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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7067: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (34): Em Teixeira Pinto, círculo quase fatal

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 29 de Setembro de 2010:

Caro Amigo Carlos
Mais uma passagem de “Viagem…” que por certo não aconteceu a muitos.
Hoje, quando recordada dá vontade de rir… mas à época, foi um susto do “caraças”!!
Aqui vai e quem ler, se se imaginar no contexto, também talvez consiga pelo menos sorrir, que é do que quase todos andamos a precisar.

Um abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (34)

Teixeira Pinto - Círculo quase fatal

Nas bastantes operações que fazíamos na zona Oeste da estrada Teixeira Pinto - Cacheu (que denomino por inclusão, Balanguerês), as coisas nunca eram fáceis e por vezes tornavam-se bastante complicadas, desde logo pelo tipo de matas onde a dada altura éramos forçados a nos embrenhar, na tentativa de atingirmos os objectivos que nos tinham sido determinados e depois, por ser território de constantes movimentações inimigas.

Numa dessas ocasiões, o nosso objectivo era uma bolanha, onde o Comando supunha (sabia?) haver cultivo IN e como tal presença de população, guardada por elementos armados e nas proximidades eventualmente um acampamento.

Em Teixeira Pinto, como normalmente acontecia nessas ocasiões consideradas mais problemáticas, estavam meios aéreos de prevenção e Comando.

Depois de apeados, avançamos, os 1.º e 2.º GRCOMB, embrenhando-nos nas matas com os cuidados usuais, na esperança de não sermos detectados precocemente e emboscados.

Segundo dizíamos, caso não acontecesse nada, tínhamos que trazer ao menos uma mão cheia de vianda especial daquela área como prova de que lá tínhamos ido, não se desse o caso de termos que repetir a proeza logo de seguida, como já tinha acontecido por uma vez!!

O objectivo era na certa importante para o Comando já que o DO começou a breve trecho a dar sinal de si e... de nós, sobrevoando a zona intervaladamente em círculos, o que obrigou os banana a ficarem com perda de sinal ou tal interferência que não permitiam comunicação perceptível.

Pela tarde começou a dança e que dança, ao som de graves, agudos e secos.

O DO que por aquelas bandas esvoaçava, aparece e começa os círculos de águia apertados e a baixa altitude.

Ao meu lado, como de outras vezes, calha estar o Cancelo com o 60. Peço-lho e sigo com o olhar a granada que lhe meti pelas goelas e que ele vomitou na perfeição e trajectória prevista, próxima da vertical. Entra-me a águia no campo direccionado de visão, fazendo o seu círculo de observação alado e projéctil vomitado, aproximam-se em rota de colisão. Os meus olhos aguçam-se e ficam em bico, fixos no projéctil, todo o corpo me fica tenso, não posso fazer nada, ou por outra, posso fechar os olhos e por as mãos na cabeça para a proteger de destroços. Não o quero fazer e não o faço. Deus queira que não, rezo. Os sons da guerra parecem ter desaparecido. O olhar continua fixo. O zénite da trajectória do projéctil ocorre a dois, no máximo três metros da barriga do Dornier que continua o seu voo, indiferente, felizmente.

Nos meus ouvidos o barulho da guerra recomeça.

Se o piloto ou algum dos ocupantes se aperceberam do que se passou, devem ter apanhado um cagaço daqueles… pior do que o meu !

Esta cena, aconteceu pela tarde de 23 de Setembro 1971, na Península do Balanguerês (OP Açaimo 65).
Luís Faria
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7032: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (33): Teixeira Pinto - Perdidos (2)

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7032: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (33): Teixeira Pinto - Perdidos (2)

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 22 de Setembro de 2010:

Meu Amigo Carlos Vinhal
Como ao que me apercebo, recuperaste todas as forças (será?) e mais algumas, cá te mando mais um troçozito da minha ”Viagem…”, que não foi antes, nem acoplado ao anterior, por querer inserir a história transcrita por um dos actores na época, em documento que… nunca mais me chega às mãos.

Assim cá vai e depois… se o doc acabar por chegar (tem que chegar, só não sei quando… também o darei a conhecer.

Vistas bem as coisas, naquela vida e idade, um “gajo” ao “mínimo” pretexto aproveitava para… beber uns copos, não seria? Se calhar nem seria preciso outro pretexto do que… estar lá naquela “vidinha” !!

Um abraço para os que vão tendo a paciência de me ir lendo.
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (33)

Teixeira Pinto – Perdidos (2)

Estávamos em retirada, depois de um confronto nas matas do Balanguerez. (vd. Poste 6990*)

O temporal era de fazer medo e à forte chuvada que se misturava com o suor peganhento que nos toldava a vista, juntavam-se relâmpagos que, já a anoitecer, começavam a fazer as matas dançar ao nosso olhar, confundindo-nos as definições e as distâncias do observado.

Com azimute pré-definido, a “bicha de pirilau” avança como usual, ziguezagueando em corta-mato para local escolhido, junto à estrada antiga Teixeira Pinto – Cacheu, onde emboscará para passar a noite. No trajecto damo-nos conta que a ultima meia dúzia de Rapazes tinham ficado para trás, perdidos (vd. P-6990*).

Após uma noite tenebrosa de dilúvio e mordidelas que mais pareciam queimadelas - provocadas por aquela mosquitada pequenina e negra que se entranhava por tudo o que era sítio, se embrenhava pelos cabelos queimando-nos o couro cabeludo e torrando-nos a paciência - o dealbar encontra-me metido na valeta, com água até ao peito e sem que tenha conseguido pregar olho, devido ao aguaceiro caído dos céus e especialmente à mosquitada que não havia meio de se afogar.

Era altura de fazer os tiros de sinalização, a ver se os “perdidos” respondiam. Assim foi feito… respondem de pronto e logo começa a aparecer, um a um, a “Jericada” (como dizia o Castro), saídos da orla da mata. Por fim íamos ficar a saber o que se tinha passado mas, antes havia que levantar arraiais e procurar outro poiso para emboscar… não fosse o diabo tecê-las.

Depois de, na certa, terem ouvido daquelas bocas ”foleiras” em titulo de comentários jocosos, - demonstrativas de proximidade, afinidade e de afecto, - usuais por aquelas paragens e situações, começam a contar, mais coisa menos coisa, que “após uma breve paragem, o bi-grupo recomeça o andamento e o Barros (Alf), que ia nos últimos lugares, pára por momentos para apertar as botas, mijar ou o “car… que o fo…”, sem avisar quem ia à sua frente. Claro que os que íamos atrás também parámos!”…

Já ao anoitecer e com aquele temporal, foi o suficiente para ficarem isolados. Foram seguindo os tiros de localização, mas não responderam por receio que o IN percebesse eventualmente o que se passava.

Continuam : “ouvíamos os tiros e não percebíamos porque não respondíamos e às tantas o Lobo (4.º GCOMB) começa a magicar que o Barros era preto da Guiné e se calhar tinha-se feito perder de propósito (!?) para se poder passar para o outro lado, naquela ocasião em que eles (IN) andavam ali por perto. “

Teixeira Pinto - Sold.Lobo (4.º GCOMB) com MG

Diz o Lobo: “Às tantas parámos e ele (Barros) pega no mapa e na bússola e quer que eu fique com aquilo. Digo-lhe que não percebo nada de mapas nem de bússolas, que não aceito e começo a pensar que afinal o fdp sempre se quer passar e vai-nos deixar aqui no meio da mata. Não, não nos vais f…, não vais conseguir… antes eu mando-te p´ró ca… e logo atrás dele, não o larguei da ponta da arma.”

Esclarece o Barros (Alf do 2. º GCOMB) que foram seguindo os sinais, mas era perigoso responder e que a dada altura começou a pensar : ” F… se somos apanhados… os fdp percebem que sou graduado e são capazes de me limpar o coiro. “

Prossegue: “então quis dar o mapa e a bússola ao Lobo (instrumentos usados pelos graduados) e assim, caso acontecesse, ele até beneficiaria e eu teria mais hipóteses. Mas… vi a reacção, senti o motivo da recusa e disse cá para mim, que se f…., o que tiver que ser… será. Notei que o pessoal tinha ficado um tanto inquieto e apreensivo pelo que lhes expliquei o que me tinha levado a propor aquilo. Ficaram então tranquilos achando até que devia ser levada avante. Não, não aceitei e a progressão continuou até à orla da mata onde passámos aquela tenebrosa noite emboscados, até que ouvimos a sinalização ao amanhecer. Estávamos nas imediações, respondemos.”

(Esta situação, à altura preocupante, dá agora azo a momentos hilariantes quando é recontada pelos intervenientes)

Novamente juntos faltava chegar as viaturas para nos levarem a porto mais seguro…Teixeira Pinto e à nossa bela vivenda, onde certamente se iria fazer uma “cerimónia” de truz.

