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terça-feira, 24 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22481: Notas de leitura (1374): Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português” (Lisboa, Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte I (Luís Graça)

Ficha técnica:

Título: No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português
Autor: Jorge Monteiro Alves
Edição: 07-2021
Editor: Livros Horizonte, Lisboa
Idioma: Português
Tipo de Produto: Livro
Páginas: 192
Dimensões: 155 x 235 x 15 mm
Encadernação: Capa mole
ISBN: 9789899984837
Classificação Temática: Livros em Português > História > História de Portugal
Preço de capa: c. 15 euros


Nota de leitura, por Luís Graça >  Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne; Guiné, o Vietname português” (Lisboa,  Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte I


“Portugal teve o seu Vietname na Guiné” (pág. 17), começa por escrever o autor, logo na primeira linha do primeiro parágrafo do Capítulo I (sem subtítulo, tal como os restantes, quinze ao todo).

É já um “lugar comum” a tentativa de comparar-se a guerra da Guiné com a do Vietname, mas isso poderia (e deveria) começar por ser uma “pergunta de investigação” , aceitável por exemplo num trabalho académico, uma  dissertação de mestrado ou uma tese de doutoramento.

Não sei se alguém, mais habilitado para o fazer, com formação em ciências militares (, cultivadas, por exemplo, na Academia Militar), já se abalançou à tarefa de responder a esse desafio. Não é questão para ser respondida, com seriedade, nas redes sociais.

São comparáveis as duas guerras ? Nâo me parece, dado o contexto geopolítico e os meios logísticos, humanos e militares envolvidos, a par do número de baixas, tanto militares como civis. Enfim, seriam, ambas, guerras de "baixa intensidade", comparadas com as guerras convencionais, envolvendo dois ou mais Estados ? 

Deixemos isso para os peritos militares, mas em geral a guerra da Guiné cabe na definição de Conflito de Baixa Intensidade (, em inglês, low-intensity conflict) melhor do que a guerra do Vietname. O que não quer dizer que na "nossa guerra" não tenha havido cenas de grande violência e horror como as do Vietname. Muitos de nós já aqui o testemunharam. Num caso a televisão mostrou, no outro omitiu.  Historicamente a guerra do Vietname foi a primeira a ser mostrada em direto nos ecrãs de televisão,  afetando o moral das tropas e minando o patriotismo dos americanos que ficaram na retaguarda... O que teria em Portugal em maio/junho de 1973 se a televisão estatal, a única que existia, tivesse mostrado imagens em direto de Guidaje, Guileje ou Gadamael ? Impensável. ..

Não é o caso deste livro, que de facto não pretende comparar a guerra do Vietname com a da Guiné. Não é, nem pretende ser, um trabalho académico, com as exigências próprias do género, a começar pelas referências bibliográficas e pelo "estado da arte" (ou revisão de literatura). Não é sequer um ensaio de história, ou muito menos uma obra biográfica. Mas também não é ficção, mesmo que o autor nunca posto os pés no território....Era muito novo ou estava para nascer....

Li o livro num fôlego, com agrado, estilo incisivo, frase curta,  à Hemingway, mas vejo-o apenas como um trabalho de investigação jornalística. Que, acrescente-se desde já, tem méritos e alguns erros, omissões ou falhas, a serem objeto de correção, se for caso disso, numa 2ª edição, aumentada e melhorada. 

“No mato ninguém morre em versão John Wayne” seria, em todo o caso, um bom título para uma obra de ficção sobre a guerra, em geral, e a guerra de guerrilha e contraguerrilha, em particular, se não fora o subtítulo, “Guiné, o Vietname português”.

Mas a bota não bate com a perdigota, isto é, o continente com o conteúdo: o leitor pode ser induzido em engano se levar à letra o subtítulo da obra do Jorge Monteiro Alves. Na realidade, nas 191 páginas e nos 15 capítulos deste trabalho literário ou jornalístico, o autor deixa cair, logo à primeira, o topónimo “Vietname”. Não se fala mais da guerra onde o exército norte-americano parece ter perdido tanto na linha da frente como na rectaguarda (, tendo em conta o clima de grande hostilidade, impopularidade e contestação que a guerra do Vietname provocou no seio da sociedade americana e na própria Europa)…

Na realidade, não são sequer realidades comparáveis, a Guiné e o Vietname, Portugal e o EUA, o PAIGC e os vietcongs e os seus aliados… O único termo de comparação com a nossa “guerra do ultramar” que se pode encontrar no livro é da “guerra da Argélia”, muito embora a Argélia francesa fosse uma verdadeira colónia de povoamento, o que a Guiné portuguesa não era (nem nunca foi):

(…) “Ali, na luta armada contra o movimento de libertação argelino (Frente de Libertação Nacional, FLN), Paris chegou a colocar 500 mil homens, efetivos destinados a combater num área de 300 mil km2 (o restante da Argélia é deserto). E contava com todo o apoio logístico-militar da própria França, situada a apenas 700 km. Tudo em vão. Portugal, pelo contrário, empregava 150 mil homens em permanência para lutar numa área de dois milhões de km2, com o apoio logístico-militar da Metrópole, situado a cinco mil e seis mil quilómetros (casos de Angola e Moçambique. (…) O regime não só obrigou centenas de milhares de portugueses a um esforço inaudito durante 13 anos de guerra, como também esvaziou os cofres do Estado” (pág. 56). (…)

Já antes, no início do livro, se escrevia, a seguir à frase “Portugal teve o seu Vietname na Guiné”:

“Ali, ao longo de 11 anos, num território do tamanho do Alentejo, morreram mais de três mil soldados portugueses, vítimas de um adversário temível e de um clima impiedoso. Muitos mais ficaram estropiados e com feridas na alma para toda a vida. Lutaram em condições pavorosas e, apesar de tudo, muitos foram além do que exigia o dever” (pág. 17).


