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domingo, 15 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15369: Agenda cultural (436): 124.ª Tertúlia do Fim do Império, a levar a efeito no próximo dia 18 de Novembro de 2015, no Centro de Apoio Social - Oeiras (IASF), durante a qual serão apresentados dois livros e inaugurada uma exposição de fotografias sobre Timor (Manuel Barão da Cunha)

Em mensagem de hoje, 15 de Novembro de 2015, o nosso camarada Manuel Barão da Cunha, Coronel de Cav Ref, que foi CMDT da CCAV 704 / BCAV 705, Guiné, 1964/66, dá-nos conta da próxima tertúlia do Fim do Império, a levar a efeito já no próximo dia 18 de Novembro, no Centro de Apoio Social - Oeiras (IASF), durante a qual serão apresentados dois livros, um de sua autoria e outro da autoria do 1.º Sargento Tadeu de Almeida. 
Será ainda inaugurada uma exposição de fotografias de Vítor Cordeiro, sobre Timor, intitulada Expressões Lorosae.



14.º CICLO DAS TERTÚLIAS FIM DO IMPÉRIO

124.ª Tertúlia

Centro de Apoio Social - Oeiras (IASF)

Dia 17 de Novembro de 2015

1 - Lançamentos de 20.º livro Fim do Império, "Radiografia Militar e os Quatro DDDD?", de M. Barão da Cunha, com autor e Presidente da CMO (a confirmar);


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2 - Lançamento do 21.º livro, "Na Fronteira de Timor", do 1.º Sargento Tadeu de Almeida, com Coronel José Aparício e autor.


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3 - Inauguração da exposição fotográfica sobre Timor, de Eng. Vítor Cordeiro.

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15353: Agenda cultural (435): Lançamento do livro "O Fedelho Exuberante", da autoria do Mário Beja Santos, dia 18 de Novembro, pelas 18 horas, no Auditório do Museu da Farmácia, Rua Marechal Saldanha, n.º 1, ao Calhariz, em Lisboa

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15344: Agenda cultural (433): lançamento do livro de Joana Ruas, "Os Timorenses: 1973-1980", da Sextante Editora: Lisboa, 11 de novembro, 4ª feira, às 18h00, no auditório da Fundaçãio Mário Soares




Convite que nos foi enviado pessoalmente pela autora, Joana Ruas


Título: Os Timorenses – 1973-1980
Autor: Joana Ruas
Editora: Sextante (Grupo Editora)
Local: Lisboa
Ano: 2015
Págs.: 616
PVP: € 19,90


Sinopse: 40 anos depois da independência e da invasão indonésia, Joana Ruas apresenta a História de Timor como nunca a conheceu. Aos factos e aos protagonistas reais de Os Timorenses – 1973 - 1980, a autora acrescentou uma brilhante ficção histórica.

Em 1975 Timor preparava-se para ser independente e uma grande nação, mas a invasão pela Indonésia adiou esse sonho e foram vários os anos de luta e pobreza. É precisamente sobre esse período, e o que o antecedeu, que se debruça Os Timorenses – 1973-1980, o mais recente livro de Joana Ruas, que a Sextante Editora  acaba de publicar.

Para além de todos os dados, documentos e imagens incluídos no livro – fruto de uma exaustiva pesquisa – a autora acrescentou uma história ficcionada que acompanha toda a componente documental, fazendo desta uma obra única e essencial sobre Timor contemporâneo, desde o período que precede o 25 de Abril e a primeira independência até à invasão indonésia.

Desde os anos 60 ligada a Timor, Joana Ruas tem vindo a dedicar grande parte da sua investigação e escrita à História do país. Este novo livro insere--se na série A Pedra e a Folha, que conta já com dois livros, que se debruçam sobre os anos 1870 a 1910 e sobre a ocupação japonesa.

Este romance é sobre um processo histórico único no mundo e uma das mais solitárias guerras de libertação nacional. Neste período, a FRETILIN travou contra o invasor indonésio uma guerra de independência e uma guerra social numa metade de uma ilha isolada do resto do mundo pelo invasor e sem qualquer espécie de retaguarda para se refugiar ou para se abastecer. Na sua terra invadida, a pátria estava na presença social, física e sentimental dos seus guerrilheiros liderados por Nicolau Lobato. Os homens e mulheres das FALINTIL deixaram de existir no presente para se continuar no futuro. Eram homens e mulheres de coração poderoso cujos olhos pareciam olhar para o fundo do futuro, homens e mulheres que permaneciam livres mesmo na prisão e que mesmo nus morriam de pé.

O testemunho dos sobreviventes desta etapa, que vai de 1973 a 1980, repõe a memória concreta dos episódios então vividos pela nação timorense mas nada nos é revelado da vida dos seus heróis e heroínas. Até à restauração da independência a 20 de Maio de 2002, a morte é a paisagem que absorve os elementos humanos e a vida material dos seus guerrilheiros e de toda a nação. O que impressionou vivamente a escritora Joana Ruas foi essa experiência ao mesmo tempo religiosa e laica que através do cimento do seu sonho de liberdade coletiva, da sua fé e da força da linguagem venceu a angústia da morte e a certeza da destruição.


A autora

Joana Ruas nasceu, em 1945,  na Quinta do Pinheiro em Freches, no distrito da Guarda. Trabalhou como jornalista cultural e tradutora na Radiodifusão Portuguesa e no jornal Nô Pintcha da República da Guiné-Bissau. Participou na causa da Libertação do Povo de Timor-Leste, tendo feito várias conferências sobre a Língua Portuguesa em Timor-Leste, sua história e cultura. Entre poesia dispersa e ensaios é autora dos romances, Corpo colonial, O claro vento do mar e A pele dos séculos. Participou na IV Feira do Livro de Díli onde apresentou o romance A batalha das lágrimas e o livro de contos Crónicas timorenses respetivamente o 1.º e o 2.º volume da tetralogia A pedra e a folha sobre cem anos de Resistência Timorense.

(Fonte. Cortesia da editora Sextante, Grupo Porto Editora)




Lisboa > Biblioteca-Museu República e Resistência / Espaço Grandella > 2º Ciclo de Conferências 'Memórias Literárias da Guerra Colonial' > 4 de Junho de 2009 > Apresentação de livro de contos Cambança - Guiné, Morte e vida em maré baixa  do nosso camarada Alberto Branquinho  -  A escritora Joana Ruas (n. 1945), autora de A Pele dos Séculos (Lisboa, Ed. Caminho, 2001) dando testemunho da sua vivência, na Guiné-Bissau, no pós-25 de Abril, como simpatizante do PAIGC (acompanhou a guerrilha nas 'regiões libertadas' e integrou, como jornalista cultural, os quadro do Nô Pintcha, desde o seu nº 1).

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15104: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (15): Afinal houve mesmo guerra?

 

1. Em mensagem do dia 5 de Setembro de 2015, o nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos o artigo que se segue para incluir na sua série "A Minha Guerra a Petróleo":



A Minha Guerra a Petróleo (15)

Afinal houve mesmo guerra?

Introdução

Com este texto pretende-se realizar uma abordagem, de um outro ponto de vista, aos acontecimentos que marcaram, porventura do modo mais decisivo, a vivência no nosso país, durante os anos de 1961 a 1974, vulgarmente designados por Guerra “do Ultramar”, “Colonial” ou “de África”.

Dadas as características que a “Guerra” veio a ter – essencialmente uma luta, através das FA portuguesas, entre uma parte da população e as autoridades – a maneira como os africanos nados e criados naqueles territórios se relacionaram com os europeus, chegados da potência colonizante, ao longo de todo o processo de colonização, será a grande determinante do sucedido. Efectivamente, um relacionamento tolerante e amistoso entre quem chegava e quem já estava teria, muito provavelmente, determinado uma interpenetração entre civilizações que, quinhentos anos após a descoberta, daria às sociedades das ex-colónias um fácies diferente daquele que vieram a ter. Não foi esta a regra em quase todas as partes do mundo. Por norma, quem chegava sabia ao que ia, tinha objectivos concretos a atingir e partia da hipótese de que a superioridade tecnológica e até ideológica de que dispunha lhe concedia larga vantagem e direitos.

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Linha Gerais da Evolução do Conflito

Prossigamos na análise, começando por realçar a desproporção entre os mais de quinhentos anos que durou a constituição do império (desde a chegada dos navegadores até à insurreição que terminou com a independência) e a escassez de documentos de toda a espécie, que permitiriam, para cada território, a elaboração da marcha histórica, mesmo que apenas na definição das grandes linhas legislativas e administrativas. Seria importantíssimo ter uma visão, mesmo vaga, acerca do modo como, ao longo dos tempos, se terá processado a vida diária em cada território. Por motivos óbvios não é possível obter esta informação por extrapolação relativamente ao modo de vida na metrópole, este sim relativamente bem conhecido. Podemos até, com bastante legitimidade, tomar a escassez de documentação como confirmação de que as possessões africanas viveram, pelo menos até aos anos vinte do século passado, num certo grau de abandono “descentralizado”. Aquele abandono seria determinado por três causas principais: as comunicações difíceis e lentas1 (que impediriam que a administração central fizesse sentir a sua acção e obrigavam a que o governo fosse localmente exercido de forma pouco controlada), o clima (sempre tido como insalubre e doentio, impróprio para a fixação dos brancos) e, durante vários séculos, uma falta de finalidade na posse dos territórios de além-mar. Com efeito, não se vislumbrou, durante séculos, nada mais útil a obter daquelas terras do que a mão-de-obra escrava, já que a maior parte dos produtos que lá se pudessem obter ou para lá se pudessem enviar não chegariam em condições de utilização.

Ainda no capítulo da documentação, ou da falta dela, poderemos recolher elementos meramente indicativos numa publicação2: Livro das Plantas de todas as Fortalezas, cidades e Povoações da Índia Oriental, de António Bocarro, datável de 1634/35. Nele encontramos 48 plantas, entre Sofala (Moçambique) e Solor (Timor), que apontam claramente para uma tentativa de domínio do mar pela ocupação de posições com elevado valor táctico-estratégico e nunca com uma ocupação, em profundidade, dos territórios onde os portugueses desembarcaram. Desta forma de ocupação, ou melhor, desta disseminação chegaram aos nossos dias as três possessões do Estado da Índia – três vértices de um triângulo marítimo de dimensões muito consideráveis – a cidade de Macau e a meia-ilha Leste de Timor, o que atesta que se terá dado “um passo maior do que a perna permitia”. Outro tanto terá sucedido com a tentativa de ocupação da costa Leste da África do Norte que se saldou por uma impossibilidade e atingiu formas de um dramatismo doloroso, para além de um desperdício de meios de toda a espécie. É sabido que a partir da segunda metade do Séc. XIX a prioridade passou a ser a África, já que o Brasil tinha tido o destino habitual das colónias rebeldes naqueles tempos. Decorreu pouco mais de um ano entre a saída do D. João VI daquela colónia e o Grito do Ipiranga. A Coroa nem esboçou um gesto contra a independência declarada por um príncipe português…nem tinha forças para o fazer.

O ideário que durante os últimos cem anos tem vindo a ser apresentado pelas instâncias do poder e divulgado a quem frequentou os diferentes graus de ensino não ajuda a um conhecimento objectivo da realidade vivida nas fracções do império e do modo como se relacionaram com a administração central, em Lisboa. Tudo é apresentado como se os territórios em causa não tivessem passado e houvesse uma relação de posse (abstracta, mas insistentemente apregoada, diga-se) entre o próprio povo metropolitano e aqueles territórios. Dá assim a impressão de que a situação encontrada foi simples consequência da “dilatação da Fé e do Império” e dos “novos mundos ao mundo” que os portugueses andaram a dar…

Surpreendentemente, nos mesmos territórios onde a “Guerra” teve lugar, as historiografias monárquica e republicana registam um outro conflito insurreccional de características muito semelhantes, ao qual foi atribuída a designação de “Campanhas de África” ou “Campanhas de Pacificação”. Em linhas gerais podemos dizer que se tratou de um conflito intermitente, em alguns momentos fomentado e apoiado do exterior e repetidamente “encerrado”, ou dado oficialmente como tal, de um modo ao qual não podemos deixar de chamar, no mínimo, pouco claro. Esta situação levanta algumas questões e abre perspectivas de outros estudos. Na realidade, o uso do plural (Campanhas) comprova que houve várias (e nos três territórios) e, se foram “de Pacificação”, conviria determinar porque se realizaram, sendo certo que só é pacificado quem se subleva e só se revolta quem tem motivos (fortes) e condições (favoráveis) para tal. Teríamos, por consequência, umas “Primeiras Campanhas” e umas “Segundas Campanhas” distanciadas de um intervalo de tempo que, em alguns casos, nem sequer chegou a cinquenta anos. Dir-se-ia que, ao longo de pouco menos de um século, a agitação social naqueles territórios nunca deixou de estar presente, uma vez que o Poder teve repetidamente de sufocar focos de contestação (mais ou menos intensos) e tentar restabelecer a sua autoridade. Isto para não falarmos das sublevações que a historiografia "perdeu” e cuja pista, hoje, é difícil de seguir.

