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quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24981: Historiografia da presença portuguesa em África (400): Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Há relatórios curiosos coincidentes com a Sociedade de Geografia de Lisboa. Já aqui em pronunciei, sob a forma de ensaio, sobre o que era o pensamento imperial destes sócios fundadores e acabo de encontrar um texto do sócio Ferreira de Almeida que exemplifica claramente que esta corrente imperial pretendia que vingasse uma crescente atração pela fixação dos territórios africanos, conhecê-los em profundidade, dar-lhes contorno e fronteiras, identificar as suas potencialidades, para isso era indispensável fazer explorações, viagens de estudo, é o que ele aqui vem propor junto de uma importante comissão da Sociedade de Geografia de Lisboa. É mais uma voz a alertar para a tentativa de supremacia dos franceses na região; vai sublinhando que aqueles produtos comerciais que a Senegâmbia oferecia deviam aparecer à vista do público, em Lisboa, quer para comerciantes e investidores quer para consumidores. Era uma novidade como proposta, mais tarde as expedições coloniais concretizarão tal propósito. Confirma-se que este anos 1870 foram de viragem no pensamento imperial.

Um abraço do
Mário



Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (1)

Mário Beja Santos

Dando voltas à cabeça de papeis votados ao esquecimento e alusivos às preocupações dos sócios da Sociedade de Geografia de Lisboa, no seu período iniciático, quanto ao conhecimento da Guiné, com auxílio da respetiva bibliotecária, dou-vos conta de um documento intitulado Pareceres N.º 3 da Comissão Portuguesa de Exploração e Civilização de África, desta instituição, com data de 19 de novembro de 1877, encontra-se um pedido de autorização assinado pelo sócio Ferreira de Almeida para subsidiar uma exploração geográfica e social à Guiné Portuguesa, estou certo e seguro de que não vou desapontar ninguém quanto ao teor do documento.

Após uma síntese histórica sobre o período dos Descobrimentos, chegamos ao nó da questão através de considerações preambulares, tomo conta de uma mentalidade e de um quadro ideológico emergente à noção do III Império:
“A emancipação, talvez prematura, mas natural do Brasil, deixou-nos livres de criarmos outro império e de explorarmos a nossa Senegâmbia que pelas suas condições pode assemelhar-se talvez à Guiana na América.
É preciso abandonarmos o péssimo sistema de apelar em tudo para os governos; podem entretanto influir eles de duas formas: primeiro cessando, a troco seja de que sacrifícios, de serem os primeiros concorrentes aos fundos disponíveis do mercado, porque então os capitais não encontrando lucro fácil, seguro e elevado, aventurar-se-ão em empregos comerciais, agrícolas e industriais não só no país como nas colónias; segundo, tornando conhecidas pelas explorações, e publicações de notícias, as condições das diversas colónias, etc. e incitando pelo exclusivo a formação de companhias comerciais e agrícolas. A colónia francesa do Senegal que desde o governo do general Faidherbe, em 1854, começou a alargar a sua área de desenvolvimento comercial, impôs a navegação francesa com exclusão de todas as outras nações.
A região da Guiné é de todos os nossos territórios além-mar talvez o menos conhecido. A primeira condição favorável que oferece ao nosso comércio é a sua proximidade da metrópole em relação às demais nações.”

O autor cita Travassos Valdez: “Na Guiné tudo denota ao viajante um país muito rico de produtos naturais, terras baixas e extensas, literalmente cobertas de uma vegetação pomposa, desde a mais perene e variada, facilitando a um governo previdente, forte e ilustrado os mais importantes recursos.”

E volta às suas considerações pessoais: “Os comerciantes portugueses na Guiné não são mais do que comissários dos comerciantes estrangeiros estabelecidos na Gâmbia e Goreia que por seu turno são as gentes das fortes casas comerciais de França e Inglaterra, América e Bélgica.”

Volta às suas considerações sobre o desenvolvimento agrícola para ele condição determinante, sem ele não haveria meio de fixar a colonização. E volta às suas considerações:
“Além das produções naturais da mancarra, madeira e arroz, parecem ser de fácil exploração o café e o algodão, pelo menos na região dos Mandingas (Geba e Farim) e nos Bijagós. Os artigos de comércio que vais avultam são além dos produtos agrícolas – goma, os couros, o marfim e o ouro; este comércio é feito das casas estrangeiras das colónias próximas francesa e inglesa e muito pouco por via de Cabo Verde com Portugal.
O atraso da hidrografia daquelas paragens, a falta de segurança e a dos mais rudimentares melhoramentos materiais, a exiguidade da população europeia e a ignorância das condições comerciais e agrícolas ditaram os artigos desserviço que julgámos indispensáveis fazer-se naquela região, a não ser ela alienada, a troco de uma centralização de domínio colonial da costa de Angola. Não é novo serem encarregues os exploradores de uma região de fundarem feitorias comerciais nos pontos em que pelo estudo que tinham feito da região se ofereçam condições de uma colónia: ultimamente foi o conde de Senelle encarregado de uma exploração naquelas condições, sobre os auspícios da Sociedade de Geografia de Lisboa. Propõe-se a Sociedade de Geografia de Lisboa a abrir uma subscrição para explorações geográficas: sem descrermos do patriotismo dos cidadãos portugueses, parece-me que a soma da subscrição não poderá atingir uma cifra que tenha um valor importante para a organização da expedição; mas em que esse capital pode condigna e justamente auxiliar a exploração é na criação em Lisboa de um depósito de géneros da Guiné que devem ser adequados pela permuta de artigos nacionais para o que servirá aquele capital; e onde o público, quer comerciante que consumidor, poderá apreciar os géneros e, pelos relatórios que os acompanharem, as condições comerciais e outras a que a permuta está sujeita, suas vantagem económicas, etc.”


Vamos ver na continuação deste texto e noutros seus contemporâneos que estava a alvorecer um novo conceito imperial: deslocar população para África com propósitos de colonização, impunha-se um desenvolvimento agrícola suscetível de dinamizar as trocas comerciais; o sócio Ferreira de Almeida é seguramente o porta-voz de uma conceção nas ligações comerciais entre Portugal e as suas colónias. E, como veremos adiante, faz uma proposta, contemporânea com as viagens que irão acontecer entre Angola e Moçambique, para identificar a geografia de uma colónia cuja dimensão se desconhece, ele fala claramente que é preciso conhecer a hidrografia, seguramente numa lógica do aproveitamento integral dos recursos hídricos para o transporte de mercadorias.

Procurava-se instituir uma moldura para a ocupação humana deste III Império, e um dos pontos mais curiosos desta proposta é a conjugação entre o conhecimento geográfico e a identificação das potencialidades económicas. Seguramente que a proposta não foi viabilizada, mas este documento denota uma mentalidade nascente quanto ao novo modo de olhar a ocupação de África. Sabemos que este desenvolvimento agrícola nunca passou das boas intenções, basta ler os relatórios dos chefes das delegações bancárias do BNU na Guiné, apareceram empresas com grandes planos e que rapidamente desapareceram. O colono branco não se fixou na terra, mas no comércio e serviços e com uma autoridade nos lugares mais inóspitos fez-se, sobretudo, representar pelo cabo-verdiano.