Guiné > Bissau > Brá > Setembro de 1965 > Grupo Comandos Diabólicos > "Foto de finais de Set 65, tirada em Brá, quando começaram os "ensaios" com as boinas vermelhas... Da esquerda para a direita: Marcelino da Mata, Azevedo, Virgínio Briote , Carlos Faria "Black") e Valente"...

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mas este pequeno preâmbulo serve apenas para introduzir a figura de um combatente excecional, o luso-guineense Marcelino da Mata, cuja história de vida, devidamente contextualizada, vamos acompanhar ao longo das 191 páginas do livro, E, no entanto, não se trata de um biografia deste combatente em que o mito e a realidade se misturam, e muito menos uma biografia autorizada. Como escreve, no prefácio, Francisco Gomes de Oliveira

(…) “Para os seus homens. Marcelino da Mata foi um líder e um herói. Para o PAIGC, um temível inimigo. Para nós, Portugueses, alguém cuja memória merece uma análise desapaixonda e contextualiza” (pág. 14).

Na realidade, é uma pena que o Marcelino da Mata, que a morte, por Covid-19, surpreendeu, aos 81 anos, nunca tenha querido escrever ou ditar (a um “copy desk”) as suas memórias, contrariamente a outro combatente guineense, comando, Amadu Bailo Jaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), autor de “Comando, guineense, português” (Lisboa: Associação dos Comandos, 2010, 229 pp.). 

Neste caso, o Amadu teve mais sorte que o Marcelino, graças a inestimável ajuda de um camarada de armas, igualmente 'comando', o Virgínio Briote, cuja sensibilidade, solicitude, solidariedade e competências nunca são demais evocar e exaltar aqui... Para mais, o Briote chegou a ser comandante operacional do Marcelino da Mata (**), facto que é omitido no livro do Jorge Monteiro Alves.

Em mail que nos enviou no passado dia 10 de julho, o Jorge Monteiro Alves transmitiu-me, entretanto,  algo que é importante para se peceber o "making of" desta obra e os seus limites, e de que aqui reproduzo uma parte (, com a devida vénia):

(...) "Tentei estabelecer ene contactos (telefónicos, pessoais, etc.) com o TC Marcelino, inclusive através do núcleo da Bataria da Lage (Comandos, cujo restaurante frequento, e ele também frequentava). Tudo em vão. Ele sempre se esquivou. " (...)

O ten cor Marcelino da Mata provavelmente tinha em mente outros projetos e quereria, porventura, obter algumas legítimas compensações financeiras, provenientes dos direitos de autor de um livro de memórias, sucetível de se tornar um "best-seller". Terá sido isso que deu a entender ao Jorge Monteiro Alves, mas também a mim, há uns anos atrás. 

De facto, as poucas vezes que estive com o Marcelino da Mata não foi no CTIG, mas em convívios da Tabanca da  Linha. Mas raramente falámos, Houve, porém,  um vez em que ficámos frente a frente, à mesa. E conversámos ainda um bocado. Mas fiquei com a ideia de que ele era melhor operacional do que conversador. Na altura insisti com ele para escrever e publicar as suas memórias em vida, sob pena de ele as levar para  cova e nunca mais se chegar a saber exatamente onde começava a lenda e acabava a história. 

Disse-me que tinha um jornalista encarregue dessa tarefa (sic). Não me disse quem. E muito menos me falou em editoras eventualmente interessadas. O seu mundo não era esse. Depois da sua morte, até pensei que fosse o Jorge Monteiro Alves o tal jornalista que estava a tratar da edição das suas memórias, mas vejo agora que estava errado. Enfim, pareceu-me, o Marcelino da Mata, um homem com mais admiradores do que amigos do peito. 

Mas voltando ao email do Jorge Monteiro Alves, do passado dia 10 de julho. Que fique clara a intenção do autor: 

"Tal como já tive oportunidade de referir ao Luís Graça, este livro não pretende ser uma bio do Marcelino, mas sobre a guerra da Guiné tendo o Marcelino como fio condutor." (...)

Antes de avançarmos, entretanto, na análise nais detalhado do livro, falemos um pouco do autor e deste seu projeto: Jorge Monteiro Alves, natural do Porto, vive em Paço de Arcos, Oeiras, é jornalista com 30 anos de carreira e com provas dadas em teatros de operações, nomeadamente nos Balcãs (Krajina, Bósnia, Kosovo).

Foi editor de “política internacional” no JN – Jornal de Notícias, mas do que gosta mesmo, confessa, é a “reportagem de guerra”. Foi o primeiro português a entrar na cidade cercada de Sarajevo no período mais quente dos combates, em 1992, diz a sua nota biográfica, 

Com este é o seu quinto livro publicado, depois de "Nunca passes além do Drina" (Papiro Editora, 2006, 238 pp. ), "Carmencita" (Chiado Books, 2014, 88 pp. ), “A generala" (Chiado Books, 2014, 160 pp. ) e "O meu Deus é melhor que o teu" (Chiado Books, 2021, 184 pp.).