Concentremo-nos, agora, na análise genérica do modo como as populações das colónias se relacionaram com os europeus. Tudo começou com um contacto, por vezes choque, entre civilizações de diferentes níveis de evolução tecnológica e não só, no qual os europeus tentaram a exploração dos recursos locais – principalmente humanos – e os autóctones que, após um momento de surpresa, procuraram resistir-lhes.

A civilização que chegava, não só era mais evoluída tecnologicamente, mas também, detentora de uma religião que pretenderia expandir e de concepções do mundo e modelos filosóficos, com os quais os das civilizações locais pareciam não poder competir. Acresce que a religião praticada pelos europeus era tida pelos próprios como única e perfeita e à qual, por consequência, todos deveriam converter-se. Tudo indicava, portanto, que as civilizações ditas inferiores seriam rapidamente “subjugadas” e assimilariam as novas regras que regiam as civilizações ditas superiores, cujos delegados acabavam de chegar. Conhecemos genericamente a composição das expedições que sucessivamente partiam de Lisboa, com destino às colónias, e tal é suficiente para confirmarmos que estes delegados ou agentes não seriam os mais representativos da civilização que chegava e os mais aptos para fomentar um bom contacto com a civilização residente.

Contudo, as civilizações africanas não o podendo fazer pela força das armas, concentraram a resistência em três grandes áreas: a língua, a religião e os costumes, em última análise, os três principais pilares definidores de qualquer civilização.

A língua portuguesa que penetrou facilmente no Brasil, devido à fuga e extermínio dos índios e ao grande número de “imigrantes” oriundos de Portugal, nunca foi nem medianamente aceite pelos habitantes das outras regiões que se tentavam colonizar, na África ou na Ásia. Embora hoje o português seja considerado a língua oficial de todas as ex-colónias, há nelas largas áreas onde a população não o fala, mantendo as suas línguas tradicionais. A atestá-lo podemos citar dois exemplos. Ainda hoje o português dificilmente rivaliza com o tétum em Timor e, na Guiné, as populações rurais e muitas citadinas falam os seus dialectos ancestrais, alguns sem expressão escrita ou, como no caso dos fulas e mandingas, exprimem-se num dialecto do árabe. O crioulo sobrepõe-se ao português, sempre que a diferença entre dialectos impede uma comunicação satisfatória. Cabe aqui referir que já à data da independência era assim, apesar dos esforços de alfabetização levados a cabo pelas autoridades, o que confirma, em absoluto, a recusa das populações autóctones em empregar a língua portuguesa.

No fundo, estamos perante algo semelhante à adopção das fronteiras da Conferência de Berlim, durante a implantação das independências africanas. Neste caso, foi a língua que serviu para marcar uma diferença em relação aos povos circundantes. Com efeito, se a definição das fronteiras retalhou etnias e regiões naturais, com os resultados que se conhecem e que dificilmente serão colmatados, a médio prazo, a adopção da língua da potência descolonizante procurou consolidar a separação entre países recém-independentes e dotá-los de um idioma que lhes pudesse dar visibilidade e facilitasse o relacionamento internacional. Não havia, por isso, outra solução que permitisse dar um passo na aglutinação do país e projectá-lo na cena internacional.

A religião foi outra área em que as populações das colónias resistiram à penetração dos europeus. Em alguns casos, como na Índia, em Moçambique ou na Guiné sabemos que o cristianismo teve de competir com religiões muito evoluídas e em expansão ou já fortemente implantadas. Estão neste caso o budismo, o induísmo e o islamismo, mas outras formas de religião ancestrais, porventura menos evoluídas do ponto de vista filosófico e doutrinário, também não desapareceram, ficando o cristianismo, nas suas principais variantes, difundido de um modo muito modesto para quem se propunha converter populações em massa, numa gigantesca tarefa apostólica. Há a referir, todavia, que só Portugal assumiu esta tarefa e, mesmo assim veio a descartá-la algum tempo depois.

É difícil dizer se as religiões já implantadas é que não permitiram a difusão do cristianismo, por estarem mais adequadas às necessidades espirituais e hábitos de vida das populações que as abraçaram, ou se foi o abraçar daquelas religiões que determinou a estrutura social que os portugueses encontraram, mas não restam dúvidas de que as conversões ao cristianismo poderiam ter sido muito mais numerosas.

No caso das religiões animistas, aparentemente frágeis de um ponto de vista a que podemos chamar doutrinário, filosófico ou teológico, verificou-se uma situação de encobrimento das práticas por parte das populações e uma fuga à emulação com a doutrina e filosofia das religiões praticadas pelos europeus. No fundo, não tiveram sequer necessidade de simular práticas religiosas que não eram as suas, pois, a dado momento a expansão das religiões europeias deixou de ser uma prioridade para os colonizadores (Séc. XVIII e seguintes). O número de igrejas abandonadas e em ruina acentuada é hoje prova de que a religião que os portugueses trouxeram não vingou num terreno onde outras já existiam.

Por fim, uma terceira área de resistência que se manifestou na recusa em abandonar muitas práticas e hábitos, alguns bem antigos, para adoptar os correspondentes europeus. É certo que os europeus procuraram não divulgar muitas das suas práticas e técnicas, o que lhes permitia manter a sua superioridade tecnológica e o correspondente domínio sobre as populações locais mas, no que respeita aos usos e costumes, estas preferiram sempre as práticas antigas às dos europeus. Obviamente que houve casos em que as práticas e os hábitos trazidos pelos colonizadores foram aceites pelos autóctones, como sucedeu nas relativas à saúde, mas é ainda hoje, perfeitamente perceptível a semelhança entre muitas aldeias do interior das ex-colónias portuguesas e a reconstituição proposta pela ciência para as aldeias do neolítico. É paradigmático o sucedido hoje na Guiné onde há claras dificuldades, por parte das populações e autoridades, especialmente rurais, em utilizar edifícios administrativos, infra-estruturas logísticas, viárias e portuárias, deixadas pelos portugueses, para não falar do abandono completo de algumas localidades que, no passado, tiveram importância considerável.

Desta longa resistência, a que poderemos chamar passiva, resulta que deveremos aceitar que o chamado “passado comum” que, por vezes, se evoca para justificar a necessidade de se estabelecer uma ligação sólida entre os novos países e a potência descolonizante, foi algo que não foi, de todo, amistoso e, se bem virmos, é elemento aglutinador de qualidade duvidosa. Em última análise, estamos a “varrer para baixo do capacho” uma série de motivos e razões de queixa que até se podem perdoar, mas que não se esquecem. Há mesmo, ao longo de toda a colonização, episódios e situações que envergonham uns povos e revoltam os outros. A História não se esquece, ignora-se ou relembra-se, sempre que se julgar necessário ou oportuno. As tensões foram-se avolumando lentamente e a atestá-lo temos a revolta de uma parte da população das colónias contra as autoridades de direito (segundo uns) ou de facto (segundo outros). A História mostra que a projecção de força contra colónias rebeldes não é boa solução, mesmo que tal possa ser feito com grande violência e riqueza de meios, e terminou, por vezes a curto prazo, sempre com a derrota da potência colonizante. E tanto assim é, que houve países que preferiram conceder a independência às suas colónias, logo que nestas se perfilou pelo menos uma força política que a exigisse, renunciando totalmente ao uso da força contra essa ou essas forças. Tal foi caso da Espanha e da Bélgica.

A solução adoptada por Portugal foi única e há quem diga que nenhum outro país fez melhor ou, pelo menos resistiu tanto tempo, considerando os meios disponíveis ou aplicados e as condições políticas nacionais (principalmente) e internacionais. As autoridades portuguesas procuraram, durante 13 anos, sufocar uma revolta que coroava um descontentamento velho e só poderiam queixar-se de si próprias. Os apoios materiais que conseguiam obter não foram suficientes e revelaram-se dispendiosos e, ao fim de algum tempo, o próprio potencial humano, especialmente oriundo da metrópole, começou a revelar-se insuficiente para o esforço exigido.

Não foi por falta de aviso que a revolta surgiu “surpreendendo” as autoridades. Vários teóricos, mais ou menos próximos do regime político em vigor, a tinham previsto – Henrique Galvão e Hermes Araújo de Oliveira, entre outros – e tinham ficado mal vistos, como mensageiros da desgraça. As suas opiniões foram sufocadas, mas o pior é que não tenham sido tidas em conta. Mas, mesmo assim, a marcha dos acontecimentos políticos em África no final dos anos 50 não poderia augurar nada de tranquilizador para quem fosse inteligente, apesar de defensor das teses ditas colonialistas e imperialistas.

A posição política dos países limítrofes manifestou-se num apoio variado e, por vezes, muito intenso aos partidos revoltosos, sem que, contudo, o governo português, alguma vez, tivesse usado esse apoio como casus belli para os atacar, no terreno. O apoio militante surgiu mesmo de países, como a Suécia, que não praticando um apoio bélico foi dos primeiros países a reconhecer a independência da Guiné, embora os seus interesses diplomáticos e económicos andassem bem longe daquela área. Mesmo a reacção a nível diplomático foi pouco mais do que tímida, talvez porque o governo soubesse bem o ridículo a que se prestaria se tentasse uma atitude mais drástica. O resultado da invasão da Índia e as condições em que se processou deveriam ter constituído um outro sinal premonitório do que se iria passar. Mas não foi assim e o governo optou por desprezar a situação concrecta em que daí em diante teria de actuar. Porém, se a repressão resolvia o problema a nível interno, na cena internacional a situação só piorava.

O guerrilheiro é um cidadão armado, lutando contra um poder constituído. Reivindica para si a designação de resistente, mas não escapa à de terrorista no conceito das autoridades a que se opõe. No caso de Portugal, os guerrilheiros receberam outras designações, por vezes eufemísticas, como tresloucados, ou com a vaga conotação política de “agentes do comunismo internacional”. Numa manobra propagandística que veio a revelar-se contraproducente, o governo começou a usar o vocábulo “guerra” para designar as operações anti-guerrilha que tinham lugar nos três territórios onde a guerrilha tinha efectivas condições para progredir. Esta definição inexacta acabou por criar dificuldades – externas e internas – à política praticada. No exterior, o governo considerava a situação como um problema interno não sendo tolerados reparos ou censuras de qualquer espécie e vindos de quem viessem, enquanto no interior, o fenómeno era apresentado como uma guerra que era necessário ganhar, por múltiplos e variados motivos que, com o tempo, começaram a carecer de significado. Alguns foram hilariantes como a necessidade de realizar a guerra para dar tempo à política para actuar.

De qualquer modo os guerrilheiros não deixavam de ser portugueses – maus portugueses – que deveriam merecer punição severa, como seria óbvio. Contudo, sempre que eram capturados não eram julgados, mesmo que tivessem importantes funções na guerrilha. Tal sucedeu apenas num caso e com um estrangeiro, o capitão cubano Peralta. Carecerá de explicação que se tivesse dado aos guerrilheiros, cidadãos portugueses, embora prevaricadores, um vago estatuto de prisioneiro de guerra e a um estrangeiro que era seu apoiante o de um violador da lei nacional.
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Notas:
1 - Como simples exemplo da dificuldade de comunicações com a Índia, no caso vertente, veja-se o tempo que decorreu entre a ordem de Filipe III (datada de finais de 1632) e a dedicatória de António Bocarro (17 de Fevereiro de 1635) exarada no Livro das Plantas de todas as Fortalezas, cidades e Povoações da Índia Oriental, produzida sob sua direcção, com plantas de Pedro Barreto de Resende. In. estudo sobre a referida obra realizado por Isabel Cid (pág. 13). Basicamente, este conjunto de documentos seria um relatório determinado pela instância máxima da governação. Poderemos imaginar a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de produção de outros documentos de controlo a níveis mais baixos.
2 - Cita-se apenas uma publicação o Livro das Plantas de todas as Fortalezas, cidades e Povoações da Índia Oriental, de António Bocarro, datável de 1634/35 Ed. da INCM, ISBN-972-27-0444-3, Nov. de 1992, analisada e comentada por Isabel Cid, a qual deveria ser apresentada à consideração Real, mas outras há como o Lyvro de Plantaforma das Fortalezas da India, da Biblioteca da Fortaleza de S. Julião da Barra, atribuível a Manuel Godinho Herédia (ou Erédia).

