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sábado, 12 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9032: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (45): Destacamentos - Pedaços

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 10 de Novembro de 2011 com mais uma viagem à volta das suas memórias:

Olá Vinhal
Saúde e força para nos aturar?
Apostado que sim, cá te mando uns pedaços de lembrança que , já o sabes usarás se assim o achares.
Um grande abraço para ti e um outro para todos "atabancados"
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (45)

Destacamentos - Pedaços

Os dias nos destacamentos continuavam a passar com a sua morosidade, sem quaisquer problemas em especial e talvez por isso mesmo com poucos registos de memória, para além de um ou outro, isolados e até desenquadrados eventualmente no tempo.

Destacamento de João Landim – visto da estrada

De Mato Dingal, parece-me, recordo uns tiraços em noite escura, reacção de sentinelas devidamente acordados no seu posto de vigília, zelando pela segurança e bem estar dos companheiros adormecidos que se levantam em sobressalto e desembestam, estou em crer, para os locais de defesa para, sem mais tiros repelir o ataque aventureiro e traiçoeiro perpetrado por “turras” que tiveram a desfaçatez e ousadia de importunar a nossa paz e sossego - que tínhamos merecido, - e que afinal não eram senão… uma vaca, creio.

Ainda em Mato Dingal, creio, recordo uma cerimónia fúnebre a que assisti, não sei se convidado se de moto próprio. Foi algo que nunca tinha presenciado e não mais presenciei. Talvez fosse de Homem Grande, talvez Balanta, não lembro. Ao que me parece, foi enterrado embrulhado em pano (creio branco) tipo múmia, numa espécie de poço feito para o efeito na proximidade da morança (?) onde foi depositado na vertical. Na lateral do poço havia uma reentrância onde fora depositados objectos talvez de uso pessoal (?). Foi o que retive para além da ideia de ter havido alta e prolongada festa e de nos terem ofertado carnes.

Como estas recordações me são um bocado ”embrulhadas”, alguém que se queira pronunciar em esclarecimento, agradeço a atenção.

Também aconteceu lá em Mato Dingal, descobrir que o belíssimo forno não servia só para assar os leitões e outros… bem, o Jorge Fontinha que conte.

Os dias foram passando, os primeiros de Fevereiro vieram e com eles as férias e a ida ao “Puto”, desta vez e infelizmente sem patrocinador.

Da canícula guineense ao frio gelado e chuvoso da belíssima paisagem nortenha e ao calor de família, amores, amizades humana e canídeo, foi uma questão de horas e mais algumas para arrumar para um canto um pedaço de vida passada, embrulhado e resguardado o melhor possível.

Em contraposição agora os dias já de si curtos, passavam no “goss goss”como se a guerra tivesse urgência na minha presença! Os dias voaram.

Por aquela terra nortenha devem ter ficado as minhas pegadas na caça à passarada, acompanhadas pelas do “Pilim”, canídeo perdigueiro pintado de dálmata, que adorava abafar qualquer ave esvoaçante, mesmo doméstica galinha, pato, ou fraca, que se passeasse pelo terreiro, abocanhando-lhes a cabeça sem as ferir e indo-as depositar estendidas e inertes à porta de casa, para arrelia de minha Mãe – para quem essas aves eram uma delícia para o olhar – e gáudio de meu Pai que o afagava, como incentivo à persecução da eliminação de predadores de sementeiras, a par das arrozadas e assados que proporcionava! O meigo animal saltava de alegria.

Depressa chegou dia das saudades na certa e entre outras, talvez da lareira em óptima companhia e ao toque de um verdasco parceiro de um chouriço ou presunto e ao som de chuva possivelmente entremeada de farrapos brancos, esparramando-se nas vidraças quadriculadas de pequeno.

A par foi a hora em que houve que retirar o embrulho do canto em que estava arrumado, colocando de novo esse pedaço de vida resguardado, estendido e bem à vista de modo a que não esquecesse as lições nele apreendidas e que podiam contribuir para o aumentar, até ao despontar de um novo ciclo que sonhava e que julgava estar a breves meses de alcançar. Estava de novo em Augusto Barros.

Destacamento de João Landim

Por lá passei uma temporada, interrompida por uma estada substitutiva em João Landim, destacamento como Mato Dingal à face da estrada mas na proximidade do Mansoa. De recordação fiquei com a do João, elemento do 1.º GCOMB.

Este homem – sim à altura já todos tínhamos sido forçados a ser homens, feitos e marcados, bem marcados – simples e valente mas não sendo nenhum Einstein, havia ganho e merecido o direito de regressar a casa, esperavamos em Junho, o que ao que lembro não aconteceria se não fizesse creio que a 4.ª classe, talvez mais propriamente “saber ler e escrever”.

Ora o João, ao que me parece recordar, pouco ou nada sabia de escrever ou ler, pelo que fui nomeado seu “professor”. Em tão pouco tempo iria ser um trabalho dificil e paciente para ambos, impossível talvez.

O trabalho começou e diáriamente, com maiores ou menores esmorecimentos foi prosseguindo com o objectivo minimo de conseguir conhecer as letras, juntar algumas e lê-las, escrever o seu nome e pouco mais. O resto havia de se conseguir de qualquer jeito.

As “aulas”, dadas no espaço afundado parece-me à altura das camas e coberto da camarata, foram-se somando a par de pouca evolução académica. A motivação primeira era a “peluda” mas por vezes o combate ao desânimo do “aluno” era ineficaz, transformando-se a aula numa perda de tempo e paciência.

Um dia, estou a descer os três ou quatro degraus para dar mais uma aula e… o João aponta-me a G3 ameaçando que disparava se não me for embora !? Recordo ficar estáctico, receoso e sereno e falar… a tensão é muita… a arma baixa e fico-lhe com ela… chora, desânimo e nervos à flor da pele… destroçado pensa que está tudo perdido… não há queixas nem punições… o João alcança a “peluda”!

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8819: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (44): Destacamento de Mato Dingal, umas instalações seguras

domingo, 25 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8819: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (44): Destacamento de Mato Dingal, umas instalações seguras

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 21 de Setembro de 2011 com mais uma viagem à volta das suas memórias:

Olá Vinhal, um abraço
“Viagem à volta das minhas memórias” transporta-me destas vez a tempos vividos com certa tranquilidade e facilidade, em que e talvez por esse facto, a grande parte das lembranças que retenho são “flashes” intermitentes e sem sequência, não me permitindo com o mínimo de rigor situá-los em tempo e espaço ou enquadrá-los numa acção.
Talvez a 24 deste mês aquando da nossa reunião anual, surja alguma luz.

Um abraço a todos
Luís Faria

Viagem à volta das minhas memórias (44)

Destacamentos: Mato Dingal

Enquanto a passagem dos dias ia avançando morosamente, aproximando-me da partida para um mesito de descanso no “Puto”, recebo ordem para substituir em Mato Dingal o Alf Mil Gaspar que, creio foi de férias. Este era o primeiro destacamento que se encontrava na estrada asfaltada Bula – João Landim e onde estava estacionado o 4.º GCOMB.

Pequeno, aberto e simpático, confinava praticamente com o asfalto e se bem me recordo, atravessando-o entrava-se na tabanca habitada por uma população que rondaria as mil e duzentas almas, ao que lembro ordeira, fiel e prazenteira, talvez a que nos inspirava menos desconfiança.

Mato Dingal – neste buraco julgo que iria ser instalada a base do monumento

Aviso de “instalações seguras”

Se em Augusto Barros a vida não era má, por estas bandas era bem melhor. Eram tempos descansados, sem sobressaltos de especial e a proximidade e facilidade de chegar a Bula parecia-me fazer o tempo acelerar um pouco. Idas a Augusto Barros seriam as indispensáveis para abastecimento de géneros e poucas mais.

Não houve qualquer dificuldade em assumir de novo e temporariamente o comando do pessoal daquele destacamento. Rapaziada e eu conhecíamo-nos bem e entrosávamo-nos melhor! Daí tudo sair facilitado e não haver incidentes ou questiúnculas e a disciplina e segurança necessárias eram, digamos assim, adaptadas automaticamente.

Bons dias por lá passei e em boas companhias.

Exercer e promover a “psícola” era mais para os Furriéis Fontinha e Chaves (Obelix). Ao que recordo a tabanca era deles?! Nesse aspecto e pela minha parte como responsável pelo destacamento, resguardava-me um tanto, não me fragilizando para o caso de ter de exercer a autoridade que detinha, num qualquer diferendo que houvesse com a População. Que lembre só tive um, por causa de um leitão. Deu-me até umas dores de cabeça com o Comando, Coronel “dez para o meio-dia” que quase ficou com a cabeça no “meio-dia certo”, de tanto barafustar comigo.