 Ao terminar esta primeira nota de leitura, refira-se que, ainda antes da morte do ten-cor Marcelino da Mata, circulava nas redes sociais um projeto de livro, ilustrado, e em formato pdf, com o título "O Último herói do Império", e era justamente da autoria do Jorge Monteiro Alves. Tinha 172 págimas, menos vinte que o livro que ele acaba de publicar, sob a chancela editoral dos Livros Horizonte. Falámos sobre ao telefone sobre o que o impedia de avançar com a edição do livro, um projecto já com meia dúzia de anos. A verdade é que o Jorge retomou o fôlego, e venceu alguns receios e algumas reservas conjunturais, decorrentes da dramatização da perda ainda recente do Marcelino da Mata.

Na lista dos agradecimentos, há uma palavra para o nosso blogue. Mas a gratidão maior vai para "todos os ex-combatentess da então Guiné Portuguesa que entrevistei e que lutaram ao lado do Marcelino da Mata." E esclarece: "Os relatos em primeira pessoa registados neste livro resultam de múltiplos depoimentos feitos nas décadas de 70 e 80 do século XX a orgãos de Comunicação Social Portuguesa" (pág, 9)", e que o autor nunca ou raramente cita, como deveria. Mas isso é já assunto para a segunda parte desta nota de leitura. (***)

(Continua)
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sábado, 10 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22356: Agenda cultural (775): "No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português" (Livros Horizonte, Lisboa, 2021, 192 pp.): livro de Jorge Monteiro Alves, jornalista e repórter de guerra... Uma biografia não autorizada de Marcelino da Mata, o último herói do império.

 

Vídeo promocional do livro em pré-venda, "No mato ninguém morre em versão John Wayne:  Guiné, o Vietname português", de Jorge Monteiro Alves, publicado sob a prestigada chancela "Livros Horizonte", editora de Lisboa.


Ficha técnica:


Título: No mato ninguém morre em versão John Wayne; Guiné, o Vietname português
Autor: Jorge Monteiro Alves
Edição: 07-2021
Editor: Livros Horizonte, Lisboa
Idioma: Português
Tipo de Produto: Livro
Páginas: 192
Dimensões: 155 x 235 x 15 mm
Encadernação: Capa mole
ISBN: 9789899984837
Classificação Temática: Livros em Português > História > História de Portugal
Preço de capa_: c. 15 euros



Autor: Jorge Monteiro Alves:

(i) natural do Porto, mora em Paço de Arcos, Oeiras;
(ii) foi jornalista, editor de Política Internacional no “Jornal de Notícias”, embora a sua verdadeira paixão fosse a reportagem de guerra;
(iii) cobriu os conflitos da Krajina, da Bósnia e do Kosovo;
(iv) foi o primeiro português a entrar na cidade cercada de Sarajevo no período mais quente dos combates, em 1992;
(v) é autor dos livros “Nunca passes além do Drina” (Papiro Editora, 2006), “A generala” (Chiado Books, 2014), "Carmencita" (Chiado Books, 2014), “O meu Deus é melhor que o teu” (Chiado Books, 2021).

Sinopse:

UM LIVRO SOBRE MARCELINO DA MATA e os ex-combatentes da Guerra da Guiné 1961-1974

«Portugal teve o seu Vietname na Guiné. Ali, ao longo de 11 anos, num território do tamanho do Alentejo, morreram mais de três mil soldados portugueses, vítimas de um adversário temível e de um clima impiedoso. Muitos mais ficaram estropiados e com feridas na alma para toda a vida. Lutaram em condições pavorosas e, apesar de tudo, muitos foram além do que exigia o dever.»

«O contexto adverso deste relato é o que ficará para a História. Para os seus homens, Marcelino da Mata foi um líder e um herói. Para o PAIGC, um temível inimigo. Para nós, Portugueses, alguém cuja memória merece uma análise desapaixonada e contextualizada.»


Francisco Gomes de Oliveira,  in Prefácio.
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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de julho de 2021 > uiné 61/74 - P22351: Agenda Cultural (774): A segunda decoração d’A Brasileira: Lembranças de José-Augusto França e de bela azulejaria no Corpo Santo, ao Cais do Sodré (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21494: Memoriais Militares (1): Diáspora açoriana na América: contactos de veteranos da guerra do ultramar e da guerra do Vietname (José Câmara, Raynham, Massachusetts)



Capa do livro 

CABRAL, Adalino e DIAS, Eduardo Mayone (org.), "Das guerras africanas à diáspora americana", Rumford, East Providence, Rhode Island, USA: Peregrinação Publications, 2002. Foto da capa: Fur Mil Manuel Adelino Ferreira. Norte de Angola, 1966.