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Conclusões

Apesar de as operações anti-guerrilha que se desenrolaram, entre 1961 e 1974, na Guiné, em Angola e em Moçambique, terem atingido graus de violência muito elevados, não poderemos falar de uma guerra no sentido habitual ou clássico do termo. Tratava-se de uma guerra subversiva o que, por definição, pressupõe a existência dos dois beligerantes seguintes: as autoridades constituídas e uma parte da população. Nesta situação, esta é uma parte relativamente pouco significativa – em número, que não em actividade – do total da população. Não havendo memória de um levantamento total da população de um território contra um invasor ou ocupante, teremos de considerar a existência de uma parte da população – mais ou menos considerável – que colabora com as autoridades, enquanto a maior parte, espera para ver, assumindo numa atitude passiva, visando a defesa do seu padrão habitual de vida. Normalmente sofre muito com violência, mas não deixa rasto histórico muito acentuado. A posse ideológica da população é, portanto, o grande objectivo a atingir, sendo que, estabelecida a contestação, a reversão da situação é uma tarefa lenta a decorrer durante uma ou duas gerações. No caso de Portugal – e talvez, no dos outros seis países que ocuparam a África – nunca poderemos falar de uma aceitação por parte das populações autóctones dos hábitos, religiões e língua dos colonizadores. Estes assumiram uma atitude de sobranceria que atingiu a violência e a escravatura, visando a imposição dos seus valores. A resposta foi a recusa e a resistência passiva que se manteve até aos nossos dias. Esta resistência determinou uma agitação subterrânea que nunca foi extirpada e que se manifestou sempre que as condições o permitiram. Sempre que a repressão se tornou insuportável a revolta estalou, habitualmente afogada em sangue, o que não resolveu o problema, se não o agudizou. Desta política de “tapar o Sol com a peneira”, fingindo que não se passava nada e amaldiçoando os mensageiros das más notícias, resultou uma mistura explosiva que, logo que as condições (especialmente internacionais) o permitiram, determinou o detonar de um fenómeno sociológico em que o racismo – essencialmente uma questão cultural – não deixou de estar subjacente.

A resposta das autoridades sediadas na metrópole manifestou-se através da projecção de força contra as populações rebeldes, materializada pelas forças armadas à custa do potencial humano da metrópole, numa primeira e longa fase. Depois, talvez porque começou a ser perceptível um desenlace desfavorável, procuraram as autoridades realizar a “africanização” da guerra. Esta reacção já é, em si mesma, a confissão pública derrota. Com efeito, se a sintonia entre o sentir das populações, genericamente consideradas, e as autoridades fosse um facto incontroverso, a população apoiante destas teria, desde logo, ajudado a esmagar a contestação. Trata-se, como se sabe, da manobra comum ao ocupante, invasor ou dominador de um território, quando confirma que não consegue prosseguir nos seus intentos. Este novo patamar da guerra subversiva tem frequentemente custos elevados para as populações de um dado território após a saída do exército ocupante. Os EUA puseram esta manobra repetidamente em prática, por vezes de forma muito dramática e com os resultados perversos que são conhecidos. De qualquer modo é a população que volta a estar em jogo o que continua a remeter para o campo da sociologia.

Ainda no caso português, a contradição insanável criada pelo facto de as autoridades terem duas leituras para o que estava a acontecer, consoante falassem ou agissem no exterior ou no interior, cria uma situação insustentável, em ambos os campos. Se, no primeiro, o isolamento e o abandono, sem hostilidade clara, pela generalidade das nações, como a situação internacional aconselhava, não constituía problema de maior para o governo, o mesmo não se podia dizer da grande contradição que se avolumava na população metropolitana. É provável que as populações da Angola e Moçambique nunca tivessem vislumbrado o fim do fenómeno. Na essência, poderemos considerar que eram dois territórios de grandes dimensões, sendo que em ambos, ele decorria apenas em cerca de metade da área. Que fariam aquelas populações se alguma vez tivessem equacionado o modo como a “guerra” poderia acabar? E contudo, não faltavam exemplos por toda a África……

Em resumo, poderemos afirmar que a Guerra “do Ultramar”, “Colonial” ou “de África”, foi essencialmente um fenómeno sociológico. Decorreu do modo como a colonização foi feita e do choque, em diversos planos, de duas civilizações e atingiu graus de violência e contra-violência elevados que conduziram a um desfecho senão previsível, pelo menos altamente provável desde o início e, se se lutava pela posse benévola da população e não pela posse do terreno é a sociologia que terá de fazer a última interpretação deste fenómeno.

TZ
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14794: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (14): Este Feminismo... é "muinta" feio!

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13040: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (34): Ramos Horta & Ana Gomes hoje na Guiné-Bissau como ontem em Timor, uma dupla guerreira, sem armas de fogo, que está a fazer um belo e corajoso trabalho pela paz e pela lusofonia

1. Mensagem de Antº Rosinha [, foto atual à esquerda; fur mil em Angola, 1961/62, topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93]:

Data: 16 de Abril de 2014 às 15:17

Assunto: Ramos Horta/Ana Gomes, dueto guerreiro

Luís, pela boca morre o peixe, tu é que sabes se publicas ou não.

Agora que as eleições recentes guineenses terminaram, (as eleições, não as intrigas), na República da Guiné Bissau, atrevo-me a comentar o protagonismo destes dois políticos, perante os guineenses e perante todo o ambiente que rodeou os últimos acontecimentos naquele país, terra que tanto se recorda neste blog de septuagenários e sexagenários.

Ramos Horta e Ana Gomes já em Timor actuaram a nível nacional e internacional com tal intensidade que Timor poderia não ser o que é, para bem ou mal, não sei, mas saberão os timorenses, e um acaso juntou-os novamente num contexto diferente, mas muito importante para a definição do que pode vir ser o futuro próximo da Guiné Bissau.

Como procuro acompanhar o que se passa nas ex-colónias por onde passei, Angola, Brasil e Guiné e "Madeira", terras onde passei os melhores anos da minha vida, (em idade de reprodução), não podia passar em branco a acção destes personagens que eu admiro, apesar de eu me considerar um bom "ex-colonialista", e um curioso "ex-cooperante" o oposto deles, anti-colonialistas.

Mas o que estes dois nomes já ouviram e leram contra eles nos jornais e blogs etc. de alguns políticos, comentadores timorenses, antigamente e guineenses agora, é de fazer corar qualquer colonialista, imperialista e fascista do nosso tempo de guerra do Ultramar.

Embora uma parte dos guineenses, tal como tinha acontecido em Timor, não vissem com bons olhos a actuação desta duas personalidades, a força moral, política e psicológica deles é tão forte, que se conseguem impor e fazer ouvir, mesmo pelos seus opositores, e não são poucos, agora na Guiné, antigamente em Timor.

Será a força da razão, a grande força deles?

Nem todos os antigos combatentes, ou antigos retornados como eu, se preocupam mais com estas africanices, porque outros valores mais europeístas e "larachas em família" mais indigestas que as de Marcelo, se alevantam.

Mas eu como português que não passou além de Olivença, mas fui além do Cabo Bojador, e muitos de nossos jovens já vão para Luanda com "carta de chamada" como se ia há 60 anos, dou muito valor à coragem e um certo sentido lusitano que discretamente se vai mantendo, por vários processos, como neste caso concreto Ramos Horta/Ana Gomes.

Como até acho que Portugal deve apoiar os angolanos e moçambicanos na pretensão de admitir a Guiné Equatorial na CPLP, assim como os galegos da Galiza, acho que me faço compreender, sem falar de mais.

Penso que estes dois personagens têm um verdadeiro espírito "Libertador" que sem serem uns Che Guevara, ou Amílcar Cabral, tentam sem armas de fogo fazer mais pela paz do que aqueles armados até aos dentes.

Não quero transcrever o que se ouviu em rádios e blogs e jornais guineenses contra e a favor destas duas figuras.

Já em Timor quem tenha dado atenção lembra-se do que diziam certos timorenses e Ali Alatas [1932-2008],  também na Guiné alguns vizinhos e alguns guineenses não apreciaram muito a actuação destes dois políticos.

Apesar dos pesares, a maioria dos guineenses deve achar que é bom para a Guiné a presença desta dupla na sua terra.

Cumprimentos,
Antº Rosinha
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Nota do editor:

Último poste da série de 10 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12817 : Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (33): O racismo mal disfarçado na África Lusófona, tão complicado e difícil de contornar como a divisão étnica tradicional

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12567: Notas de leitura (551): "Antologia da Terra Portuguesa - Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Macau e Timor", por Luís Forjaz Trigueiros (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2013:

Queridos amigos,
Mal irrompeu a guerra em Angola e surgiram obras de reportagem sobre a região; o mesmo acontecerá com a Guiné e Moçambique.
Autores de cunha nacionalista, caso de Luís Forjaz Trigueiros e Amândio César, lançar-se-ão em obras de cunho antológico.
Este volume de Luís Forjaz Trigueiros é sintomático quanto à quantidade e qualidade de autores: Cabo-Verde preenche praticamente metade do volume, as outras colónias terão porções muito mais magras. Trigueiros optou por Zurara em vez de André Álvares de Almada, ambos indispensáveis; escolheu Fernanda de Castro, foi pena ter escolhido um texto menor”; selecionou avisadamente páginas de Teixeira da Mota e João Augusto da Silva. Estranhamente, nem uma palavra sobre Fausto Duarte.
Para que conste.

Um abraço do
Mário


A Guiné aos olhos de Luís Forjaz Trigueiros

Beja Santos

Pelos anos 1960, a Livraria Bertrand lançou uma coleção que deixou nome: Antologia da Terra Portuguesa. O país que éramos então foi descrito região por região, com exceção do chamado Ultramar em que Luís Forjaz Trigueiros escreveu volumes separados para Angola e Moçambique e Manuel de Seabra escreveu sobre Goa, Damão e Dio e Luís Forjaz Trigueiros sobre Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe, Macau e Timor.

A fatia de leão coube a Cabo-Verde, Forjaz Trigueiros compendiou textos, por vezes de uma enorme beleza, assinados por escritores como José Osório de Oliveira, Manuel Lopes, António Pedro, Nuno de Miranda, Gabriel Mariano, Onésimo Silveira, Baltazar Lopes e Daniel Filipe.

Mais curto será o espaço que o autor reservará à Guiné, mas convém referir que escolheu bem o que saiu das mãos de Gomes Eanes de Zurara, Augusto Casimiro, Fernanda de Castro, Maria Archer, Teixeira da Mota, António de Cértima, João Augusto, Landerset Simões, Manuel Belchior e Manuel Henriques Gonçalves. Escolha é escolha, sempre sujeita a reparos, na conceção de um Portugal do Minho a Timor, Forjaz Trigueiros, dentro da sua lógica, escolheu avisadamente. Como se passa a referir.

Primeiro, o autor do chamado achamento da Terra dos Negros, Gomes Eanes de Zurara e a sua Crónica dos Feitos da Guiné. Lançarote, almoxarife de Lagos, dirige-se ao Infante D. Henrique e pede licença para ir à Guiné:
“E se Deus trouxer o feito de nossos contrários, presas de grande valor, pelas quais de vosso quinto devereis receber grande proveito, do qual nós não ficaremos sem parte. E disto, senhor, vos praza havermos vossa resposta, para despachadamente seguirmos nossa viagem, enquanto nos o verão dá tempo para isso”.

Chega-se à Guiné – então o que se entenderia por ela – Nuno Tristão e outros são frechados e morrem do veneno das setas. A viagem prosseguirá em condições precárias, com logística deficiente, poucos homens, os nautas chorosos pela morte do capitão, de escudeiros e homens de pé. E como numa oração Zurara escreve:
“Ó grande e supremo socorro de todos os desamparados e atribulados, que nunca desamparas aqueles que te chamam em maior necessidade, que ouviste os clamores daqueles que gemiam a ti! Onde bem mostraste que ouvias suas preces, quando em tão breve lhe enviaste tua celestial ajuda, dando esforço e engenho a um tão pequeno moço, nado e criado em Olivença, que é uma vila de sertão mui afastado do mar, o qual avisado por graça divinal, encaminhou o navio, mandando ao grumete que diretamente seguisse o norte, abaixando-se um pouco à parte do levante, ao vento que se chama nordeste, porque ali entendia ele jazia o reino de Portugal, cuja viagem eles seguir desejavam!”.