Largo Honório Pereira Barreto, freguesia do Beato
Gravura da época sobre povos da Senegâmbia
Indumentárias do povo da Gâmbia, 1823
Zulos, Kaffirs, Bechuana, Senegâmbia, gravura antiga

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24979: Historiografia da presença portuguesa em África (399): Magul, Moçambique, 8 de setembro de 1895: um marco na história da nossa artilharia

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24949: Historiografia da presença portuguesa em África (398): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Digamos que esta história do comerciante francês em Orango tem um final feliz para quem julgava que lhe ia acontecer o pior, o que penso ser bastante útil, repito, é termos aqui um testemunho de como no exato momento em que a Guiné se autonomizava de Cabo Verde a nossa presença no arquipélago dos Bijagós nem chegava a ser discreta, isto fora de Bolama, o presidente dos Estados Unidos resolver a nosso contento o diferendo com a Grã-Bretanha quanto à posse da ilha, aí fazia-se imenso comércio e havia ligações com as feitorias do Rio Grande de Buba. Há aqui acontecimentos de caráter antropológico, como as práticas de Justiça baseadas em feitiçaria e superstição e ouvindo nós relatos que afinal se revelam não comprovados de matriarcado, temos aqui um rei déspota. Como é evidente, este mundo aqui descrito deverá ter-se mantido pelo menos até à ocupação efetiva de todas as ilhas dos Bijagós, o que aconteceu em 1936.

Um abraço do
Mário



Viagem ao arquipélago dos Bijagós, 1879 (3)

Mário Beja Santos

A Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa possui um exemplar de "Viagem ao Arquipélago dos Bijagós", por Maximin Astrié, negociante francês em Bolama, Luchon, 1880, o exemplar foi uma oferta de Godefroy Gairaud, vice-cônsul de Portugal em Carcassonne. Lembro-me perfeitamente de ter deitado uma vista de olhos a este texto, mas não me recordo de o ter traduzido no essencial, tem elementos até de caráter antropológico do maior interesse. E ficamos claramente a perceber que em 1878 a nossa presença nos Bijagós era por demais ténue. Vamos então ao essencial do texto. Maximin Astrié é convidado a avaliar as potencialidades económicas dos Bijagós, aceita e entende começar a sua viagem de reconhecimento pela ilha de Orango. Chega, o déspota local manda fazer um sacrifício sobre a conveniência de tal relacionamento, é degolado um galo, ele afasta-se do visitante antes de sucumbir, o régulo manda prender Maximin, este percorre as florestas que o deslumbram, assiste a um julgamento depois da morte de um homem acometido da doença do sono, num contexto de feitiçaria e pura superstição a mulher do morto é considerada culpada, foi levada para a prisão, metida num buraco, onde seguramente morrerá ruída pela febre e pela fome.

Estamos agora na parte final da narrativa, Maximin irá tomar conhecimento do que o régulo Oumpané guarda nos seus armazéns, tinham decorridos seis dias desde a sua chegada à ilha, tinham sido dias preenchidos com excursões na floresta e conversa com os indígenas, o comerciante não escondia a sua preocupação em saber como ia terminar aquela odisseia, se sairia dela com vida, assim começa o relato na primeira pessoa do singular.

Um dia, Oumpané ordenou ao ministro da Justiça para me pedir alguns galões de aguardente. A ocasião pareceu-me a ideal para lançar as bases de um tratado amigável e comercial com o rei. Dirigi-me à sua residência acompanhado do meu intérprete e falei-lhe nestes termos após o ter informado que lhe oferecera os últimos galões de aguardente:
“Vim a estas terras para comerciar contigo os produtos da ilha de Orango, dando guinéus, tabaco e aguardente. Até agora não me falaste das tuas intensões nem quais os produtos que eu podia comprar. Dei-te toda a minha aguardente e se tu desejas mais é necessário que autorizes ir abastecer-me junto dos brancos de Bolama. Trarei nessa altura todas as mercadorias que me peças.”

Oumpané ficou uns minutos sem responder; depois, pareceu ter tomado uma resolução. Levantou-se, tirou de um cofre um maço de cavilhas de caju de pontas encurvadas e fez-me sinal para o seguir. Atravessámos a povoação em todo o seu comprimento e ficámos diante de uma casa que estava fechada. O rei introduziu uma dessas cavilhas, abriu-se a porta e vi que estávamos num vasto armazém cheio de amêndoas de palma, que avaliei em 10 mil francos. O rei, cheio de orgulho, mostrou-me uma enorme quantidade de curtumes cuidadosamente empilhados. Nos depósitos seguintes, vi também milhares de esteiras, muita borracha, arroz, milho-miúdo, amendoim; num outro espaço, e confesso que fiquei verdadeiramente estupefacto dei com peças de navios, tais como velas, âncoras, vergas, cordame de todas as dimensões, barómetros, pêndulos, até a fotografia do capitão inglês John Peens, em corpo inteiro. Ora este capitão desaparecera 15 anos antes, pensava-se que tinha naufragado nas costas do Gabão. O rei parecia admirado com a atenção que eu dedicava ao exame desta fotografia. Fechou a porta e levou-me a um novo depósito onde estavam classificadas peças de vestuário, fuzis e sabres. Vi também numa prateleira capacetes, chapéus altos, quépis e um soberbo uniforme de oficial da Marinha. O ministro da Justiça informou o meu intérprete que os objetos guardados neste último depósito eram os preferidos do rei. Segundo usos e costumes de Orango, seria este uniforme o que o rei usaria no seu funeral.

Após esta última visita o rei conduziu-me à sua casa, sentámo-nos e mostrou-me uma peça de carpintaria onde estavam vários deuses. E disse-me: “As mercadorias que viste nos depósitos e que são produtos nossos, estou pronto a vendê-las. Vou, pois, autorizar-te a regressar a Bolama para procurares aguardente, tabaco, guinéus, fuzis e metralhadoras, sobretudo metralhadoras, isto na condição de que os deuses te sejam favoráveis. Guardarei aqui até ao teu regresso as mercadorias que já trouxeste. A tua chalupa está na enseada há já algum tempo. Vais encontrá-la repleta de amendoim que levarás para Bolama.” Dito isto, virou-me as costas, o que me fez pensar que a audiência terminara.

Dirigia-me para a porta quando os ministros vieram prevenir-me que ia ter lugar um novo sacrifício aos deuses. Temi que a prova me fosse novamente desfavorável, procurei corromper o sacerdote oferecendo-lhe 10 jardas de tecido de algodão e 50 folhas de tabaco que Samba Salla foi rapidamente buscar às provisões que restavam. Desta vez o galo degolado veio cair aos meus pés, o povo não escondia o seu contentamento e o rei ofereceu-me 22 porcos e 1 boi.

Qual não foi a minha deceção quando verifiquei que todo o amendoim que encontrei na chalupa estava avariado. O que ele me dava valia apenas 600 francos, eu perdera 1200. A operação não era brilhante! Veio-me então uma ideia cuja execução teria alguns meses mais tarde terríveis consequências. Ordenei a Samba Salla que reunisse imediatamente toda a gente da minha equipagem. “Meus amigos, disse-lhes, o rei quer obrigar-me a abandonar todas as minhas mercadorias. Em troca, dá-me 22 porcos, 1 boi e um carregamento de amendoim sem valor. Não podendo resistir-lhe pela força, quero pregar-lhe uma partida. Vamos aos depósitos dele e vocês executam rapidamente as ordens que vos irei dar.”

Regressámos à povoação e esvaziámos todas as caixas que me pertenciam. Tinha agora a minha vingança!

Os porcos e o boi já tinham embarcado e no último momento o reio quis juntar aos presentes uma magnífica tartaruga com 1 metro de diâmetro e cerca de 50 esteiras. Como eu lhe tivesse agradecido calorosamente estes novos presentes, o rei pediu-me que lhe oferecesse o meu revólver. Retirei as balas e entreguei-lhe a arma. A brisa era-nos favorável, estava tudo pronto para a partida. Oumpané teve a deferência de me acompanhar à chalupa não sem ter deitado uma olhadela às caixas que eu lhe deixava.

Temendo que a substituição fosse rapidamente descoberta, apressei o embarque, levantou-se a âncora, acenei um adeus ao rei e partimos imediatamente.