Por aquelas bandas tive a oportunidade der usufruir de experiencias novas, talvez até inovadoras, de que recordo três:


A “Vagomestria”

Já não sei se inerente ao cargo se por moto próprio, assumir a função de Vagomestre foi uma delas, interessante e motivadora, que ainda hoje nos encontros é por vezes evocada com bocas “foleiras” e risos do tipo: - “Oh Faria… até ao dia vinte tirava-se a barriga de misérias, mas depois… era só “bianda” com “bianda”…! (claro que o vernáculo vem a seguir). “Perdoai-lhes deus (menor) pois não sabem o que dizem”!!!

Na verdade foi mais ou menos assim naqueles um ou dois meses (já não posso precisar) que por lá passei. Comia-se bastante bem em variedade, quantidade e qualidade, esta devida ao Cozinheiro que era espectacular. Só nos últimos dias do mês, com o “patacão “ dos frescos tão esgotado que nem dava para o meu maço de tabaco, contratualizado comigo mesmo, é que se comia “à quartel” !? (modo de dizer, sem ofensas nem juízos de valor).

Pois…, logo de início avisei o pessoal que se ia comer à maneira e que aquela trabalheira toda teria que dar para um maço de tabaco (Português Suave sem filtro) diário.

Já não estou certo se o “desvio”aconteceu ou não …talvez sim (?!) mas o que é facto e ao que sei, comia-se quase como num hotel, chegando a vir por vezes pessoal de outro destacamento ( João Landim) e até de Bula, saborear o repasto, à borla é claro.

Tenho ideia de fazerem parte da ementa o bacalhau com todos (inclusive meia lata de vagens para cada um) , leitão assado no forno; frango assado ou frito (meio para cada), bife com ovo, peixe frito e cozido… de sobremesas recordo as meias latas de fruta em calda para cada boca… acompanhamento de saladas …

Todos esses “pesos” que recebíamos para gerir em “frescos”, eram gastos em abastecimentos na tabanca, em Bula e Bissau. Julgo que seria normal, esperado e até incentivado, que boa parte deles fosse também utilizado em abastecimentos na Companhia. Claro que isso seria mais prático, mais cómodo e daria menos dor de cabeça ou trabalho. Mas connosco, não acontecia!

Quem não achava muita piada era o nosso Primeiro, já que era eu e só eu que escolhia o que queria dos produtos disponíveis da Companhia e não abdicava nem de um “peso” da dotação para o que se chamava “frescos”. Olhado de “ladegos” quando lá ia, era um “exemplo a não seguir”.


A minha “Obra prima”

Descobrir a “propensão“ para as “Artes plásticas” (?!), foi outra experiencia de excepção que me entusiasmou e que resolvi exercer em benefício estético visual das instalações (?!), do equilíbrio emocional (?!) e em prol da “coltura” um tanto ausente (?!)!

Correndo o risco de acabar por ser vaiado ou mesmo escorraçado por “elites” cépticas, tinha que meter cabeça e mãos ao trabalho.

Desde logo foi imperioso um pouco de tranquilidade e paz de espírito, que permitiu à sensibilidade criativa (?!) “atonar ”. Depois não foi fácil escolher e conseguir os materiais necessários à execução que se adaptassem e permitissem a livre expressão da Alma, convertida ao momento pelas mãos e perspectiva visual!?!

Tempo depois e muita concentração, uma obra que recordo acaba por ver a luz do dia. Prima para mim, nela usei toda a sensibilidade a par de muito e delicado manuseamento, compensado é certo pelo deleite que se usufruía consoante se ia mirando e sentindo. Era para mim, realmente prima !?! Prima de primeira, é bom não haver confusões. Nada de “Quanto mais prima, mais se lhe arrima!”

Como à altura não a queimaram nem houve críticos quezilentos ou desfavoráveis, quiçá por receio de represálias, por lá ficou em todo o seu esplendor à entrada da messe, ofertada e ao serviço da “coltura”, digo eu!? Resta-me a imagem que vou postar, para eventual deleite de quem a vier a mirar e sentir! É de nota o posicionamento do confortável “sofá”, de molde a melhor permitir que o apreciador se deixasse levar pelo sonho.



Obra Prima - “Procópio a cachimbar na canícula” (será o nome?)

Bem, mas nem só nas artes (Culinária e Plástica) se viveram novas experiencias, também no Desporto aconteceu, de modo efémero, é certo.


O jogo de “cacimbados”

À falta de “matrecos” e bilhar, só a bola constava no cardápio do desporto. Assim, uma “mente brilhante” gastou-se – depois deve ter-se agastado (não lembro) – na invenção de um jogo que permitisse campeonatos rápidos e musculados e ao mesmo tempo direccionado ao apaziguamento subtil da acção de quaisquer vapores etílicos acumulados anteriormente. Assim nasceu um jogo, viril e nada entediante, uma espécie caseira de “Air hóquei” (se bem lhe chamo), em que os instrumentos do jogo eram a mesa da messe, uma lata de coca – cola, os punhos dos adversários.

Com em todos os jogos, o objectivo era… ganhar. Creio que o tempo de jogo era definido (e pouco) e quem perdia (talvez uma cervejola) era o “atleta que sofresse mais golos ou desistisse antes de acabado o tempo. Assim podia acontecer que quem marcasse mais golos… perdesse. A coisa estava bem engendrada e como se poderá perceber, até final do tempo a vitória era uma incógnita, já que a resistência física e psicológica era crucial ao desempenho.

Assim, nos topos da mesa da messe (distanciados talvez uns dois metros passantes) abancavam os dois adversários e para os espectadores, caso houvesse, não havia lugares sentados! Tirada a sorte para ver quem abria a jogatana, uma lata de “Coca-Cola” cheia era-lhe colocada à frente e com uma murraça o jogador tentava que a “bola” saísse pelo topo da mesa contrário, onde também a murro (só eram permitidos murros) o adversário tentava defender, mandando-a de volta para o outro, agora a defender e assim sucessivamente até surgir o golo. Posta a “bola” de novo em campo, o flagelo continuava.

Como se compreenderá, os nós dos dedos é que sofriam ao aguentar o impacto da massa aumentada pela velocidade que a “bola“ atingia …enfim! Como pelos vistos não havia suficientes cacimbados masoquistas, este potencial belíssimo campeonato foi na verdade efémero.

Luís Faria

(Texto e Fotos: Luís Faria)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8546: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (43): Augusto Barros - Apontamentos

terça-feira, 12 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8546: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (43): Augusto Barros - Apontamentos


1. Em mensagem do dia 8 de Julho de 2011, o nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), conta-nos mais um pouco da viagem às suas memórias.


Viagem à volta das minhas memórias (43)

Augusto Barros - Apontamentos



Como já anteriormente disse ou dei a entender, neste destacamento a vida era uma espécie de pasmaceira, comparativamente ao que estávamos habituados. Basicamente só tínhamos que lutar contra o tempo, que corria a conta-gotas e para tentar contrariar essa baixa velocidade de passagem, usavam-se todo o tipo de estratagemas.

Para além das petiscadas e dos comedores de ostras, já mencionados em Poste anterior, havia os pequenos agricultores caseiros, que se ufanavam e ainda bem também para nós (os aproveitadores) consumidores (?!)

Nessa ”classe” o Furriel Almeida orgulhava-se do seu canteiro de alfaces, tomates (?) e outras hortícolas que ofertava e confeccionava com prazer e “superioridade” superintendente, gostando pouco que alguém mexesse na sua leira que dizia estar sempre a produzir e que o fazia ficar admirado com a pobreza agrícola daquelas gentes!

Detestava e com razão que alguém se apropriasse de qualquer folha que fosse, sem prévia licença. A pequena horta era a menina dos seus olhos, a que dedicava parte do seu tempo com prazer, orgulho e até, parecia-me, certa ternura. “Olha-me para isto… não é um espectáculo, pá ?!” dizia (mais ou menos). ”Esta terra está sempre a dar… não entendo… nem é preciso puxar por ela…!”

Era e é um Beirão de metas a atingir, exigente mas defensor do seu Pessoal, de nobres sentimentos e que acabou nos finais da comissão, por alturas do levantamento do campo de minas, por sofrer bastante psicologicamente, devido (creio) a constatar quase diariamente situações que foram graves para bastantes dos “contratados”, mas lhe eram alheias na medida em que não estava nelas envolvido e como tal não tinha controlo nem podia interferir. Disse “dos contratados” porque o “contrato” pelo menos comigo foi que, no final do levantamento podia ir de férias para qualquer parte da Guiné, até ao dia de embarque. Como ainda hoje… promessas leva-as o vento !!!