Luís Faria
__________

Nota de CV:

(*) Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6990: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (32): Teixeira Pinto - Perdidos (1)

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6990: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (32): Teixeira Pinto - Perdidos (1)

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 11 de Setembro de 2010:

Amigo Vinhal
Espero que as férias tenham sido boas e retemperadoras.

Tendo andado um pouco intermitente nestas lides, só agora segue mais um pouco de “Viagem…”

Um abraço para ti e outro para a “Rapaziada” que, ao que leio, andou um tanto exaltada, diga-se de passagem e a meu ver, com razão. Esta de ser... ficcionado... e tentar emendar o que não tem emenda…(!?) é chamar-nos de parvos e como tal um insulto em cima de outro!

Bem, mas… UM SORRISO… vá lá…! A vida já nos é curta e precisamos de a aproveitar no seu último terço, nos bons momentos e não deixar que os maus nos abalem em demasia. Contem até dez… antes de ferver…!!

Vá… SORRIAM… APRECIEM… VIVAM!

Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (32)

Saída (?) da mata - Distâncias na progressão, uma constante


Teixeira Pinto – Perdidos (1)

De novo em “casa” (Teixeira Pinto) e no ambiente a que já nos habituáramos, não houve necessidade de adaptação e as saídas ofensivas começaram a processar-se quase de imediato, levando-nos de novo a calcorrear de olhos e sentidos bem apurados, zonas difíceis mas também de beleza. Beleza que em várias ocasiões era anulada e transformada mesmo em inferno, por força das fortes chuvadas e trovoadas de fazer medo, que obscureciam a mata e que, especialmente conjugadas na noite com a luminosidade ofuscante e intervalada dos relampejos, punham árvores e arbustos a dançar em coreografias enganosas, que nos obrigavam quase em permanência a limpar a cara da água misturada com suor que nos alagava toldando-nos a vista, tentando descortinar o real num horizonte visual de metros, já que sabíamos por experiência, que não seriamos eventualmente os únicos que por aquelas matas andaria.

Numa dessas ocasiões de intempérie, tivemos um recontro com “indesejáveis de um raio” lá pelos meios da tarde e ao que recordo, evacuados os feridos e queimadas umas palhotas na saída, passado um tempo o temporal agravou-se de modo a meter medo, proporcionando-nos um quase novo encontro fatal com outro raio, desta vez ofuscante e eléctrico, que quase em simultâneo ao ribombo, escachou na certa uma árvore ali próximo onde tínhamos acabado de fazer um pequeno descanso.

Por o final da tarde se aproximar, as condições passarem a péssimas e a visibilidade começar a ser cada vez mais limitada, foi resolvido passar a noite emboscando em local menos perigoso. Assim, antecipámos o regresso à estrada, onde iríamos ser recolhidos às primeiras horas da manhã e onde acabaríamos por chegar já noite feita, após marcha penosa e demorada, como habitual a corta-mato, intervalada com paragens expectantes.

Teixeira Pinto - Zona (aproximada) de actuação da CCaç 2791

Pelo caminho e já quase ao anoitecer, num dos controlos de progressão da rapaziada, que habitualmente fazíamos (um dos graduados parava observando a fila passar), foi detectada a falta da última meia-dúzia !

O Pessoal pára,… há que chamar e aguardar...! Nada de resposta. O Alf Barros e o Augusto (meu 2.º GCOMB), o Lobo e o Sampaio (4 º GCOMB) e mais um ou dois que não recordo o nome, tinham ficado para trás sem que alguém se apercebesse (?!)… Não houve aviso (?!)… que merdice… Nunca havia acontecido! E logo àquela hora e com aquele temporal!

Os Furriéis reúnem com o Alf Gaspar (4.º GCOMB) que é de opinião que o Castro e eu os fôssemos procurar com homens nossos. Não concordamos, já que as probabilidades de os encontrar no meio daquele temporal e àquela hora seriam nulas ou quase, e o risco de nos enfrentarmos inadvertidamente ou de também nos perdermos era sério considerar. Achamos que tiros de orientação era o que devíamos fazer e assim foi feito

No último controlo relativamente pouco tempo atrás, tudo estava bem, pelo que não deveriam estar muito longe . Assim, resolvemos dar tiros (três, julgo) de sinalização e aguardar um tempo. Nada de resposta nem de aparecer. Com receio de termos denunciado ao IN (eventualmente não andaria muito longe) a nossa posição, decidimos recomeçar a avançar vagarosamente em direcção à estrada que ainda estava um tanto longe, ziguezagueando com azimute definido e fazendo intervaladamente pausas e séries de tiros… à mesma sem respostas. A noite apanhou-nos nessas andanças e os tiros sinalizadores passaram a ser dirigidos para o chão, de modo a que a chama não servisse de localização visual.

Havia apreensão e preocupação pelo que teria acontecido. Por que raio se perderam?! Ainda por cima o Barros era Alferes preto, da Guiné! Será que não ouvem os tiros, ou foram apanhados à mão?

Curiosamente que essa última hipótese não considerei. Achava muito improvável que isso tivesse acontecido com aqueles Homens… sem luta brava e como tal audível. E nada se ouviu. Não, na certa não responderam para não serem detectados, mas sabiam para onde nos dirigíamos. O Barros era conhecedor do nosso objectivo, tinha o mapa, a bússola e mais que capacidade para ultrapassar a situação, para além de estar bem acompanhado quer pelo tipo de homens a seu lado, quer pelo armamento de que dispunham. Há que esperar e confiar, pensei. Em última análise, caso não aparecessem, ao raiar do dia bateríamos a zona em sua procura. A última sinalização é feita um pouco antes chegarmos ao local de emboscarmos para passar a noite.

Uma noite de certa apreensão, tormentosa e de insónia. Ao despontar da claridade é dada mais uma serie de sinalização… a resposta vem de imediato e de ao pé… momentos depois chegam as “vedetas” para contar a estória…Tinham passado a noite emboscando ali perto.

Antes de ouvirmos o relato do que se passara, o bi-grupo por segurança muda de poiso e embosca de novo, não vá o “diabo tecê-las”. “O filme” virá depois.

Mais um par de horas de espera vigilante e as viaturas levar-nos-ão a Teixeira Pinto, onde na certa irá ser feita uma bem merecida “cerimónia” de caixão à cova.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6783: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (31): De volta à natureza

domingo, 25 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6783: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (31): De volta à natureza

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 24 de Julho de 2010:

Mais um troço de “Viagem…” que fecha um pequeno ciclo inesperado e nos leva a um recomeço.

A “Velhice” está mais próxima!

Um abraço e boas férias
Luís Faria



Viagem à volta das minhas memórias (31)

De volta à Natureza


“O que é bom depressa acaba” e assim, a 19 Agosto de 1971 após vinte dias de “férias”, recolhidas as trouxas e montados nas viaturas, os 2.º e 4.º GCOMB da “FORÇA” metem-se à estrada de regresso a Teixeira Pinto, de onde tínhamos saído para ajudar numa “guerra“ na Cidade, que me apercebi não aconteceu e ainda bem. O 1.º GCOMB tem sorte e ficará por aquelas bandas por mais uns dias em férias, até final do mês.

A fita de asfalto que se estendia até João Landim vai ficando para trás, abrindo acesso às pontas das já saudades de Bissau e daqueles dias diferentes que passamos, aproximando-nos da travessia do Mansoa na jangada, o que me levava sempre a uma certa sensação de apreensão, não só pela travessia em si como pela noção adquirida de que, para além do rio… recomeçava de novo a guerra.

No entretanto de embarcar e não embarcar para a travessia, uma cervejola na “barraca de apoio ao sedento” era bem vinda enquanto se apreciavam mais ou menos distraidamente as manobras de acostagem, de descarga e de carga ou se mirava aquele africano idoso ali costumeiro (das poucas vezes que por lá passei) que teria sido guia, com o peito cravejado de caricas e pequenas chapas como se medalhas fossem. Talvez… medalhas da turbulência menos feliz da sua vida?!

Por lá e à altura, paravam elementos da “Pica na Burra” não recordo se em serviço ou não, com quem trocava dois dedos de conversa. Mais tarde tive como companheiro de trabalho um dos que “Picavam a Burra”, o Carlos Ramalho, grande amigo, da Amareleja (terra mais quente e de melhor e mais forte “pinga” cá do nosso Jardim) com quem há já uns anos não contacto e que me traz à lembrança uma cena por que passei num almoço em casa de seus Pais, nessa terra de canícula e que passo a contar, como intervalo na narrativa do nosso regresso a Teixeira Pinto!!