Não era sem tempo. Ouviam-se gritos na povoação, vi uma multidão a correr à praia, à frente vinham os ministros. Tendo descoberto que tinha sido ludibriado o rei lançava autênticos urros, apontou-nos o revolver, puxou em vão pelo gatilho.

Pusemo-nos ao largo, o vento soprava de feição, os bijagós que se tinham lançado à água para nos prender cedo perceberam que era inútil a perseguição. Felizmente que tudo acabou bem para nós.

Aqui finda o relato de Maximin Astrié.

Costumes bijagós, imagem publicada em Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, n.º 10/11, 1954
Régulos bijagós, fotografia de Luís Paulo Ferraz, com a devida vénia
Escultura bijagó
Máscara bijagó, Museu Nacional de Etnologia, com a devida vénia
Rapaz bijagó em cerimónia de iniciação

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24924: Historiografia da presença portuguesa em África (397): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24924: Historiografia da presença portuguesa em África (397): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Maximin Astrié, comerciante francês por conta de outrém, anda pelos Bijagós, numa altura em que a presença portuguesa estava praticamente reduzida a Bolama. Decide-se por visitar Orango, é confrontado com as crueldades de um rei déspota, exalta as belezas da natureza e só espera por uma oportunidade para sair dali, já foi espoliado, teme pela sua vida, felizmente que gente da sua equipagem lhe apela ao bom senso, até agora está tudo a correr bem, deixamos para o terceiro e derradeiro texto o desfecho da história, é claro que o comerciante francês saiu são e salvo, agora o leitor fica a perceber que uma coisa foi a pacificação de Teixeira Pinto, em 1915, os Bijagós fizeram a vida negra aos portugueses e Canhabaque só se rendeu em 1936. No meio de toda esta hostilidade, fazia-se imenso comércio na região, tive a possibilidade de estudar a documentação do BNU da Guiné e a agricultura bijagó tinha o seu peso. Os comerciantes sediados em Bolama tudo fizeram para que a capital não fosse para Bissau, sabiam bem porquê.

Um abraço do
Mário


Viagem ao arquipélago dos Bijagós, 1879 (2)

Mário Beja Santos

A Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa possui um exemplar de Viagem ao Arquipélago dos Bijagós, por Maximin Astrié, negociante francês em Bolama, Luchon, 1880, o exemplar foi uma oferta de Godefroy Gairaud, vice-cônsul de Portugal em Carcassonne. Lembro-me perfeitamente de ter deitado uma vista de olhos a este texto, mas não me recordo de o ter traduzido no essencial, tem elementos até de caráter antropológico do maior interesse. E ficamos claramente a perceber que em 1878 a nossa presença nos Bijagós era por demais ténue. Vamos então ao essencial do texto. Como se escreveu no texto anterior, o rei déspota de Orango, depois de consultar os seus deuses matando um galo que enquanto estrebuchava se afastava do mercador francês, anunciaram-lhe que estava preso. E um conjunto de peripécias mirabolantes irão ter lugar, conforme ele vai escrever no seu testemunho.

Uma centena de bijagós dirigiu-se para a minha embarcação e dela tudo retiraram. Eu estava suficientemente aterrado para me opor ao saque. Resistir não tinha sentido, este povo estava submisso a este déspota, se reagisse seria trucidado. Resignado com a minha sorte, pedi à minha gente que esperasse pacientemente o evoluir dos acontecimentos. O meu cozinheiro, com a maior serenidade, trouxe-me um prato de galinha com arroz. A minha refeição foi interrompida com a chegada do touro que fora degolado diante dos meus olhos. O rei comunicava que fizera matar o touro em minha intenção e pedia-me que lhe oferecesse um quarto, é claro que prontamente concordei. Parecia que a situação não era tão má como eu inicialmente supusera. Respondi que oferecia dez galões de aguardente, logo se ouviu um murmúrio de congratulação. Até o rei veio pessoalmente agradecer-me. E através do meu intérprete fez-me saber que eu era livre de percorrer toda a ilha e que, entretanto, se iriam preparar festividades públicas.

Estava desorientado com este rei que me mantinha prisioneiro e que oferecia ao mesmo tempo presentes e festividades, tudo me parecia incompreensível, embora tenha vindo a constatar, no seguimento das minhas viagens, que era um procedimento bastante comum a alguns dos reis destes países.

No dia seguinte dirigi-me para o interior da ilha. Após ter atravessado muitos campos de milho, de inhames e de batatas, entrámos numa floresta que cobre grande parte da ponta oeste de Orango. Já tinha visto muitas florestas, lido numerosas descrições, mas nunca tinha lido nem visto nada que se parecesse com esta prodigiosa natureza. Encontrávamo-nos debaixo de uma abóbada de árvores gigantes da costa africana, cujo tronco serve para construir as pirogas. Lianas com as formas mais bizarras e as mais variadas envolviam-se à volta dos troncos vigorosos, trepando até ao topo. Estas árvores, cuja altura ultrapassa em muito os nossos maiores carvalhos, estão cobertas de uma folhagem de tal modo espessa que os raios solares não podem penetrar, e, por isso, não há nenhuma vegetação no solo. Atravessámos livremente uma clareira que me parecia infindável e que era dominada por uma vasta cúpula de verdura onde vibravam os gritos, os cantos, os meados e os uivos de milhares de animais. De quando em quando, numa aberta de luz, apareciam goiabeiras inclinadas sob o peso dos frutos amadurecidos. Estes frutos têm um gosto saboroso. Viam-se misturados o caju, o bambu, a palmeira; esta é objeto de muitos usos, desde vestuário a cordame, dela se extrai o vinho de palma e o óleo. Avançávamos muito lentamente, numa contemplação muda. Subitamente, chegou-nos o ruído de vozes humanas misturada com golpes de machado e sons guturais estranhos, entre o riso e o urro. Logo nos apercebemos, como numa visão fantástica, uns cinquenta negros agrupados à volta de um mesmo tronco, faziam uma piroga destinada ao rei. A construção de uma piroga exige não só meses inteiros de trabalho, mas uma quantidade considerável de braços, pois os indígenas estavam munidos de instrumentos grosseiros de trabalho que exigiram apenas alguns dias a um trabalhador europeu. Explicaram-me que esta piroga se destinava a substituir a piroga de guerra que ficara danificada pelo mais recente maremoto. Esta nova piroga destinava-se a uma expedição contra o rei de Oul. A piroga é considerada pelos bijagós como o mais importante sinal de poder e riqueza. O que parecia ser o chefe dos trabalhadores fez-me sinal que tinha qualquer coisa de especial a mostrar-me. Segui-o através de um tufo de bambus onde me foi dado ver a cabeça de um touro em madeira com grandes cornos, este objeto deveria ser colocado à frene na piroga, à maneira dos emblemas que vemos nos navios europeus. Veio, entretanto, um negro avisar-me que o meu cozinheiro tinha preparado uma refeição.