Aspecto de Augusto Barros (creio ser o refeitório em fundo)

Augusto Barros - Um treininho de bola

Depois… havia o “Capitão caçador” que arrancava noite adentro para terrenos pouco seguros, com um 412 ou 411 equipado com foco direccional e meia dúzia de “galfarros “ voluntários não para caçar, mas para eventualmente não ser “caçado”! Devo dizer que nunca fui e sempre me opus quanto e na medida em que me foi possível. Achava que os Rapazes corriam um grande risco a acrescentar ao já normal por aquelas paragens e já que se tinha conseguido chegar até ali, passando pelo que havíamos passado… era a meu ver (e ainda hoje) uma estupidez e uma irresponsabilidade que poderia ter afectado terceiros! Mas… era o Capitão “sazonal”.

Lá partia ele e “companhia”, faróis rasgando a noite com focos à mistura, à procura de olhos brilhantes no breu da escuridão que pudessem ser de alvo a abater. Que recorde, naquelas incursões só um gato-bravo teve esse azar.

Um belo dia soube-se que por um acaso da sorte, ”caçador” e companhia não viraram “caça” por uma questão de “horário”. Tinham falhado por pouco uma emboscada, “festa surpresa” especificamente preparada em sua honra! Ao que recordo, acabaram-se as caçadas e ainda bem, pois acabou por ninguém se “aleijar”.

A minha pessoa, que no entretanto tinha mudado de visual  (!?) com uma valente carecada auto-infligida, por lá se ia movimentando no tempo e espaço, gerindo e cumprindo o melhor possível com os deveres, prazeres e receios também.

Dessas andanças recordo idas a Bula montado na direita do pára-choques do 411, “bunda” assente no capô(t), arma abraçada e olhos que pretendia de águia a perscrutar os metros fronteiros de terreno de picada irregular e ressequida, percorridos vagarosamente na expectativa de vislumbrar um qualquer indício de remexida abusiva na terra ou outro qualquer sinal dissimulado, prenunciador de mina ou armadilha colocada após a picagem diária, especialmente em alguns locais mais vulneráveis. Não me perguntem porquê, mas sentia um certo prazer e ao mesmo tempo segurança ao assumir o risco previsto mas precavido.

Os dias iam-se escoando aproximando-me vagarosamente de umas novas férias no “Puto”. Isso era importante, muito importante para a sanidade mental.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8357: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (42): Destacamentos: Augusto Barros e o Grupo das Ostras

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8357: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (42): Destacamentos: Augusto Barros e o Grupo das Ostras

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 27 de Maio de 2011:

Amigo Carlos Vinhal
Cá vai novo apontamento de “Viagem à volta das minhas memórias”, que mais uma vez me fez reviver com prazer e saudade momentos temporalmente distantes, mas presentes no coração e na memória.
Um abraço para ti e outro para a Rapaziada que me possa vir a ler, com votos de saúde, serenidade analítica, independência e responsabilidade na decisão que se avizinha.
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (42)



Destacamentos:
Augusto Barros


Para a grande maioria da rapaziada da “FORÇA”, os tempos de maior incerteza teriam ficado para trás, pelo menos durante uns meses enquanto permanecêssemos distribuídos pelos destacamentos, a sul de Bula.

Mato Dingal e João Landim eram tidos de certo modo como seguros e de população fiável. A excepção era Augusto Barros onde tínhamos conhecimento de a população ser mais “fingida” e de já terem ocorrido flagelações.

A confluência dos Rios Có e Dingal com o Mansôa, configurava uma península onde Augusto Barros se localizava, o que daria (?) o nome a uma Ponta . Era um meio-burako a meu ver mal amanhado e onde beneficiações iam muito lentamente acontecendo. Por lá, e como já referi, ficaram estacionados em coabitação, o Comando e os 2.º e 3.º GCOMB.

O trabalho era o normal, feito em idênticas situações onde havia reordenamentos: Serviços ao destacamento, picagem, deslocações para abastecimento de água e géneros, umas emboscadas nos arredores, pequenas acções de patrulhamento de proximidade, observação, apoio à população, aulas à “canalhada” e não só e em especial tentar que o tempo passasse depressa, ocupando-o com actividades de lazer, intelectuais, desportivas ou outras, que no mínimo provocassem algum prazer individual ou colectivo, todas elas úteis para que as horas se transformassem em minutos.


O Grupo das ostras!

Como é mais que natural, uma das formas encontradas para atingir esse objectivo, eram as reuniões de Pessoal em redor duma mesa, onde a petiscada bem regada, era o mote e por vezes “a morte”.

Chouriças e outros víveres de “qualidade superior lusitana”, enlatados diversos e vinho "estacionados” na arrecadação, de quando em vez sofriam “golpes de mão”, o que criava atritos entre o 1.º Sargento Guerreiro e o meu bom amigo Belchiorinho, Vaguemestre que não gostando que se abusasse, fazia de conta olhando para o lado assobiando, muitas das vezes acabando por participar também na festança! Alentejano e amante das “bazucas” era e continua a ser um maravilhoso ser humano, sempre bem aparecido e acarinhado por todos.

Para além destas reuniões comuns e despretensiosas, de quando em vez juntava-se uma meia dúzia de “privilegiados”, o denominado “grupo das ostras”.

A plena carga de ostras de um “burrito” (Unimog 411) era “tratada” com carinho por competentes entendidos, para vir a ser apreciada pelos convivas reunidos à volta da mesa na messe, onde profusamente se apresentavam as “bazucas”, frescas insubstituíveis e sempre renovadas, qual “Fénix doirada“.

Citrinos temperadores em presença eram “esganados” delicadamente de modo a verter os seus sucos sobre os moluscos bivalves, condicionando-lhes o paladar a gosto.

Pelos meandros de risadas e conversas normalmente “ importantes e intelectualizantes” dos convivas, onde o calão se perfilava e a retrospectiva e futurologia analíticas podiam ter lugar, os “esqueletos externos” dos moluscos e das loirinhas, iam-se acumulando por tudo o que era espaço disponível, em montes cada vez maiores, na razão inversa da quantidade do motivo do convívio que ia gradualmente diminuindo e na razão directa das barrigas dos aderentes que se avolumavam e enrijeciam, sendo os esvaziamento de fluidos corporais cada vez menos intervalados, mais relaxantes e fontes de prazer, enquanto iam passando horas alapados naquela luta tenaz que a alguns ia levando aos limites e à consequente desistência .

Mais mortos do que vivos, de barrigões empedernidos, palavra arrastada e olhares brilhantes de vitória, satisfação e não só, era chegada a hora dos uísques e cafés em multiplicidade, na tentativa de um desejado e bem vindo “amaciamento” da digestão e optimização da circulação sanguínea e não pedonal, esta afectada com certeza e dirigida para a horizontal.

Que o digam os Fur Mil Castro, Almeida, Urbano, Belchiorinho (sempre agarrado à “bazuca”) o Alf Mil Freitas Pereira e outros não tão “empenhados”.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8185: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (41): De volta a Bula - Destacamentos

sábado, 30 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8185: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (41): De volta a Bula - Destacamentos





1. Mais uma viagem à volta das memórias de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), enviada em mensagem com data de 26 de Abril de 2011:





Viagem à volta das minhas memórias (41)

De volta a Bula
Destacamentos


Teixeira Pinto e a sede do CAOP 1 ficavam para trás juntamente com uma actividade operacional interventiva de relevo, seja no plano de esforço físico e psicológico ou, ao que sei, no estritamente operacional e a prová-lo há os vários louvores determinados pelo Cor Pára R. Durão, Comandante desse CAOP 1, com que variada rapaziada foi distinguida, para além de Prémios Governador e Cruz de Guerra.

Luís Faria > Augusto Barros em fundo

Também para trás ficara há já muito, se assim se pode dizer, a nossa “periquitice” e a “meia-idade” começava a dar lugar a uma “velhice” já bem merecedora de “sopas e descanso” enquanto os dias corressem para Julho de 1972, altura falada para o regresso a casa. Era de crer que o pior estaria passado e a partir dessa altura iríamos resolver o resto da comissão sem problemas de maior e da melhor forma possível que conseguíssemos. Pelo menos era o que esperávamos e acidentes eram de evitar.

No entanto e para alguns onde me incluíram, tal acabaria por não acontecer por terem sido “bafejados” com surpresas menos agradáveis e de índoles diferenciadas, durante períodos dessa “velhice” que, julgava eu, deveria (?) ser sossegada.