João Landim > Elementos da CCAÇ 2791

João Landim > População aguarga travessia

Pica na Burra

Família e “convidado” (eu) sentam-se nos lugares destinados em redor da mesa . Na frente de cada um e para além dos talheres e pratos estão dois copos de igual desenho mas de diferentes alturas, julguei eu para vinho e o pequenito para licor ou digestivo. Começam a servir o vinho pelo ”convidado” e o néctar jorra para o copo pequeno. Fico “espantado” (minha Mãe, quando ouvia os filhos empregar este termo dizia-nos: ”os cavalos é que se espantam “!!!), quero então dizer surpreso e pergunto se estão a “caçoar” comigo, já que sabem que sou nortenho, bom rapaz e com a tropa feita!!! Riem-se, acham piada e explicam-me ser esse o costume, para que não se consiga beber de “golada”, já que aquele vinho tinha alto teor de álcool, devendo ser bebido gole a gole e assim intervalado com a comida ou água, pelo menos enquanto o copito ficava de novo cheio. Caso contrário seria fácil não nos conseguirmos levantar da cadeira no final da refeição!!! Era bem verdade!!!

Acabado o intervalo (que espero vos tenha sido profícuo (?!) e montado de novo nas asas de memórias mais antigas, regresso à coluna auto da 2791 que parceladamente atravessa o Mansoa na jangada cordada e reagrupa na outra banda, reiniciando depois a corrida que nos leva novamente a Teixeira Pinto, sem qualquer problema.

“Filhos pródigos(?!) a casa tornam” e por lá ficamos retomando logo de seguida, a 22 de Agosto, as nossas andanças pelas matas do Balanguerês e do Burné já vezes sem conta calcorreadas e bem, retomando o “estilo de vida” a que a estadia na grande cidade não deu tempo a nos desabituar!

Assim a vida regressa ao seu ritmo “normal e natural“ e os dias volto-os a viver um a um até à altura em que marchamos para Capó, onde a 25Out71 começa a ser construído um acampamento no meio de nenhures, feito de terra, paus e folhas de palmeira (palmeidur!?) que irá servir de base aos 3 GCOMB da “FORÇA” reforçada com um da CCaç 3308 (que não recordo, mas consta dos apontamentos) e a cerca de cinco centenas de trabalhadores nativos.

Nesse “cú de judas” no meio de nenhures e onde só podíamos contar connosco, iríamos passar cerca de mês e meio em condições mais que precárias e de perigo, obrigando-nos a uma actuação preventiva muito séria e intensa onde o facilitismo podia ser fatal.

Até lá, fizemos dezasseis operações ofensivas, intervaladas como era normal por descansos de trinta e seis ou quarenta e oito horas, por vezes vinte e quatro ou nem tanto. Intervenções problemáticas e muitas vezes difíceis, em que algumas provocaram dor, sangue e morte, frustração e até desejos de vingança (por que não dizê-lo?) que se combatiam com frieza, calma, persuasão e se necessário com autoridade!

“Por uma Guiné melhor” > Teixeira Pinto

Foram anos complicados e difíceis esses, em que dezenas de milhar de Camaradas de Armas vivemos a nossa juventude em defesa do que à altura era ainda “Pedaço de uma Pátria” onde a Bandeira Portuguesa flamejava, ondulando ao sabor dos ventos da História que, sem a grande maioria de nós saber ou aperceber, se encontrariam já em subtil mudança.

Pedaços de vidas guardados bem fundo nos nossos seres, que só a morte irá libertar.

Luís Faria
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6700: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (30): Bissau, Paraíso na guerra

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6700: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (30): Bissau, Paraíso na guerra

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 10 de Maio de 2010:

Amigo Vinhal
Saúde boa?

O mar da vida tem andado meio encapelado e cavalgar-lhe as ondas obriga a concentração de excepção, por vezes a gestão à hora de tempo e disposição.

Como compromissos são compromissos e até ver sempre gostei e os soube cumprir, cá te mando mais um troço de “Viagem …” - que me continua a levar àquela terra que, com as suas contradições, faz parte única na minha vida - que espero possa merecer atenção dos Tertulianos.

Um grande abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (30)

Bissau – Paraíso na guerra


As “férias” que felizmente nos tinham sido impostas nesta espécie de “capital mundana” iam decorrendo sem sobressaltos inesperados permitindo-me(nos) usufruir da possibilidade de viver uns dias, regendo-nos por parâmetros diferentes mas bem melhores, dos a que até ali estávamos habituados por força de circunstâncias várias.

Na verdade e talvez devido às situações intensas por que tínhamos passado durante a quase dúzia de meses antecedentes, a nossa maior preocupação por aquelas latitudes não era de facto a possibilidade de confrontos belicistas na cidade e antes o “asneirar” em termos de RDMs e afins ou em conflitos escusados e eventualmente puníveis, o que era de certo modo fácil de poder acontecer, bastando para isso uma boca menos própria na altura errada, quem sabe uma falta de “palada” a um qualquer guerreiro combatente de gabinete com patente superior - por norma os mais achacados a gostar de demonstrar a sua força, valor e valentia - que estivesse maldisposto.

Nas digressões “folgosas” e especialmente para o Pessoal fardado, o comportamento e o atavio também eram levados em conta, não fossem os amigos PMs implicar e vir a criar problemas escusados e “sacrifícios” inúteis e indesejados.

Em suma, o lema era tentar passar aquelas “férias” sem dar azo a eventuais punições coartadoras, cumprir com o rigor necessário as missões atribuídas e… gozar o mais possível a estadia que sabíamos ser “sol de pouca dura”!

Os dias iam-se esgotando, as folgas foram sendo aproveitadas e vividas mais ou menos intensamente em conformidade com as ofertas que a cidade nos proporcionava, as disponibilidades e a disposição de cada um.

Desses tempos recordo o cirandar pela cidade, de ”cu alçado” ou apeado, retendo imagens e situações que, na sua grande maioria talvez por não me terem marcado (?) suficientemente, se foram esbatendo e esfumando com o passar dos anos.

Recordo o ir jantar ao “Pelicano” com uns compinchas e já com uns copitos, propositadamente pedir ao empregado guineense uma lagosta fresquinha e “implicar“ com ele quando nos trouxe o dito crustáceo indevidamente… já que o que se tinha pedido era uma garrafa de vinho “Lagosta” fresquinha. Passados uns tempos pedia-se de novo uma lagosta fresca e vindo uma garrafa… implicava-se energicamente dizendo que tínhamos pedido era uma lagosta e não vinho… enfim, infeliz do empregado que já deitava lume pelos olhos mas… o cliente tinha sempre razão e passou a perguntar se era garrafa ou a outra !!!!

Que saudades da lagosta e do camarão àqueles preços e qualidade!!!

Recordo de uma das vezes ter ido beber umas cervejas a um café ou pensão (?) que não recordo o nome, situada numa paralela à esquerda (sentido marginal Palácio) da Av. da República. Por lá estava, sentado na mesa ao lado, o Sargento Teixeira dos Comandos, cabeça rapada e impressionou-me o seu olhar frio de gelar! Cá fora e à entrada da porta, dois pretos travam-se de razões e lutam perante a passividade geral. A dada altura um deles cai por cima de uma bicicleta lá parada e faz um golpe fundo e sangrento na almofada do “dedão do pé”. Sem mais nem para quê senta-se na “espécie de passeio”, saca de uma navalha e… corta o resto da “almofada” deitando-a para a rua!!! Levanta-se e vai embora como se nada fosse.

Lembro ter ido ao UDIB assistir à actuação do animado “Bana”, pelos vistos “coqueluche” à época. Gostei, mas gostei mais das bajudas a arrastar o pé na dança, coisa que me esforcei por acompanhar mas… nem tudo se consegue sempre!!

Conheci o colorido e extaseante mercado de Bandim(?) onde tudo se vendia e onde comprei uma estatueta (busto) facetada de bajuda e outra de um macaco em que o artesão estava a trabalhar e que não deixei acabar, por gostar dela como estava. Claro que não resisti a umas belas peles de cobra (surucucu?) e a uns panos coloridos.

Estatuetas inacabadas-Bajuda e macaco sentado – Guiné-Bissau-M.Bandim 1971
Foto: Luís faria

Lembro alguns bons momentos passados em tons de chocolate, nessa cidade também de “perdição”!

O tempo ia-se volatilizando sem sobressaltos especiais.

Como a excepção confirma a regra, momentos vividos por elementos do 4.º GCOMB num patrulhamento ao final do dia, vieram quebrar um pouco a rotina pardacenta das missões atribuídas, situação essa que ainda hoje é narrada pelos intervenientes e que poderia ter resultado em desfecho complicado e grave, não fora a experiência e presença de espírito das partes e talvez também o modo como encarávamos aquela estadia.

