuguesa até que se chegou a uma situação, que precede as decisões da Conferência de Berlim em que a nossa presença na Senegâmbia era constituída por as praças e presídios de Ziguinchor, Cacheu, Farim, Geba, Fá, Bissau e Guinala. Estas praças e presídios, também designadas por feitorias, estavam instaladas nas margens dos rios, em limitados espaços formando pequenos povoados de comerciantes europeus, filhos da terra (grumetes) e mestiços cabo-verdianos, espaços ocupados mediante licença das autoridades tradicionais, contra o pagamento de renda anual (a daxa). Refere o autor a história destas feitorias, o aparecimento da primeira Fortaleza de Bissau, construída em 1696, a história das diferentes companhias comerciais de vida breve, a gradual presença portuguesa a partir do século XIX, observando Carreira que da soberania portuguesa só se deve falar a partir de 1915, dando-nos o contexto das turbulências vividas no solo continental por quase todo o século XIX: em 1840 eclodiu um conflito entre Fulas e Mandigas, que levou à derrota destes últimos e as guerras sucessivas que assolaram o Alto Geba, no Gabu e no Forreá. Lançara-se entre 1842 e 1845, no Quínara, a cultura da mancarra, que se mostrou florescente, mas com a guerrilha que se intensificou a partir de 1876, tudo se perdeu. E o autor não deixa de enfatizar que a chamada Guiné portuguesa é uma figura política e jurídica surgida da Convenção Luso-francesa de 1886.

Temos depois o rol dos documentos do século XVII, o autor chama à atenção para a incapacidade organizativa da Coroa em afastar ou punir a concorrência, limitava-se a estabelecer contratos de exploração por administração direta por vários anos; mostra igualmente o autor a existência de conflitos entre o Governador de Cabo Verde e os agentes do rei nos rios; e assim chegamos ao relato do feitor da Fazenda Real, em Bissau, José António Pinto, caminhamos para o final do século XVIII, dá-nos conta da situação nas praças e presídios, veja-se a pungente descrição que ele faz do presídio de Geba:
“O pequeno número de que se compunha a sua guarnição são negros, pardos e alguns brancos, tanto uns como outros ali são mandados degredados por tremendos crimes, os quais são brancos já não conservam sentimentos alguns da sua cor nem de costumes europeus vendo que ali são degradados por toda a vida, continuam em dar exercícios aos seus diabólicos costumes, roubando armazéns de noite. Sargentos, furriéis e cabos são da mesma natureza, brancos, negros, pardos, ladrões e facínoras, de forma que como sequazes dos soldados não só não há respeito, mas quando o pretendem ter, opõem-se-lhe e rebelam-se os culpados que ficam sem castigo (…)”. É extensa a denúncia, dá-nos depois a descrição do porto de Bissau, das ilhas de Cabo Verde e sua guarnição militar, refere a Fazenda e o negócio da panaria e da purgueira, refere as ilhas e as forças militares.

A obra de António Carreira faz-se acompanhar de muito texto em fac-simile, dos documentos aludidos dá por inteiro o regimento da Alfândega de Cacheu de 1797, temos igualmente um apenso documental com requerimentos, nota de emolumentos, reclamações, lista de navios chegados a Bissau no final do século XVIII.

Obra de indiscutível interesse para quem pretende estudar estes séculos da nossa precária presença naqueles pontos da costa ocidental africana.

Fortaleza do Cacheu
Planta da Praça de S. José, Bissau, 1864
Interior da Fortaleza de S. José da Amura, cerca de 1925
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24089: Historiografia da presença portuguesa em África (356): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (10) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23719: Historiografia da presença portuguesa em África (339): Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Procurei nos Anais do Clube Militar Naval, no âmbito das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, artigos assinados por oficiais da Marinha. Encontrei um texto sobre a definição das fronteiras, a importante comunicação de Teixeira da Mota, logo em janeiro de 1946 dado como certo e seguro que Nuno Tristão fora frechado por Mandingas, mas na região do rio Gâmbia, aquela expedição não chegara a terras da Guiné; e por último uma apreciação muito desgostosa do Contra-Almirante Aprá que participara nas operações na península de Bissau em 1894 e que ficara consternado com a falta de preparativos do Governador, segundo Aprá perdera-se a oportunidade de ficar a dominar os povos residentes na península de Bissau.