Retornados ao sector de Bula, onde novamente ficamos na dependência do BCAÇ 2928, os GCOMB foram distribuídos pelos destacamentos, cabendo o de João Landim ao 1.º GCOMB, Mato Dingal ao 4.º e Augusto Barros ao 2.º e Comando. Neste último já se encontrava instalado e ambientado o 3.º GCOMB, regressado de Bissum pelos meados de Novembro, comandado pelo Alf Mil Aires Ornelas (Goês?) coadjuvado pelos Fur Mil Almeida e Ferreira.

Destes destacamentos que conheci e por onde também acabei por assentar arraiais em substituições, para mim o mais simpático e digamos acolhedor, era o de Mato Dingal, segundo no sentido de Bula a partir da travessia do Mansoa.

Não recordo porque razão, a “FORÇA” sofre nova alteração, tendo o Capitão Branco ido para a CCAÇ 3328 por troca de comando com o Capitão Silva Rolão (de que não fiquei com as melhores recordações como militar e comandante).


Augusto Barros > Luís Faria e a metralhadora Breda(?)

Tirado o “azimute” ao cantos das novas e belas instalações e às defesas daquele meio - “burako”, por comparação com Capó, há que começar a organizar a vidinha de molde a passá-la o mais agradavelmente possível, de preferência evitando atritos com a população local, pouco confiável e ao que se suspeitava, infiltrada em noites por “passeantes” das matas. Ao que julgo recordar e por via das dúvidas, uma das metralhadoras pesadas Breda(?) estava virada para as bandas da tabanca, não fosse o diabo tecê-las.


Augusto Barros > Luís Faria > Sopas, descanso e banhos se sol
Ao fundo algumas das instalações

Os dias iam-se somando e a breve prazo começou a instalar-se uma espécie de rotina a que estávamos pouco habituados e que se ia processando no dia-a-dia, sinal de uma nova vida diferente em variadíssimos aspectos e onde o “trabalho” era de certo modo na razão inversa das “sopas e descanso” que marcavam presença a par dos banhos de sol com o corpo besuntado de coca-cola - na tentativa de dar mais “bronze”… (dizia-se ?!!) – e dos litros e mais litros de cerveja, vinho e vinho de caju (adorava este vinho) bebidos com ou sem acompanhamento petisqueiro.

Logo ali à beira existia um pequeno aglomerado de cajueiros, onde passava bastante do tempo em sornas à sombra, ouvindo a algaraviada dos pássaros, ao mesmo tempo que ia comendo daqueles frutos de que também muito gostava e muitas vezes escrevinhando uns “bate-estradas”. Bastantes por sinal.

Engraçado, eficaz e grátis, este meio de comunicação de sentimentos, amores, saudades e novas, onde todo o milímetro de espaço era aproveitado para desenhar mais umas letras construtoras de algumas frases que para serem lidas obrigavam ao voltear do papel e a certa perspicácia de observação sequencial, que chegava a pôr os olhos em bico. Tenho para mim, que esses aerogramas tiveram um papel de muito relevo nessa nossa guerra, ainda que muitas vezes criticados mas sempre bem aparecidos e ansiados.

Aproximando as minhas férias os dias iam-se sucedendo entremeando trabalho, descanso e lazer, por essa altura mais descanso e lazer, com excepção para uma Secção, creio que do 3.º GCOMB que foi para Bula alinhar na segurança da construção da estrada Bula-Binar e mais tarde, por finais de Maio72, um GCOMB seguiu o mesmo caminho, abandonando o bem-bom e entrando em várias Operações.

Assim se foi escoando o tempo até final de Junho altura em que toda a CCAÇ 2791 se viria a reunir de novo em Bula, recomeçando a actividade operacional interventiva.

Texto, fotos e legendas: Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7918: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (40): Teixeira Pinto - Lusco-fusco em Capó

quarta-feira, 9 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7918: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (40): Teixeira Pinto - Lusco-fusco em Capó

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 7 de Março de 2011: 

Amigo Vinhal
Tudo bem contigo?
Mais um pouco de “Viagem…” que fecha uma etapa e vai dar lugar a um outro ciclo diferente, agora mais calmo e seguro, para a maioria da Companhia.
Para todos o meu abraço com votos de saúde e força para enfrentar freimas desta vida
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (40)

Teixeira Pinto – lusco-fusco em Capó

Capó - Momentos de descanso - “messe”

Naquele “cú-de-judas” solitário que era Capó, o tempo ia passando desfiando-se o dia-a-dia em rotinas rotativas de segurança aos trabalhos, máquinas e estradas, picagem, serviços, patrulhamentos de proximidade, emboscadas nocturnas… enfim.

Desse quase mês e meio que por lá penámos, poucas recordações retenho. Para além da agradável “visita” da “bela donzela” (Post 7833 - 21 FEV 2011) e do terrivelmente picante ataque de abelhinhas na mata (Post 4031 - 14 MAR 2009), ficaram no entanto mais algumas, como por exemplo as refeições serem reforçadas com proteínas, coisa que estranhei e não consumi a princípio mas logo aceitei e naturalmente deixei de ligar a essas larvas vivas que se desprendiam do “tecto de palmeidur” e iam caindo no prato durante as refeições, sendo apanhadas sem pejo juntamente com a comida por utensílios que as carreavam, como “complemento proteico”, para as entranhas do tubo digestivo.

Recordo as idas à latrina situada fora das barreiras sempre acompanhado da minha amiga, não fosse o diabo apanhar-me com as calças na mão.

Capó - Com o Alf Mil Barros

Recordo ficar impressionado e estupefacto ao avistar na estrada, aquando de uma ida a Teixeira Pinto, um idoso(?) a “transportar” as “bolsas tomatais” numa espécie de carrinho de mão, tal o tamanho descomunal das mesmas, provocado, julgo, por elefantíase (?!)

Recordo uma ou duas escapadas ao Cacheu onde o amigo e conterrâneo Júlio César “trabalhava” e apaparicava com petiscada à maneira, onde o camarão, - ao que me parece saber, apanhado no rio à noite com rede e lanterna - e o belo chouriço, e outros de origem caseira, eram reis e oferecidos com prazer, numa confraternização apreciada, alegre e normalmente bem regada. O pior era a hora de regressar ao “burako” que nada apetecia.

Recordo picagens e seguranças aos trabalhos na estrada, sob um calor abrasador que obrigava a racionar a água do cantil e em que a poeiraça impregnada com suor se colava ao corpo como se argamassa fosse, criando uma sensação indefinida de picadas e mal estar.

Recordo um fim de tarde em que estando a jantar, fomos surpreendidos por rebentamentos e matraquear que nos fizeram correr a ocupar posições.
Pela segunda vez alguém deitou a mão à minha amiga sempre à mão - o que não foi consentido - e dirijo-me para a “parada” onde está alguém com o morteiro tentando perceber para onde fazer fogo.
O pessoal passa lesto em várias direcções para as posições defensivas e dou-me conta do Fur Chaves (Obelix), impávido e sereno ali perto, em campo aberto e em pé, a afiar um pequeno pau com o seu canivete.

Capó - E no final, tudo o fogo levou.

O primeiro ataque vem do lado da estrada e vai-se prolongando. É pedido apoio pesado mas do Bachile não há alcance. Os tiros acabam para passado pouco tempo retornarem. Lanço uma granada de morteiro e fico com a mão direita como uma bola. A granada na certa e inadvertidamente estaria com as cargas suplementares. É pedido apoio aéreo, sem muita convicção de confirmação e utilidade, dada a hora. Surpresa, somos atendidos e pouco tempo depois surgem nos céus os Fiat que estariam de regresso a Bissau (?) e que às nossas indicações descarregam metralha em voos picados, numa espectacularidade de movimento e cor ao lusco-fusco a que ainda não tinha assistido e difícil de esquecer.

A batalha como que acaba, para se assistir ao espectáculo encenado neste anoitecer de 30 NOV 71 de, como “festa” antecipada de despedida daquelas paragens, que se viria a concretizar a 6  de Dezembro com ida para Teixeira Pinto e a 7 para Bula, de novo, desta vez com destino base aos reordenamentos de Augusto Barros, João Landim e Mato Dingal.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7833: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (39): Teixeira Pinto - Capó e a bela donzela

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7833: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (39): Teixeira Pinto - Capó e a bela donzela

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 19 de Fevereiro de 2011:

Caro amigo Vinhal
Com um abraço e votos de saúde e paz, envio-te mais um pouco de “Viagem…” para, se assim achares, publicar.

É um dos apontamento sobre um pequeno – longo período que passamos, onde a vida se resumia à sobrevivência diária embrutecida, em que qualquer “escape” era viver.