Estados Unidos > Massachusetts > Raynham > 2019O João Crisóstomo (à esquerda) e eu na minha casa


Foto (e legenda): © José Câmara (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do José Cãmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73); tem cerca de 120 referências no nosso blogue; 


Date: quinta, 29/10/2020 à(s) 00:35
Subject: Memoriais Militares (*)
 

Amigo Luís Graça,

Anos atrás,  eu estive no lançamento de um livro escrito pelos Srs Adalino Cabral, um veterano da Guerra do Vietname, e Eduardo Mayone Dias. Sei que têm algumas publicções sobre a Guerra do Vietname. Não tenho os seus contactos, mas quero acreditar que o nosso companheiro Serra Vaz (*) pode conseguir isso com a seguinte informação:

"Adalino Cabral: Emigrou criança para os Estados Unidos, em 1954. É veterano da guerra do Vietname.
Os mesmos autores, ele e o Eduardo Mayone Dias, haviam  anteriormente publicado a obra "Portugueses na guerra do Vietname".

Apurei que o Eduardo Mayone Dias é professor e investigador. natural do continente, vive em Los Angeles; e que o Adalino Cabral é natural da Feteira Grande, Nordeste, S. Miguel.  

Os mesmos autores haviam anteriormente publicado a obra "Portugueses na guerra do Vietname". 

Da nota introdutória do livro, cuja capa acima se reproduz: 

"As guerras de África vimo-las de longe e com diferentes perspectivas. Um de nós, Adalino Cabral, passou parte desses anos ele mesmo no mato, mas no Vietname. O outro, Mayone Dias, andava em 1961 pelo México e depois, até 1974 pela Califórnia. Em ambos os casos as notícias de África só muito esporadicamente nos chegavam (...). O que ambos pretendíamos obter era um relato pessoal da experiência de campanha, as impressões do contacto com o novo ambiente físico e emocional, um possível contraste entre as atitudes de ontem e de hoje" (...)

Com a ajuda do nosso saudoso amigo e camarada, e grande açoriano,  Carlos Cordeiro (1946-2018), sabemos que o livro se baseia, portanto, na recolha de depoimentos de veteranos da Guerra do Ultramar que emigraram para os Estados Unidos. Dos dezassete entrevistados, onze são naturais dos Açores, um estabelecido na Califórnia e os restantes no Massachusetts.

São os seguintes os entrevistados açorianos (nome / ano de nascimento / local, ilha / teatro de operações

- César Serpa  / 1941 / ico da Pedra, S. Miguel / Moçambique. 

- David de Sousa Bairos / 1947 / Sto. Espírito, Sta.Maria / Guiné.

- Fernando Amaral Dutra / 1932 / Madalena, Pico / Guiné; Timor.
 
- Floriano Jorge Resendes de Medeiros / 1950 / Lagoa, S. Miguel / Moçambique.

- Gilberto Manuel de Moura Sousa / 1951 / Vila do Porto, Sta. Maria / Moçambique.

- Horácio Botelho Tavares / 1947 / S. Roque, S. Miguel / Angola.

- Jaime Soares da Costa / 1947 / Santa Maria / Guiné.

- José Natalino Cardoso / 1942 / Ponta Delgada, S. Miguel / Angola.

- Manuel Adelino Ferreira / 1942 / Ribeira das Taínhas, Vila Franca do Campo, S. Miguel / Angola.

- Mário Jorge da Costa Borges / 1946 / Ponta Garça, Vila Franca do Campo, S. Miguel / Moçambique.

- Vasco Manuel Correia de Matos / 1953 /  Serreta, Terceira / Angola.

Eu estive presente no lançamento deste livro no clube Os Amigos da Terceira, Estado de Rhode Island. Se a memória me serve bem, o Sr. José Brites, um grande admirador e impulsionar das coisas portuguesas por estes lados, terá a disponibilidade para servir quem dele se aproximar. Nesse sentido aqui fica o que consegui: 

José Brites
Peregrinacao Publications Inc 
36 Brayton Avenue 
Rumford, RI 02916 - View MapPhone: (401) 435-4897
Web: www.portuguesefoundation.org 
 
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Nota do editor:

(*) Vd. postes de;

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21331: A galeria dos meus heróis (37): Rosemarie e os seus dois maridos...IV (e última) Parte (Luís Graça)


Indochina > Dien Bien Phu > 1954 > Ao fim de um cerco de 55 dias, o exército francês, de 17 mil homens (quase dois terços dos quais  legionários), pede rendição, em 7 de maio,  às tropas do general Vo Nguyen Giap (1911 - 2013) . Foto, do domínio público, mostrando a marcha dos prisioneiros franceses.  

O luso-francês Antoine Ben Oliel, desta história,  teve a sorte de ter escapado a esta cena final, sendo gravemente ferido, logo no início da batalha, em 13 ou 14 de março de 1954.

Fonte: Cortesia de Wikimedia Commons.


A galeria dos meus heróis > Rosemarie e os seus dois maridos... 
IV (e última) Parte (Luís Graça) *


(Continuação)


− Era violento, o Antoine ? – perguntei à Rosemarie, em 2018, o último ano em que nos vimos, estávamos os dois longe de imaginar que o mundo iria acabar em breve para um de nós, na sequência da pandemia de Covid-19.

− Sim, às vezes perdia as estribeiras… Em situações de surmenage… Entendes ?

− Stress, como nós dizemos aqui.

Ah!, oui… Nisso talvez saísse ao lado transmontano do pai…

− ... que a Rosemarie obviamente não conheceu.

− Claro que não, ele morreu em 1939, se não me engano, teria eu dois anitos.