Erros involuntários potencialmente fatais, que aconteciam na guerra e não deveriam acontecer e que muitas das vezes se não assumiam!

Elementos do 4.º GCOMB têm por missão patrulhar em zona pré-estabelecida e assim o fazem sem sobressaltos. Nada se vai passando, como era previsível.

Num descanso do patrulhamento preventivo na esquerda da estrada Bissau – João Landim, lá para as bandas dos aquartelamentos, o pessoal acomoda-se em segurança julgada conforme à situação. A tarde vai alta, a chuva cai em bátegas intermitentes. A dada altura o impensável (?) acontece e um grupo de “turras” (não estávamos lá por essa eventualidade??) aparece de supetão.

Conta o Azevedo:

- Estava descontraído e de repente começo a ver uma serie de “pretos maltrapilhos” armados, descalços e de farda meia rota… apanhei a arma e… um susto do cara…” !!

Recorda o Lobo:

- Apareceu uma chusma de “pretos” com armas deles(IN), mal amanhados e alguns descalços e quando nos vêem dizem: “somos Portugueses, somos Comandos, boa-tarde ” … sois portugueses mas é a pqvp, penso!!! Aperro a arma …”

Alguém os reconhece e avisa:

- São os Comandos Africanos disfarçados.

Seguem caminho sob o olhar curioso e vigilante do pessoal menos convencido e tudo acaba felizmente em bem, ficando um susto valente para recordar na vida!

Duas forças amigas que se cruzam na mesma zona sem prévio conhecimento?!! Fosse noite e talvez a estória tivesse sido outra.

A todos um abraço e até Teixeira Pinto, de novo
Luís Faria
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6403: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (29): Do Inferno ao Paraíso

domingo, 16 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6403: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (29): Do Inferno ao Paraíso

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 10 de Maio de 2010:

Caro Vinhal
Mais um pouco da “Viagem…” da 2791 por terras da Guiné, assumindo um dever a que foi chamada e cumprido com dedicação e orgulho por todos os que dela fizeram parte.

Um abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (29)

Do Inferno ao Paraíso


À conta e força de vários, variados e sofridos “passeios ecológicos” (dir-se-ia hoje?!) pela Natureza e natureza das matas “Balangreanas”, começámos a conhecê-las minimamente e aos seus meandros imprevisíveis.

Diga-se em abono da verdade que havia zonas de Paraíso e de Inferno, onde numas e noutras, se “passeavam” gentes diabólicas”. Quando a linha dos “azimutes” calhava de se interceptar, … suavam as “trombas” e soavam as trompas. As espadas e os tridentes enfrentavam-se com fogo, em nome e defesa de uma “verdade”(?) comum a ambos os contendores: aquela terra era considerada ser de sua pertença! Estávamos a ter tempos complicados.

A trinta de Julho a CCAÇ 2791, FORÇA, a 3 GCOMB sai de Teixeira Pinto com “guia de marcha” para Bissau, onde vai tomar parte e ajudar na segurança de proximidade das chamadas “gentes do ar condicionado”, das suas “comodidades civilizacionais” e não só, já que corria à boca pequena que o Amílcar Cabral estaria disposto “sentar-se” na cadeira do Governador Spínola ?!?!

Já não tenho a certeza, mas creio que com o mesmo objectivo de segurança, também se deslocaram para lá efectivos dos Comandos,Páras e Fuzos à mesma estacionados em Teixeira - Pinto.

Devo confessar que sentimos um certo orgulho por nos ter sido atribuída essa missão, que julgámos ser sinal de reconhecimento meritório do nosso passado de intervenção activa.

A par de sentirmos esse orgulho, ficámos contentes e aliviados por nos terem dado esse ”trabalho”, já que em princípio ele seria sinónimo de “não porrada” naquelas matas meias lixadas em que por dá cá aquela palha se “apanhava nos cornos” (salvo seja!). Um gajo nem uma “mijadela” descansado atrás de uma árvore podia dar sem estar sujeito a que nos mandassem uns tiraços aos “tomates”!! Para fazer uma “evacuação fisiológica” era precisa a presença de um “bi- grupo de assistentes”…!! Que o diga quem por lá andou!

Esse orgulho ficou patente aquando da apresentação do Pessoal. A disciplina, o porte e o garbo traduziu-se espectacularmente nos batimentos e movimentos às ordens em Parada, não deixando os créditos por mãos alheias e pouco ou nada ficando a dever à Tropa Especial, comparativamente e nessa matéria, salvaguardando claro, a diferença de estilos.

Para além do mais, todo aquele armamento que usávamos dava na vista por sermos tropa “macaca”, tendo para mim que despertámos a curiosidade em muito boa gente que nos observou. O nosso Capitão Mamede, ”Miliciano de gema”, ficou ufano, ao que recordo! A sua Rapaziada da 2791 - FORÇA era assim e sei que ele se orgulhava e confiava nela e na sua homogeneidade de comando.

Aqui na cidade Capital, tudo seria na certa muito melhor! Umas “férias” sem contar eram um belo prémio. Tínha-nos saído a sorte grande!

A base da CCAÇ 2791 passa a ser o AGRBIS e os seus objectivos serão os patrulhamentos, escoltas, vigilância, emboscadas… assim como assumir posição de destaque em serviços de Bissau, como policiamento, segurança e guarda de instalações consideradas objectivos estratégicos.

Para concretizar estas directivas, os três GCOMB actuaram ao nível de GR ou de secção, conforme a necessidade. Ao meu 2.º GRUPO coube basicamente a segurança e defesa das instalações dos serviços de distribuição de água, na “Mãe de água”; “Central Eléctrica”; ”Emissora de Rádio”, para além de policiamento de Bissau. Para tal fraccionou-se em secções que alternavam creio com as do 4.º GCOMB. O meu Comando fixou-se, ao que recordo, na esquadra (?)da “Mãe de Agua” onde a Polícia, se a memória me não atraiçoa, me ficou subordinada. Daí fazia as inspecções às instalações onde a segurança era feita pelo meu Pessoal, uns patrulhamentos em viatura pela cidade permitindo-me conhecê-la um pouco melhor.

Nas “folgas”, que também as tínhamos, aproveitava-se para mergulhar mais fundo no “banho de civilização” inesperado e as capelinhas em lugares mais ou menos “esquisitos”, com maior ou menor chamamento à sensatez, não eram evitadas,…pelo menos em grupo, não tendo havido ao que sei, quaisquer tipos de incidentes “carnais” à conta de venais “criaturas” insinuantes, de diversas belezas e colorações!!

Na esplanada do “Bento” descansava-se a vista à fresca de umas loirinhas com “camarão - tremoço” observando o bambolear corporal feminino passeante que, coisa estranha, naquelas coordenadas e para mim, tinha outro “sabor”, vá-se lá saber porquê!!

“Pira” que aparecesse por lá era quase de imediato detectado e posto à prova com conversas vizinhas não directas mas audíveis, sobre acontecimentos bélicos terríveis e desastrosos que punham na certa o “desgraçado” com vontade de dar corda aos braços e nadar de volta a casa!! Depois vinha a intromissão:

- Donde és?

- …

- Para onde vais?

- …

É pá, calhou-te um dos piores sítios. É uma zona f…, estão sempre a “embrulhar”!Tiveste um azar do car… pá! F… pá nem queiras saber… ainda ontem…!!!”

As “conversas” do fiz e aconteci narrando feitos guerreiros dignos de filme também eram por vezes audíveis, emanadas por bocas em rostos não tisnados, prendendo a atenção de recém-chegados e não só!

Enfim, ditos “moralizadores” deste estilo “ajudavam à adaptação“ e punham um “Pira” a ver “turras“ em tudo o que era sítio!!!

No entretanto, as “loirinhas”… iam-se acumulando em cima da mesa!! Era uma parte da vida no dia-a-dia de uma cidade em que as fardas eram omnipresentes, fazendo pressentir uma guerra que se passava lá mais para longe. Para mim(nós) era o Paraíso!

Um abraço para todos

Luís Faria

Bissau > Esplanada do Bento

Bissau > Av da República

Fotos: © Luís Faria (2010). Direitos reservados.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6231: O 6º aniversário do nosso blogue (26): Parabéns Luís Graça por este Espaço de Memória Futura (Luís Faria)

Vd. último poste da série de 14 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6156: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (28): Teixeira Pinto - O Bolo

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6156: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (28): Teixeira Pinto - O Bolo

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 7 de Abril de 2010:

Amigo Carlos Vinhal
Ida a Páscoa que espero tenhas passado bem e rodeado pelos teus, cá te mando mais um capítulo de “Viagem…” num tom um pouco leve e adocicado que, dada a gravidade dos momentos passados à altura, espero não ofenda ninguém, muito menos os camaradas de Armas feridos, intervenientes nas acções a que esta narrativa alude.