Seriam duas horas e estava em a fazer uma sesta quando vi entrar o ministro da Justiça que me convocava para eu ir a casa do régulo. Oumparé esperava-me deitado numa esteira, o rosto inchado, os olhos injetados de sangue, pareceu-me fatigado e nauseado pelas orgias da noite anterior. Anunciou-me em primeiro lugar que na minha ausência fora visitar as minhas mercadorias e que retirara para si os objetos que mais lhe agradaram. Adiantou que passara a dispor do meu barco que fora transferido para outro ponto da ilha, perto dos bancos onde naufragara o navio austríaco. Acolhi a notícia com uma indiferença aparente. Seguidamente o rei quis saber a maneira como os brancos procedem para fazer a guerra, para praticar a justiça e receber os impostos. O seu espanto foi imenso quando lhe falei de exércitos permanentes, de cavalaria, de metralhadoras. Manifestou imediatamente o desejo de possuir estas armas para combater contra o rei Oul. Devo confessar que as informações que lhe dei sobre o modo de praticar a justiça em França lhe causaram uma admiração muito limitada. Teceu considerações que me comprovaram que Oumparé tinha o sentimento do poder pessoal muito desenvolvido, seria considerado num país civilizado um déspota. Não me perguntou nada quanto ao modo de vida nos nossos países, o que comemos, as festas que fazemos, tudo o que se prende com a civilização material deixava-o absolutamente frio. A nossa conversa foi interrompida porque trouxeram ao rei cinco enormes talhas cheias de vinho de palma. Explicou-me que era hora das libações, estas duravam cinco horas até à meia-noite. Bebia até cair na esteira. Despedi-me e fui ver o que o rei apresara das minhas mercadorias. Servira-se das minhas mercadorias à grande.

No dia seguinte, testemunhei um acontecimento bizarro que vos vou contar aqui com todos os pormenores. Alguns dias antes da minha chegada à ilha, um pobre diabo chamado Outapa tinha sucumbido a uma doença misteriosa, que é designada na Senegâmbia por doença do sono. Os infelizes tocados por este mal perdem o uso das suas faculdades intelectuais, ficam autênticos animais. Parece que só obedecem ao supremo instinto de conservação, movem-se, falam e alimentam-se maquinalmente. Incapazes de trabalhar, caem na extrema miséria. Atribui-se este mal a um veneno vegetal que será muito comum nas florestas onde cresce a borracha. A questão não está medicamente esclarecida.

A mulher de Outapa, Tchiourra, era acusada de lhe ter acelerado a morte. Como saber a verdade? Em França, ter-se-ia simplesmente procedido à autópsia. Estes selvagens atuam de outra maneira. O chefe religioso manda construir um manequim que se pensa representar o defunto Outapa. Este manequim é colocado num ponto alto da tabanca preso por cordas ligadas a quatro estacas fixadas no solo. Evoca-se a alma do morto e cada um pode perguntar publicamente, na presença de divindades, quem é o verdadeiro culpado. Após a sesta, Samba Salla veio avisar-me que tudo estava pronto para a cerimónia. O chefe religioso pronunciava palavras misteriosas que me parecia evocar a alma do infeliz Outapa. Estendeu as mãos para o manequim e gritou bem alto: Outapa, porque morreste, fui eu que te matei? O manequim não respondeu. Vieram os principais habitantes da ilha fazer as mesmas perguntas ao manequim. Veio depois Tchiourra, uma negra de grande beleza, fez as mesmas perguntas e ocorreu um fenómeno inexplicável para mim, o manequim pareceu estremecer e balançou-se duas vezes como se estivesse a dizer sim. Houve grande clamor da multidão, Tchiourra foi levada à justiça do rei.

Deu-se uma cena de uma ferocidade selvagem. A um sinal do rei, um negro, hercúleo, aproximou-se munido de um martelo parecido aos nossos martelos de forja e com uma corrente que tinha em cada extremidade dois aros informes, a condenada foi algemada. Apareceu um cepo sob o qual foram colocados os braços de Tchiourra, esta estava energicamente presa por quatro bijagós. A rebitagem das cadeias de ferro provocou um enorme sofrimento à condenada, um martelo acidentalmente quebrou-lhe um antebraço, ela caiu inanimada.

Não pude suportar mais tempo esta carnificina e esquecendo que estava eu próprio à mercê destes selvagens, tirei de um bolso um revólver, mas senti que me prendiam vigorosamente a mão, era Samba Salla que antevendo as consequências da minha loucura me afastou deste horrível espetáculo. Tchiourra foi levada para a prisão, um buraco que mais parecia o inferno escondido de Dante. Já lá estavam dois condenados e com Tchiourra eram agora três condenados destinados a uma morte lenta roídos pela febre e fome.

Costumes bijagós, imagem publicada em Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, n.º 10/11, 1954
Régulos bijagós, fotografia de Luís Paulo Ferraz, com a devida vénia
Escultura bijagó
Máscara bijagó, Museu Nacional de Etnologia, com a devida vénia
Rapaz bijagó em cerimónia de iniciação

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24897: Historiografia da presença portuguesa em África (396): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24897: Historiografia da presença portuguesa em África (396): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Há para aqui um sexto sentido que me alerta para o facto de, pelo menos, ter folheado este opúsculo, não acredito tê-lo traduzido como hoje pretendo. Não é só rico em termos antropológicos. Temos forçosamente de nos interrogar o que era a nossa presença nos Bijagós, é inequívoco que a presença francesa tinha gradualmente ganho peso, eram as tais pretensões de ficar na posse das ilhas e estender o seu domínio até ao rio Nuno, sabemos como a diplomacia francesa saiu vitoriosa ao levar-nos a assinar a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886, tomaram posse de toda a região do Casamansa, cortaram-nos o caminho para os entrepostos da Serra Leoa. Devemos a este negociante francês um relato bem urdido, há que questionar porque nunca tenha sido publicado em português.

Um abraço do
Mário



Viagem ao arquipélago dos Bijagós, 1879 (1)

Mário Beja Santos

A Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa possui um exemplar de Viagem ao Arquipélago dos Bijagós, por Maximin Astrié, negociante francês em Bolama, Luchon, 1880, o exemplar foi uma oferta de Godefroy Gairaud, vice-cônsul de Portugal em Carcassonne. Lembro-me perfeitamente de ter deitado uma vista de olhos a este texto, mas não me recordo de o ter traduzido no essencial, tem elementos até de caráter antropológico do maior interesse. E ficamos claramente a perceber que em 1878 a nossa presença nos Bijagós era por demais ténue. Vamos então ao essencial do texto. Astrié começa por informar o leitor que o arquipélago dos Bijagós está situado na costa ocidental africana entre a Senegâmbia e a Serra Leoa. Com exceção de Bolama, que tem sido civilizada há cerca de 2 séculos pelos portugueses, servindo de entreposto no tráfico de escravos durante muito tempo, estas ilhas são praticamente desconhecidas.

Estamos em Bolama em 1878, recebi de Marselha um telegrama convidando-me a explorar os Bijagós, em caso afirmativo deveria viajar rapidamente até Marselha. O telegrama fora-me enviado pelo sr. Aimé Olivier, homem extraordinário que fundara estabelecimentos na Ásia e África. Acedi viajar até Marselha, fui recebido com um calor tão comunicativo, tinha tal entusiasmo a expor as esperanças que depositava no futuro comercial do país nestas regiões. Não hesitei um instante em aceitar a missão. Cheguei a Bolama em 1 de fevereiro de 1879. Comecei as minhas explorações por Orango, havia dois motivos para me ter decidido primeiramente por esta ilha: é a mais importante do arquipélago e possuiu o mistério de ruídos misteriosos.

É governada pelo rei Oumpané Bijougoth, é um déspota, possuidor de uma tal crueldade que afasta do seu território todos os estrangeiros. Embarquei na chalupa Marie com mais cinco homens na equipagem, incluindo um intérprete de nome Samba Sala, um piloto e um cozinheiro. Recebera na véspera do agente consular francês em Bolama uma carta do seguinte teor: “Meu caro senhor Astrié, tomei conhecimento que se quer aventurar na ilha de Orango. Na minha qualidade de compatriota e amigo, creio dever-lhe pedir energicamente que desista deste projeto. O rei dessa ilha pratica tais atrocidades, como é o caso agora dos marinheiros austríacos que naufragaram nessas terras. Não gostava de o ver exposto a tais perigos, a prejuízos pessoais que porventura exigiriam a intervenção do governo francês; e assinava." Não me demovi, a resolução estava tomada.