E elogia os nautas inexperientes que conduziram a torna-viagem, onde foram recebidos pelo Infante, “contar-lhe o forte aquecimento da sua viagem, apresentando-lhe a multidão das frechas com que seus parceiros morreram, de cuja perda o Infante houve grande desprazer, porque quase os criara todos, não pôde escusar tristeza daquela humanidade que ante a sua presença pelo espaço de tantos anos fora criada”.

Passando à frente de Augusto Casimiro e Fernanda de Castro, temos Maria Archer (1899 a 1982) a descrever um tornado em Bissau:
“Calmaria. Uma nuvem branca mancha o azul intenso do céu. Não bole folha. O mar é de leite. De súbito surge um ponto negro no horizonte e em poucos minutos aumenta, amplia-se, cobre todo o céu como uma tampa negra. Um furacão terrível desencadeia-se. As árvores desfolham-se, dobram-se, gemem. Batem as portas e janelas, estilhaçam-se vidros, há gritos nas casas. As ruas despovoam-se. Toda a população se recolhe. Quem não encontra abrigo deita-se no chão. Os barcos, no porto, são balouçados por vagalhões medonhos. Partem-se as amarras. Os animais, espavoridos, correm pelos campos.
Uns minutos de inferno. Dez, quinze minutos, o máximo. Depois o tornado vai-se, passa, leva a outros lugares o seu estrondo de maldição. Volta o céu azul, o ar calmo, o sossego. Foi-se o tornado”.

Segue-se depois um termo de comparação, saíra da Guiné em 1918, não havia uma única estrada, nem iluminação elétrica, nem esgotos ou águas canalizadas. Não havia automóveis na Guiné, os barcos a motor eram raros. Décadas mais tarde, sente-se por lá um outro ritmo de vida. Passou-se a viajar de automóvel pela Guiné, de gasolina pelos rios e canais, certos burgos estão iluminados a eletricidade. Há hortas, há desporto, resiste-se mais ao clima. E a autora termina assim:
“Despediram-se de mim, no cais, o cozinheiro mandinga, o criado de mesa grumete, a lavadeira cabo-verdiana, a muleca mancanha, que era gentia, como todos os da sua raça.
E eu pensei : 
- Eis um grupo que representa o povo da Guiné!

O criado grumete e a lavadeira cabo-verdiana diziam-me: 
- Deus lhe dê boa viagem! E benziam-se.

Eu não sei se lhes dei, a vocês, uma ideia do que é a Guiné, e do seu encanto de terra bárbara e do seu pitoresco de Babel das raças indígenas. Eu, por mim recordo-a com a mais intensa impressão que me deixou a África”.

Forjaz Trigueiros escolhe páginas esplêndidas de Teixeira da Mota sobre a expansão portuguesa na Guiné, e depois poesia de António de Cértima. Um escritor ainda recentemente aqui abordado, João Augusto Silva, autor da obra premiada “África, da vida e do amor na selva”, é o autor seguinte de onde podemos ler o “Apólogo do Falcão e Abutre”:
“À sombra de uma árvore, um alto poilão secular, descansa, tranquilo, o abutre. No mesmo ramo em que ele assenta, caiado pelos dejetos brancos de tantos que ali passaram, veio pousar um falcão. Depois de trocarem cumprimentos, o falcão sempre palreiro e irrequieto, increpou o abutre de desprezível, de cobarde, de madraceiro, e quantos nomes lhe acudiram à cabeça louca e leviana. Chamou-o e tornou a chamar o ser mais miserável da criação. Mas, finalmente, furioso com o silêncio enervante do abutre, aconselhou, para terminar: 
- Deixa a carne podre e infecta dos monturos e faz como eu, que me alimento com a carne dos animais que abato à custa de um labor intenso. Porque não abandonas essa vida de pária, sempre no esterco à procura daquilo que outros abandonam?

O abutre, paciente, ouviu tudo e não teve o mínimo gesto de protesto, de indignação sequer. Nisto, porém, em grande velocidade, passou entre os dois uma avezita de penas multicolores. Doido, desordenado, o falcão lançou-se em perseguição da ave; mas tão desastradamente o fez que, de encontro a um tronco robusto, foi bater em cheio com o peito. Louco, cheio de dor, piando e repiando, caiu no chão, exânime, sobre as folhas secas.

Nesta altura, o abutre, lentamente, levanta voo e vai pousar, sereno, junto ao moribundo. O falcão, nas vascas da agonia, ainda pôde ver, a seu lado, cheio de horror, a silhueta tenebrosa e agoirenta do abutre. E trémulo perguntou: 
- Que vens aqui fazer? Grave, imperturbável, o abutre respondeu: 
- Aguardo o teu fim.”

Forjaz Trigueiros inclui ainda textos de Landerset Simões, Manuel Belchior e imagens da Guiné da autoria de Manuel Henriques Gonçalves. Não deixa de ser estranho certas omissões, como é o caso de Fausto Duarte, nome relevante da literatura colonial.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12549: Notas de leitura (550): "O Muro", por Afonso Valente Batista (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10415: Agenda cultural (214): O festival Todos'12: Este fim de semana, no eixo Poço dos Negros: Os sabores, os cheiros, as cores, as gentes, a música da Guiné-Bissau, Cabo Verde e outros países lusófonos



A quarta edição do festival Todos' 12  – Caminhada de Culturas (*) começou a 14 de setembro e acaba este fim de semana, no domingo,  23. Este ano, e  pela primeira vez, centrou-se no eixo Intendente-Poço dos Negros, duas zonas da cidade marcadas, ao longo da história, pela coexistência das mais desvairadas gentes.. Esta semana, as actividades (culturais, incluindo a gastronomia, a fotografia e a música) concentram-se nas ruas de S. Bento,  dos Poiais de S. Bento e da Cruz dos Poiais, no eixo do Poço dos Negros (**). 


Foto (da autoria do grande fotógrafo português Luís Pavão) e elementos informativos retirados do cartaz e programa do Todos'12... (Com a devida vénia)

Dia 22 de setembro de 2012, sábado [, destaques da responsabilidade do editor L.G.]


GASTRONOMIA

[Timor / Guiné-Bissau / Cabo Verde / São Tomé e Príncipe]

Preço: 6€ | sujeito a inscrição prévia para festival.todos@gmail.com ou 96 637 4388/ 91 414 4311

(i) O GOSTO DE TIMOR com Dina

22 e 23 de Setembro, das 12h00 às 15h00

Biblioteca Municipal Por Timor, Rua de São Bento 182-184

Uma mostra de gastronomia timorense, onde é apresentada uma refeição para dias especiais. Dina, timorense de alma e de coração, desde cedo defendeu o seu país na procura de um futuro melhor. Esteve à frente da Organização Popular de Mulheres Timorenses e sofreu na pele as agruras da sua luta pela liberdade. Foi prisioneira das forças indonésias e vive hoje em Portugal, sonhando com um Timor-Leste novo, cheio de futuro. Neste dia partilhará connosco uma das riquezas do seu país – a gastronomia.

(ii) COZINHA DA GUINÉ BISSAU com Nina Codé

22 de Setembro, das 13h00 às 15h00

Centro InterculturaCidade, Travessa do Convento de Jesus, 16 A

Nina escolheu o Caldo de Chabéu (fruta, óleo de palma, beringelas, tomates, cebolas, alhos, quiabos e galinha) para este almoço Guineense.
(iii) CACHUPA E CONVERSAS com Domingos de Brito

22 de Setembro, das 20h00 às 21h30

Restaurante Tambarina, Rua Poiais de São Bento 85

A Cachupa será servida com um acompanhamento especial: a companhia de um caboverdiano, um amante do encontro entre pessoas.

(iv) COMIDA LEVE-LEVE com Sofia Pinto

22 de Setembro, das 20h00 às 21h30

Centro InterculturaCidade, Travessa do Convento de Jesus, 16 A

Calulu de peixe e Angú de banana farão as delícias desta refeição cheia de explicações sobre a culinária de São Tomé e Príncipe.

CONCERTOS ÍNTIMOS

(v) OFICINA DE MÚSICA DE MOÇAMBIQUE Projecto Kudonde

22 de Setembro, das 19h00 às 20h00

Centro Interculturacidade, Travessa do Convento de Jesus, 16A

Dirigida por Malenga, instrumentista e compositor moçambicano, esta oficina funciona em regime aberto e nela participam músicos de vários países.

(vi) CONCERTOS ÍNTIMOS DA ORQUESTRA TODOS

BE|BEL

22 de Setembro, às 21h30, às 22h00 e às 22h30

Rua de São Bento, 107

Com Max Lisboa (voz e guitarra – Brasil), Gueladjo Sané (dunduns e djembé, Guiné Bissau) e Johannes Krieger (trompete – Alemanha) 


(viii) RESTAURANTE TAMBARINA

22 de Setembro, às 21h30, às 22h00 e às 22h30

Rua dos Poiais de São Bento, 85

Com Danilo Lopes da Silva (voz a guitarra – Cabo Verde), Susana Travassos (voz – Portugal)  e João Gomes (teclados - Portugal/Moçambique)

 OUTRAS ATIVIDADES

(ix) RETRATO CRIOULO EM MOVIMENTO

Exposição de fotografia de João Freire pela Rua de Todos

22 de Setembro pelas 11h30, 15h00, 19h00, 22h00

23 de Setembro, pelas 11h30, 15h00, 19h00

Procure-a na Rua de TODOS (Ruas de São Bento, Poiais de São Bento e Poço dos Negros).

Encontro com o fotógrafo João Freire no dia 23 de Setembro, pelas 19h30, no Centro InterculturaCidade (Travessa do Convento de Jesus, 16 A)

Imagine que vai na rua e de repente se depara com uma fila de pessoas que se aproxima de si e lhe traz uma exposição de fotografias belíssimas a preto e branco. Estas fotografias falam de um povo e de um país que existe no meio do oceano atlântico, onde as árvores são deitadas pelo vento… os seus olhos vão aumentar e a sua lembrança da rua em que isto aconteceu não mais será a mesma. Essa rua é a rua de TODOS.


(x) DJUMBAI DJAZZ (***)

22 de Setembro, entre as 23h00 e as 24h00

Centro Interculturacidade, Travessa do Convento de Jesus, 16A

Formação incontornável na História da Música Guineense em Portugal. Na sua música cruzam-se as matrizes tradicional e contemporânea com o som afro-mandinga e a canção urbana de José Carlos Schwarz.

Vd. aqui o programa completo do festival Todos'12.

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 13 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10376: Agenda Cultural (213): Festival Todos 2012: Do Intendente ao Poço dos Negros... Viajar pelo mundo sem sair de Lisboa: de 14 a 23 de setembro)



(**) Possível origem do topónimo::

(...) Rua do Poço dos Negros: fica entre a avenida Dom Carlos I e o largo Doutor António de Sousa Macedo (antigo largo do Poço Novo). 


De acordo com Júlio de Castilho, a origem deste topónimo pode encontrar-se numa carta régia de Dom Manuel I -13 de Novembro de 1515 -, pela qual o rei pedia à cidade de Lisboa que construísse um poço para colocar os corpos dos escravos mortos, sobretudo na época das epidemias. Diz a carta que os escravos chegavam a ser lançados «no monturo que está junto da Cruz [de Pau a Santa Catarina] q[ue] esta no caminho q[ue] vai da porta de santa C[atari]na p[ar]a santos,» para a praia. Para evitar as consequências dos cadáveres insepultos, o rei considerava «q[eu] ho milhor remedio sera fazer-se huu[m] poço, o mais fumdo que podese ser, no llugar que fose mais comvinhauel e de menos imcomvyniemte, no quall se llãçasem os ditos escravos» e que se deitasse «alguma camtidade de call virgem» de quando em quando para ajudar à decomposição dos corpos. A Câmara de Lisboa teria cumprido a ordem do rei construindo um poço no caminho para Santos, também conhecido como Horta Navia.

Gustavo de Matos Sequeira, em “Depois do Terramoto”, colocou ainda outra hipótese para a origem deste topónimo, associada à proximidade do Convento de São Bento (actual Parlamento), também conhecido por São Bento dos Negros, devido à cor dos hábitos dos frades. Assim, um poço pertencente à Ordem dos frades negros de São Bento seria a verdadeira origem do topónimo. Mais, de acordo com este autor, no século XVIII, uma designação bairrista chama a esta artéria “rua de São Bento dos Negros”.

Freguesia: Santa Catarina (...)


Fonte: Sítio Espaço e Tempp: Revelar Lx [Lisboa].

(***)  Quem são o Djumbai Jazz [clicar aqui para ouvir um dos ficheiros áudio].