Um abraço do
Mário



Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947)

Mário Beja Santos

Compulsando números antigos da prestigiada publicação "Anais do Clube Militar Naval", detive-me nos 76 e 77 anos da publicação, 1946 e 1947, respetivamente. Logo com o artigo intitulado "As Fronteiras", escrito pelo Capitão de Mar-e-Guerra Tancredo de Morais. O oficial começa por referir os limites que André Alvares de Almada, no seu Tratado Breve, tratado de 1594 propõe para a região da Senegâmbia, teoricamente território ocupado pelos portugueses: do rio Senegal à Serra Leoa. Ao tempo, esta Senegâmbia era uma espécie de morgadio de Cabo Verde. Os portugueses reconheciam a soberania dos régulos que lhes vendiam os escravos. A questão dos limites vai complicar-se com a chegada dos holandeses, que não encontraram qualquer resistência, que se estabeleceram em Arguim e depois na Goreia, ilha que ninguém defendia – aqui ficaram até 1677, data em que uma esquadra francesa os expulsou. Os ingleses estabeleceram-se na Serra Leoa, não houve qualquer reivindicação portuguesa. Os nossos diferendos diplomáticos serão com a Grã-Bretanha por causa da questão de Bolama e com a França quando esta procedeu a uma ocupação insidiosa do Casamansa. O autor dá-nos um resumo do envio de protestos para Paris e para o Senegal, a diplomacia francesa chegou ao descaro de informar que tinham sido os primeiros a chegar… Honório Pereira Barreto, sempre franco e leal, não deixou de descrever o que era a presença portuguesa em Ziguinchor: “Ziguinchor tinha 7 soldados, era defendida por uma paliçada e uma artilharia desmontada. Devia a sua conservação à família Carvalho Alvarenga. O seu comércio, que era importante, achava-se nas mãos dos franceses, depois que se havia estabelecido em Selho”.

O autor não deixa de chamar a atenção que a reação diplomática à ocupação britânica foi tíbia e insegura. Em vez de se apresentarem factos da ocupação desde o século XV, o mais que se pôde obter foram documentos que datavam do reinado de D. José. E menciona a sentença arbitral do presidente dos EUA, Ulysses Grant. As fronteiras definitivas vão surgir na Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, mas os franceses ainda irão exigir, no processo de sucessivas retificações, mais algumas porções de terra.

Ainda em 1946, no número de março a abril, merece o devido relevo a referência à conferência que Teixeira da Mota proferiu em Bissau em 6 de janeiro desse ano, na abertura do V Centenário da Descoberta da Guiné. Com subtileza, o autor traça em longo preâmbulo considerações sobre a verdade em História, e a obrigação de ir desmantelando tabus e mitos. Era na época dado como assente que o primeiro descobridor que chegara a Guiné fora Nuno Tristão, aparece agora um oficial da Marinha, um jovem historiador, ainda por cima ajudante do Governador, a dizer que nada se passou assim. Descreve a descida progressiva da costa ocidental africana, a passagem do Cabo Bojador em 1434, no ano seguinte o mesmo Gil Eanes e Gonçalves Baldaia iniciaram a exploração da Mauritânia e chegaram a Angra dos Ruivos; e no ano seguinte o mesmo Baldaia foi ao Rio de Ouro e à Pedra da Galé. Seguem-se expedições em 1441 em que aparece pela primeira vez o nome de Nuno Tristão; em 1443 são descobertas as ilhas de Arguim e das Garças , foi um dado fundamental para o projeto henriquino, ergue-se em Arguim uma feitoria, tudo por causa do negócio do ouro; no ano seguinte, o cavaleiro-navegador Lançarote descobre mais ilhas, chegava-se à costa da Mauritânia, era a Terra dos Negros; em 1444, Diniz Dias avançava ao longo da costa dos Jalofos e descobria o Cabo Verde – os portugueses aproximavam-se das fontes do ouro. No Senegal e no Cabo Verde souberam pelos Jalofos que perto, para o sul, corria um largo rio, o rio Gâmbia, onde também abundava o ouro. Em 1446 larga do Algarve uma caravela capitaneada por Nuno Tristão, leva a bordo 30 homens. Chega ao Cabo dos Mastros, Nuno Tristão e os 30 homens embarcam em dois batéis, são cercados por canoas de indígenas e atingidos por flechas envenenadas, Nuno Tristão é uma das vítimas mortais. E Teixeira da Mota conclui: “Nuno Tristão não passou na realidade do Estuário Salum-Jumbas, que é propriamente um conjunto de braços de mar que se estende por algumas dezenas de milhas um pouco ao norte da foz do Gâmbia. Os indígenas que mataram Nuno Tristão eram Mandingas. Nuno Tristão não esteve, portanto, em 1446 em território atualmente português, mas traçou o destino que fosse ele o primeiro português a encontrar gentio de uma das etnias que pululam a Guiné Portuguesa. Quis o destino que esse contacto se manifestasse da forma brutal que o caracteriza. Os poderosos imperadores do Mali, que lá muito para o Oriente, das margens do Níger, em Niani, sua capital, dirigiam os vastos domínios, ignoravam talvez a existência daquele chefe mandinga. Enquanto a grandeza mandinga entrava no ocaso levantava-se a portuguesa”.