Ultrapassadas as dificuldades, viajou-se até Orango. Confesso que não foi sem uma certa emoção que munido de um óculo fui verificando as sinuosidades desta terra, donde talvez eu não voltasse. Fomos recebidos com demonstração de grande regozijo, o intérprete parlamentou com os indígenas, fiquei a saber que o rei me receberia na sua morada.

A tabanca ou residência do rei ficava a cerca de 1,5 km da praia. Chegámos a uma autêntica floresta de laranjeiras no meio da qual ficava a residência do rei, uma casa redonda composta de uma paliçada de bambus e com teto de palha. O rei esperava-me sobre um pódio, uma espécie de peristilo informe onde ele habitualmente praticava a justiça. Estava sentado sobre um escabelo em madeira. Era um homem de cerca de 35 anos, olhos penetrantes, nariz de abutre, coberto por uma tanga. Trazia uma espécie de chapéu alto, tal como usam todos os reis do arquipélago. Vi que tinha na sua coxa direita uma ferida horrível, asquerosa, com pus esbranquiçado, indicador de uma doença muito espalhada pelas populações da costa ocidental africana. De tempos a tempos sua majestade pressionava esta ferida horrenda com os seus dedos e depois limpava-se com um gesto desprovido de nobreza no seu ministro da Justiça. Ofereceu-nos escabelos e começámos a conversar, com recurso a intérpretes.

Muitos viajantes têm o hábito deplorável de se apresentar como se estivessem a conversas diretamente com os indígenas para lhes conhecer a língua. Com o recurso de Samba Sala, o rei dirigiu-me as seguintes palavras: “Quer o Irã, o mais poderoso dos deuses, que tudo o que vou dizer seja a expressão da verdade. Quer o Irã que da tua parte não me mintas. Vou imediatamente oferecer um sacrifício a todos os deuses. Fala, o que vieste fazer a estas ilhas?”

A população envolvia-nos, o círculo fechava-se cada vez mais, senti um odor nauseabundo que exalavam todos estes corpos untados de óleo de palma rançoso. O rei fez um gesto significativo com o bastão que empunhava, a multidão obedeceu-lhe alargando o círculo, ficando mais distantes de nós. Ofereci a sua majestade os presentes da praxe (um lenço para o pescoço, uma faca de talho, tabaco em folhas, um garrafão de aguardente). Recorrendo a Samba Sala, respondi nos seguintes termos: “Diz ao rei que estou pronto a satisfazer todas as suas questões com sinceridade. Vim a Orango para fazer com ele o comércio das nozes de palma, amendoim e borracha. Trago-lhe todos os produtos dos brancos (dinheiro em guinéus, tabaco e aguardente)”. Ao ouvir a palavra aguardente cresceu um murmúrio na multidão. E o rei respondeu: “Diz a este branco que compreendi todas as suas palavras. Vamos agora oferecer um sacrifício aos deuses e agiremos segundo a sua resposta.” E retirou-se, encarregando dois ministros de preparar a cerimónia. Durante os preparativos, trouxeram-nos laranjas, ananases e vinho de palma.

Reparei que uma jovem negra que se colocou atrás de mim com as pontas dos dedos procurava tocar-me o pescoço e manifestava o desejo de me ver o peito. Entendi não lhe recusar este favor e abri ligeiramente a minha camisa e a minha camisola de flanela. A multidão deixou escapar um clamor de espanto, tal a surpresa que lhe causava a brancura da minha pele. Não quis ficar sem resposta. É usual naquelas tribos da costa africana manifestar a sua galantaria às mulheres pressionando com delicadeza os seios e a extremidade superior do fémur, e o maior elogio que se possa fazer da sua beleza é a de mostrar admiração causada pela firmeza destas partes do corpo. Aproximei-me dela e cumpri o dever de responder à sua delicadeza. Mas nesse tempo o rei apareceu no limiar da porta e lançou-me um olhar que não tinha nada de amistoso, aquela jovem era uma das suas favoritas. Será a este fútil incidente que devo atribuir os acontecimentos seguintes?

A uma centena de metros do alpendre onde tínhamos conversado havia uma espécie de praça publicada cercada de laranjeiras e bananeiras. Tinham trazido todos os ídolos da ilha. Os mais belos eram grotescas estátuas em madeira, grosseiramente esculpidas e encimadas com uma espécie de chapéu alto. Havia também divindades secundárias, com cornos de cabra. A multidão esperava a chegada do rei para presidir ao sacrifício. Apareceu finalmente, pôs-se ao meu lado, sempre acompanhado dos seus ministros. A um sinal do rei, o sacerdote, após alguns salamaleques apresentou ao ministro da Guerra um soberbo galo que abanava vigorosamente a cabeça enquanto o ministro da Justiça o segurava pelas patas. Finalmente, o facalhão do sacerdote abateu-se sobre o pescoço do galo que caiu, decapitado, e se revolteou por terra em convulsões de agonia. O galo afastava-se claramente de mim e acabou estendido uns metros à frente. A assistência parecia ter ficado atónita e o rei levantou-se, sem proferir uma palavra. Os deuses tinham-se revelado desfavoráveis para mim. Anunciaram-me que eu estava preso.

Costumes bijagós, imagem publicada em Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, nº10/11, 1954
Régulos bijagós, fotografia de Luís Paulo Ferraz, com a devida vénia
Figura feminina ancestral bijagó, Irã, 1890, coleção particular
Pescador bijagó lançando redes, retirado do Correio da Manhã, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24872: Historiografia da presença portuguesa em África (395): O problema das florestas da Guiné portuguesa, anos 1950 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24856: Notas de leitura (1634): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
A tradição oral africana é um dos patrimónios culturais mais valiosos deste Continente, tão escasso de documentos escritos, de património edificado, de registos linguísticos, entre outros. Um pouco por toda a parte há a preocupação de se estudar este tesouro, dos mais diferentes ângulos. Tanto no período colonial como após a Independência esta tradição oral tem vindo a ser analisada, basta folhear o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa ou depois da Independência ler os trabalhos de Fernanda Montenegro. Foi uma surpresa encontrar esta dissertação de mestrado na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, a mestranda teve o cuidado de utilizar uma das mais completas antologias existentes, os "Contos Mandingas", de Manuel Belchior, precedendo os seus comentários de pertinentes considerações sobre o valor da tradição oral e como ela carece de estudos, continuamente.

Um abraço do
Mário



Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana:
Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1)


Mário Beja Santos

A matéria de análise da tradição oral africana leva-nos a uma fonte histórica suculenta, uma seiva de autenticidade, ocorre-nos prontamente os Griots, os músicos que exaltam heróis e que elevam a sua narrativa dedilhada pelos corredores obscuros do labirinto do tempo. Há uns anos atrás, adquiri um livro sobre a tradição oral com maior incidência no mundo africano, a UNESCO apoiara a criação de um Centro Regional de Documentação para a Tradição Oral, sediado em Niamey, a capital do Níger, aí se reuniram especialistas que entrevistaram Griots, contadores e cantores, letrados muçulmanos e padres, patriarcas e chefes de família, entre outros. Sinteticamente, e em torno de uma consideração consensual, as tradições orais são uma parte essencial do património cultural africano. E fez-se uma apreciação de respetiva tipologia. Quanto à forma, as tradições apresentam-se sob três formas essenciais: prosa, prosa ritmada, prosa cantada ou não, manifestando-se através de uma forma livre ou estereotipada. Estas tradições orais abarcam todos os géneros de expressão literária: história (genealogia, crónica, narrativa histórica), poemas épicos, líricos, pastorais, contos, fábulas, adivinhas, teatro, não faltando as abordagens religiosas e iniciáticas; para além dos conteúdos históricos, as tradições abarcam temas populares ou eruditos. Outro aspeto que esta obra sobre a tradição oral releva são as relações interdisciplinares: a linguística, a etnologia, a arqueologia, a musicologia. Falamos de uma obra que data de 1972 e que envolveu um conjunto de países, dois deles têm fronteiras com a Guiné-Bissau (Senegal e Guiné-Conacri). A descoberta de um livro sobre análise de contos, forneceu munição para falarmos um pouco das tradições orais de uma das etnias mais populosas da Guiné, os Mandingas.