Um abraço para todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (39)

Teixeira Pinto – Capó e a bela donzela

As primeiras semanas de Outubro foram-se passando num dia-a-dia de certo modo rotineiro, em que as saídas para as matas se iam sucedendo sem haver felizmente maus encontros e as “cerimónias” marcavam o ponto, com maior ou menor assiduidade e extravasamento individual ou colectivo dos convivas, consoante o estado de alma, o mote (se é que era preciso), e a quantidade e variedade das bebidas intervenientes.

Em 02Out70, a CCAÇ 2791 (FORÇA) tinha pisado solo da Guiné. Um ano havia passado, muita vida se tinha vivido, muito sangue se tinha vertido, muita dor se tinha cumprido, no que acreditávamos ser um Dever Nobre.

Mas aquela terra que também era nossa, que juráramos defender e nos subtraíra já a juventude, iria querer ainda mais esforço, mais suor, mais dor, mais vida e a 10Out71, a escolha recaiu sobre o malogrado Jesus, Soldado Básico, simpático, solícito e bem disposto, que as águas calmas da bolanha reclamaram aquando dum refrescante banho. Triste sina a do Jesus. Indevidamente (?), já tinha sentido a mata em Bula e sobrevivido.

Os dias foram-se sucedendo sem outros males e a 25 do mês, a FORÇA a 3 GCOMB, reforçada com um GCOMB da CCAÇ 3308 vai para Capó, um não lugar no meio de nada, entre Teixeira Pinto e Cacheu, onde irá ser reinventado e construído um aquartelamento temporário que nos servirá de abrigo e base logística de apoio ao prosseguimento dos trabalhos de construção da estrada, em que íamos passar a estar empenhados na segurança próxima directa de trabalhadores, máquinas e da própria estrada.

Para além de se situar em zona já por nós ensaiada a ferro e fogo, neste acampamento íamos enquadrar meio milhar de trabalhadores nativos, o que era mais uma certa dor de cabeça diária, em especial quando regressavam do trabalho

Trabalhadores (foto J Fontinha)

Como o que não tem remédio remediado está, a desmatação inicia-se e a maquinaria faz ouvir o ronco dos seus potentes motores, desbravando e aplainando terreno, escavando valas e fossas, levantando barreiras protectoras de terra em substituição dos aramados, (por essa altura ainda nos eram desconhecidos os famigerados “bandos do arame”!?) edificando o que a breve prazo se vai transformar em reduto defensivo quadrangular torreado, que irá receber as cerca de seiscentas almas para aquelas bandas desterradas e que por lá se irão espairecer até primeiros de Dezembro.

Capó -Aspecto do aquartelamento (foto J Fontinha)

Construídas pelos exímios nativos em tempo recorde, as instalações feitas de ramos, folhas de palmeira e capim(?), vão alastrando nas suas formas paralelepipédicas pelos espaços a elas destinados. Nos quartos, perfeitamente ventilados e com “saídas de emergência”, as camas são também do mesmo material, com a particularidade de os estrados de fina ripagem arbustiva assentarem em pés enterrados no chão. Os bancos, mesas e todo o mobiliário eram peças artesanais únicas, perfeitamente enquadradas no estilo arquitectónico das edificações, estas concebidas de molde a não ferirem a sensibilidade paisagística do local.

Capó - Descanso do guerreiro! “Escopeta” sempre à mão.

Capó – higiene matinal

Capó – mobiliário - elementos 4.º Gr (foto J Fontinha)

Quanto a operacionalidade defensiva e reactiva, o Pessoal foi instruído das posições a ocupar, dos cuidados a ter e do modo de actuar. Na hora, só podíamos contar connosco, em especial à noite, já que o apoio da artilharia do Bachile não seria viável por não ter alcance suficiente, Teixeira Pinto e Cacheu estavam distantes e aviação era problemática (acabou por vir ajudar-nos, brindando-nos com um dos mais belos quadros pintados a um anoitecer)

A actividade operacional diária dos GCOMB começa a desenrolar-se com normalidade e rotatividade nas tarefas necessárias, como picagem e segurança às máquinas e trabalhos, abastecimentos, patrulhamentos e emboscadas de proximidade, segurança ao aquartelamento…

Elementos 2.º GComb (meu) - Augusto em 1.º plano

Os dias de canícula abrasadora iam-se sucedendo sem males de maior que lembre, embrenhando-nos a viver naquele meio de nada, onde o diferente era por vezes exacerbado, dando vida e alento àquelas almas penadas que por aquelas bandas se atreviam de quando em vez a sonhar(?!).

É assim que um belo dia, creio que pela manhã, reparo na correria desgarrada do pessoal ”residente” em subida para a barreira frontal à estrada. Apresso-me na mesma direcção a inteirar-me do que se passa e estampa-se-me o olhar numa branca e alourada donzela (?!), de mini - mini saiinha, que arejava as coxas e calcinha protectora das “vergonhas”, debruçando-se na apanha de pequenas florinhas amarelas, que julgo malmequeres.

Talvez por se aperceber das movimentações militantes, resolve prolongar e até alindar o trabalho, aumentando um pouco mais a ventilação da alva blusa em uso, quiçá devido ao eventual aumento de temperatura provocado pelo calor dos humanos olhares embicados e perscrutadores ou mesmo com intenção meritória e altruísta de tentar exercitar e dar um pouco de vida aos “mangalhos pendurões” e em hibernação daquela plateia de galfarros com avidez gulosa espelhada nos olhares.

Fosse por que motivo fosse… foi um raio de luz e calor que nos envolveu e marcou momentos que intimamente agradecemos e ainda hoje recordados .

Luís Faria

© Fotos L Faria/J. Fontinha
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Nota de CV:

Vd. último posue da série de 8 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7573: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (38): Teixeira Pinto - movimentações militares e dores de cabeça

sábado, 8 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7573: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (38): Teixeira Pinto - movimentações militares e dores de cabeça

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 20 de Novembro de 2010:

Amigo Carlos
Espero que estejas já completamente restabelecido.

Envio-te mais um pouco de “Viagem…” que complementa a narrativa de uma situação vivida e não esquecida, mas com data certa perdida. Talvez o Jorge Picado ou algum outro possa ter memórias destas movimentações.

Como sempre, fica ao teu critério a análise e decisão do interesse que possa ter, para publicação.

Um grande abraço para ti e outro para todos os “Atabancados”, com votos verdadeiros de saúde e independência, neste sombrio e imprevisível 2011

Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (38)

Teixeira Pinto – movimentações militares e dores de cabeça

Passados os momentos críticos e comunicado por rádio ao Comando o que se passara (Poste 7429), há que pôr rapidamente o mini GCOMB em marcha dentro do possível acelerada, numa tentativa que se veio a revelar vã, de intercepção do grupo armado. Ao mesmo tempo, o estar fora de zona martelava-me a cabeça fazendo-me pensar não tanto na eventual ”porrada” mas, isso sim, na situação perigosa em que ficaríamos se o Comando resolvesse bater zona ou o mais provável, enviar tropa para intercepção.

Assim resolvi que caminhássemos controlando o tempo, mas o mais rápido possível na noite, para NW em direcção à estrada que de certeza não seria batida, ao mesmo tempo que, quando solicitado, íamos informando o Comando da nossa posição (pelo mapa) como se estivéssemos a fazer o percurso para Sul, em direcção a Teixeira Pinto. Deste modo iria haver um ponto em que as trajectórias fictícia e real coincidiriam e aí… estaria safo e podíamos “passar a ser visíveis”!!

O Pessoal sente que o cutelo está no ar sobre o meu pescoço e segue a mínima instrução dada, confiando cegamente ! Maravilha de Rapazes! De pistola na mão continuo guiando a Rapaziada na noite , entretanto um pouco amainada de chuva, rumo ao ponto escolhido.

Estávamos nestas andanças e já muito próximos da estrada, quando se avistam “luzes andantes” encimadas por o que me pareceram focos intensos que rasgavam a noite, vindas na nossa direcção e se começa a ouvir barulho de motores. Continuávamos fora de zona pelo que, se detectados poderíamos ser considerados IN. As luzes continuam a sua aproximação acompanhadas, já em simultâneo, pelo ronco motorizado.

Encontramo-nos a umas poucas dezenas de metros da estrada, em terrenos com vegetação rasteira, com um pequeno grupo de cajueiros(?) a uns metros de nós. Corremos para eles e colamo-nos ao chão mascarando-nos o melhor possível, ficando estáticos. A chuva ajudava. Só por muito pouca sorte seríamos detectados. Minutos depois desfilam “Daimllers” e Unimogs pela fita da estrada, com os focos varrendo a escuridão e passando por nós sem se aperceberem da nossa presença, como fora previsível .