O Antoine é que contava, à Rosemarie, algumas, poucas, histórias do pai. Ele também mal o conhecera. Tinha oito anos quando ele morreu, na véspera da II Guerra Mundial. Eram sobretudo histórias contadas pela mãe Ben Oliel. E eu recordei-lhe que os dois, pai e filho, tinham andado na guerra… O pai, na I Grande Guerra, o filho na Indochina e na Argélia… 

− Talvez isso ajude a explicar algumas coisas, Rosemarie... 

Peut-être!... Era capaz de andar à porrada com gente arruaceira, que bebia demais… Chegou a correr com alguns clientes, agarrando-os pelos colarinhos, e pondo-os fora do bistrot, fossem eles portugueses, franceses ou magrebinos…

− Mas também sobrava para si, não ?!...

Ah!, oui..., por vezes, eu também apanhava por tabela! – confidenciava-me ela. – Humilhava-me à frente de toda gente!

− Violência doméstica, está visto! – acrescentava eu.

− Era a minha sina!... Afinal, tive dois homens que me batiam.

Na verdade, o primeiro marido, o tocador de rabeca, era alcoólico, e batia-lhe, quando queria sexo e ela lho negava. O segundo tinha mau feitio e era ciumento. Sugeri à Rosemarie que talvez o Antoine sofresse de stress pós-traumático de guerra…

Qu'est-ce que ça veut dire ?

Referi o facto de ter participado em combates violentos ou assistido a ataques terroristas, na Indochina e na Argélia… Ela condescendeu que ele dormia mal, tinha mau humor, fumava e bebia muito, por vezes acordava com pesadelos, e com a idade começara a ser dado a depressões. Por outro lado, sabia-se, pela Rosemarie e amigos, que o Antoine sempre tivera une vie dérégulée, uma vida desregrada…  Mas, se havia uma palavra tabu para a Rosemarie, era... legionário. 

Na minha opinião,  a minha interlocutora nunca terá percebido a verdadeira razão da sua atração por figuras masculinas que tinham alguns traços da personalidade autoritária do pai.

− A minha mãe era uma santa – recorda ela.

− E o pai ?

− O meu pai era mau como as cobras, que Deus lhe perdoe. Era mau, sobretudo quando se zangava. Não me esqueço das tareias com o cinto de couro e a fivela de cobre!... Batia-nos, poucas vezes, é verdade, mas nessas ocasiões transfigurava-se, parecia o diabo à solta.

− E a mãe, consentia ?!...

− A nossa pobre mãe punha-se de permeio, para nos proteger, e ela, coitada, é que apanhava as vergastadas. 

Mas, “tirando isso” (sic), o pai da Rosemarie era descrito, por ela,  como um homem alegre, popular, folgazão, pronto para a paródia, amigo do seu amigo, e que gostava de receber, mesmo sendo “pobre... mas sempre honrado”.

− Ah!, e tocava cavaquinho! – acrescentava ela – e era um garanhão!... Pauvre maman!

Em boa verdade, do pai não guardava as melhores recordações. Segundo ela, era fraco com os fortes, e bruto com as mulheres e a canalha lá em casa….

E pormenorizava:

− Desbarretava-se todo com os fidalgos… Ficava nervoso pelo São Miguel, com medo de não poder pagar a totalidade das rendas e ser despedido pelos senhorios… Ele amanhava duas quintas, mas em boa verdade só conheceu um patrão digno desse nome.

− Tratava-o bem, ao menos, esse patrão  ? – perguntei eu.

− O meu pai achava que já pertencia à família, ó Manel isto, ó Manel aquilo!... Era pau para toda a obra... O homem de confiança...Acabou por ser um escravo daquela família toda a vida!

E acrescentava:

− Nunca teve nada de seu, nem um palheiro onde pudesse cair morto.

Em suma, era um rendeiro típico do Norte, analfabeto, filho de rendeiros, analfabetos, sujeitando-se sempre à vontade dos patrões, quer em Celorico de Basto quer em Resende… Vá lá, na velhice arranjaram-lhe, por caridade, um lugar no lar da Misericórdia. Mas sobretudo foram os filhos que lhe valeram, quando começou a fraquejar com a idade.

−Os meus manos foram muito amigos dele!

Todavia, a  Rosemarie não veio ao funeral do pai, desculpando-se com a doença (grave) do Antoine. A relação com os irmãos e cunhados também se deteriorara ao longo do tempo, sobretudo desde que ela se juntara com o Antoine, em França. Só o irmão que esteve na Guiné e que depois emigrou para a Alemanha, é que a visitava mas até desse o Antoine não gostava.

Jalousie, ciúmes! – achava ela.

O pai da Rosemarie nunca abençoou, em vida, a relação da filha com o “Francês”. Homem rígido e conservador, em matéria de costumes, o pai terá dito à família e a amigos mais chegados, que, “para ele, ela já tinha morrido há muito” (sic). E de facto, ele já não era vivo quando, tardiamente, ela se casou, em 1997, de papel passado na "mairie", com o Antoine. 

Este, por sua vez, vai tornar-se ciumento com a idade. A par disso, as suas frequentes ausências de casa também não ajudavam a melhorar as relação do casal. Ele não estava certo do amor dela, apesar de toda a sua dedicação, comprovada nos momentos mais críticos da sua vida,  a dois. E muito menos tinha a certeza da sua fidelidade.