Trata-se de uma dissertação de Mestrado em Literaturas Brasileira e Africana de Expressão Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, em 1998, por Hannelore Felizitas Nadolnÿ da Silva, exatamente com o título “Um Olhar Sobre os Contos Mandingas”. A Hannelore diz ter vivido na Guiné-Bissau entre 1959 a 1965 e para o escopo do seu trabalho retirou um conjunto de histórias da 1.ª edição de “Contos Mandingas”, de Manuel Belchior. Antes de se debruçar sobre a análise dos contos tece comentários de índole teórica sobre este património. A oratura abarca a literatura oral, a literatura oral tradicional e a literatura folclórica. Observa que a literatura oral é anónima, a obra escapa ao seu criador para se tornar num bem comum, depende sempre da personalidade do contador, cada intérprete imprime a sua marca, tudo vai da vivacidade e imaginação do Griot (contador ou narrador, e muitas vezes com a capacidade de musicar, é o que se passa com os tocadores de korá). Designa por a palabra a memória viva de África. É nas sociedades orais que a função da memória está mais desenvolvida, a palavra testemunha tudo, é um retrato, a coesão da sociedade assenta sob o valor e o respeito da palavra. O universo visível é concebido e sentido como um signo.

Dado que na sociedade tradicional africana as atividades humanas têm frequentemente um caráter sagrado ou oculto, são particularmente estas que se constituem como vetor da transmissão oral de conhecimento e tradições.

Nas sociedades tradicionais crê-se que os atos mais importantes da vida quotidiana já foram realizados num tempo primordial, operados por deuses ou heróis, de modo que os homens nada mais fazem do que repetir esse comportamento enquanto arquétipo e modelo. A literatura oral nasce em sociedades onde o trabalho humano não é fragmentário, ou seja, onde não há uma separação radical entre o trabalho quotidiano e a criação artística. A função do narrador é de procurar transmitir um melhor conhecimento e adaptação aos fenómenos da vida e espaço, unificando-os, relacionando-os, numa linguagem simples com larga margem de variações, obedecendo a uma coesão de fundo.

Feitos estes comentários, a autora refere a problemática do conto africano, apresenta alguns dados históricos sobre os Mandingas e disseca a estrutura do conto. Diz-nos que geralmente os brancos tendem a talhar os africanos à medida do seu logos grego e da ratio romana, ou seja, à sua imagem e semelhança. Os povos africanos elaboram no tempo e no espaço as suas visões do Homem e do mundo; criaram os seus valores, hierarquizaram-nos de acordo com a sua filosofia, tanto no domínio do sagrado como no profano. O conto está sempre integrado nos diferentes aspetos da vida social; assegura as múltiplas funções de memorização, de código ético, de expressão estética. Os contos tecem-se não para convencer estranhos, mas para construírem o depósito de uma crença.

Dá-nos seguidamente um histórico sobre os Mandingas, a partir do Império de Mandé, recorda o que os primeiros autores da literatura de viagens sobre eles escreveram: Valentim Fernandes, Duarte Pacheco Pereira, André Álvares de Almada (século XVI), André Gonelha e Francisco de Lemos Coelho (século XVIII). Iniciando a sua proposta de análise, fala-nos na classificação feita pelos Mandingas sobre esta importante vertente da tradição oral: histórias verdadeiras (mas que incluem mitos, lendas históricas e contos exemplares ou edificantes) e contos mentirosos (os humorísticos e fábulas de animais). Segundo o inventário da autora, os temas dos contos são: religiosos, didáticos, iniciáticos, históricos, humorísticos e fábulas de animais. E insiste que a palabra tem um poder incomensurável, constituem um suporte cultural iniciático, na medida em que exprime o património tradicional e tece uma linha de continuidade entre gerações passadas e presentes. E temos como ponto de partida um conto religioso intitulado “Por que razão Deus não tem filhos?”. Moisés depois de alguns encontros com Alá no Monte Sinai, disse ao Criador: “Senhor, oiço a Tua voz, mas não Te vejo, e arde em mim a curiosidade de conhecer o Teu rosto, a Tua forma, o Teu aspeto, de conhecer, enfim, qualquer coisa de Ti. Deixa que o Teu servo Te veja, Senhor!” Deus respondeu-lhe que aquele pedido era impossível de satisfazer, Moisés insistia, queria saber se Ele era branco ou preto, homem ou mulher, a resposta veio breve, não era homem nem mulher nem branco nem preto e não tinha filhos.

Moisés estava confuso, mesmo dececionado. Então Alá deu ao Moisés três ovos e mandou a Moisés que regressasse para junto do seu povo e que mais tarde lhe daria a explicação daquilo que tanto o surpreendera. Moisés regressou à sua gente, um dos filhos quis brincar com um dos ovos, este partiu-se, tanto chorou que acabou por receber o segundo, e depois o terceiro, ambos se partiram. Quando Moisés voltou ao Monte Sinai e perguntado sobre o destino que dera aos ovos, lamentou-se, todos tinham sido partidos pelo mais novos dos seus filhos. “Ora aí tens, Moisés, admiraste-te por Eu não ter filhos e agora já te posso explicar a razão de não os ter. Se tu consentiste aos teus filhos que partissem os ovos que te dei, bem poderia aconteceu que Eu deixasse aos meus, se os tivesse, que partissem a abóboda do Céu. Não, Moisés, não tenho filhos à maneira dos homens, mas são meus filhos todos os seres que Eu criei”.

(continua)

Capa do livro Contos Mandingas, por Manuel Belchior
Mestre Braima Galissá, o Korá e a narrativa mandinga
Imagens de Griots, expoentes da narrativa oral africana
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24847: Notas de leitura (1633): “A Guerra Que a História Quer Esquecer”, por Elidérico Viegas; Arandis Editora, Outubro de 2023 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24793: Historiografia da presença portuguesa em África (391): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Março de 2023:

Queridos amigos,
É com desgosto que acaba esta leitura de uma publicação que não suspeitava existir há 1 mês. O arco cronológico tem imensa curiosidade, corresponde a um período de grande desinteresse com a Guiné, apostava-se forte e feio em Angola e Moçambique, em Bolama, o governador não tinha meios militares para intervir energicamente na guerra do Forreá, que estilhaçou completamente toda a economia da região Sul. No Casamansa, a França prosseguia a sua política implacável de nos enxotar, assim se chegou à convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886, aumentou a superfície da colónia, perdeu-se a nossa presença nos rios Casamansa e Nuno, irá estiolar o nosso comércio na Serra Leoa. Os correspondentes da revista referem-se a estes acontecimentos, chegara-se mesmo ao cúmulo de entregar a colónia a uma companhia majestática ou de ali sair de armas e bagagens, por falta de meios. Tenha-se em conta a diatribe de Alexandre Herculano sobre a questão do Casamansa. Entretanto, procura-se fazer crescer a nossa influência no arquipélago dos Bijagós. A década de 1890 iniciara-se com uma crise financeira internacional que irá devastar as instituições monárquicas, uma crise que fará estremecer o nosso Terceiro Império, o Africano. Por artes do surto ultranacionalista, durará até à descolonização.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação As Colónias Portuguesas, revista ilustrada (6)

Mário Beja Santos

A publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.