São eles: o Armindo, o Taia (Enfº), o Casal, o Agostinho Silva, o Monteiro, o Lobo, o Cunha, o Sampaio (falecido há meses) e o Alcino.

A todos eles o meu obrigado.

Um abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (28)

Teixeira Pinto - O bolo


Passadas mais ou menos as trinta e seis horas em que me obriguei “a recuperar das “visões do Puto”, de novo fomos convidados a comer uma nova fatia do dito bolo tendo ido fazê-lo para a “estância desportiva” do Balanguerêz (P. Teixeira, Pijame), onde inesperadamente apareceu uma catrefa de “não–convidados–surpresa” que escondidos no meio da vegetação e sem contarmos, nos começaram a agredir atirando-nos “coisas”, desestabilizando o “pic-nic” e obrigando-nos a correr com eles à porrada mas a custo, o que fez “cair bastante mal o bolo” a quatro convivas nossos, que tiveram necessidade de ser assistidos e evacuados.

Meia dúzia de dias volvidos, voltamos à mesma “estância” na esperança de que desta vez conseguíssemos, em convívio e sossego, comer nova fatia. Pois sim…! Estávamos a acabar de inspeccionar uns “bungalows” que se nos depararam no meio do arvoredo da “quinta”, quando a convivência foi estragada novamente por um “monte de arruaceiros” que não nos deixando comer a fatia em paz e sossego, nos começaram a insultar e a agredir - a meu ver “sem razão”, já que aquele espaço à altura nos pertencia - tendo esta agressão causado ferimentos mais ou menos graves a mais cinco amigos que tiveram que ser evacuados com urgência.

Ficamos mesmo “quilhados” com o abuso e falta de decoro! Para além de os termos corrido, arremessando-lhes com quase tudo o que tínhamos à mão, apanhamos–lhes uma pouca “ferramenta e instruções de trabalho“ que esqueceram quando deram “corda aos pés”. De seguida fomos deitando fogo a pr´aí uma dezena de “bungalows” que fomos encontrando e que tinham sido eles a construir à revelia de autorização!

Os “sacanas” eram vingativos, não davam a cara e por mais uma vez no intervalo de uma queima nos esperaram escondidos e tentaram adulterar ainda mais o resto da fatia, que já nos tinha estragado corpos e almas! Felizmente isso não voltou a acontecer.

Aquele “bolo” estava a ficar muito azedo. Era a terceira vez seguida que na mesma zona as fatias ficavam estragadas e o grupo de convivas estava a ficar reduzido. Uns dias de “dieta” e algum descanso foram necessários para recuperação. Passados que foram, voltamos para as mesmas zonas para comer outra “fatia” e ver se havia novos ou outros “bungalows” clandestinos! Desta vez não detectamos construções nem apareceram “penetras” para estragar o convívio e a “fatia” não caiu mal a ninguém, felizmente! Só a noite foi longa de insónia e preocupação (creio que foi essa noite), como espero vir a contar um dia na terceira e na primeira pessoa!

Desta feita como de outras, tive oportunidade de apreciar um tanto melhor as matas daquela zona que ao que recordo e comparativamente com as de Bula, me pareceram não terem na sua maioria uma tão densa intensidade arbustiva que nos dificultasse sobremaneira as progressões em corta-mato, como por segurança e norma fazíamos. Havia mais intervalos espraiados, povoados com arvoredo frutícola assente em tapetes verdejantes de mais ou menos altura e que em tempos de paz seriam convidativos a uma boa sorna à sombra de um cajueiro, abastecida pelos seus frutos refrescantes, que eu muito gostava, ao mesmo tempo que se poderia apreciar as mais ou menos elegantes e harmónicas movimentações e cantares animais disfrutando do seu “habitat”.

Todo aquele tom verde, que se devia a estarmos na época das chuvas, era(é) a cor da Esperança que no fundo nos envolvia e que ainda hoje não deve ser perdida por aquele Povo amigo que continua a sofrer.

O final de Julho chegou e com ele a nossa ida inesperada para o AGRBIS para participar na defesa de uma Bissau em alerta. Circulava à altura a “boca“ de que o Amílcar queria “sentar-se” na cadeira do General Spínola!

Foram uma espécie de “férias” inesperadas, que me proporcionaram conhecer um pouco de Bissau e “descansar” alguma coisa os olhos, no feminino em tons de branco!!

Um abraço a todos
Luís Faria
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6153: Parabéns a você (105): Luís Faria, minhoto, portista, ex-Fur Mil Inf, MA, CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)

Vd. último poste da série de 2 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6091: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (27): Teixeira Pinto - o dia-a-dia

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6091: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (27): Teixeira Pinto - o dia-a-dia

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 26 de Março de 2010:

Amigo Vinhal
Mais uns apontamentos de “Viagem …” que se calhar te vai dar um pouquito de trabalho, ajudando-te na saúde, que espero esteja bem.

Um abraço extensivo a todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (27)

Teixeira Pinto – o dia a dia


A actividade operacional da “FORÇA” em Teixeira Pinto foi tão intensa ou mais do que em Bula, mas tivemos na verdade outras condições dadas pelo comando do CAOP 1

Ao que me disseram, parece que fomos destacados para lá por a nossa operacionalidade no sector de Bula ter sido considerada eficiente. É verdade que tínhamos sido a Companhia do Batalhão que mais combates travou nas matas de Bula e ao que sei, mais estragos causou ao IN, que nos teria “um certo respeito”.

Talvez por essas razões, ficamos à ordem não do BCAÇ 2905 mas do comando do CAOP 1, que nos utilizou em “rotação” com os Fuzos, Páras e Comandos lá estacionados, como se fôssemos também Tropa Especial. Só não fizemos saídas de heli!

Assim sendo, a breve trecho e após provas dadas(?!) recebemos certas contrapartidas de maneira a minimamente satisfazer o “para trabalho igual, salário igual “ do pós 25 Abril, digo eu (!!!), sendo que neste caso o salário era a alimentação e o armamento. O trabalho era o que todos sabemos!

Talvez para que mantivéssemos a dinâmica e a boa operacionalidade no ”trabalho”, passamos a ter rancho melhorado, suplemento e ração de combate especial, ao que recordo idêntica à dos Fuzileiros. Quanto ao armamento, para além da nossa dotação normal, acumulamos mais duas MG, um (dois ?) morteiro 60 e creio que mais um lança-granadas, ao que recordo por GCOMB. Estas armas eram-nos também dispensadas pelos Fuzileiros que, sem desprimor para as outras tropas Especiais, era um Pessoal diferente, impecável, de fácil convivência sempre prontos a nos apoiar e ajudar no que pudessem.

Claro que estas “benesses” nos ajudavam à auto-confiança e moralizavam o Pessoal nas constantes acções a desenvolver naquelas matas belicosas. Dava-me gozo e confiança olhar para a Rapaziada do bi-grupo (por norma reduzido) formada na parada antes das saídas e vê-los com aquela disciplina, aquele “porte” e aquele armamento!

Na verdade sinto orgulho e emoção por ter ajudado a comandar e ter feito parte integrante daquele grupo de Rapaziada que, como tantos e tantos milhares de outros, a troco de nada se sacrificaram e deram o seu melhor incluindo sangue e vida, na defesa da que sentiam sua Pátria e do seu símbolo maior a Bandeira, também naquelas latitudes flamejante e que nos tempos actuais são tão pouco ou nada reconhecidos, esquecidos e maltratados em nome(?) de uma vergonha (?!) absurda, que nos querem fazer sentir, mas que eu não sinto nem aceito! Como tantos milhares, cumpri o meu dever o melhor que soube e pude e volto a afirmar que me sinto orgulhoso por o ter conseguido, com a ajuda de Deus e dos meus Camaradas de armas.

Foto 1 > O meu 2.º GCOMB completo

Foto 2 > Elementos 4.º GCOMB

Recebidas todas estas “cerejas”, faltava o “bolo” propriamente dito que não tardou a ser servido ! Foi um grande e pesado bolo com doses de veneno que foi sendo cortado em fatias que pareciam não acabar, sobrando sempre mais uma !!!! Íamos comê-las lá para o Balanguerês e Burné, por norma a todas as trinta e seis horas durante cinco meses até primeiros de Dezembro, com interregno de Agosto em que fomos para o AGREBIS. O pior é que algumas dessas fatias nos “caíam” pior por ficarem estragadas, afectando-nos o corpo e a Alma!

Para de certo modo “desenjoar” deste bolo e para fugir um tanto ao ambiente e disciplina castrenses, alguma da Furrielada (creio que só?) alugamos uma vivenda situada numa perpendicular à Av. Principal e próxima do quartel, que usávamos parcialmente nas nossas trinta e seis horas de descanso.