Talvez por pudor, ou até por alguma má consciência, ela nunca se abrira muito comigo sobre a sua alegada vida amorosa extra-conjugal, muito menos em relação ao tempo em que vivera com o Antoine…

− Durante mais de trinta anos!... – precisava ela.– Fui um anjo para aquele gajo!

Dizia "gajo" quando queria atingir a memória do homem que amava e odiava ao mesmo tempo. Também é verdade que nunca tiveram filhos.

Heuresement, felizmente! − exclamava.

Nunca soube nem quis saber “de quem era a culpa”. Todavia tinha um subtil, se bem que indisfarçável, sentimento de culpa "por não ter dado filhos ao Antoine". Talvez fosse “estéril, como a Sara da Bíblia, a mulher de Abraão”. (De vez em quando, no meio da conversa, vinha ao de cima a sua formação católica: na juventude, fora catequista, “mesmo com poucas letras”.)

Em resumo, admito que ela terá tido os seus “casos” com outros homens, nomeadamente franceses. Deu-me a entender que nunca quis arranjar problemas no seio da “pequena comunidade portuguesa” onde havia “alguns gajos, solteiros, que lhe faziam olhinhos”. E, depois, o Antoine era uma pessoa muito conhecida na região.

Afinal, era uma mulher atraente, com um bonita voz, cantarolava tanto a Amália como a Edit Piaf, mas era estrangeira, falando francês com certa desenvoltura embora com accent, imigrante, só tardiamente naturalizada…

Era, portanto, uma "mulher vulnerável" naquela época... Não me escondeu, de resto,  que, no local de trabalho, chegou a ser vítima de harcèlement sexuel, de assédio sexual, disfarçado da vieille galenterie française, o machismo gaulês…

Era sensível às carícias, ao discurso sedutor, de alguns dos seus “admiradores” contrastando com a frieza e a rudeza do Antoine que lhe dava proteção mas pouca ternura. Deixara, por outro lado, de cantar com regularidade, a partir  de 1974... E dizia isto com grande desgosto: chegara a sonhar, pauvre Rosemarie!,  com uma carreira artística como fadista em França!...

Havia, por outro lado, algumas outras coisas que ela detestava no Antoine. Por exemplo, os seus copains, antigos camaradas de armas do tempo da Indochina e da Argélia, legionários, gendarmes, polícias e outros, que se reuniam de tempos a tempos no bistrot, "O Cantinho da Saudade", fechando-se na sala reservada. 

Em geral, era ao domingo, o dia de descanso do pessoal. Eram só homens e ela limitava-se, nos primeiros anos da sua vida em França, a cozinhar para eles. Tudo acabava em cantorias, depois de um almoço bem regado. E aqui não entrava o fado, que a maior parte não apreciava, até porque não entendia as letras. E a música do fado era triste para os antigos camaradas de armas...

− Et la musique du fado était trop triste pour des ancients combattants! − resumia ela.

Outra paixão do Antoine era a caça grossa, la chasse aux gros gibiers (o veado, o javali, a cabra…), na Sologne e noutras partes, em França, em Espanha e até em Portugal. Era uma “amante cara”, a caça, que terá ajudado a delapidar o seu património… 

Foi ela, a Rosemarie,  quem na altura em que ele estava a ficar mais fragilizado, começou a pôr travão a alguns dos seus luxos… Era doido por bons queijos, fumeiro e vinhos, tinha uma boa garrafeira, era, em suma, um bon vivant, um bom copo, um bom garfo.

Nesse aspeto revelou-se "uma verdadeira mulher portuguesa do Norte". Lembrava-se amiúde do bom exemplo da mãe, que era a “formiguinha” da casa, enquanto o pai representava a figura da “cigarrra” da fábula de La Fontaine.

Felizmente que a sua empresa de limpezas (primeiro, domésticas e depois industriais) crescera e transformara-se até num caso de sucesso a nível  da região, dando emprego a várias mulheres, todas de origem portuguesa.

Sentindo a sua saúde piorar, o Antoine ainda teve a lucidez (e a sorte) de trespassar o bistrot no bom tempo, depois de já ter comprado o immeuble, de rés de chão e 1º andar, bem situado na cidade. Alienou também a licença de táxi, vendida a um dos seus antigos “passadores”. Dejá malade, conseguiu reformar-se, aos 60 anos, com a contagem do tempo em que servira na Legião Estrangeira.

Em 1997, com a Rosemarie a fazer 60 anos, e ele 66, foi magnânimo: a sua prenda de anos foi o pedido de casamento. Casaram-se na mairie, numa cerimónia singela, mas “emocionante” para a Rosemarie. Cortou-se o bolo e bebeu-se champagne.  Convidou dois ou três sobrinhos que vieram de Portugal e da Alemanha.

Três anos depois, sem chegar a fazer os 70 anos, o Antoine Ben Oliel morreu de cancro no pâncreas. Em menos de seis meses.

No funeral tinha poucos amigos portugueses. Daqueles, muitos,  que ele tinha ajudado a instalar-se em França, nem um lá pôs os pés no velório ou no cemitério.

− Gente ingrata, des gens de merdre! –arrematou ela.