(i) O projecto Djumbai Jazz surge 1999, sob a liderança do guineense Maio Coopé;

(ii) Um projecto musical, de matriz afrmandinga, formado por 4 pessoas;

(iii) Maio Coopé, cantor, músico e compositor, remete este projeto, para as suas próprias vivências de infância: “ No meu País, sobretudo nas zonas suburbanas, antes das crianças irem dormir, há uma reunião junto dos mais velhos, ao redor da fogueira, contam-se histórias e há sempre uma pessoa para cantar, trata-se de um costume da Guiné-Bissau e que esteve sempre bem próximo de mim”;


(iv) Filho de pais músicos, começou a cantar em festas tribais; com a independência do seu pais (1974), desabrochou o seu talento e abriram-se outras portas;

(v) Em setembro de 1975, venceu o Festival de Mandjuande para Musicas Tradicionais cantadas em crioulo.

(vi) No inicio, Maio Coopé procurou sempre estar bem próximo da Música Tradicional do seu País, trabalhando a sua voz junto à percussão e com repertório de canções populares;

(vii) Começa a tornar-se conhecido também no estrangeiro: Europa ocidental e ex-União Soviética;

(viii) Com os Gumbezarte, trabalhou a sua música depois de uma extensa pesquisa sobre a cultura musical das várias etnias do seu País e com Canadiano
 Silvam Panatom, registou as suas canções;

(ix) Maio Coopé foi vencedor de vários festivais na Guiné-Bissau, entre 1984 e 1988; 

(x) Durante a década de 80 fez várias tounées pelo Pais: Bafatá,  Gabu, Bissorá , Sonako, Pirada, Boé, Farim, Manssoa, Cacheu, Cachungo, Buba, Catió, etc. 

(xi) Nos anos 90 faz também apresentações na Alemanha (Berlim), durante o Festival Lusomania; grava o disco “Camba Mar” com o seu grupo Gumbezarte, disco editado pela Lusafrica e saudado pela crítica internacional; 

(xii) Maio inicia uma extensa tournée pela Europa, por vários festivais conceituados como:  La Villete ( França), Sfinks (Bélgica), Rambout Festival e Nordezem na Holanda, Expo 98 (Lisboa), etc. 

(xiii) Em 2000 é convidado para a feira/festival de músicas do mundo Strictly Mundial em Zaragoza ( Espanha), onde a música “Pelele” é seleccionada para participar na compilação do Forum Europeu de Festivais de World Music; 

(xiv) Em 2004 volta ao Brasil com os Djumbai Jazz no âmbito do projecto “Na Ponta da Lingua” onde actua em várias cidades do Estado de Minas Gerais;

(xv) Tem colaborado com vários artistas lusófonos , e gravou com vários artistas de Cabo Verde na compilação “Ayan”, da editora Praia Records;

(xvi) Composição do grupo::

Mayo Coope – Voz Principal
Sadjo – Guitarra Acústica Ritmo
Galissa – Kora
Mateus – Baixo Eléctrico
Djabate – Guitarra Solo
Cabum – Percussão
Tony – Bateria
Ana Cabi – Dançarina
Miriam Cabi - Dançarina

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7744: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (12): Os guineenses apenas assumem o idioma português como lingua oficial

1. Mais um texto do nosso camarada e amigo António Rosinha, enviado em mensagem do dia 4 de Fevereiro de 2011


Caderno de notas de um Mais Velho -12

Os guineenses apenas assumem o idioma português como língua oficial


Caros editores, para publicação se houver espaço.

Sou a favor do acordo ortográfico, e que esse acordo ortográfico seja democraticamente aceite após discussão pública por estudiosos, ou seja, a maioria de estudiosos decide.

Tanto portugueses como angolanos emitem opinião sobre o acordo, tanto a favor como contra. No entanto é difícil ouvir opinião de guineenses ou mesmo de cabo-verdianos.

Os angolanos que viviam em maioria em regiões isoladas sem escolas nem contactos com missões religiosas nem islâmicas, existia apenas a tribo com sua língua e seus usos e costumes, ouviam a língua portuguesa apenas quando iam ao comerciante branco ou mestiço mais próximo, comprar o sal e os seus panos.

No entanto os estudantes citadinos angolanos antigos (1950/60), discutiam com qualquer beirão, minhoto ou algarvio que o português de Luanda era mais perfeito e correto que qualquer outro da metrópole.

Os brasileiros também se consideram mais bem falantes do português, que nós portugas.

Embora com várias explicações possíveis, os guineenses mais falantes de crioulo, francês e as próprias línguas maternas, tomam a língua portuguesa apenas como língua oficial.

Enquanto em Angola já se vê o uso do português com o mesmo àvontade com que fazem os brasileiros, já criam palavras, frases, termos e sotaques que mais não é que enriquecimento da língua portuguesa, na Guiné, e mesmo Cabo Verde, o uso do português é feito por uma minoria, e mesmo essa minoria o usa apenas "oficialmente".
Gostaria de estar enganado nesta opinião que estou a emitir, mas é um sentimento que não me sai da cabeça, que uma das muitas razões que explicam o fraco uso do idioma português tanto na Guiné como em Cabo Verde faz parte ainda de um já gasto mas necessário e oportuno sentimento anti-colonial.

Claro que a desorganização política da Guiné destes anos afastou para o exterior os cidadãos mais bem preparados e mais letrados, o que também explica o fraco uso da língua portuguesa.

Mas custa a compreender, como os políticos guineenses conseguiram matar tantas ajudas, portuguesas e suecas, para o ensino escolar, e outras áreas.

Talvez tenham aprendido connosco que, como dizem quase todos os nossos ex-colonizados, que os portugueses foram bons mestres, apenas no que é negativo.

Evidentemente que o acordo ortográfico pouco conta para a nossa geração, mas se houver de facto uma uniformização aprovada cientificamente por maioria, vai ajudar a manutenção e divulgação do português pelos quatro cantos do mundo lusófono, o que será para os mais novos uma herança para a qual a nossa geração contribuiu com alguns anos da nossa juventude e muitas famílias perderam parentes.

Sou daqueles que não concordava em 1961 com a solução do Kennedy como hoje dizem muitos historiadores, pois que os americanos já tinham feito as Coreias, já estava incendiado o Zaire e surgiu o Vietname. No caso das colónias portuguesas era para ficar tudo em pó sob os pés de Kennedy e Brejnev.

E aí, da língua e da presença portuguesa, nem com velas como as de Timor salvavam fosse o que fosse.

Um abraço para todos
Antº Rosinha
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7454: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (11): O PAIGC que nos saiu na rifa, a Portugal e à Guiné: Cumbe di Baguera / Ninho de abelhas

sábado, 24 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5154: Meu pai, meu velho, meu camarada (19): Cabo Verde, 1942: Plano de defesa do arquipélago, de Santos Costa (José Martins)



Cabo Verde > Ilhas do Barlavento > Ilha de São Vicente > 2006 > Ponta João Ribeiro > Restos do sistema de defesa construído durante a II Guerra Mundial. A Ponta João Ribeiro fica hoje a 3 km da cidade do Mindelo. Em frente, a uns escassos 600/800 metros, situa-se o ilhéu dos Pássaros.

Foto: © Pedro Marcelino / Lia Medina (2009). Direitos reservados


Cabo Verde > Ilha de Vicente > Porto do Mindelo > Dois paquetes de cruzeiro atracados no porto, o ilhéu dos pássaros e o Monte Cara ao fundo

Foto: Cortesia de Nelson Herbert (2009). (Editado por L.G.)

1. Mensagem do nosso camarada, amigo e assíduo colaborador do nosso blogue, José Martins, ex-Fur Mil Trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70, técnico ofical de comtas, residente em Odivelas:

Boa tarde camaradas

Tendo em conta os vários postes sobre a matéria com fotos históricas em 2009 (Março – 4059; Setembro - 4926, 5019, 5021, 5022 e 5029; Outubro - 5101 e 5109… estes foram os que detectei) (*) , junto texto colhido no espólio do Arquivo Histórico Militar.

Se entenderem que tem relevância, avancem. Poderei também avançar, já que estou a analisar alguns escritos sobre a matéria, sobre o que levou Portugal a entrar (sem entrar) na 2ª Guerra Mundial.

Um abraço
José Martins


2. Documentos > PLANO DE DEFESA DE CABO VERDE (1942)

Despacho de Fernando Santos Costa, Sub-secretário de Estado da Guerra


Aprovadas as presentes directivas para a organização do Plano de Defesa de Cabo Verde com as restrições:

a) As forças metropolitanas destacadas para reforçar a guarnição militar da Colónia de Cabo Verde destinam-se exclusivamente à defesa das Ilhas do Sal e de S. Vicente [ Ilhas do Barlavento].

b) À ilha de S. Tiago [, Ilha do Sotavento, com a capital, Praia,] são apenas afectas 2 companhias de caçadores indígenas da Colónia que deverão ser rapidamente colocadas em estado de completa eficiência.

Na hipótese de a Colónia não poder tomar à sua conta todas as despesas com a sua guarnição militar privativa, o Ministério da Guerra tomará sobre si parte dessas despesas.

Procurar-se-á prover num oficial superior da arma de infantaria (major ou tenente-coronel) o comando militar da Ilha de S. Tiago que, simultaneamente, exercerá o comando das 2 companhias indígenas de caçadores. É aconselhável que as despesas com este comando corram por conta da Colónia mas, havendo dificuldades, o Ministério da Guerra tomará à sua conta o encargo.

c) A guarnição militar da Ilha de S. Vicente é constituída pelas tropas ali presentemente estacionadas, reforçada, logo que seja possível, com uma bateria de artilharia de campanha de 75 mm. A bateria antiaérea de 40 mm será elevada a 6 peças logo que as disponibilidades em material o possibilitem.

d) Para a Ilha de Santo Antão não poderão ser deslocados da Ilha de S. Vicente efectivos superiores a uma companhia de atiradores reforçada com um pelotão de metralhadoras pesadas e uma secção de morteiros de 81 mm. Visto não ser possível reunir nesta Ilha efectivos que garantam a sua defesa integral em todas as circunstância devemos apenas contentar-nos com a vigilância do canal em frente do Porto de S. Vicente, tendo como base principal a ocupação de CARVOEIROS.

e) A guarnição da Ilha do Sal será constituída por um Regimento de Infantaria a dois batalhões e uma bateria A.A. [antiaérea] de 40 mm provisoriamente a 4 peças, mas elevada a 6 logo que o permitam as disponibilidades em material. Não sendo possível por dificuldades de reabastecimento ou de vida manter na Ilha os dois batalhões do regimento deve ali ficar apenas o comando do regimento e um batalhão transferindo-se o outro batalhão para a Ilha de Santo Antão, onde permanecerá durante oito meses, recolhendo então a S. Vicente todas as tropas da guarnição desta Ilha.

Nesta hipótese o conceito de ocupação da Ilha de Santo Antão deve prever a vigilância da sua zona Norte e Noroeste e a defesa a todo o custo da sua zona Sul. Em contrapartida o conceito de defesa da Ilha do Sal deve modificar-se no sentido de ser apenas defendido a todo o custo o planalto da zona do aeródromo vigiando-se com elementos não superiores a um pelotão de atiradores cada um dos portos de Santa Maria MARIA e Pedra Lume.

As tropas que guarnecem a Ilha do Sal não devem manter-se na Ilha por um período de duração superior a oito meses. Para esse efeito o Comandante Militar da Colónia fica autorizado a trocar entre si os batalhões e as baterias das guarnições da Ilha de S. Vicente e Sal, bem como as formações de comando dos 2 regimentos se tal se mostrar conveniente. Na hipótese de vir a verificar-se que na Ilha do Sal não pode ser mantido mais que um batalhão a troca far-se-á então no que respeita à Infantaria apenas entre os 2 batalhões do regimento, começando pelo batalhão do Regimento de Infantaria nº 11.

f) Por falta de elementos não é possível destacar para o arquipélago forças de aeronáutica.

g) O Ministério da Guerra procurará assegurar por meios próprios os transportes militares entre as Ilhas do Sal e de S. Vicente bem como o transporte de água entre as Ilhas do Sal e de S. Vicente, bem como o transporte de água entre as Ilhas de Santo Antão e S. Vicente.

h) Procurar-se-á manter no Arquipélago reservas de munições e de combustíveis para dois meses e de víveres para um período de quatro a seis meses.

i) Dever-se-ia procurar instruir na Arquipélago pessoal indígena para pelo menos um ou dois batalhões de infantaria. Concorrer-se-ia para atenuar a crise económica do Arquipélago e, simultaneamente, poder-se-ia ulteriormente substituir por pessoal indígena o pessoal europeu de dois batalhões.