Aberta a todos os que quisessem confraternizar de mente aberta e sem hierarquias, por lá passou quem quis e continuou a lá ir quem se sentia bem naquele ambiente de sinceridade e espontaneidade. Eram momentos de recuperação psicológica em que nos permitíamos quase tudo, inclusive… sonhar!

Era uma vivenda simpática, com o seu belo alpendre onde não faltavam a cadeira de baloiço que nos embalava numa leve modorra e os sempre presentes (julgo que em toda a Guiné) “bancos –caixote” a par de umas cadeiras. Já se dizia “o seguro morreu... de velho” e assim também não faltava nunca pelo menos uma ou mais G3 à mão, já que na segurança “mais valia prevenir que remediar” e elas podiam vir a fazer a diferença, mesmo considerando Teixeira Pinto um “oásis de paz”!

Por lá passávamos bons momentos em amenas cavaqueiras por norma “des-intelectuais” e pseudo-filosóficas que não nos levavam a lado algum a não ser a umas gargalhadas e a uns “arriões” vocabulares susceptíveis de fazer corar um “militar de carreira” e o meu amigo Portuense “Teixeira Malcriado”!!!…
As escritas mais ou menos comentadas, as “confidências – disseminadas” de amores e desamores temporários, os comentários e as criticas jocosas normalmente com base no feminino… iam-nos escorrendo as horas. O importante era não ter tempo para pensar muito nas incertezas do amanhã!

A entremear, também lá aconteciam as “cerimónias” de fazer inveja a qualquer batucada, em que o whisky, as Casal Garcia e as “bazucas” fresquinhas, acompanhadas ou não por petisco eram quem comandava, nos punham a desopilar com cantorias infernais ao desafio, sincopadas ou não por viola e “batuque” na meia cabaça ou na mesa e nos podiam levar a fazer as ditas e consideradas “figuras tristes”!!! Eram espectaculares estas cerimónias e aconteciam quase sempre que chegávamos da mata.

Foto 3 > "Cerimónia” – Urbano de pé eu à viola

Foto 4 > "Cerimónia" com a G3 à mão

Claro que muito do tempo também se passava no “lar doce lar” do quartel, por onde cirandavam a “Belinha” e a "Sheilinha”, duas canídeos rafeiras que me adoptaram e de quem gostava muito. Por onde andasse no quartel, elas seguiam-me e já crescidotas, quando saíamos nos “Unimog” elas seguiam-no até à saída da povoação, até que um dia um “inteligente” lhes mandou um tiro. Nunca mais as vi!

Foto 5 > A Bélinha e a Sheilinha

O nosso BAR (Furriéis) era o dos Comandos. Por lá se bebiam uns valentes copos e se passavam tempos agradáveis em conversas talvez meio “sérias da treta”, já não recordo e em que algumas vezes no final, o caminho mais curto entre dois pontos deixava de ser a linha recta para ser a sinusoidal!!!

Havia também por lá a “mota da Companhia”, isto é, a motorizada do Alferes Barros (guineense) em que dávamos umas voltitas e fazíamos umas “habilidadezitas”. Esta motorizada era o transporte que o Barros usava para se “desenfiar” com o pretexto de visitar a família (dizia), deixando-me e ao Castro “órfãos” do comando do 2.º GCOMB e até bi- grupo em algumas das saídas para o mato.

- Oh Alferes… outra vez? Foda–se… a família é grande com'ó caralho…!!! - Dizíamos-lhe (bocas no género) rindo!

- Sabes onde está o Barros? Sei lá…, deve-se ter “posto nas putas”… e a gente que se “foda”…!!! - Dizíamos bem dispostos.

Ele era (é) um “gajo porreiro”, valente e que confiava em nós. Por isso é que de quando em vez “abusava” sem dizer népia! Na verdade formávamos uma boa equipa.

Foto 6 > “Mota da Companhia”- a minha “habilidade” com o descanso no chão !!!

Foto 7 > “Clientes da mota da Companhia”, montada pelo dono. Da esquerda: Alf Mil Freitas Pereira; Fur Mil Fontinha; eu; Alf Mil Barros e Alf Mil Gaspar

O rio, onde se davam umas braçadas e uns mergulhos para refrescar e desanuviar, mesmo com o risco de “ganhar elefantíase”, pródiga naquelas paragens como tive ocasião de constatar, era também um local que de quando em vez visitava e apreciava, que me transmitia uma certa paz de espírito e me ajudava a “reformatar” para a próxima saída.

Enfim, todos os pretextos eram bons e úteis para gastar o tempo, evitando questionar-me sobre o futuro! Vivia o dia a dia e… era só!

Foto 8 > Bolanha - rio

Foto 9 > Banho retemperador com faca no cinto por causa dos “elefantes”!!!

Foto 10 > À procura do Mundo - bolanha ao fundo
Fotos: © Luís Faria (2010). Direitos reservados


Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5984: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (26): Teixeira Pinto, Julho de 1971, no pico da época das chuvas

sábado, 13 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5984: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (26): Teixeira Pinto, Julho de 1971, no pico da época das chuvas

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 9 de Março de 2010:

Amigo Carlos Vinhal
Mais umas linhas para “Viagem à volta das minhas memórias”, que publicarás se assim o entenderes. Como sempre são “slides” que não se apagaram e de quando em vez se me projectam.

Um grande abraço para ti.
Um outro para a Tertúlia, que tem andado bastante calma e um tanto… intelectualizada!?
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (26)
Teixeira Pinto – Julho 71

Estávamos a entrar no pico da época das chuvas.


Recordo toda aquela canícula húmida que nos fazia destilar quase em permanência um suor que nos escorria pelo corpo, ensopava as roupas e por vezes nos toldava a visão como se de uma cascata se tratasse. Agarrava-se-nos ao corpo tornando-o peganhento q.b. e causava uma sensação desagradável de pele arrepanhada quando secava, nos colava as pálpebras e tapava os poros, fazendo-nos sentir pequenas picadas incomodativas que nos faziam desejar um belo banho ou uma boa chuvada que funcionasse como “chuveiro” e nos permitisse um “esfreganço” com o lenço “tropeiro “de 50 cm(?) de lado, que nos permitisse remover aquele melaço atraente a voadores !

Recordo quando as comportas dos céus se abriam ficando escancaradas, ver por vezes pessoal a aproveitar a chuvada que se abatia em grossas bátegas e tomar banho, muitas vezes de sabão e tudo!! Era bem melhor que o fazer de bidão e lata!! Aborrecido era quando o dilúvio se acabava sem contarmos e sabão ficava colado ao corpo!!

Recordo o andar em “perseguição”ou em “fuga” das chuvadas, uns tantos centímetros atrás ou à frente; dos arabescos escritos pelos relâmpagos na noite que criavam fantasmagóricos dançares da vegetação na mata que nos confundiam e nos faziam ver o inexistente; do ribombar dos trovões que em proximidade mais pareciam o troar de armas apocalípticas!

Recordo a voragem vampiresca da mosquitagem anafada, que conseguia pôr os nervos de qualquer um à flor da pele e que a mim, não fora o zumbido, pouco ou nada afectavam ; nesta zona (em Bula não senti) havia uma outra espécie de mosquitos pequeníssimos, (similar ao nosso mosquito da lenha(?)) que só encontrei na mata quando chovia e que, para alem do seu “zunir” enervante, se entranhava por toda e qualquer nesga aberta na roupagem parecendo que a furava, conseguia penetrar os abafos (cachecóis de rede) desferindo “ferradelas” causticas, mais parecendo mini queimadelas. Era tenebroso quando se emaranhavam nos cabelos e atacavam o couro cabeludo!!! Estes sim, afectavam-me verdadeiramente! Eram aos “milhões” naquelas noites chuvosas nas matas, interferindo na segurança!!!

Recordo as matas verdejantes do Balanguerês que palmilhei vezes sem conta e do Burné, onde para além de zonas arbustivas intrincadas e plantas de folhas (?) espinhosas que nos rasgavam a carne, havia os espaços viçosos e paradisíacos, convidativos a uma inviável boa soneca deitados num manto verdejante por debaixo das ramadas dos cajueiros ou afins, ouvindo a algaraviada da passarada com os seus cantares ao desafio - que por vezes servia de música de fundo à cena da passagem expectante e graciosa de uma frágil e elegante gazela que farejava os ares desconfiada, ou ao rastejar ou dormitar de uma qualquer cobra de grosso porte (surucucu ?) - e interrompido por um debandar repentino causado pelo nosso avistamento ou qualquer ruído mais forte por nós produzido, o que nos podia trazer consequências más !