Temos por último o artigo intitulado "A Companhia de Guerra da Marinha na Campanha da Guiné de 1944", aparece no 77.º ano, número de janeiro e fevereiro de 1947, assina A. Aprá, Contra-Almirante. Ele refere-se à companhia de guerra da Marinha que embarcou em Lisboa no transporte África, isto em fins de março de 1894, passou o mês de abril em Bissau apetrechar-se, havia que comprar chapéus de palha em Cabo Verde, fizeram-se a bordo polainas, bornais de lona e manteve-se a atividade física e os preparativos militares com exercícios diários no ilhéu do Rei. A Guiné era um distrito militar autónomo, quem iria conduzir as operações era o governador, o Coronel de Artilharia Vasconcelos e Sá. A coluna saiu de Bissau a 10 de maio, foram considerados importantes aspetos logísticos como o recrutamento de carregadores para transportar água e munições. O efetivo da companhia era 259 homens; tinha uma seção de metralhadoras com 25 praças e 1 oficial, 1 médico com 3 enfermeiros e 6 maqueiros, participava ainda uma seção de administração naval. E relata que tudo começou numa confusão na distribuição de cargas pelos carregadores, só se pôde partir às 8 da manhã, avançaram sobre Antim, fazendo fogo sobre o objetivo, só perto dele é que se verificou resistência, quando se chegou a Antim a povoação estava completamente vazia. Começou a falta de água, os rebeldes só apareciam dando tiros isolados. Depois das 2 da tarde chegou a ordem de retirar com as devidas precauções, esta companhia de guerra da Marinha veio acompanhada por uma companhia de Angola. Verificou-se uma enorme agitação porque os carregadores procederam a saque, isto quando havia punhetes para transportar, e o contingente militar acusava fadiga, e temia-se que os rebeldes atacassem a qualquer momento. Regressou-se ao acampamento de Antim depois de 7 horas de marcha, não havia a menor provisão de água e a refeição preparada era um autêntico desastre só no dia seguinte é que apareceu água e um rancho decente.

Aguardavam-se ordens para que esta companhia de Marinha saísse do Alto de Antim e avançasse sobre Antula. Houve troca de impressões sobre a ordem de marcha, à tarde veio ordem do governador dizendo que era tarde para começar a marcha sobre Antula e no dia seguinte chegava a notícia de que o mesmo governador considerava ser suficiente o castigo dado ao gentio; mais tarde regressou-se à praça de Bissau onde se embarcou no navio África. E o contra-almirante Aprá termina com uma apreciação altamente crítica:
“Assim terminou a campanha de 1894, mandada acabar por quem direito. Foi incompleto o serviço? Sim. Mas foi a primeira vez que uma força europeia de uma certa importância entrou em operações de guerra na Guiné. Nada estava preparado, não havia planos, organização, nem se pensou em abastecimentos.
Se tivesse havido um verdadeiro Estado-Maior, e serviços administrativos regulares, se tivesse havido um modesto serviço de transportes e não estivessem na mão de carregadores gentios que só marcham com as forças para matar, roubar e incendiar, enchendo-se de despojos e abandonando as nossas cargas, tenho o pressentimento que a companhia de Marinha que, no dia 10 de maio, tinha ganho um verdadeira ascendente sobre o gentio fugia apavorado com o nosso avanço, essa companhia sozinha tinha feito ocupação da ilha de Bissau. Do exposto se concluí que a coluna organizada em 1894 não foi encarregada da ocupação militar da ilha de Bissau, foi como diz o Governador e o Governo Central concordou, um castigo dado ao indígena pelos altos de selvajaria anteriormente praticados. É a este ponto que quero chegar, não pode considerar-se um desastre que em campanha me parece ser sinónimo de derrota”
.

E assim termina a colaboração alusiva ao V Centenário da Descoberta da Guiné nos Anais do Clube Militar Naval.