Em qualquer hipótese será sempre possível contar com uma importante reserva de mobilização para a defesa da Ilha.

j) As relações de dependência em todas as circunstâncias entre o Comandante Militar da Colónia, o Governador e o Ministério da Guerra são as estabelecidas no Decreto-lei nº 32.157 da 21 de Julho findo.

Lisboa, 12 de Agosto de 1942
O Sub-secretário de Estado da Guerra
(A) – Fernando Santos Costa (**)
__________ 

 Notas de J.M. / L.G.:

(*) Vd. postes de: 15 de Outubro de 2009 >Guiné 63/74 - P5109: Meu pai, meu velho, meu camarada (18): Do Mindelo a... Bambadinca, com futebol pelo meio (Nelson Herbert / Luís Graça)

12 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5101: Meu pai, meu velho, meu camarada (17): Ilha de S. Vicente, S. Pedro, 1943: Armando Duarte Lopes (Nelson Herbert)

29 de Setembro de 2009 >Guiné 63/74 - P5029: Meu pai, meu velho, meu camarada (16): Expedicionário no Mindelo, S. Vicente,1941/43,1º Cabo Inf Luís Henriques (3) (Luís Graça)

28 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5022: Meu pai, meu velho, meu camarada (15): Expedicionário no Mindelo, S. Vicente,1941/43,1º Cabo Inf Luís Henriques (2) (Luís Graça)

27 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5021: Meu pai meu velho, meu camarada (14): Expedicionário no Mindelo, S. Vicente, 1941/43, 1º Cabo Inf Luís Henriques (1) (Luís Graça)

27 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5019: Meu pai, meu velho, meu camarada (13): Mindelo, ontem e hoje ( Lia Medina / Nelson Herbert / Luís Graça)

9 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4926: Meu pai, meu velho, meu camarada (12): 1º cabo Ângelo Ferreira de Sousa, S. Vicente, 1943/44 (Hélder Sousa)

20 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4059: Meu pai, meu velho, meu camarada (1): Memórias de Cabo Verde, São Vicente, Mindelo, 1941/43 (Luís Graça)
__________

(**) FERNANDO DOS SANTOS COSTA (1899-1982)

Militar e político que foi figura destacada do regime salazarista. Entre 13 de Maio de 1936 e 6 de Setembro de 1944 ocupou o cargo de Subsecretário de Estado no Ministério da Guerra, de cuja pasta era titular o próprio Presidente do Conselho, Salazar, a quem sucederá à frente do Ministério da Guerra entre 6 de Agosto de 1944 e 2 de Agosto de 1950. Quando a pasta da Defesa substituiu a da Guerra, manteve-se à frente do novo Ministério até 4 de Agosto de 1958, data em que foi afastado do governo. Em 1961 foi promovido a General. (JM)

Vd. a publicação Correspondência do General Santos da Costa (1936-1982). Organização e prefácio: Manuel Braga da Cruz . Editora: Verbo, Lisboa, 2004, 

"O General Fernando Santos Costa foi um dos mais estreitos colaboradores de Salazar e um dos mais longevos ministros dos seus governos. Ao longo dos 22 anos que esteve no Governo, onde ocupou os cargos de subsecretário de Estado da Guerra e de ministro da Guerra e da Defesa, foi a figura mais importante do regime junto do Presidente do Conselho de Ministros. Principal fautor da reestruturação das Forças Armadas e da sua subordinação ao poder político, Santos Costa participou ao lado de Salazar, de modo decisivo, na formulação da política de guerra, desde o deflagrar da Guerra Civil de Espanha até ao início da Guerra Fria, depois do termo da II Guerra Mundial ***), assumindo desse modo relevante papel não só nacional como internacional. A documentação que se reúne nesta obra, com prefácio de Manuel Braga da Cruz, contribuirá seguramente para uma maior compreensão da personalidade de Santos Costa e de suas ideias e orientações políticas"

(***) Portugal e a II Guerra Mundial - Cronologia breve (LG):

1939

17 de Março - Assinado por Salazar e Franco o Pacto Ibérico, Tratado de Amizade e Não Agressão

1 de Setembro - Invasão alemã da Polónia. Início da II Guerra Mundial. Portugal, no dia seguinte, declara a sua posição de neutralidade no conflito europeu.

1940

Começam a afluir a Portugal dezenas e dezenas de milhares de refugiados, na sua maioria judeus, e nomeadamente em trânsito para os EUA.

6/7 de Junho - A Alemanha invade a França que irá capitular. Reafirmação da "estrita neutralidade" de Portugal. Conhecimento dos planos (secretos) da "Operação Félix" (invasão de Espanha e, eventualmente, Portugal, para a conquista e ocupação de Gibraltar, vital para o controlo do Mediterrâneo). Os ingleses fazem todos os esforços para manter a neutralidade da Península Ibérica.

Dezembro - Plano de retirada do governo português para os Açores na hipótese (temida pelos ingleses e levada a sério por Salazar) de invasão do país pela Alemanha e pela Espanha. O arquipélago dos Açores chegará a ter quase 3 dezenas de homens em armas, com equipamento inglês.

1941

22 de Junho – A URSS é invadida pela Alemanha. Aumenta a germanofilia em Portugal. nomeadamente. Estreitam-se os laços económicos com a Alemanha.

Dezembro - Declaração de guerra dos Estados Unidos contra as pptências do Eixo, após o ataque japonês a Pearl Harbour. Reforça-se em Portugal o receio de ocupação, pelos Aliados, das ilhas atlânticas. Aumenta a importância estratégica dos Açores. Em 1941 Portugal perde 4 navios, três dos quais da marinha mercante, incluindo o Cassequel, de 122 m, da Companhia Colonial de Navegação. No final do conflito, terã perdido 18 mil t, o equivalente a 7% do total da arequeação bruta

1942

Março - Racionamento de bens essenciais, na sequência de Bloqueio económico imposto pelos Aliados. Portugal é obrigado a aceitar, no verão desse ano, um acordo comercial favorável aos interesses do seu velho aliado que lhe garante a independência da metrópole e das ilhas adjacentes bem como a soberania das colónias.

Novembro/Dezembro - A sorte das armas começa a virar-se para os Aliados.

1943

Janeiro - Capitulação dos alemães em Estalinegrado.

Maio – Queda da Tunísia a favor dos aliados. Ameaça sobre os Açores, vital para o abastecimento de aviões provenientes da América. Negociação com os ingleses e depois com os americanos.

Agosto - Cedência das bases das Lajes, nos Açores. O Governo Britânico compromete-se a dar apoio e auxílio militar a Portugal, em caso de ataque. Modernização das nossas Forças Armadas.

Junho - Portugal cancela a exportação do volfrâmio, face ao braço de ferro mantido com a Inglaterra. O principal cliente deste minério, essencial para a indústria de armamento, tinha sido a Alemanha.

1944

Maio - II Congresso da União Nacional. Delineada a estratégia de sobrevivência do regime de Salazar.

6 de Junho – O tão esperado Dia D (Desembarque nas praias da Normandia pelas forças aliadas).
Novembro - Acordo (secreto) de concessão de facilidades militares nos Açores, assinado por Portugal e os Estados Unidos.

1945

30 de Abril – Morte de Hitler em Berlim. Três dias de luto oficial decretados pelo governo português.

Maio – Capitulação das tropas alemãs.

6 e 9 de Agosto - Lançamento de bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasáqui, que irão apressar a rendição japonesa (a 2 de Setembro)

27 de Setembro – O território de Timor volta à administração portuguesa, depois da ocupação japonesa (mas também australiana e holandesa).

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3836: Álbum das Glórias (51): Santo Tirso, 1963, o almirante (Teixeira da Mota) e o poeta (Ruy Cinatti) (Beja Santos)

Conferência Internacional de Etnografia > Santo Tirso > 1963 > No intervalos dos trabalhos, o Amirante Teixeira da Mota e o poeta Ruy Cinatti.

Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem do Beja Santos, com data de 29 de Dezembro último:


Assunto - Almirante Teixeira da Mota e poeta Ruy Cinatti, em 1963 (*)


Malta, a remexer nos milhares de fotografias da heroína do meu próximo livro, Mindjer Garandi [, Mulher Grande], encontrei este inesperado encontro entre Teixeira da Mota e Cinatti, figuras constantes da minha correspondência, que circulou na "Operação Macaréu à Vista".

Lê-se na legenda: "Num intervalo durante a Conferência Internacional de Etnografia, Santo Tirso, 1963".

Foi graças ao Cinatti que conheci Teixeira da Mota, talvez em Abril de 1968. Neste tempo, o maior historiador da Guiné está no auge das suas faculdades, já escreveu a maior parte da sua bibliografia fundamental sobre a Guiné, o seu nome corre mundo como grande cartógrafo, depois das comemorações henriquinas.

Por seu turno, Cinatti é neste tempo um poeta irregular mas já um conceituado estudioso da etnografia timorense. Era tempo destes dois responsáveis por muito apoio que me deram na Guiné, terem fotografia no blogue. E por uma razão especial: o que eles vieram dizer nesta conferência internacional aparece em O Tigre Vadio (**).

Teixeira da Mota apresenta uma comunicação sobre os sonós, essas raríssimas esculturas em metal dos régulos biafadas, símbolo do seu poder. Teixeira da Mota possuía uma das maiores colecções, hoje em poder de coleccionadores estrangeiros. Pediu-me informações se havia sonós no Cuor e na região da Bambadinca, não só não encontrei nenhum como ninguém sabia da sua existência.

Cinatti apresenta uma comunicação sobre a criação da casa timorense. Escreveu um belo poema a tal propósito, enviou-mo e incluiu-o também em O Tigre Vadio.

Ambos faleceram na década de 80, o primeiro amargado com o que se passava na Guiné, o segundo amargado com o que se passava em Timor. Tenho muito orgulho em mostrar-vos como eles eram mais ou menos ao tempo em que me deram coragem e incentivo na guerra que vivi, foram expoentes culturais luminosos inesquecíveis.

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série Álbum das Glórias > 26 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3794: Álbum das Glórias (50): Jobo Baldé, o dedicado padeiro de Missirá depois de Julho de 1969 (Beja Santos)

(**) Vd. poste de 8 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3422: O Tigre Vadio, o novo livro do Beja Santos (2): O exemplar nº 1, autografado, dedicado à malta do blogue

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3449: O Tigre Vadio, o novo livro do nosso camarada Beja Santos (8): Apresentação do Maj Gen Lemos Pires (I)

Download:
FLVMP43GP

(No caso de haver problemas no visionamento deste vídeo, clicar em watch in high quality)

Lisboa > Museu da Farmácia > 11 de Novembro de 2008 > Lançamento do livro Diário da Guiné, 1969-1970: O Tigre Vadio (*) > Excerto da apresentação do livro e do autor por Mário Lemos Pires, major general na reforma e antigo colaborador do Gen Spínola, na Guiné (1969/70).

Vídeo: © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Vídeo (4' 29') alojado em: You Tube >Nhabijoes


Major General na Reforma, Mário Lemos Pires nasceu a 30 de Junho de 1930, sendo mais conhecido da opinião pública portuguesa como o último governador português e comandante-chefe de Timor-Leste (de 18 de Novembro de 1974 a 27 de Novembro de 1975).

Sobre a tragédia de Timor (território e povo que lhe são caros) escreveu, de resto o livro Descolonização de Timor: Missão Impossível ? (Lisboa: Dom Quixote. 1994. 468 pp.).

No seu currículo faz-se menção os seguintes cargos desempenhados, entre outros, no passado: (i) Chefe de Gabinete do Ministro da Defesa Nacional; (ii) Director do Curso de Defesa Nacional no IDN – Instituto de Defesa Naciomnal; (iii) Secretário Geral da Eurodefense-Portugal, etc.

Fez comissões de serviço em Angola (1961/63) e na Guiné (1969/70). Na Guiné foi um colaborador muito próximo de Gen Spínola, governador e comandante-chefe, à frente da Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica (Rep Apsico). Foi Fundador do Centro de Instrução Física do Exército. Igualmente fundador do Centro de Instrução de Operações Especiais.

É diplomado com o Curso de Estado-Maior do Exércitod e Portyga e do Exército dos EUA. Diplomado pelo Colégio de Defesa da NATO. É membro do Centro de Estudos de Estratégia do IAEM – Instituto de Altos Estudos Militares. É presença habitual em conferências nacionais e internacionais sobre sobre temas de estratégia militar, segurança, terrorismo, etc.