Como se advertiu o leitor, estamos no derradeiro volume da Revista, são os números correspondentes a 1890 e 1891, o estado de muitas páginas é deplorável, dada a inequívoca importância desta publicação espera-se que um dia ela venha a ser digitalizada, comporta elementos que nenhum investigador desdenhará tomar nota.

Já não há imagens da Guiné, as que aqui se mostram pertencem a outro universo colonial, atenda-se ao retrato do então major Dias de Carvalho, no fim do século o distinto oficial-general permanecerá na Guiné um bom lapso de tempo e deixará um relatório do maior valor; e peço a atenção do leitor para o início de uma noticia sobre a Guiné, mostra o que era o estado de espírito da elite colonial, o propósito confessado era ministrar uma aprendizagem aos indígenas que servisse o comércio e a indústria.

Curioso me pareceu o que foi escrito no número referente a 31 de maio de 1890, passo a transcrever:
“O Sr. M. F. Galibert, que fazia parte da comissão destinada a fixar, de acordo com a comissão portuguesa, os limites da Guiné, escreveu um interessante artigo com o título ‘En Sénegambie’, que encontramos publicado no Bulletin de la Societé de Géographie Commerciale de Paris. E então destacam-se alguns trechos, julgam-se os mais pertinentes do artigo.
Buba caíra; e caíra desde que o Governo português, conhecendo a sua importância comercial julgou dever estabelecer ali um posto aduaneiro. Na sua queda arrastara Bolama à qual fornecia toda a riqueza. Dez anos de centralização, de funcionalismo militar, excluindo qualquer outra cooperação, tinham bastado para chegar a este resultado. E fala assim de Geba:
Este país está em formação. E em mãos inteligentes seria de uma riqueza inesgotável. Portugal parece havê-lo compreendido; e tem feito sacrifícios excecionais em favor de Geba.
Tem sustentado guerras para expulsar das suas vizinhanças as tribos inimigas, substituindo-as por povos pacíficos. Mas Geba não tem defesa. É uma grande aldeia com três mil habitantes e quinhentas casas feitas de adobe e cobertas de colmo.

Galibert revela-se surpreendido com a adaptação dos guineenses, tece as seguintes observações.
Entre os que compreenderam os seus deveres para com a civilização, os que mais títulos têm de reconhecimento dela, é, com toda a justiça, Portugal. A língua portuguesa fala-se desde a Serra Leoa até à Gorêa; é a língua comercial. A pequena Guiné está cheia de agrupamentos portugueses, em que a civilização, inseparável da expansão do cristianismo, mostrou a sua eficácia e desmentiu a suposição de que o negro é rebelde ao aperfeiçoamento. Em 1878, a Guiné, explorada pelo comércio francês, estava de tal maneira florescente que se lhe deve a sua autonomia. A política dos concelhos locais, de que os interessados, os franceses, eram rigorosamente excluídos, consistiu desde então em vexar em impostos todo o comércio estrangeiro. Como os franceses eram os únicos que tinham bens prediais no país, o valor das suas propriedades sofre. Os franceses retiram-se quase todos. Só ficou a casa Blanchard, que tinha grandes interesses comprometidos em grande número de propriedades, que podem avaliar-se em 50 mil hectares. No lugar dos que abandonam o país, Portugal não pôs lá ninguém.”

Documento do maior interesse me parece outra notícia, também sem assinatura sobre o arquipélago dos Bijagós, reza o seguinte:
“De um bem escrito relatório do Sr. Joaquim da Graça Correia e Lança, governador interino da Guiné Portuguesa, vamos escolher algumas informações interessantes relativas aos Bijagós.
A ilha das Galinhas tem 600 habitantes e 3 povoações. O gentio é pacífico. Os habitantes vão em canoas a Bolama, Bissau e às feitorias do Rio Grande comprar tabaco, aguardente, armas, pólvora e tecidos, em troca de laranjas, galinhas, arroz, azeite de palma e chabéu (fruto da palmeira). A permutação faz-se em geral do seguinte modo. Por 1 folha de tabaco trocam-se 4 laranjas, por 1 barril de pólvora de 4 libras 6 galinhas, por fazenda no valor de 360 reis 1 galão de azeite, por fazenda no valor de 960 reis 1 bushell de arroz. É uma das ilhas que mais se presta a uma larga exploração agrícola. Possui muito boa água, extensas pastagens, gado em abundância. Correia e Lança escreveu que esta gente procede dos antigos escravos de D. Aurélia Correia, que em 1833 para ali fora habitar com o seu marido, Caetano José Nozolini, levando de Bissau, do ilhéu do Rei, todos os escravos da sua casa que ascendiam a uns 400. Como era uma das principais casa de Bissau, fácil lhe foi fazer uma das melhores instalações na ilha das Galinhas.”


O artigo procede com mais comentários sobre a ilha das Galinhas, a salubridade da região e as expectativas de uma riquíssima exploração agrícola, o governador interino elenca as madeiras exóticas como a calabaceira, o poilão, a goiaba brava e o pau carvão. Mais adiante, fala na ilha de Orango, teria 8.260 habitantes e 29 povoações. “O rei de Orango é absoluto e déspota. Ninguém na ilha pode negociar, nem possuir bens; só ele possui canoas que manda a Bissau. É com ele que os negociantes se entendem para os negócios comerciais.” E deste modo termina a notícia: “Há no arquipélago vários outros ilhéus sem importância. O número total das ilhotas e ilhéus é de 53. Este arquipélago pode, convenientemente explorado, concorrer em grande escala para a prosperidade e largo desenvolvimento da Guiné.”

E aqui findam as notícias sobre a Guiné porque desapareceu a revista que neste período há que o confessar, tem o seu enfoque nos acontecimentos do ultimato britânico, detalha minuciosamente o tratado feito com Inglaterra, Angola e Moçambique são as colónias a que dá verdadeiro realce, compreende-se, foram desencadeadas as campanhas de pacificação e ocupação, de acordo com os ditames da Conferência de Berlim, encetava-se a prosperidade da nossa África Austral.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24768: Historiografia da presença portuguesa em África (390): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24768: Historiografia da presença portuguesa em África (390): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Algumas destas lamúrias e comentários dramáticos, como o de Teixeira de Aragão que sugere a alienação da colónia por só dar prejuízo e não possuir riquezas, tem a ver com a atmosfera geral de política portuguesa sacudida pelo Ultimato, havia mesmo uma corrente parlamentar que punha, em desespero de causa, a entrega de algumas parcelas coloniais a companhias majestáticas, chegou a ser proposto uma para a Guiné que seria administrada pelo italiano, marquês de Liveri e Valdusa, este inclusivé pediu os contributos do general Dias de Carvalho para lhe fazer um relatório sobre a Guiné, de que resulta um documento que ainda hoje é referencial; a Guiné vive a ressaca das guerras do Forreá, o profundo desgosto da perda do Casamansa, chegou António da Silva Gouveia, ele vai aparecer na lista dos correspondentes de As Colónias Portuguesas; o estilo das notícias que vêm da Guiné são marcadamente cáusticas, lamentosas, as queixas chegam mesmo à posição dos governadores escolhidos pelo ministro da Marinha e das Colónias, deixa-se nas entrelinhas que são ineptos ou impreparados. Não voltaram a haver imagens da Guiné, as que encontrei, referentes designadamente a Angola e Moçambique, são de inexcedível importância. Oxalá que toda esta publicação venha a ser digitalizada, alterará, estou certo, alguns ângulos da investigação colonial. E confesso que estou a despedir-me desta revista a muito custo, foi para mim uma verdadeira revelação.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação As Colónias Portuguesas, revista ilustrada (5)

Mário Beja Santos

A publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.