Uma bela fotografia de Andrea Wurzenberger captada na Guiné, com a devida vénia
Um comboio de embarcações comerciais no rio Geba
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23700: Historiografia da presença portuguesa em África (338): Viagens por alguns títulos do Boletim Geral das Colónias (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23650: Historiografia da presença portuguesa em África (336): Imagem do nosso Império Africano num atlas inglês de 1865 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Não sei se os alunos de Relações Internacionais ou os candidatos a cargos diplomáticos costumam, nos tempos que correm, visitar os mapas com mais de 100 anos, são cartas que iniludivelmente nos mostram as mudanças que ocorreram no quadro da geopolítica e da ascensão dos povos às independências, o que se traduziu em novas fronteiras, por vezes novas designações, desapareceram impérios, e não deixa de ter significado olhar-se para o que foi o império Russo e o império Turco-Otomano, nestes mapas estão chaves explicativas de um conjunto de beligerâncias atuais, isto para não falar já do que era a Palestina e de como mudou de face com o aparecimento de Israel, em 1948. Esta África de 1865 deu origem a dezenas e dezenas de Estados, no fim da era imperial. No que toca ao nosso império Africano, veja-se que a Guiné era um ponto diluído na Senegâmbia e a extensão de Angola e Moçambique era muito pequena, representava a débil ocupação da orla marítima, com alguma penetração para o interior, que, décadas depois, se veio acelerar, quando o ideal imperial passou a ser um catalisador da classe política portuguesa.

Um abraço do
Mário



Imagem do nosso Império Africano num atlas inglês de 1865

Mário Beja Santos

Adquiri há uns bons anos num alfarrabista o "Philips’ Atlas for Beginners", edição de 1865 dos editores George Phillip e filho, Londres e Liverpool. O livro terá pertencido a Zulmira Guimarães que à inglesa deixou escrito a tinta: 19th May 1876. Sendo um atlas para principiantes, dá imenso prazer ver uma Europa que mudou radicalmente no Centro Norte e nos Balcãs, aquela Prússia dominante deu origem ao primeiro racho, a Boémia irá ser um dos pilares da República Checoslovaca depois da Primeira Guerra Mundial, o Império Austro-Húngaro desapareceu, como o Império Turco-Otomano se retirou da Grécia, da Bulgária, etc. Nada a dizer das ilhas britânicas, a não ser que ainda não se fala da Irlanda Independente, a Escócia tem honras de uma página de mapa, é impressionante a diversidade de povos que se inseriam no Império Austro-Húngaro e vale a pena ver cuidadosamente o mapa da Rússia com as suas províncias bálticas, a Grande e a Pequena Rússia e as províncias do Cáucaso, assim se entenderá melhor o sonho de Vladimir Putin. Das alterações entre 1865 e a atualidade na Ásia nem se fala, temos uma enorme Arábia e uma vasta faixa que dava pelo nome da Palestina no tempo do nosso Senhor, ia de Beirute até Rafa. Enfim, curiosidades.

Vejamos com atenção o mapa de África. O Magrebe foi reconstituído por Marrocos, Algéria, Tunísia, a Tripolitânia, o Egipto e a Núbia, já no declive do Mar Vermelho. Segue-se o Sará ou o Grande Deserto, mais abaixo temos a Senegâmbia na parte ocidental, entre a foz do rio Senegal e a Serra Leoa (o mapa refere Bissau, Bijagós e Rio Grande, isto para significar que esta Senegâmbia era completamente indiferenciada, embora já estivesse em fase de disputa a Gâmbia Britânica e a colónia do Senegal, na parte central encontramos o Sudão ou Nigritia, alfobre de um grande conjunto de países atuais), descendo encontramos o Daomé, o Benim, a Baía do Biafra, segue-se o rio Zaire ou Congo e temos uma faixa amarelada que vai do Luango até Benguela, faixa essa que representará talvez um terço do território angolano atual. Não deixa de ser curioso o que era África Astral, lá está claramente mostrado o território Macololo, um dos detonadores do ultimato britânico, em baixo temos a colónia do Cabo, subindo temos Moçambique reduzido a uma faixa amarelada onde se lê Sofala, Quelimane e Moçambique, com o canal de Moçambique a separar o continente de Madagáscar. Há o nome Cabo Verde para referenciar a parte continental, não são visíveis as ilhas arquipelágicas e em frente ao rio Gabão temos a referência às ilhas de São Tomé e Príncipe. O atlas Philips destacará depois a África do Sul para relevar a República do Transval, o Orange, o país Zulo, a colónia do Cabo, fora destes domínios refere-se a Bechuanalândia (hoje Botsuana), o deserto do Kalahari, e na continuação do que é hoje o sul de Angola, Namíbia.