Na mata, eram momentos em comunhão como estes que me faziam por vezes pensar no que andava ali a fazer, me aligeiravam a tensão e me faziam acreditar que o futuro podia não ser só o momento seguinte!

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5784: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (25): O Puto não me largava

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5784: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (25): O Puto não me largava

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 3 de Fevereiro de 2010:

Amigo Vinhal
Para continuidade, segue outro capítulo de “Viagem…” que espero possa minimamente transmitir a quem o ler, um estado de espírito vivido, no mínimo confuso, criado por uma situação que não sei se teria sido muito comum aos Camaradas (gostaria de saber).

Um abraço para todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (25)

O “Puto“ não me largava

Ao amanhecer de 6 de Julho de 1971, apanhado pelo bafo quente e húmido que se me colou, desci a escada do Boeing que me trouxera das férias no Puto e dirigi-me, não recordo como, aos Adidos(?) para me apresentar e posteriormente dar umas voltas pela Bissau que até então só tinha pisado por breves momentos, aquando da chegada da Companhia à Guiné e por outros também escassos, quando apanhei o avião para ir de férias, um mês atrás.

A esperança tinha-me feito de certa forma interiorizar que iria passar uns diazitos no bem-bom de Bissau, à custa de um servicito ou outro e fico siderado quando me informam que tenho de me apresentar, nesse dia na 2791 FORÇA - Teixeira Pinto.

Não foram precisas estacas ou outros escolhos para, no meu cérebro e se calhar nos arredores também, se ouvirem os “uiuis” lancinantes provocados por “tamanha injustiça”! Então por que raio é que não tinha direito a uns tempitos no bem-bom, como todos os outros ou quase todos??!! Tinha acabado de chegar de férias. Que porra era aquela de me não darem sequer um tempito para me reambientar e recuperar do cansaço dispendido naqueles maravilhosos trinta e tal dias passados?! Puta de guerra que não tinha consideração por (quase) ninguém!

Aqui, a minha memória apaga-se não me deixando lembranças de qualquer espécie. Não recordo se cheguei a Teixeira Pinto de coluna motorizada, avioneta, barco... sendo que a pé seria difícil, convenhamos (!?). O facto é que lá cheguei.

A memória começa a reacender-se com algumas intermitências irritantes.

Madrugada de 7 de Julho de 71. O bi–grupo da FORÇA forma na Parada. Já acomodados, as viaturas arrancam. A ponte Alferes Nunes fica para trás e largam-nos algures na estrada para o Cacheu. É noite e os objectivos estão ainda distantes, assim como o amanhecer.

Segundo apontamentos, vamos em missão de intercepção e destruição a P.Teixeira, Balanguerez, Pijame (a que por inclusão, chamava Zona do Balanguerez), situadas a Oeste da estrada Teixeira Pinto – Cacheu.

Em progressão e na certa recorrendo como era norma aos azimutes, fomo-nos internando nas matas daquela zona belicosa, abrigados pelos “ponchos” de uma chuva que nos dificultava o andamento e ao mesmo tempo nos dava uma certa protecção. Entra a manhã e a penetração continua, ao que recordo sem problemas. Continuamos, com as cautelas devidas e com certeza a corta–mato, como nos era costumeiro proceder.

Era normal que, quando saiamos em bi–grupo (em Teixeira Pinto foi quase sempre, ainda que muitas vezes reduzido em elementos) ir só um Alferes e dois ou três Furriéis, alternando-se entre os graduados o comando na frente onde, - já tive ocasião de explicar em Poste passado - por pensarmos ser mais seguro, por norma um de nós ocupava o 1 ou 2 lugar durante as progressões. Era também usual que qualquer um de nós, em especial o Barros, Castro, Fontinha e eu próprio assumíssemos o comando e posicionamentos da rapaziada e nossos, independentemente das equipas (Secções), GCOMB ou até do Oficial a que se pertencesse. Estávamos “calhados” com o pessoal, em especial do 2.º e 4.º GCOMB. Estas trocas e baldrocas dependiam da avaliação que fazíamos das situação a cada momento.

Toda esta “orgânica”, talvez muito própria e suigéneris, descreverei em outra ocasião. O certo é que nos dávamos bem com este sistema e como resultava, não o abandonamos.

A caminhada continua, as horas avançam. Tiros… “nem vê-los”, nada!

A dada altura pela frente depara-se-nos um acampamento dissimulado no meio das árvores. O silêncio torna-se quase absoluto. Parece sem ninguém. Envolvemo-lo e... nada! Faz-se a inspecção, nada... abandonado mas varrido! Vamos “mamar” na certa!!! Queima-se e arrancamos. Nada e nenhum tiraço!? Admira-me! A tenção nervosa é grande.

Dou comigo de novo a divagar pelas férias acabadas há uma dúzia de horas e na merdice em que estou metido. As botas de couro, julgo que cubanas e apanhadas em P.Matar, vão-me levando na fila, acompanhando o pessoal como se fosse um autómato.

A tarde já vai alta e novo acampamento se nos depara pela frente. Tiros... nada! É vasculhado... apanham-se documentos e umas armas.

Preparamo-nos para queimar e reagrupar. Rebentam os tiros. Como um eco, ouço algo do género:

- Estão ali... os “cabrões” estão a uma dúzia de metros à nossa frente metidos naquelas árvores e vegetação. Não consigo descortinar nada, por muito que me esforce!

Ao som dos tiros e rebentamentos, pela minha cabeça recomeçam a desfilar com pouco controlo, imagens ganhas no “Puto” até umas horas antes. Lisboa perfila-se assim como o S. João no Porto e muitos daqueles bons momentos passados. O que se passa... o que é isto... onde estou... que porra de merda é esta... que faço aqui… ?

Reparo em alguma da rapaziada a ripostar, uns deitados ou aninhados, em pé outros. Vejo Castro a pegar na “bazooka” e o Cancelo de joelho no chão a enfiar a granada no 60 quase na vertical. Recordo o Augusto a despachar uma “Instalazza” em tiro directo e o Castanhas agarrado à HK com o Fatana a ajudar.

Estava concerteza a assistir a um “Green Berets”?!! Era isso... só podia!! Aquilo não estava a acontecer!? Era isso... estava no meio de uma sessão no cinema Batalha, pois claro!

Não conseguia ver nenhum “turra” e o filme do Puto desfilava com intermitências diante dos meus olhos, enquadrado por aquela sinfonia de S João! Digo ao pessoal que substituo a segurança à retaguarda e viro-me para trás, para o acampamento e assim fico, tentando afastar aquelas visões e concentrar—me ao máximo no que estava a fazer.

Os tiros amainam e acabam. O IN tinha-se pirado e não tínhamos tido problemas.

Na sua fuga, são avistados alguns elementos. O Barros pega no LG-foguete e despacha na direcção, ouvindo-se o rebentamento lá para longe, ineficaz.

O acampamento é queimado, a bicha de pirilau inicia sob o meu comando a marcha de regresso em direcção à estrada, onde pensávamos passar a noite e aguardar a recolha pela manhã. Minutos andados e o Puto continuava presente, desviando-me da concentração necessária. As portas de S. Pedro estavam escancaradas e os “ponchos” incómodos, proporcionavam um certo abrigo.

O Castro avança para frente e leva-nos a porto seguro. Pelo caminho são apanhados um homem e uma mulher sem armas, que virão a ser entregues para interrogatório.

A noite diluviana iria ser terrível de suportar!

Quartel Teixeira Pinto > Vista do lado da bolanha (creio)

Progressão > Elementos do 2.º GCOMB > Estrada velha Teixeira Pinto - Cacheu. Augusto em primeiro plano com o “Instalazza”

Acampamento temporário IN
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5463: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (24): De volta à guerra, triste realidade

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5463: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (24): De volta à guerra, triste realidade

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 13 de Dezembro de 2009:

Amigo Vinhal
Mais uma passagem de “Viagem…” a entremear um ciclo mais aceso de opiniões - expressas a meu ver com todo o direito, desde que com respeito por todos e pelos princípios do Blogue– com votos de que os Camaradas mais aguerridos se recordem daquelas férias que gozaram naqueles tempos conturbados, ficando um nada mais serenos.

Um grande abraço a todos vós para quem renovo VOTOS de UM BOM NATAL e um 2010 PLENO NO QUE DESEJEM
Luís Faria


De volta à guerra

As luzes cintilantes de uma Lisboa meio adormecida são testemunhas do meu trajecto e chegada ao aeroporto da Portela. Trinta e tal dias se tinham passado num ápice.

Pelas duas da madrugada de 13 de Julho de 1971, o Boeing da TAP percorre a pista e levanta voo levando-me nele. Nas suas asas está escrito o meu Destino : Guiné… de novo!