Algumas ideias-força deste excerto da sua intervenção:

- Convidado para fazer a apresentação do 2º volume... "Disse ao autor: Outra vez ?"... Mas depois percebeu que só com o 2º volume é que a obra ficava completa (**);
- Esteve na Guiné em 1969/70, período a que se reporta este 2º volume, portanto na mesma altura que o Alf Mil Beja Santos, embora com funções, responsabilidades e visões diferentes.... "Somos, portanto, combatentes da mesma guerra"... Aprendeu-a ainda antes do início da guerra do ultramar, como observador na Argélia...
- Exerceu funções "muito ligadas à política", à política da Guiné Melhor do General Spínola, "política de que me orgulho muito";
- Nas três frentes do teatro de operações, ninguém podia alimentar a ilusão de que podia ser ganha militarmente; na Guiné, onde a situação era mais dura, apostou-se muito na estratégia da promoção sócio-económica e da acção psiocossial para ganhar o apoio das populações;
- Sabia-se que "a guerra não tinha solução militar"... O que o smilitares fizeram foi dar tempo (militar) ao tempo dos políticos para encontrar soluções, não-militares, para os conflitos que travávamos, na Guiné, em Angola, em Moçambique... Infelizmente os políticos não o conseguiram, em tempo oportuno...
- As duas coisas mais marcantes da obra (mais do que deste livro, que de resto deve ser lido depois do 1º): afirmação do autor como comandante e como homem, como homem que se sente particularmente atraído pela Guiné, pelas suas gentes e, muito em particular, pelos seus soldados que ele não tem pejo em classificar como os melhores do mundo (***). (LG)

(Continua)
________

Notas de L.G.:

(*) Vd. os três últimos postes anteriores desta série

12 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3442: O Tigre Vadio, o novo livro do nosso camarada Beja Santos (7): A leitura de António Valdemar

12 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3441: O Tigre Vadio, o novo livro do nosso camarada Beja Santos (6): Notícia do lançamento (Lusa) + Fotos (Luís Graça)

11 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3440: O Tigre Vadio, o novo livro do nosso camarada Beja Santos (5): As primeiras imagens do lançamento (V. Briote)

(**) 11 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2429: Lançamento do meu/nosso livro: 6 de Março de 2008, na Sociedade de Geografia, com Lemos Pires e Mário Carvalho (Beja Santos)

(***) Vd. poste de 27 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2002: Blogoterapia (29): O Mário escreve com a mesma teimosia, perseverança, paixão e coragem com que ia a Mato Cão (Luís Graça)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2407: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (14): O falso descanso em Bambadinca

Guiné-Bissau > Região Leste > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 (1968/69) > O Alf Mil Beja Santos, ladeado por dois milícias, de etnia fula: à esquerda, o Albino Amadu Baldé, natural do regulado do Corubal, comandande do Pelotão de Milícias 101, de Missirá; a direita, Indrissa Baldé, soldado do Pel Mil 101. Finete era guarnecida pelo Pel Mil 102. Estas subunidades está sob o comando do Alf Mil Beja Santos. E lá ficaram, agora que o ´Beja Santos e o Pel Caç Nat 52 são transferidos para Bambadinca, em meados de Novembro de 1969.

Foto : © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Depois de um interregno de duas semanas, por causa da quadra natalícia e da festa de Ano Novo, retomamos a publicação da série Operação Macaréu à Vista - Parte II, do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70). O episódio nº 14 foi-me enviado em 12 de Novembro de 2007 (LG):

Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (14):

O DEDO MINDINHO DO FURRIEL PINA

(i) Operação Truta Vivaz com o Pel Caç Nat 54 e a CCAÇ 12


De 14 a 19 de Novembro estou ao serviço de Missirá através do Pel Caç Nat 54 e do Pel Mil 101 que está novamente todo reunido. Com efeito, as duas secções que andavam destacadas regressam a Missirá e, vendo-as chegar a 15, ao alvorecer, interrogo-me se não valeu bem o esforço de me carpir permanentemente em Bambadinca pedindo um contingente compatível com as idas diárias a Mato de Cão, emboscadas, patrulhamentos e um sem número de digressões logísticas e actividades de faxina.

O Alves Correia, [comandante do Pel Caç Nat 54,] veio a 14, quando escurecia e gentes de Madina/Belel fogueavam para dentro do aquartelamento, com um grau de destruição mínima. Trazia instruções do major de Operações para desencadear, no amanhecer de 16, a Operação Truta Vivaz, de colaboração com um grupo de combate da CCAÇ 12. E mostrou-me a ordem de batalha, que me deixou estupefacto: 60 homens iam fazer um patrulhamento ofensivo entre Finete, Sinchã Corubal, São Belchior e Saliquinhé.

De imediato chamei o guia e picador Quebá Soncó, e dei as seguintes sugestões: o Pel Caç Nat 54 encontrar-se-ia com a força da CCAÇ 12 ao amanhecer de 16, em Finete. Seguiriam por Malandim até Gambana, sempre a corta-mato atravessariam o palmeiral de Chicri sobre Mato de Cão e, no caso de não haver quaisquer indícios da presença de gentes de Madina/Belel nas imediações, subiriam até muito perto da antiga tabanca de Sinchã Corubal. A manter-se a falta de indícios, a força em patrulhamento aproveitaria a luz do dia para atravessar o palmeiral junto ao rio de Ganturandim, fazendo o reconhecimento de Iaricunda.

Esclareci o Alves Correia que subir este rio até ficar de frente a Madina fazia correr riscos desaconselháveis para dois pelotões que desconheciam inteiramente o terreno. A única vantagem dessa operação temerária seria a de detectar eventuais novos trilhos, preço que me parecia muito elevado. Sugeria que se reduzissem os riscos emboscando abaixo de Sinchã Corubal, se possível junto de um trilho inimigo, e partindo de manhã cedo para S. Belchior espiolhando as bolanhas até Saliquinhé, em toda a orla do Geba, no intuito de procurar canoas que fizessem a cambança para os Nhabijões.

O Alves Correia aceitou este plano, falei olhos nos olhos com Quebá Soncó, pedindo-lhe para não se desviar um milímetro do que aqui se acordara. A 16, o Pel Caç Nat 54 parte para Finete pelas três da manhã e eu fico a cuidar do quartel com as milícias.

Enquanto decorrem operações de arrumos dos milícias que chegaram, o burrinho vai à fonte de Cancumba e as crianças estão na escola, tenho a minha última conversa com Lânsana. Ele beberrica chá verde enquanto falamos de questões vegetais. Com a sua voz lenta e o seu olhar doce, fala-me dos mangais e as suas palmeiras de azeite, dando como exemplos Mato de Cão e São Belchior.

Respondendo às perguntas que lhe vou fazendo sobre as árvores das florestas, veio comigo até à porta de armas para me falar dos poilões de diferente porte, o tempo que é necessário para um bissilão ficar gigante, mostrou-me o pau-conta e falou do pau-incenso e do pau-veludo, bem como da farroba e do pau-bicho e da calabaceira que existiam para lá de Cancumba, sim, era possível encontrá-las, por exemplo entre Sancorlã e Salá. Lembrou-me também que a paisagem da savana pode ter bambu, cibe, tambacumba e poilão-forro. Quando regressámos ao interior de Missirá, Lânsana falou com Bubacar Baldé, o comandante das milícias em exercício, pedindo-lhe que me mostrasse as árvores da savana quando me trouxesse até Finete.

Arrumo todos estes dados no meu caderninho viajante, anoto os temas que quero ainda desenvolver: paludismo, doença do sono, elefantíase; choros e fanados; culturas do arroz e do amendoim, fundo e mandioca; pesca na bolanha. Fecho o caderno e vou falar com Malã, começando por discretamente lhe devolver o anel de Infali Soncó:
- Régulo, o seu filho Quebá é um valoroso guerreiro, um dia vai suceder-lhe é ele quem tem dignidade para usar este anel. Nunca esquecerei a confiança que depositou em mim e os laços de família que me unirão para todo o sempre aos Soncó.

É então que o régulo começou a exaltar Alá como o Deus misericordioso e me perguntou o que é que eu pensava da sua infinita clemência e do que disse o Profeta. Terei respondido algo como isto:
- Régulo, o Deus que orienta as nossas vidas é o amor. O Corão diz claramente que os fiéis, os judeus e os cristãos e todos aqueles que praticam o bem serão recompensados no Juízo Final. O Corão fala de um Deus revelado a Abrãao e às tribos de Israel, e que não há distinção entre este Deus e o Deus dos muçulmanos. Para quê, então, não aceitar as nossas diferenças cantando glórias a Deus, sem nenhuma intolerância?

Malã continuou a falar no Livro de doutrina e de adoração a Deus, abracei-o e pedi-lhe para irmos pela última vez rezar juntos à mesquita. O dia continuou placidamente, tive tempo para fazer termos de juntada em vários autos, de um Boletim Cultural da Guiné Portuguesa que me foi oferecido em Bafatá, de 1952, li o conto “Éguê Baldé”, de Fausto Duarte, que me impressionou muito pelo drama de uma jovem fula que é vendida a um velho e está louca de dor. Fausto Duarte fala de casos de lepra na tabanca, na vergonha e repugnância de Éguê, no espancamento a que a sujeita o pai e de um régulo corrupto de quem não se pode esperar justiça.

Aproveitei também para ler um pequeno ensaio de autoria do Ruy Cinatti intitulado “Tipos de casas timorenses e um rito de consagração”. A dedicatória é muito bela: “Para o Mário olhar para as casas antes de as habitar... Com um pé no pedal e a mão no coração, Ruy”.

Ele descreve a habitação no sudeste da Ásia, revela as distinções, as fases fundamentais da construção e o que se diz na consagração da casa, que tem uma força poética assombrosa. Dizendo que está a transcrever da língua tetun de timorenses construtores de casas rectangulares, sinto perfeitamente o sopro do poeta Ruy Cinatti:

Em terra umbigo, em terra centro,
Em pedra angular, pátio sagrado,
Terra plana, terra nivelada.
A terra alarga-se, a terra rasga-se ...
Passada a primeira fase, cortados os primeiros prumos,
Depois que tudo correu bem,
Fazer como, fazer de que modo?
Ir pedir de novo, suplicar novamente,
Pai Deus, Mãe Deus,

Avós Deus, Impérios Deus,
Agora mesmo fazer como, agir de que maneira?


Isto pode ser um rito de consagração timorense, mas está aqui o halo místico e religioso de um dos maiores poetas do nosso tempo. Fiz a escala de reforços, conversei com os sentinelas, escrevi aerogramas, dormi como um justo.

A Op Truta Vivaz acabou bem, sem encontros nem desencontros, não se deu pela presença do inimigo, as tropas do Alves Correia vêm ensonadas, aproveito para levar as milícias até à ponte do rio Gambiel, despeço-me dos mais lindos palmeirais que já vi em toda a minha vida.

No dia seguinte, vistorio com o Alves Correia tudo quanto está no depósito de víveres, examinamos as metralhadoras e os morteiros. Cá fora, à volta do quartel, depois em Cancumba, em Morocunda e junto a Mato de Madeira conferimos as zonas minadas e armadilhadas pelo Reis sapador. E ainda fomos à Aldeia de Cuor, visitámos as ruínas, mostrei-lhe os carris e as vagonetas ferrugentas.

(ii) Uma despedida emocionada de Missirá e de Finete

Chegou a hora de partir e aproveito a coluna que vai buscar arroz a Bambadinca. Junto todas as minhas forças para esconder a emoção da despedida. O meu espólio foi levado a 14, por Ussumane Baldé, guarda-costas em exercício. Uma multidão silenciosa aguarda-me na porta de armas. Prometo voltar em breve, um Soncó volta sempre. Peço para ir a pé, quero despedir-me do Cuor captando-o em todo o seu esplendor: paro em Cansonco junto da destilaria do açoriano, olho os ferros dos alambiques e os despojos da maquinaria apodrecida, o que resta das paredes do que terá sido uma bela construção de carácter colonial; na estrada para Canturé, observo o caminho que dá para Gã Joaquim, depois Gã Gémeos, vejo os laranjais, os imensos morros de baga-baga, os limoeiros e os cajueiros em flor, em Canturé ajoelho-me e rezo ao pé dos destroços do 404, desfeito pela mina anti-carro de 16 de Outubro, mais adiante desço a ladeira íngreme de Finete, cumprimento o chefe de tabanca, os homens e as mulheres grandes, visito Bacari Soncó e recordo-lhe que ele é um irmão muito amado, abraço e beijo o meu querido Abudu Cassamá.

À saída do aquartelamento, procuro reter tudo, como se a vista pudesse empapar-se como um mata-borrão e reter a panorâmica entre Santa Helena, Ponta Nova, até Malandim, só falta a bola de fogo do fim de dia tropical. Junto ao Geba, antes de embarcar na canoa e me despedir de Mufali Iafai, olho pela última vez o meu Cuor, sinto que algumas lágrimas me bailam nos olhos. Volto as costas, subo a rampa de Bambadinca, começa neste instante uma nova etapa na minha vida.