A que propósito aqui se evoca o Atlas Philips para principiantes, de 1865? No caso vertente de uma leitura para portugueses, a insignificância ou o indiferenciado do território Imperial Português, já aqui se citou até a exaustão os alarmes que chegavam ao governo de Lisboa sobre aquela Senegâmbia cada vez mais partilhada pela gradual ocupação britânica e francesa. Não esquecer que uma das razões que se escolheu Bolama para capital, em 1879, era a de fazer ponte com os negócios na Serra Leoa, nessa altura ainda com alguma importância. Ocupação das faixas angolana e moçambicana era débil, havia ainda muito território em discussão, e com a formação do reino do Congo do Rei Leopoldo da Bélgica, a extensão das colónias francesas, inglesas e alemãs, beneficiamos do espaço interior no final do século XIX. O atlas Philips não deixa ilusões quanto à retórica utilizada de que tínhamos uma presença africana com cinco séculos. Estes mapas encarregam-se de mostrar a crentes e descrentes o que era o Império Português em África antes da Conferência de Berlim, 1884-1885. Se uma imagem pode valer por mil palavras este atlas Philips desfaz ilusões aos obstinados que fantasiavam a existência do Império Africano com cinco séculos.

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23634: Historiografia da presença portuguesa em África (335): As missões católicas na evolução político-social da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23616: Historiografia da presença portuguesa em África (334): Personalidades e olhares sobre a Guiné que poucos recordam ou conhecem (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
É um trabalho de paciência que dá os seus frutos, minguados ou curiosos. Não vejo referências ao trabalho científico de Cardoso Júnior, e no entanto ele procedeu a estudos em Cabo Verde e na Guiné que eram admirados pela comunidade científica de então - não valeria a pena recuperar tais trabalhos? Encontrou-se uma comunicação dirigida a dirigentes da comunidade portuguesa, terá sido proferida no ano da publicação do Boletim Geral das Colónias, 1950, deteta-se que havia uma noção do abandono a que fora votada a colónia, o autor disse expressamente que foi preciso esperar pela Restauração para se começar a cuidar daquele território e curiosamente emite opinião de que o desenvolvimento da Guiné se deve inserir no contexto alargado da África Ocidental. Sabe-se como tudo vai mudar, não será preciso um década, mas há opiniões que vale a pena conhecer no ar do tempo em que foram produzidas.

Um abraço do
Mário



Personalidades e olhares sobre a Guiné que poucos recordam ou conhecem

Mário Beja Santos

Uma das dimensões mais fascinantes da pesquisa de materiais a que, de um modo geral, a investigação e a historiografia deixam no silêncio, a encontrar personalidades ou pontos de vista que revelam a injustiça em esquecer cientistas ou trabalhos que acabam por validar o que vem nos documentos factuais. Este preâmbulo vem a propósito de dois textos que encontrei e convosco quero partilhar.

A Coleção pelo Império desempenhou um papel altamente divulgador no tempo da Agência Geral das Colónias, e neste vasta servo monográfico encontramos uma publicação dedicada a João António Cardoso Júnior (1857-1936) [foto à direita], documento escrito por Joaquim Duarte Silva e publicado em 1941. Este distinto cientista e coronel, diplomou-se em Coimbra como Farmacêutico de 1ª Classe e ingressou pouco depois nos Serviços de Saúde de Cabo Verde. Foi encontrar em Cabo Verde e na Guiné campo propicio para estudo e investigações. Estudou a fauna e a flora das duas províncias. O professor Luís Wittnich Carrisso referindo-se aos estudos de Cardoso Júnior na Guiné fá-lo nos seguintes termos: “Tenho conhecimento das colheitas de João Cardoso Júnior, cujo resultados foram publicados na Revista da Sociedade Broteriana. O seu catálogo de peixes colhidos nos mares do arquipélago de Cabo Verde foi classificado como o mais completo que se conhece”.

Teve importantes trabalhos traduzidos em Revistas Científicas estrangeiras, concorreu ao prémio anual D. Luís, da Academia Real das Ciências de Lisboa com o trabalho intitulado Subsídios para a Matéria Médica e Terapêutica das Possessões Ultramarinas Portuguesas, competiu com o sábio Barbosa du Bocage, foi-lhe atribuído um segundo prémio com o parecer da Academia considerando a obra premiada de Cardoso Júnior era valiosa e digna de publicação, como veio acontecer. Os dois primeiros capítulos desta obra prendem-se com terapêutica indígena entre os naturais de Cabo Verde e da Senegâmbia Portuguesa. Com paciência beneditina, elaborou Cardoso Júnior relações nominais de cronistas, historiadores e navegadores que tinham referido às espécies e drogas existentes no Império Português. Em lista longa, refiro André Álvares de Almada que refere o poilão, a cola, a tinta, a laranjeira, o tamarindo, o amendoim, a mangueira, no seu Tratado Breve de 1594. E também o Padre Francisco Álvares que fala do tamarino e das frutas da Guiné na verdadeira informação das Terras do Preste João ou Luís Cadamosto que alude do vinho de palmeira e ao algodão nas Suas Notícias Ultramarinas.