Perdidas de vista as luzes e antes que a coluna regressasse, continuou-se o avanço prudente até que achei que era hora de informar da nossa posição real e de informar do regresso à base.

Graças a Deus tudo tinha corrido bem até ali. Para a frente… logo se veria!

A pequena “bicha de pirilau” espaçada e mal armada, começa a entrar na povoação. De súbito e chamando-me, surge- me o Castro que me traz a G3 e cartucheiras e que começa a infiltrar Rapazes e armas na fila, sem que houvesse paragem e sem explicações desnecessárias. Era óbvio que algo se passava! Ao meter a Walther no coldre… não o encontro! Mais outra porra a resolver! A arma vai para o bolso interior do camuflado onde tantas vezes andara já!

Fiquei satisfeito com a atitude, com a camaradagem e apreço demonstrados pelo Pessoal. O andamento prossegue, agora já não de uma dúzia de “veraneantes” mas de um grupo fortemente armado, o que me iria “salvar” das eventuais consequências de ter saído naquelas (sem) condições, de que só eu era responsável. Tinha sido essa a intenção do Castro e do Pessoal, ao que sei. Como ele sabia por onde íamos passar… já não sei, nem ele recorda.

Passada a porta de armas e na parada, o Grupo forma e apresenta-se, à nossa maneira, ao Cap. Branco, que a reporta ao Comandante do CAOP, Cor Durão. Manga de pessoal era observador!

Com olhar penetrante e expressão cerrada perscruta o Grupo e encarando-me de frente, o que me fez ficar apreensivo e tenso, diz-me irritado,alto e bom som mais ou menos “com um grupo destes e assim armado, deixas escapar uma dúzia de gajos? Mereces é que te dê umas estaladas …”

Aguentei firme o olhar, a mão ferrou-se com força na G3 e enquanto um turbilhão de sentimentos se me passou num “flash”, ouço o Cap. Branco retorquir calmamente em minha defesa algo muito próximo de “…meu Comandante, se houver lugar a castigo, quem castiga os meus Homens sou eu…”!!

Ah, Homem de tomates este meu Capitão Branco!

Destroçada a formatura, dirijo-me ao Capitão e sem lhe contar o que se passara, digo-lhe…” na mesma situação, se fosse o Capitão a comandar teria de certeza feito o mesmo!” ao que anuiu e retorquiu que ficasse descansado. Achei uma prova de confiança. Era um Homem Militar batido, inteligente e esperto. Nunca me perguntou ou indagou rigorosamente nada! Ter-lhe-ia contado, sem qualquer problema, como tudo se passara.

Peço aos Rapazes para não se pronunciarem sobre o que se passou e recolho-me aos aposentos para descansar umas horas. Logo ao alvorecer teria que ir tentar encontrar o coldre da pistola, antes que qualquer elemento da população desse com ele e o fosse entregar ao Comando. Seria a estória do “gato escondido com o rabo de fora”! Julgava saber onde o encontrar e ao alvorecer dirijo-me numa viatura à zona dos cajueiros e… lá estava !

Toda esta estória que pôs o Quartel em polvorosa - despoletada por um grupo IN armado que afinal roubou gado e creio que raptou alguém em Teixeira Pinto ou nas proximidades (já não recordo) - teria acabado por ali, não fossem as bocas enviesadas do género “há gajos valentes…” , os olhares de soslaio… o sair de ao lado, no bar… enfim uma série de manifestações, umas reais outras talvez na minha interpretação, que a meu ver não abonavam alguns Especiais, mas que eu justificava por me terem visto regressar com um GRUPO fortemente armado que tinha evitado o confronto com uma mão cheia de “gajos” e claro, estávamos no seio de Tropa Especial! É verdade que estas atitudes criaram alguns atritos pessoais durante um ou dois dias, mas o mais difícil foi sentir a consciência tranquila e não poder esclarecer a verdade.

Os dias recomeçaram a passar com normalidade e sem mais conflitos, levando-nos a breve prazo para outras batalhas, travadas no meio do nada!

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7429: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (37): Teixeira Pinto - Erro que podia ter sido fatal

[...] A decisão está tomada, só disparo se for detectado ou se eles se dirigirem na direcção dos meus Rapazes. Resta aguardar. Preparado e estático, rezo para que não se ouça a Rapaziada desprevenida.

Continuam a aproximar-se ligeiros e em silencio… dez metros, cinco metros, um metro… estou em tensão, mas calmo e frio… começo a contá-los… vão-me passando pela frente quase me roçando, dezassete elementos com espaçamentos curtos - quinze metralhadoras visíveis, confirmados dois RPG e não um - que começam a virar à esquerda, só Deus sabe porque e vão desaparecendo na noite.

Estávamos safos, graças a Deus. Três ou quatro minutos se tanto que me pareceram uma eternidade, se tinham escoado. De imediato movimento-me e instruo o Pessoal, que de nada se tinha apercebido. Pelo “banana” AVP1 contacto o Comando, alertando para eventual flagelação e informando do observado.

O mote estava lançado… movimentações bélicas iriam acontecer… outra dor de cabeça ia começar !

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7429: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (37): Teixeira Pinto - Erro que podia ter sido fatal

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 20 de Novembro de 2010:

Amigo Carlos Vinhal
Um bom dia.

Como as anteriores, mais uma passagem verídica de “Viagem…” que à altura me viria a afectar bastante em alguns dos dia-a-dias seguintes e que sai agora, ao fim de trinta e nove anos, do exclusivo conhecimento dos intervenientes.

Para ti Vinhal e para os que tiverem a paciência de ler, o meu abraço.
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (37)

Teixeira Pinto - Erro que podia ter sido fatal

Ao meu 2.º GRCOMB foi finalmente atribuído um descanso de dias na actividade operacional de intervenção, passando a operar em serviços e patrulhamentos, aliados a emboscadas na povoação e imediações, o que para nós era uma espécie de férias que nos começou a diminuir a tensão psicológica, levando-nos porventura a baixar um tanto a guarda, o que a acontecer, podia traduzir-se no facilitismo e no erro fatal.

Por muito pouco esse erro… não aconteceu,ficando-me de emenda, como responsável!

No meu 2.º GRCOMB, logo após as primeiras Operações na Guiné, tínhamos instituído que quem fizesse anos seria dispensado de qualquer serviço nesse dia, podendo inclusive e eventualmente, beneficiar também da dispensa de um amigo. Era de certo modo uma maneira de premiar o Pessoal mais que merecedor e ao mesmo tempo prevenir qualquer situação de fragilidade emocional potencialmente de risco, em especial na mata, onde a segurança devia ser sempre uma constante. Na situação em concreto (neste descanso), os graduados revezavam-se nas saídas, considerando a ausência ou diminuta periculosidade das mesmas.

A época das chuvas caminhava para o seu termo, não obstando a que fortes bátegas de água, mais ou menos prolongadas, se abatessem dos céus alagando tudo e que, ao esparramar-se no chão levantava uma espécie de nevoeiro, como se de um aspersor se tratasse.

Assim está o tempo nesse final de tarde em que íamos fazer um patrulhamento com emboscada nocturna pela Povoação e periferia próxima, com regresso previsto, salvo erro, pelas uma ou duas da manhã

Um e depois outro elemento do grupo pedem por licença de anos e pela presença no convívio de alguns amigalhaços. A autorização é-lhes concedida, já que foi considerada uma saída sem ou diminuto risco. Ao Castro (Fur Mil) digo-lhe que dado o pouco Pessoal que ia alinhar, não era preciso vir, pelo que ficou a descansar. O Barros creio que estava para… a Família!?!

Na parada, sob chuva séria, um 2.º GRCOMB (?!) composto por cerca de uma dúzia de elementos com armamento leve e sob o meu comando (só levava a Walter) apresenta-se ao Cap. Branco que, vendo o pequeno número de Homens, me interroga se estamos todos. Mediante a minha resposta afirmativa recebe a apresentação e arrancamos debaixo do aguaceiro.

A zona pré determinada para emboscar era algures entre o perímetro da Povoação e a Ponte Alferes Nunes. Pelo caminho íamos patrulhando a periferia.

Noite adentro e o dilúvio não abranda, ensopando-nos até aos ossos, apesar da protecção dos ponchos. Ainda um tanto afastados da zona de emboscada reparo em duas moranças isoladas à face do caminho e para não nos castigar mais, resolvo e dirijimo-nos para a protecção dos seus beirais zincados. Pareciam inabitadas.

Digo à rapaziada para se abrigar mas, por estarmos fora de zona não queria barulho de molde a acordar ou sermos pressentidos pelos eventuais moradores, já que se o “baldanço” chegasse aos ouvidos do Comando, na certa me lixava. O Cor Pára Durão não era para brincadeiras!!