Os dois últimos anos de vida do Antoine tinham sido dolorosos. Ele sofria de gota, depois vieram complicações do foro músculo-esquelético, que o obrigaram a andar de canadianas, um  ameaço de AVC e, como se não bastasse tudo isto, o fatal cancro do pâncreas!...  

−Apagava-se a olhos vistos, todos os dias! – contou-me a Rosemarie, que nunca o abandonou, honra lhe seja feita!

Antes de morrer, ele falou-lhe de um filho que teria tido fora do casamento, e que que deveria ter uns trinta e tal anos. Mal o conhecia, ou já não o conheceria, se o encontrasse na rua. Sentia-se mal por nunca o ter acompanhado quando novo, nem sequer o ter perfilhado. Era filho de uma pied-noire, uma argelina de origem francesa, um relacionamento que já vinha dos tempos de Argel. Mãe e filho acabaram por fixar-se em Marrocos, e abrir em Marraquexe um pequeno hotel de charme.

Rosemarie suspeitava que o Antoine os terá ajudado financeiramente, na fase inicial das suas vidas em Marrocos. Eu, pelo meu lado, estava mais interessado em saber algo mais sobre o obscuro passado do Antoine como legionário, e as circunstâncias em que fora gravemente ferido na batalha de Dien Bien Phu.  Embora com relutância, ela prometeu-me trazer, pour la prochaine fois, alguns dos papéis da tropa, poucos, que ainda restavam lá em casa, em França. Estava esperançado que ela me arranjasse alguma fotografia do Antoine quando jovem.

Infelizmente a Rosemarie não pôde cumprir a sua relutante promessa. Em 2019 não veio a Portugal. E há menos de seis meses morreu, vítima de Covid-19, tendo sido cremada.
Só vim a saber da triste notícia através dos amigos da casa da Lagoa de Óbidos. Confesso que fiquei desolado...

Com a morte da Rosemarie, inesperada (e chocante para os seus amigos, como eu), apagaram-se também os últimos segredos dos dois homens que com ela partilharam o pior e o melhor da sua vida, debaixo do mesmo tecto... 

Da última vez que a vi, no verão de 2018, parecia-me uma mulher finalmente feliz, reconciliada com ela e com a vida, liberta das sombras negras do seu passado. Era uma mulher sem rancores, que quis toda a vida amar e ser amada: despediu-se de mim, a cantarolar a Edith Piaff, "Non! Rien de rien, / Non! Je ne regrette rien. / Ni le bien, qu'on m'a fait, / Ni le mal, tout ça m'est bien égal!"...

Sorriu quando lhe prometi esperar, "até aos seus cem anos", para então lhe publicar a sua "histoire de vie".

Estava determinado (e condenado) a respeitar a sua vontade: agora que ela partiu, ao quilómetro 82 da sua "estrada da vida" (aliás, mais 'picada' do que autoestrada...), deixo aqui a sua história. A sua "petite histoire"... Caberá aos leitores ajuizar se ela fica bem, ou não, na "galeria dos meus heróis".

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

11 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)

(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio, como légionnaire.

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)


16 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21258: A galeria dos meus heróis (35): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte II (Luís Graça)

(...) O Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia (...) a um regimento de infantaria, um dos que foram para Dien Bien Phu e lá foram massacrados. (...)

Em finais de 1953 está na Indochina, para logo, passados poucos meses, em 13 ou 14 de março de 1954, no início da batalha de Dien Bien Phi,   ser ferido gravemente por um estilhaço de obus, que lhe desfigurou o rosto. Teve a sorte de ainda poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.

Menos de dois meses depois, em maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressaram do doloroso cativeiro. (...)



25 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21292: A galeria dos meus heróis (36): Rosemarie e os seus dois maridos... Parte III (Luís Graça)


(...) Rosemarie foi uma mulher corajosa para a época: casada com um tocador de rabeca de uma tuna rural do Marão, alcoólico, foi vítima de violência doméstica.

Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, católica, amarrada de pés e mãos a um cadavre, o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, talvez no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir, ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas infeliz, tomou a decisão da sua vida, em 1967, quando partiu para França “a salto”. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos. (...)

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20219: (Ex)citações (360): O sucesso do posto de controlo sanitário de Nhacra, ao tempo em que por lá passavam as "trabalhadoras do sexo" de Bissau, em missão patriótica... (José Ferreira da Silva, autor do bestseller "Memórias boas da minha guerra", 3 volumes, Chiado Books, 2016-2018)


Guiné > Região autónoma de Bissau >  Nhacra > c. 1972/74 > Casa do administrador


Guiné > Região autónoma de Bissau > Nhacra > c. 1972/74 > Igreja, escola e campo de futebol

Fotos do álbum de Eduardo Ferreira Campos, ex-1º cabo trms, CCAÇ 4540 )Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74)


Fotos (e legendas): © Eduardo Campos (2009). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região autónoma  de Bissau >> 11 de março de 1968 > O alf mil SAM Virgílio Teixeira,   CCS/BCAÇ 1933 ( Nova Lamego e São Domingos, 1967/69),  de motorizada, em Safim, a caminho de Nhacra.