Refiro agora a lição proferida pelo Dr. Fernando Simões da Cruz Ferreira no primeiro Curso de Formação Imperial para dirigentes da Mocidade Portuguesa, vem no Boletim Geral das Colónias, 1950.

Começa por aludir que até 1640 não existiu praticamente ocupação territorial da Guiné, esta não passava de uma dependência de Cabo Verde. Em 1834, a administração da colónia foi centralizada em Bissau, mas só em 1879 é que se constituiu o Governo Autónomo da Guiné, e a primeira capital foi Bolama. Descreve aspetos geográficos por demais conhecidos, mas não deixa de nos surpreender dizendo que a fauna marítima é abundante, o mar é pouco profundo, tem fundos ricos e uma variada fauna marinha, o mesmo se verifica para as rias de água salgada ou salobra e os rios. E diz mais adiante que a assistência médica ao indígena é uma tarefa ingente e dispendiosa para os governos que a empreendem. As afeções dos trópicos tomam frequentemente o caráter endémico ou epidémico, pelo que a profilaxia é da maior importância. A Missão do Combate à doença do Sono ocupa todo o território da Colónia. Falando da instrução diz existir ao tempo doze estabelecimentos ensino oficial e trinta e cinco missionários, com uma frequência de 3000 alunos. Fora recentemente oficializado o ensino oficial.

A Guiné possui 8 associações desportivas. Sublinha que em 1946 tinha sido criado um centro de estudos da Guiné Portuguesa e o seu Boletim Cultural. A Guiné dispunha de 3 aviões que durante a estação seca podiam circular até às sedes de todas as circunscrições. Não havia voos diretos de Lisboa para Bissau, era obrigatório tomar avião de ou para Dacar.

Não deixa de ser interessante ver o que o orador refere sobre o futuro da Guiné, ele fica dependente da qualidade e intensidade de quatro tipo de empreendimentos: defesa das populações contra a doença; desenvolvimento da agricultura, pecuária e indústria; facilidade e regularidade de publicações internas e com o exterior; aproveitamento comercial adequado. Especifica que é preciso melhorar as condições de higiene da população, aumentar a produção de arroz e produtos de exportação com amendoim e o coconote. E usa da maior prudência falando das riquezas florestais: “A percentagem de essências florestais aproveitadas para exploração de madeiras é elevada, acima dos limites estabelecidos pela Convenção Internacional de Proteção Natureza. É uma indústria a desenvolver, desde que se tomem medidas adequadas para um racional repovoamento florestal e se evitem as devastações causadas pelas queimadas”. Não deixa de referir a necessidade de intensificar o tráfego marítimo entre Portugal e a Colónia e a criação de um aeroporto. Por último apela a que as transformações económicas e sociais devam ser resolvidas por técnicos e no contexto geral da África Ocidental.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23596: Historiografia da presença portuguesa em África (333): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23551: Historiografia da presença portuguesa em África (330): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Se acaso existe algum valor nestas impressões de viagem e no cuidado posto pelo Padre António Joaquim Dias quanto à história da presença missionária franciscana na Guiné, dar-se-á o caso o estudioso ou curioso poder reter o olhar de um missionário que ali viveu intensamente na década de 1930 e transitou para a seguinte. Não faz o panegírico da missionação franciscana, mas não ficamos com dúvidas que foi uma pequena saga a sua instalação, o seu fervor apostólico. Como homem do seu tempo, deixou registado o seu olhar sobre aquele mosaico étnico que deixava qualquer viajante assombrado, como era possível em território tão diminuto encontrar-se aquela riqueza multiétnica, multilinguística, aqueles usos e costumes que variavam radicalmente no mesmo espaço e lugar, numa convivência alegadamente pacífica, sem qualquer radicalismo religioso, que se prolonga aos dias de hoje. Tenho vários cartapácios ainda para ler, vamos ver quantas mais surpresas nos reserva o Padre António Joaquim Dias.