A Rapaziada anuiu satisfeita e por lá fica abrigada, em conversa sussurrada à mistura de umas cigarradas. Avisados de que vou fazer a segurança e verificar o terreno, afasto-me por um trilho na perpendicular, entre capim alto, que a uma trintena de passos se divide à minha direita com um outro que parece ir na direcção da povoação. Logo a seguir a essa bifurcação, resolvo posicionar-me do lado direito, aninhado sobre os calcanhares e dissimulado no capim, quase à face do trilho, de molde a poder perscrutá-los, ficando coberto pelo poncho e em observação por uma nesga do capuz cerrado sobre a cabeça.

O tempo vai passando e da Rapaziada atrás de mim, não ouvia qualquer barulho, talvez por terem seguido o meu pedido ou por o som ser abafado pelo ruído do aguaceiro.

A chuva continua a cair com força e a dada altura parece-me distinguir a uma vintena de metros, vultos silenciosos na noite que se aproximam, vindos em fila pelo trilho na minha direcção! Surpreso, empunho a Walter, encolho-me e fico estático. Os olhos aguçam-se-me tentando perceber se é população, o que seria estranho àquela hora. Ligeiros continuam a avançar na minha direcção e começo a distingui-los melhor… parece-me… trazem armas… também um RPG! Grande porra, são turras… estou fod …!!


Sem hipótese de ir para junto dos meus, puxo-me lentamente um pouco para trás, aninho-me mais no capim com a Walter já em posição de fogo e fico pronto a disparar com o primeiro na mira. Tenho a noção de que um ou dois tombariam sem que em princípio e dado o meu posicionamento, algo me acontecesse ! O pensamento voa para os meus Homens que, se eu disparar ficarão no enfiamento dos tiros de resposta e serão apanhados de surpresa, na certa com graves consequências. Pena não levar granadas!

Um “flash” mostra-me três hipóteses possíveis: não me detectam e continuam em direcção ao Pessoal, só me possibilitando disparar quando a maioria já por mim tivesse passado, fazendo assim com que a resposta fosse na minha direcção (em principio não me atingiria) e como tal em direcção oposta aos Rapazes, que ao mesmo tempo ficariam alertados e interventivos.

A segunda hipótese, com sorte a melhor, seria eles virarem à esquerda pelo trilho sem me detectarem. A acontecer isso… não haveria tiros.

A terceira hipótese, ser detectado… a acontecer seria um cu de boi !!

A decisão está tomada, só disparo se for detectado ou se eles se dirigirem na direcção dos meus Rapazes. Resta aguardar. Preparado e estático, rezo para que não se ouça a Rapaziada desprevenida.

Continuam a aproximar-se ligeiros e em silencio… dez metros, cinco metros, um metro… estou em tensão, mas calmo e frio… começo a contá-los… vão-me passando pela frente quase me roçando, dezassete elementos com espaçamentos curtos - quinze metralhadoras visíveis, confirmados dois RPG e não um - que começam a virar à esquerda, só Deus sabe porque e vão desaparecendo na noite.

Estávamos safos, graças a Deus. Três ou quatro minutos se tanto que me pareceram uma eternidade, se tinham escoado. De imediato movimento-me e instruo o Pessoal, que de nada se tinha apercebido. Pelo “banana” AVP1 contacto o Comando, alertando para eventual flagelação e informando do observado.

O mote estava lançado… movimentações bélicas iriam acontecer… outra dor de cabeça ia começar !

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7314: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (36): Teixeira Pinto, uma nesga do Paraíso

domingo, 21 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7314: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (36): Teixeira Pinto, uma nesga do Paraíso

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 20 de Novembro de 2010:

Amigo Vinhal
Para a “Viagem à volta das minhas memórias” segue mais um apontamento que recordo, talvez pela coincidência das situações não usuais ocorridas, que publicarás se assim o entenderes.

Um abraço para ti e outro para todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (36)

Teixeira - Pinto – uma nesga do Paraíso

Após o dia fatídico, a 2791 continuou nos seus registos operacionais por mais uns tempos naquelas matas.

A 1 de Outubro de 1971 apresenta-se na FORÇA, em substituição do Cap. Mil. Art. Mamede de Sousa, que foi para o COMCHEFE, o Cap. Q.P. Inf. de sua graça Teixeira Branco que nos irá comandar por dois períodos de intervenção intercalados.

De estatura mediana, ao arredondado e cabeça com pouco pêlo, corria a informação que tinha os tomates no sítio e tirara um curso nas Forças Especiais Americanas, pelo que algum do Pessoal começou a pensar que a partir dali íamos estar ainda mais fod…

Não foi essa a minha opinião e logo aquando da apresentação à Companhia, pelo seu posicionamento fisionómico, seu modo de olhar e atitude observadora, pareceu-me ser um condutor de homens, sem manias de bom ou de complexos de comando, que zelaria pelos seus subordinados e os defenderia se a isso houvesse necessidade, direito e justeza, sem medo de eventuais consequências. Acabaria por dar provas disso mesmo, a muito curto prazo.

Os dias foram-se passando e uma bela noite, chamou-me ao seu quarto e debruçados sobre o mapa informou-me que iríamos sair de madrugada para determinada zona, sem objectivo específico, em que ele participaria, mas no entanto o comando estaria a meu cuidado. Lembro-me que não estranhei a situação, mas já não recordo por que razão não ia Alferes, o que também já havia acontecido antes. Era sabedor que os GRCOMB estavam cansados, em especial que o meu estava a precisar de uma paragem operacional e olhando-me deu-me a entender, não o dizendo, que não seria necessário andar aos tiros a não ser que a isso fossemos obrigados. Traduzi para mim que uma “baldazita” não seria má de todo, mas para isso não podíamos ser detectados na entrada da mata… o resto talvez fosse viável. Íamos ver.

Na madrugada é feita na parada a apresentação do Pessoal a um Cap. Branco que, como único armamento traz a Walter no coldre à cintura. Fico surpreendido e ao mesmo tempo afiro da sua confiança em nós. A Rapaziada bem armada, como costume salta para as viaturas e arrancamos.

Entrados na mata, a progressão e o seu sentido é de molde a procurar não provocar maus encontros, sendo os vários descansos feitos, alongados e silenciosos. Creio que nessa saída não houve PCA

As horas foram-se escoando, ouvindo-se um ou outro curto matraquear ao longe. Num desses descansos pela tarde, estávamos numa mata atapetada de verde, com arvoredo de médio porte e copas frondosas. O dia solarengo parece convidar a uma sorna que, na certa desejada, é inviável. Para além dos cantares da passarada que parece não se dar conta da nossa presença, recordo a presença elegante de uma gazela na proximidade que, de narinas no ar e aparentemente não detectando ou não se intimidando com a nossa presença, continua na sua actividade.

Feito o controlo de segurança, escolho o meu lugar e posiciono-me de encosto a uma árvore. O tempo vai passando e aquele lugar, recordo, parece-me um pequeno Paraíso, até que, ao atentar na minha direita, fico surpreendido e em tensão, quando detecto à distancia de uma G3, um grosso cepo aflorando da erva, que mais não é do que uma bela e avantajada surucucu (?), enrolada e dormindo a sono solto, descansada. Olha se se tinham sentado nele!? Agora já só faltava a Eva - Adão já éramos muitos - para aquilo ser o Paraíso verdadeiro!

Catana não havia, dar-lhe um tiro estava fora de questão e usar a faca, nem pensar… não fosse ser o diabo tecê-las! Assim, aqueles longos minutos foram-se arrastando e passados a observar atentamente, mesmo atentamente a bicha, com a G3 empunhada pelo cano como se de um cacete se tratasse, pronto a desferir o golpe que deveria ser, se não fatal ao menos atordoador, caso a vizinha abrisse um olho e despertasse.

Feito o descanso, levanta-se arraial e a Rapaziada vai passando em silêncio por mim e pela cobra, que continua o seu sono reparador, ao calor da tarde. Pena aquela pele ter que por lá ficar, pois daria um bom par de sapatos e uma bela carteira (!?) penso. Aviso e incorporo a fila entre os últimos, seguindo para diante.

A operação continua, acabando felizmente sem quaisquer incidentes. Chegados a casa e dada a ordem de destroçar, para minha surpresa reparo que o diabo dos sapatos e da carteira nos tinha acompanhado.

A partir daí, o meu 2.º GRCOMB irá entrar em alguns dias de descanso, bem merecidos.

Luís Faria

2.º GCOMB/CCAÇ 2791
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7172: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (35): Teixeira Pinto - Enfiamento da morte

domingo, 24 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7172: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (35): Teixeira Pinto - Enfiamento da morte

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 23 de Outubro de 2010:

Amigo Carlos
Um abraço e tudo de bom.