(iii) Uma nova (!) vida... Bambadinca, sede do BCAÇ 2852 (1968/70)


A minha habituação não vai ser fácil. Fiquei num quarto de quatro camas, os outroslocatários em permanência são o Abel [foto à esquerda] e o Moreira [foto à direita, a seguir, ladeado pelo Reis e pelo Levezinho], ambos da CCAÇ 12. Desenvolverei com eles, nos próximos dez meses, uma excelente relação. Mas tudo aquilo me confunde, a gritaria dos corredores, as portas que se abrem e fecham subitamente, o estar longe dos soldados, o ter confirmado à chegada as diferentes condenações sem apelo nem agravo que nos esperam:
- ir ás tabancas fazer psico;
- montar segurança nos Nhabijões, onde está uma equipa coordenada pelo alferes Carlão;
- passar noites em desespero numa alfurja que dá pelo nome dos abrigos do rio Udunduma;
- fazer emboscadas na missão do sono, no Bambadincazinho;
- ir levar e buscar correio a Bafatá;
- patrulhar a estrada entre o rio Udunduma e Amedalai, patrulhando também junto ao Geba para dissuadir as cambanças dos que vêm de Madina;
- fazer colunas ao Xitole;
- colaborar em todas as operações dentro do sector, com forte incidência nas regiões do Xime e Mansambo...

Várias vezes o Queta Baldé termina as reuniões que temos para recordar ao múltiplos episódios que vivemos juntos desabafando:
-Vínhamos à espera de encontrar descanso em Bambadinca, estávamos estafados, logo ficámos rebentados, nunca mais houve um dia de descanso, a montar segurança, a ir a Madina Bonco, aquele rio Udunduma era o Inferno. Quero que o nosso alfero saiba que ficámos bem arrependidos por ter pedido para ir para Bambadinca!”.

(iv) Na estrada para o Xime, o furriel Pina mete o dedo na G3


A 20, estreei-me como oficial de dia e à noite fui montar uma emboscada para a estrada do Xime. No dia seguinte escrevi à Cristina:
- Tu não vais acreditar neste episódio burlesco: saímos depois do jantar para uma emboscada decidida pelo major de Operações, a caminho do Udunduma, em ataque anterior a Bambadinca foi aqui que os rebeldes puseram os canhões sem recuo e morteiros. Estava uma noite serena, saí com duas secções, acompanhou-me o Pina, o Pires tem agora trabalho numa terra aqui perto chamada Sinchã Mamajai. Teríamos feito um quilómetro por um caminho saibroso, e subitamente um grito medonho atravessou a noite, logo me apercebi que não era nem emboscada nem mina. Fui ao local da gritaria e dei com o Pina estatelado no chão a gritar com um dedo mínimo dentro do cano da espingarda. Tentei tirar-lhe o dedo, impossível. Ele escorregara no saibro e acontecera aquela coisa impensável. Imagina o que é regressar a Bambadinca com o Pina lívido, um soldado a segurar-lhe a arma, ele a gemer com o seu dedo esfanicado lá dentro. À cautela, retirei-lhe o carregador para evitar acidentes. Fomos para a enfermaria, ele sentado com a arma em cima da marquesa, com braço estendido. O David ficou embasbacado, o dedo ia inchando, todos os esforços para lhe retirar o dedo resultavam infrutíferos. Em dado momento, o David, com a testa perlada de suor, chegou a admitir a hipótese de lhe cortar o dedo e aí o Pina gritou que não, preferia ter todas as dores necessárias até se encontrar uma solução para ficar com o dedo inteiro. O Reis sapador foi buscar varetas, começou a esgravatar à volta do tapa-chamas, o Pina deu um urro, tal era o sofrimento, o Reis enfureceu-se e enfiou-lhe um tabefe, não sei que é que ele se julgava, se feiticeiro ou a desmontar uma mina, pedi ao David para lhe dar uma injecção ao Pina que o deixasse a dormir... Lembrei-me então que tínhamos desempanadores e pedi para falar com o Alexandre. O primeiro cabo desempanador Alexandre conhecia perfeitamente Missirá, dizendo que sempre que a visitara fora recebido à morteirada. Foi ele quem conseguiu desatarraxar o tapa-chamas, o dedo tinha a falangeta quebrada, com fractura exposta, lá se deu um calmante ao Pina (que foi na manhã seguinte evacuado para Bissau) e eu regressei para os mosquitos na emboscada (2).

(v) O novo médico do batalhão, Joaquim Vidal Saraiva

Os tempos que vêm são de duros para me aclimatar a esta atmosfera de sede de batalhão, viver aqui em permanência. Na manhã seguinte, volto a Bafatá, por causa do correio, compro na Casa Teixeira uma História da Filosofia, de Nicola Abbagnano, dos pré-socráticos a Aristóteles.


Cap do romance policial A Mulher Fantasma, de W William Irish. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vamprio, 38). Capa de Cândido Costa Pinto.


Voltamos por Galomaro para entregar caixas de armas. De Bambadinca vou a Afiá buscar doentes que vão ser vistos na enfermaria pelo David. Começou a minha vida nova, à tarde vou para os Nhabijões, à noite novamente para uma emboscada. O correio que recebo é cada vez mais doloroso. Amanhã volto a Bafatá e vou buscar a procuração para o casamento civil.

Ao almoço, na messe de oficiais, Jovelino Corte Real [, comdante do BCAÇ 2852,] apresenta-nos o novo médico, Joaquim Vidal Saraiva, que veio de Guileje. O David Payne parte para Bissau, manteremos sempre o contacto, ele irá ajudar-me imenso quando em Janeiro eu passar uma semana a dormir graças ao Vesperax e outras drogas.

O Vidal Saraiva (3) vai ser um grande amigo, estou a vê-lo desesperado a tentar salvar Uam Sambu, ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970.

(vi) O Arco do Triunfo, de Erich Maria Remarque


Estou empanzinado de bons policiais. Primeiro, li A mulher fantasma, de William Irish. É hoje um clássico: um casal à beira da rotura, o marido sai de casa depois de uma discussão conjugal, janta e vai a um espectáculo de variedades com uma estranha que encontrara num bar. Quando regressa a casa, a mulher fora assassinada, ele é preso, apresenta um álibi que ninguém confirma, sim, ninguém se recorda se ele estava acompanhado, no bar, no jantar, no espectáculo de variedades. Condenado à morte, recorre à ajuda de um amigo para procurar desesperadamente aquela mulher e vão suceder-se mais mortes. Um polícia desconfiado reabre o processo e irá prender o verdadeiro criminoso. Scott Henderson, o falso assassino, é inesquecível pela vontade indómita em que se esclareça a verdade. Os capítulos começam sempre assim: O centésimo quinquagésimo dia antes da execução, o vigésimo primeiro dia antes da execução, um dia após o dia da execução... Um suspense bem equilibrado, perfis psicológicos bem desenhados, uma atmosfera de angústia devidamente condimentada.

O Caso Benson, de S.S. Van Dine, traz a apresentação de Philo Vance, esse superculto e aristocrático detective. Van Dine excede-se no barroquismo do seu retrato, depois de exaltar o método analítico e interpretativo que ele aplicou nas investigações criminais: coleccionador sofisticado de arte, rodeado de primitivos italianos, de Cézanne e Matisse, desenhos de Miguel Ângelo e Picasso, gravuras chinesas, ânforas romanas, vasos coríntios, estatuetas Ming, marfins e tesouros egípcios. Vance pratica desporto, desde esgrima ao golfe. É rico, bem parecido, viajado, é inteligente e quer descobrir criminosos.

O Caso Benson foi uma estreia feliz, com Philo Vance a decifrar a estatura do assassino de Alvin Benson, a não dar importância a sinais que apontavam para uma mulher que visitara Alvin na noite do homicídio, induzindo o criminoso a estar tranquilo até à revelação final. Sempre gostei muito deste Philo Vance, às vezes canastrão, e tenho já aqui outros livros dele para me deliciar.

Capa do romance de Ercih Maria remarque, Arco de Triunfo. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Dois Mundos, 6). Capa de Bernardo Marques.


Mas o prato de substância da semana foi o Arco do Triunfo, de Erich Maria Remarque. Estamos nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, vamos conhecer o drama dos refugiados que vivem em Paris. Ravic é um médico alemão que conseguiu fugir às garras da Gestapo e sobretudo ao seu algoz, Haake. O romance começa com o encontro entre Ravic e Joan Madou, haverá uma história de amor e uma separação triste. Ravic descobre Haake em Paris e mata-o. Joan é morta numa cena de ciúmes, por um apaixonado de ocasião. Vem a guerra, os refugiados, políticos e judeus, vão todos para um campo de concentração francês. São páginas memoráveis, registo uma frase que ainda hoje me persegue: “O destino nunca é mais forte do que a serena coragem com que o enfrentamos”.

Antes de entrar no camião que o leva para o campo de concentração, Ravic despede-se do seu amigo Boris Morozow e dizem: “ - Encontrá-lo-ei, depois da guerra, no Fouquet. - De que lado? Campos Elíseos ou George V? - George V”. E separam-se. E assim termina o romance: “ O veiculo seguiu ao longo da Avenida Wagram, ingressando na Praça da Étoile. Não havia luz em parte alguma. A praça estava imersa em trevas. Tão escuro que nem se via o Arco do Triunfo”.

Deitado na minha cama, na minha nova morada, fecho o livro e recordo o filme com Charles Boyer a interpretar Ravic, Ingrid Bergman esplendorosa em Joan Madou e Charles Laughton quase sublime no tenebroso carrasco Haake. Mal sabia eu que dentro de dias vou ver cinema em Bambadinca, uma Ford T a cheirar a gasóleo, a resfolegar ruidosamente a correia de transmissão. Há uma bobine que se projecta sobre uma tela, ouvem-se muitos tiros e há muita acção para divertir militares na guerra. O primeiro filme chamar-se-á Hércules contra Ciclope, com Steve Reeves no protagonista.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 14 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2349: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (13): Na despedida de Missirá, em que me tornei um Soncó

(2) O Fur Mil Pina também integrou, posteriormente, o Pel Caç Nat 63, na altura comandado pelo Alf Mil Jorge Cabral.

(3) Contacto actual:

JOAQUIM VIDAL SARAIVA, Dr. (ex-Alf Mil Médico, CCS do BCAÇ 2852)
Esplanada Fernando Ermida,
284405-335 S. FÉLIX DA MARINHA
Telf 227810206 / 227624167

Vd. post de 21 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1773: Lista do pessoal de Bambadinca (1968/71) (Letras C / Z) (Humberto Reis)

No nosso blogue temos, pelo menos, duas referências ao Alf Mil Médico Saraiva (de quem me lembro bastante bem, mas que não sabia que tinha vindo de Guileje; fizemos juntos a Op Tigre Vadio):

1 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio) (Luís Graça)

29 de Junho de 2006

Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

(...) Nota de L.G.:

(...) O médico da CCS do BCAÇ 2852 (que teve vários, entre eles o David Payne Rodrigues Pereira, psiquiatra), na altura, o Alf Mil médico Saraiva (que reside em Vila Nova de Gaia, segundo preciosa informação do nosso camarada Humberto Reis), veio no helicóptero de reabastecimento com o Beja Santos, para prestar assistência médica aos casos mais graves de intoxicação (devido ao ataque de abelhas) e de desidratação... Acabou por ficar em terra uma vez o que o helicóptero, danificado, já não voltou... Deixou o Beja Santos no Xime e zarpou para Bissau...

O Dr. Saraiva acabou por aguentar, de pé firme, o resto do dia e toda a noite e toda a manhã, acompanhando-nos na nossa extremamente penosa vaigem de regresso, até ao aquartelamento do Enxalé. Onde quer que ele esteja, daqui vai um abraço para ele. Era muito raro um médico ir para o mato. O mesmo acontecendo com os furriéis enfermeiros...

O Zé Luís Vacas de Carvalho, que foi comandante, em Bambadinca, do Pelotão Daimler 2046, lembra-se bem dele: "Estivémos com ele`há 2 anos em Ferreira do Zêzere. Penso que é médico (ainda) em Gaia. Lembro-me uma vez que o Piça, entornou um jipe cheio de gaiatos e, como eu queria ir para medicina, estive a ajudá-lo a fazer curativos"... Se alguém souber do seu paradeiro, que entre em contacto connosco... Gostaríamos de conhecer a sua versão dos acontecimentos: por certo que nunca mais terá esquecido a Op Tigre Vadio... (LG)