Comodamente instalado, tento e consigo avistar com intermitências o tremelicar das luzes terrenas e estelares.

O pensamento divaga entre a adivinhação de um futuro difuso e o passado próximo com a lembrança fresca de bons e belos momentos vividos durante trinta e tal dias (não recordo porque gozei tantos).

Para trás ficam Lisboa, Porto, Guimarães, Vizela, Vila Real, Felgueiras e outras cidades, vilas e aldeias.

Na memória ficam a paciência e os miminhos dos Pais e Irmãos . A disponibilidade e ternura cúmplices da Noiva. A alegria da Flecha, cachorra pastor alemão nos momentos de brincadeira.

Ficam também belas recordações de convívios com Amigos, piqueniques, viagens, passeios. As corridas de Vila Real onde quase fomos abalroados por um Lolla (creio) em vôo de despiste na passagem de nível, que nos polvilhou de óleo !! As viagens no Austin Sprite em que mosquitos (não os famigerados) às carradas entravam pelas juntas da capota de lona e caíam mortos no tablier e nas pernas, cobrindo-mas e às da namorada como se de uma manta se tratasse??!!! Das cachopetas (mergulhos) no rio Vizela para mostrar à plateia do parque das termas a antítese do mergulhador!! Enfim…

Tinham sido na verdade tempos de férias bem passados e em que pouco ou nada se aflorou sobre a Guiné e a guerra, o que me permitiu de certo modo esquecê-la, digamos assim.

Agora… bom, agora que ela está de novo a perfilar-se no horizonte próximo e ainda para mais em locais de experiências de certo modo desconhecidas, a mente conjectura possibilidades de adiar o reencontro com essa realidade, de modo a conseguir mais uns dias de adaptação e mentalização. Dou comigo a pensar que vou ficar em Bissau mais uma semanita ou assim, por causa de transportes e tal e tal!!

Com este pensamento sinto-me um pouco mais reconfortado e confiante e o sono passa por mim.

O Boeing faz-se à pista e aterra. Está a amanhecer e a porta abre-se.

Malas… só uma pequenita de lona vermelha aos quadrados e com zipper, daquelas que vazias se dobravam.

Aquele cheiro característico (a que chamo cheiro a formigas mortas) e aquele bafo quente e húmido, envolvem-me por inteiro logo que chego à escada.

Não havia dúvida, o Piloto não se tinha enganado. Estava noutro mundo, em que os Adidos eram a próxima paragem. Um servicito e uns diazitos mais em Bissau para a conhecer e me mentalizar de que já não estava no Puto é o que me espera, penso!

Mas o Destino é mesmo assim e no dia seguinte estávamos a embrulhar na zona do Balanguerês!!

Bissau onde me iria mentalizar, tinha ficado para as calendas!!!!
Luís Faria


Leça da Palmeira, 1971 > Luís Faria junto ao Sport Clube do Porto. Ao fundo o edifício do Instituto de Socorros a Náufragos.

Luís Faria e o Flecha

Vila Real, 1971 > Dia de corridas
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5236: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (23): Um Aspirante Xico-esperto e um grande berro

domingo, 8 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5236: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (23): Um Aspirante Xico-esperto e um grande berro

1. Mensagem de Luís Faria ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 5 de Novembro de 2009:

Caro Vinhal
Mais um bocadito de “Viagem…”
Se achares que deves abreviar ou modificar alguma coisita… força.

Tudo de bom para todos
Luís Faria


Teixeira Pinto – Um grande berro

5 Junho 1971 - Véspera de entrar em férias e apanhar o TAP para Lisboa


A festa está no adro. Daí a nada o silvo dos foguetes na sua fuga para os céus será audível e lá chegados, vai transformar-se num estralejar com lágrimas cintilantes e coloridas de felicidade, esparramadas por toda a envolvência. É, em pensamento (virtual como agora se diz), a festa pela minha chegada à aldeia.

Com o Fontinha sou chamado ao Capitão: a missão é destruir material explosivo velho despejado para o efeito numa cratera lá para as bandas da bolanha.

Os festejos, ainda que virtuais… esfumam-se com o ribombar da bomba, antes mesmo de se ver e ouvir as lágrimas estralejantes.

Fur Mil Jorge Fontinha (Inchalazinho)

A festa verdadeira vai ser agora, com outro tipo de foguetes que se espera não rebentem em berros e lágrimas de dor e sofrimento!

Cá está a cratera! No fundo, espalhados sem nexo e à mistura com terra quase cor de sangue, uma boa dezena de quilos de granadas várias e minas, com e sem espoletas que é preciso meter na ordem com todo o respeito. Dava a ideia que de longe as tinham atirado para lá, o que de todo não teria acontecido com certeza.

Depois de se ter olhado apreensiva mas atentamente para aquela bagunçada, a estratégia foi delineada: a primeira acção a executar era descer ao buraco e com toda a cautela pôr uma ordem no caos.

Para isso, descemos sorrateiramente para o fundo do buraco, fazendo tudo para não acordar nenhuma das frágeis e possíveis berradoras!

O tempo parou… todos os sentidos estavam concentrados no manuseamento daquelas putas falsas, de modo a que não acordassem do seu sono e berrassem em uníssono!!! Tudo correu bem, sem gritaria!

Concluída esta fase, saímos do covão. Um olhar atento ao trabalho feito… afastamo-nos… uma cigarrada para descomprimir… uma folga para ganhar novo alento e continuar trabalho!

Para escaparmos a um encore indesejado, era preciso distribuir correctamente uns petardos de trotil e cordão detonante de modo a garantir que não teríamos de regressar a este palco de tragédia expectante!

Estávamos neste compasso de descanso quando, vindo do lado do rio, aparece o Aspirante Comando de sua graça Domingos (creio) - já o conhecia de Lamego onde à altura era Furriel, se não estou em erro – que nos interpela do que estamos a fazer. Esclarecido e sem mais delongas, dizendo que resolve o problema… saca de duas granadas e atira-as para o buraco sem dar tempo a qualquer contraposição argumentativa da nossa parte. Obviamente afastamo-nos rápido!!

Fiquei expectante e… lixado!! Podia ser que resultasse, quem sabe?

Bum?!... porra… só foi bum! foda-se… ao menos podia ter sido BUUUMMMMMMM!!!! o que quereria dizer que aquela porra toda tinha ido c'o caralho… assim, só um bum… era porque tínhamos ficado mais fodidos do que antes!

Tempo de segurança dado e aproximamo-nos. O Domingos olhou e… retomou o seu caminho. Cobras, lagartos e faíscas à mistura com palavras feias, saíram em janela dos meus olhos na sua direcção! A intenção dele foi boa mas… precipitada e impensada!

Na cratera… tudo revolvido e espalhado à balda, com algumas granadas encobertas pela terra…! Só uma das granadas lançadas deflagrou, ficando a outra descavilhada e bem visível pelo meio daquela merdice toda! Enfim, um cu de boi para resolver!! Todo o trabalho anterior se tinha perdido. Puta de sorte!

Mais uns tempos de concentração, de estudo e cigarros e… nova estratégia.

Desta vez, pelo risco acrescido, só um de nós desceria. O outro ficava em segurança relativa, de prevenção, socorro e apoio aos trabalhos.

Novamente a descida sorrateira, o manuseamento individual, pensado e cauteloso mas firme das malditas granadas, voltando a pôr ordem no caos. Tudo a correr lindamente!
De seguida e com todo o respeito, foram colocados os cubos de trotil, os detonadores e o cordão detonante de modo a que não houvesse novo encore.
Feito isto e como não tínhamos dispositivo de disparo eléctrico, era a hora de ligar tudo aquilo a cordão lento (rastilho). Ok, tudo a correr sobre granadas.

Só me faltava sair da cova e estendermos o rastilho até uma distância que nos permitisse abrigo minimamente seguro de modo a não apanharmos com o entulho nos cornos após o arrebentamento. A uns bons metros lá estava o bagabaga (?) previamente escolhido.

O rastilho foi aceso e iniciou a sua marcha ardente… começamos a contar o tempo… esgotou-se… aninhámos com as mãos na cabeça… BUUUUUUMMMMMMMM…

De olhos em nesga vi o entulho começar a cair como chuva granizada pesada… o chão tremeu como se de um terramoto se tratasse… com aquele BERRO não ia ser preciso novo encore! Graças a Deus.

Um Jeepe aproxima-se rápido. No quartel tudo tinha abanado e o Comando quis saber o que acontecera!

O que acontecera já era passado e tínhamos ganho o 1.º prémio.
No dia seguinte eu ia de férias para o Puto.
Isso era o futuro radioso e promissor do cumprimento de tantos sonhos adiados.

A todos o meu abraço
Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. poste de 1 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5191: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (22): Teixeira Pinto, férias à vista