Um abraço do
Mário



Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (3)

Mário Beja Santos

Que grande surpresa, estas Impressões da Guiné escritas por um missionário que ali viveu mais de oito anos, são documentos que ele vai publicando ao longo dos anos no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira, ainda não sei o que nos reserva este conjunto de cartapácios, a verdade é que há imagens magníficas sobretudo no noticiário guineense. O Padre António Joaquim Dias regressou a Portugal depois de oito anos e meio de apostolado missionário em terras da Guiné e resolveu vazar no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira a partir do número de novembro de 1942 em diante impressões e dados históricos da presença missionária franciscana na antiga Senegâmbia Portuguesa. Elaborou um texto sobre os missionários franciscanos na Guiné e conta que em 1931 foram desviados do campo apostólico de Moçambique os primeiros missionários, não foi operação indolor, como ele escreve:
“Antigos e prestimosos obreiros de Deus e da Pátria, lamentavam o abandono a que eram condenados. Na Guiné havia míngua de obreiros. Durante anos, um único sacerdote foi todo o clérigo da colónia. Gostosamente prestamos aqui homenagem cordial ao Padre José Pinheiro, ainda vivo e reformado após mais de 30 anos de serviço na Guiné, o qual soube trabalhar sozinho e aguentar-se, esperando contra toda a esperança dias melhores, menos agrestes. Estes surgiram em 1931, com modesto reforço, ao qual se seguiu outra um pouco mais nutrido, em 1932”.

E recorda o seu estabelecimento na vila de Cacheu, as bases da missão central de Bula, em chão de Brâmes ou Mancanhas, a primeira missão da Guiné depois de séculos de entorpecimento religioso e paralisação missionária. Relata os acontecimentos entre 1934 e 1937, não ilude a falta de recursos, começam a aparecer escolas em Farim, em Có, refere que o Governador Carvalho Viegas não era grande apoiante do trabalho missionário, mas que, no entanto, sabia fazer propaganda da presença missionária, iam surgindo artigos anónimos aludindo à obra de assistência social e às missões religiosas, isto quando na prática era o próprio governador que as não apoiava. Nesse ano de 1935 apareceu o Reformatório de Menores e Asilo de Infância Desvalida de Bor, com o auxílio de mais quatro irmãs Franciscanas Hospitaleiras. As baixas eram enormes, em 1936, Padre Pedro, absolutamente exausto, era forçado a sair da Guiné. No ano seguinte era inaugurada a Escola do Sagrado Coração de Jesus de Pelundo. Interrompe aqui o Padre Dias a sua descrição para nos falar de aspetos etnográficos e etnológicos que julga pertinentes divulgar, e espraia-se sobre o mosaico étnico da Guiné.

À luz dos conhecimentos da época, refere a seguinte tipologia: Fulas e Mandingas provenientes de uma mistura de Etíopes e de Nigríticos (negros sudaneses e nilóticos); as demais tribos constituiriam o grupo dos Nigríticos litorais ou guineenses, que não usam línguas Bantus. Diz faltarem estudos sobre a origem e parentesco etnográfico destas gentes africanas e alude a algumas referências sobretudo da literatura de viagens sobre as gentes da Guiné, caso das obras de Valentim Fernandes e de Duarte Pacheco Pereira, pondo ênfase que no século XVI já figuravam na Guiné os Balantas, os Felupes, os Banhuns, os Beafadas e os Nalus. Há também referências à tribo Papel, eram situados na chamada Costa de Baixo, nas ilhas de Pecixe e Jata e provavelmente também na ilha de Bissau.