Devo esclarecer o leitor que a partir de agora, isto é, os números ferentes a 1890 e 1891, o manuseio da publicação é delicado, dado o adiantado estado de deterioração das folhas, e digo isto com imenso pesar, o acervo de ilustrações é de insofismável importância e o que nos é dito pelos correspondentes na Guiné de modo algum pode ser iludido, a despeito, claro está, de o enfoque de quem escreve assesta primordialmente nos interesses económicos e das preocupações dos comerciantes.

Estamos em 1890, período onde irão intervir três governadores: Joaquim da Graça Correia e Lança (1890), Augusto Rogério Gonçalves dos Santos e Luís Augusto de Vasconcelos e Sá (1891). O leitor que se prepare para o tom amargo, fatídico, tristonho das notas expedidas para as colónias portuguesas. Logo a primeira:
“No Moniteur das colónias publicou ultimamente o Sr. Dureme, negociante francês que por largos anos residiu na Guiné, uma correspondência acerca da situação desta província portuguesa. A competência de quem a escreve veio demonstrar-nos com quanta razão nós, insistentemente, temos pugnado para que os poderes públicos lancem olhos de ver para esta possessão, que se vai rapidamente definhando. O Sr. Durem analisa as causas que na sua opinião principalmente têm concorrido para o abandono em que se acham quase todas as propriedades agrícolas da nossa Guiné. Atribui este triste resultado às guerras continuadas entre Fulas e Biafadas, ao empobrecimento do solo e aos impostos excecionais que oneram não só os géneros cultivados, mas também o solo, as casas de habitação, os armazéns de comércio.
Sem negarmos a importância destas diferentes causas, quase que poderemos reduzi-las todas a uma só, o errado sistema económico que seguimos na administração desta província. A Guiné está numa situação especial. Cingida por colónias estrangeiras, precisava de estar habilitada a lutar favoravelmente com elas nas suas relações comerciais. Precisava de ter uma legislação que se não prendesse com princípios gerais, e se não pretendesse amoldar a regras adotadas por outras regiões, mas que principalmente procurasse ocorrer às circunstancias especiais que ali se dão. Porque têm sucessivamente abandonado a Guiné tantas sucursais de casas francesas de Bordéus, de Marselha e do Havre que ali estavam estabelecidas? Porque têm sido transferidas para as colónias francesas ou abandonado o comércio da Guiné? Porque não podem lutar com as condições difíceis em que as coloca o nosso sistema tributário, e especialmente as dificuldades que tão insensatamente a nossa administração opões às transações comerciais num país que não pode, por qualquer lado que se encare, comparar-se com outros quer da Europa quer do Ultramar.”


Temos agora outra postura na secção de um outro número em 1890:
“Há dias apareceu num jornal um artigo que tinha por título – A província da Guiné Portuguesa necessita com urgência de um governador. Diremos que estamos plenamente de acordo. Em nenhuma província portuguesa se reclama, mais que na Guiné, a presença de um governador que saiba compreender bem as necessidades daquela província. Um governador inteligente, enérgico, prudente, conhecedor da província que administra, está habilitado a resolver, acertadamente, sobre os casos ocorrentes, porque conhece de perto as causas de muitos factos. Quem se interesse pelas nossas colónias, deve ter tido mais de uma vez ocasião de se amargurar ao ver as apreciações desencontradas, que aqui lhes chegam. O artigo a que nos referimos é firmado por um militar, o Sr. Francisco António Marques Geraldes.” E o autor desta nota explica acontecimentos relacionados com violência praticada por um régulo na região de Geba, que Marques Geraldes conhecia na perfeição. Indiretamente o texto deixa no ar a ideia de que era necessária mais autoridade, e essa faltava".

Estamos agora em 1891, o ano derradeiro desta publicação. Chamou-nos à atenção um outro considerando acerca dos colonos que mandávamos para África, no caso vertente Moçambique: “Passagens grátis para Moçambique. O paquete Luanda, da Mala Real Portuguesa, leva de Lisboa para a província de Moçambique grande número de indivíduos a quem o governo resolveu dar passagens grátis. Estes indivíduos não contraem por esse facto qualquer encargo com o Estado. São plenissimamente senhores da sua vontade, tanto na escolha do lugar para onde se destinam como nos meios de vida que aí puderem arranjar. Nós, porém, não podemos deixar de lamentar esta forma porque se deixam embarcar tantos desgraçados, velhos, novos, mulheres e crianças, tudo de embrulhada, sem saberem para onde vão, nem ao que vão. Não é esta decerto a emigração de que carece Moçambique.”

Com o título Carta sobre a Guiné temos agora a transcrição do jornal O Economista de um documento de Teixeira de Aragão referente à alienação da nossa possessão da Guiné:
“Alienar colónias é um princípio que nos parece dever ser olhado com todo o cuidado, e sõ extremos quer financeiros quer de ordem política administrativa poderiam desculpar tal passo, depois de esgotados todos os recursos de as fazer florescer. Estudem-se a sério as questões económicas administrativas particulares dos povos da Guiné, envide-se energia e escolham-se funcionários honestos e hábeis e a Guiné terá um futuro desafogado. Pedimos permissão para combater a opinião que se formou acerca da Guiné Portuguesa. A Senegâmbia Portuguesa acha-se exatamente nestas condições: o terreno que ali possuímos é de facto limitadíssimo, não encerra riquezas minerais, e são, por assim dizer, retalhos de que só podemos tirar proveito despendendo quantias fabulosas que nunca poderão ser compensadas. A ilha de Bolama é o maior trato de terreno que ali possuímos, o resto são verdadeiras tiras de terra importantes tais como, Bissau, Cacheu, Farim, Geba, as margens do chamado rio de Bolola, etc. Podíamos, é verdade, estender o nosso domínio até à zona que a última divisão territorial nos concedeu, mas para isso seria necessário sustentar ali uma numerosa força armada, que impusesse respeito ao gentio desenfreado da terra firme, que vivendo unicamente da rapina, bastante numeroso e aguerrido, faz continuas correrias nos terrenos que de direito possuímos. Acima de Geba encontram-se jazigos de ouro, mas aqueles terrenos ficaram compreendidos na zona francesa, pela demarcação a que ultimamente se procedeu. O gentio da Guiné, o mais pacífico, não se sujeita a um trabalho agrícola regular, costumado à sementeira do arroz e à mancarra, suficiente para as suas necessidades e que pouco trabalho lhe dá, difícil será submetê-lo e acostumá-lo a outras culturas. Ora, qualquer destes géneros é pobríssimo; o arroz, geralmente de má qualidade, vermelho a que chamam limpsado, e quase todo consumido na própria província; a mancarra, semente pouco oleosa, tem diminuído o preço no mercado, vendendo-se a buxula (cerca de 35 litros) à razão de 240 reis em fazendas, que pouco mais valem de 400 reis em dinheiro. Concordamos que as hostilidades que temos movido ao gentio da terra firme tenham prejudicado a Guiné, desviando o comércio para as possessões francesas e inglesas; mas também é certo que, em muitas ocasiões, essas guerras têm sido necessárias a fim de pôr cobro aos insultos, correrias e rapinas. Não podemos dizer, com verdade, que a Guiné não seja suscetível de desenvolvimento, mas esta demanda tais sacríficos da metrópole que não julgamos que possam ser feitos, nem, se o forem, possam um dia ser compensados. Julgamos, pois, um benefício e mesmo uma necessidade alienar a não só a Guiné como todas as colónias que, pela sua pequena extensão, não prometam futuro; isto em proveito de outras que, extensas e ricas, nos podem trazer prosperidade.”

(continua)

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Nota do editor

Último posta da série de 11 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24746: Historiografia da presença portuguesa em África (389): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (4) (Mário Beja Santos)