Entre Deus, Destino e Sorte, sempre optei por Deus e Mãe Maria, como apoio e ajuda nos caminhos da vida, por mais difíceis que sejam.

Por achar que não devia entrar em alguns pormenores (?), esta passagem de “Viagem …” é um retrato condensado de um dos dias mais pesados da 2791 – FORÇA e por que passei, quer no plano físico com todo o esforço e tensão dispendidos, quer no psicológico por vezes numa luta de sentimentos contraditórios entre o Dever, Consciência, Responsabilidade, Dor, Instinto e Risco.

A quem ler, em especial aos que possam ter vivido estes momentos, o meu pedido de desculpa por poder ferir quaisquer sensibilidades ou fazer reviver esse dia.

Um abraço a todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (35)

Teixeira Pinto – Enfiamento da morte

Madrugada de Setembro e a rapaziada forma na parada, como habitualmente em boa disciplina, aprumo e com garbo.

Verificado o equipamento e transmitido o cuidado redobrado a ter, pela previsível dureza da operação em que não podia haver facilitismos, montamos nos Unimog que em bom andamento nos levam ao longo da estrada Teixeira Pinto - Cacheu.


Teixeira Pinto > Heliporto

Os quilómetros vão ficando para trás até que a coluna pára e o pessoal dos 1.º e 2.º GCOMB rapidamente se apeia, reúne e assume as suas posições, dando quase de imediato início ao andamento para entrada na mata, com azimute a um ponto mapeado como nosso objectivo nesse dia, algures na península do Balanguerês.

Ao que julgo lembrar, o tempo meio cinzento mas com abertas estava mais ou menos estável mas, as variações da vegetação nas matas por vezes dificultavam a progressão serpenteante, espaçada, atenta e silenciosa que procurávamos fazer, na esperança de não sermos detectados até ao objectivo, onde era suposto e quase certo, virmos a ter confronto.

Sob o comando do Alf Mil Barros (2.º GCOMB) - julgo que o Alf. Mil F. Pereira (1.º GCOMB) não participou – coadjuvado pelos Furriéis, o bi-grupo (?!) com cerca de trinta elementos com o armamento reforçado pelas MG e Lança-róquetes que usávamos, foi escoando as horas na marcha a corta-mato, intervalando com pequenos descansos para descompressão, escuta e perscrutação de pormenor, evitando o mais possível os trilhos, clareiras e matas de copas muito abertas, o que era normal fazermos por segurança.

A avioneta de PCV cedo nos começou a sobrevoar intervaladamente, fazendo-nos temer a detecção ou pior ainda, denunciar eventualmente o rumo do nosso andamento. Como consequência, a nossa vertical começou a ser viciada e os banana AVP-1 começaram a sofrer de interferências e perdas de sinal !?!!

Julgo que por o Mesquita ( Furriel do 1.º GCOMB) estar de férias, o Fur Mil Marques do mesmo GCOMB - há já uns meses afastado destas lides por ter ficado adstrito à secretaria – conhecedor da dificuldade da operação, oferece-se para fazer parte da força desfalcada de graduados. Como já não estava habituado àquelas andanças, o Castro e eu não concordamos em que ele assumisse esse risco, mas o Marques insistiu e insistiu, acabando valentemente por nos acompanhar.

Continuando a progressão, já próximos do objectivo começamos a entrar numa mata arbustiva que a cada passo ficava mais fechada. Paramos para análise da situação e descansar um pouco, fora de possíveis olhares indiscretos. Os que já lá estavam embrenhados deviam sair rapidamente dali, já que o tipo de mata quase só nos permitiria ripostar por tiro em caso de ataque e ficávamos muito permeáveis aos RPG e morteiro.

A dada altura começamos a ouvir vozes vindas ao que parecia, de um palmar a umas poucas dezenas de metros à nossa esquerda. É resolvido fazer por alguns de nós uma aproximação para observação e eventualmente desencadear uma espécie de golpe de mão, enquanto os restantes ficavam de cobertura e apoio à retirada, com instruções de só dispararem à vista e se fossem atacados, pois o grupo de observação poderia ficar entre fogos.

De novo o Marques se voluntaria para comandar, mas acaba por aceitar os argumentos da minha oposição incisiva e ficar.

Peço uma dúzia de voluntários com MG, HK, lança-róquete, dilagrama e restantes com G3 e avançamos agachados mas em passo rápido. A mata começa a rarear e o palmal está logo ali na frente, para lá de umas moitas. Várias vozes se ouvem agora distintamente, orientando-nos.

Em início de manobra de abertura, o fogachal rebenta com intensidade feroz, vindo de cima e de frente. Ouvem-se gritos e choros. O matraquear e os rebentamentos sucedem-se. Diante de mim depara-se me uma mulher e atiro-me para cima dela, só depois me apercebendo que traz um bebé às costas (vd. Post 3634 de 16 DEZ 2008 ).
…um impacto num carregador do cinturão e outro no guarda mão fazem-me em pensamento chamar pela Mãe em ajuda (curioso (?) mas verdadeiro). Na realidade foi um aperto do caraças.

O tempo abranda e parece parar em contraposição aos disparos… até que aquela escaramuça termina. São recuperadas quatro mulheres com dois miúdos bebés. Nenhum de nós foi ferido, felizmente não tendo o adversário tido a mesma sorte, pelos indícios.

O pessoal reagrupa e recomeça a progressão com moral em alta mas consciente da grande probabilidade de virmos a sofrer uma forte emboscada. O 1.º GCOMB vai agora na frente. Um dos miúdos volta e meia chora denunciando o nosso andamento e repara-se que é a mãe que o belisca nas pernas. Ameaça-se a mãe, mas os choros continuam com interrupções, denunciando-nos. A situação é gravosa e há quem lhe queira pôr fim. Intervenho e ameaço. A marcha continua.

Na frente segue o Fur Mil Rebocho (OE) e o 1.º Cabo Antunes (MG 42), ambos do 1.º GCOMB. A uma dezena de metros na orla de uma pequena clareira é avistado um elemento IN camuflado a apontar um RPG, que dispara de imediato no enfiamento da fila.

Há reacção mas o Antunes infelizmente não tem tempo de se esquivar e… cai. Estamos a 23SET71.

A emboscada desenvolve-se pela frente e pela direita. O tiroteio agiganta-se, uma das prisioneiras foge… o PCV volteia por cima de nós (Post 7067 - 01OUT10).

Os Enfermeiros Braga e Taia desdobram-se e fazem o que podem e sabem no apoio aos feridos. Valentes Homens.

Passado tempo que pareceu infinito, tudo fica calmo.

Nada bom de se ver… o malogrado Antunes tem uma granada de RPG que não explodiu (?) mas lhe causou a morte, enfiada no baixo ventre com a empenagem de fora. Digo que não explodiu porque penso que, se assim não fosse, pelo menos toda aquela zona do corpo teria desaparecido, o que não aconteceu .

Vem-me à cabeça a cena do miúdo e interrogo-me. Acabo por aceitar que procedi como devia, a consciência não me pesa e fico em paz.

Por momentos parece que vai haver algum descontrolo emocional perigoso e que é sustido com firmeza e segurança, com serenidade, ordens claras e incisivas .


Teixeira Pinto > Luís Faria junto a um helicanhão

Para além do Antunes, há seis feridos, alguns com gravidade. O voluntário Fur Mil Marques é um dos feridos, julgo que numa perna ou pé, felizmente com pouca gravidade, pelo que vai ser evacuado. Peço-lhe um carregador para substituir o que tinha ficado inoperacional e para trocar de G3 comigo, já que a minha passou a funcionar só tiro a tiro, talvez em resultado do impacto que apanhou, mas acabo por desfazer a troca.

Era a minha G3 que sempre me fora fiel, nunca me tinha deixado ficar mal, e até compartilhava com ela, amarrando-o junto do tapa chamas, um pequeno lenço vermelho que me tinham oferecido no Puto e que usávamos em operações e minas, entre outras ocasiões. Não iria ser por ela estar um tanto engasgada que a abandonaria. Superstições.

Efectuadas as evacuações e inspeccionada a zona ficamos a perceber que seriam uma vintena os convivas nefastos e que nem todos regressariam às suas lides normais!

O pessoal arranca em direcção à zona de recolha onde vai passar a noite, acabando por lá chegar sem mais contratempos. Teixeira Pinto e a nossa doce vivenda estão à espera, desta vez para carpir mágoas e procurar analisar o que se tinha passado.

Iria ser difícil esquecer esse dia.
Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7067: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (34): Em Teixeira Pinto, círculo quase fatal