Os Bijagós também não são esquecidos. André Alvares de Almada, no seu "Tratado Breve dos Rios da Guiné", cita e localiza diferentes etnias, com exceção dos Baiotes, Manjacos, Fulas e Futa-Fulas, e depois o Padre Dias lança-se numa apreciação do mosaico étnico.
Os Felupes já nos primeiros anos do século XVI ocupavam a posição geográfica atual; os Baiotes estavam agora confinados entre o rio Cacheu, os Felupes, os Banhuns e a fronteira, mas não são referenciados na já citada literatura de viagens e o Padre Dias diz mesmo que o Padre Marcelino Marques de Barros dá os Baiotes como uma subdivisão dos Felupes; os Banhuns tinham um território que constituía centro comercial das ilhas de Cabo Verde, estendiam-se pela margem esquerda do rio Casamansa avançando por cima dos Felupes, e eram cingidos ao sul pelos Brâmes, que já lá não existem, e por cima e pelos lados por Cassangas; estes, assentavam no local que cingia os Banhuns, o Padre Marcelino Marques de Barros faz dos Cassangas uma subdivisão dos Beafadas; os Mandingas apareciam agora instalados nas regiões de Farim, Paxisse e Oio (onde tomam o nome de Oincas), alargaram durante o século XVI o seu espaço territorial para a região de Mansoa até às margens do estuário comum aos rios Geba e Corubal; os Balantas terão descido do rio Casamansa para as zonas em que hoje vivem: Barro, Bissorã, Mansoa e Nhacra; os Buramos ou Brâmes comprimiram-se inicialmente entre o rio Cacheu e os Banhuns, foram-se espalhando por toda a região de entre os rios Cacheu e Geba, contam hoje com os regulados de Bula, Có e Jol, o Padre Marcelino diz que os Brâmes são uma subdivisão dos Banhuns; os Papéis podem ser confundidos com os Brâmes por ocuparem territórios afins e estendem-se hoje por toda a ilha de Bissau; os Manjacos são os marinheiros da Guiné, permanecem um ponto de interrogação no quadro etnográfico da colónia, Brâmes, Papéis e Manjacos mantêm afinidades etnográficas e linguísticas; os Beafadas ou Beafares já no século XVI ocupavam as regiões onde hoje vivem, do Quínara ou Guinala, e do Cubisseque e Bissegue, é dado como seguro existiram afinidades linguísticas entre Beafadas e Manjacos; os Nalus mantêm-se igualmente no território que habitavam no século XVI, a sul do rio Tombali; os Fulas constituíam no passado o Grande Império Fula ou Grão-Fula, que principiava no rio Senegal e se estendia para o Sudão, em concorrência com o Grande Império Mandé ou Mandinga, Fulas-Forros e Fulas-Pretos representam migrações Fulas, que foram deslocando para o litoral grupos étnicos instalados primitivamente a leste, são os autóctones mais bronzeados da colónia e ocupam atualmente as zonas do Gabú, Bafatá e Forreá; os Futa-Fulas ou Fulas do Futa Djalon, enviados outrora ao Forreá para extensão da supremacia política, é o tipo mais aproximado do Fula clássico, não foram mencionados pelos escritores de Quinhentos, por não existirem então no nosso território, povoam atualmente a região do Boé; os Bijagós são indígenas de cor preta, encontrando-se porém nalguns sinais evidentes de mestiçagem, dialetos e costumes variam quase de ilha para ilha, podendo admitir-se talvez a hipótese de imigrações várias.

Depois desta exposição sobre os grupos étnicos, o Padre Dias especula o número de habitantes da Guiné, mas diz claramente que falta um recenseamento seguro. O seu poder de observação vai até aos usos e costumes, como se exemplifica:
“As tatuagens estão em moda em alguns grupos étnicos. Usam-nas Manjacos, Brâmes, Papéis, Balantas e Bijagós, no peito, no ventre, nas costas e braços. São produzidas por escarificações à faca ou agulha e infetadas ou cheias de massa de azeite de palma com cinza. Os Mandingas usam tatuar-se na testa e frontais. Os Futa-Fulas tatuam os lábios a azul, pintam da mesma cor as pálpebras inferiores e abrem sinais particulares nas palmas das mãos. Notam-se penteados exóticos em quase todas as etnias, são feitos com pente indígena de madeira, semelhante a largo e comprido garfo de muitos dentes. Os Felupes ornam a carapinha, depois dos dez anos, confiadas de búzio; os Papéis de Biombo (ilha de Bissau) usam risca ao meio ou então tranças isoladas apertadas na base ou ainda tranças em torno da cabeça, de onde pendem anilhas de latão. Os exóticos penteados das mulheres Futa-Fulas, sobremontados por alta forma de palha, são adornados com fita de palha tingida de negro e abastecida de moedas e contas. Os Balantas penduram anéis e anilhas de latão da carapinha torcida e besuntada de azeite de palma e carvão moído, ou então rapam a cabeça, à faca ou a vidro, deixando somente algumas placas de cabelo, de forma redonda, ou valada, longitudinais ou transversais. Das pequenas tranças das mulheres Beafadas pendem conchas e moedas, em toda a volta da cabeça. Finalmente são inconfundíveis os dois sistemas de penteado Bijagó: tufos de cabelo soerguidos no alto da cabeça ou então empastada a carapinha toda em azeite de palma, barro ou carvão moído".

(continua)
Guiné - Catedral de Bissau
Guiné - A Igreja de Cacheu, única relíquia dos velhos tempos
Mancanha em dia de festa
Missão do Felupes. A casa que serve de igreja, escola e residência missionária
Bolama. A procissão na festa de S. José
Guiné. Tipo bijagó
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23533: Historiografia da presença portuguesa em África (330): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (2) (Mário Beja Santos)