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Òio > Mansoa > 1968 > CCAÇ 2405 (1968/70) > O Alf Mil Inf Paulo Raposo, membro sénior da nossa Tabanca Grande, junto à placa toponímica que indicava as localidades mais próximas: para oeste e sudoeste, Encheia (a 18 km), Nhacra (a 28 km), Bissau (a 49 km)...; para leste sudeste e nordeste: Porto Gole ( a 28 km), Enxalé (a 50 km), Bambadinca (a 65 km), Bafatá (a 93 km)...

Foto (e legenda): © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. A propósito da nossa "despreocupada sexualidade" em tempo de guerra, segundo uns, ou "miséria sexual", segundo outros,  quando já havia a santa penicilina (desde finais de finais dos anos 40, eficaz no combate às doenças sexualmente transmissíveis), mas ainda ninguém suspeitava da diabólica pandemia do HIV/Sida que se haveria de abater sobre o primata do "homo sapiens sapiens" nos cinco continentes (a partir dos anos 80), já  aqui foram evocados ou chamados a capítulo  dois dos nossos mais talentosos contadores de histórias, o "alfero Cabral", mais "softcore", e o Zé Ferreira, mais "hardcore"... 

O Cabral é incapaz de dizer uma asneira, uma palavrão, uma indecência (*), o Zé Ferreira chama os "bois pelos cornos", como nós chamávamos naquele tempo, em que tínhamos testosterona para dar e vender...Enfim, idade ideal para matar e morrer... Não é por acaso que nos chamavam para a tropa nessa idade...Mas também era um tempo em que a hipocrisia social havia feito do sexo um tabu.

Hoje cabe a vez de "repescar" uma das "memórias boas da minha guerra",aqui já publicadas há mais de dois anos (**), mas também já passadas para livro: e já vão três, os volumes com a assinatura do José Ferreira da Silva, sob a chancela da Chiado Books. (***)




2. Memórias boas da minha guerra > Controlo sanitário (**)

por José Ferreira



Todos os rapazes do meu tempo sabem bem do perigo que se corria quando se procurava uma relação sexual com uma das “badalhocas” que proliferavam nos arrabaldes do Porto e de Gaia. Dizia-se, até, que as prostitutas “mais limpas” eram as “meninas” da baixa do Porto, porque eram submetidas a um rigoroso controlo sanitário, uma “modernice” imposta pelo regime de Salazar.

José Ferreira 
da Silva
É claro que as relações amorosas surgiam por todo o lado. Não havia santa terrinha que não exibisse (ou ocultasse) enredos dignos da pena de um Camilo Castelo Branco. Ora, os resultados apareciam como cogumelos no pinhal, umas vezes com as gravidezes involuntárias e outras com os inesperados “esquentamentos”. Tudo fruta da época.
Enfim, tudo normal. Porém, por vezes, surgiam alguns rumores de que o Senhor Fulano de Tal, também andava “esquentado”, devido a descuidos da sua bela e fidelíssima amante. Mas isso era abafado e rapidamente esquecido, por falta de testemunhos credíveis e por alguns receios de represália. Quando muito, e para se salvaguardar situação social tão melindrosa, fazia-se a alusão aos lugares públicos, onde possivelmente se sentara, sem a protecção do lencinho estendido debaixo do rabo.

Esta juventude foi mobilizada para defender patrioticamente as nossas Províncias Ultramarinas. Influenciada pelos princípios patrióticos incutidos desde a instrução primária, ela aparece, assim, repentinamente, relacionada com os nativos. 


Os “turras”, no interior, que, em termos de guerra subversiva, dominavam as populações, levavam as jovens e deixavam as crianças e as velhas para as proteger. Raramente ficava alguma mulher adulta para apoio a essas pessoas mais fragilizadas. As mulheres que mais se viam, eram as da tropa milícia, que combatia ao nosso lado.

Isto quer dizer simplesmente que a actividade de prostituição, fora de Bissau, era quase nula, apesar dos apetites sexuais de tanta e tão potente clientela.

Pergunta-se:
- E como é que a malta se “safava”?

Os portugueses sempre foram conhecidos pelo seu primor no desenrascanço. Aqui, como manda a sua educação católica, cada um teria que se confessar dos seus pecados contra a castidade e de um ou outro caso de relação furtiva, por vezes não muito correcta. Estou a lembrar-me do caso do Fafe que apareceu na enfermaria “à rasca da piça”, porque uma jovem adolescente o havia masturbado, não tendo lavado as mãos, que estavam impregnadas de piripiri.

Por altura dos princípios dos anos 70, com a evolução da guerra, foram aumentados os contingentes militares, a par de outras consequentes movimentações. Uma delas, foi o aparecimento de prostitutas brancas, na cidade de Bissau. No bar Mon Ami já “trabalhavam” regularmente. 


Tal como no Texas, nos tempos da corrida ao ouro, essas profissionais carregadas de ambição, tudo arriscavam pelo dinheiro fácil obtido no “negócio das carnes”. Agora, na procura de clientes do interior, deslocavam-se de táxi e de outros meios de transporte (até onde as novas e poucas estradas alcatroadas o permitiam), saindo, assim, de Bissau, rumo a norte… com regressos rápidos e seguros.

Fora de Bissau, elas passavam por controlos militares. Na zona de Nhacra, esse movimento era cada vez mais notório. Perante essa situação, os militares locais viam-nas passar, a caminho da satisfação dos outros camaradas, deixando-os chateados porque também queriam usufruir desse “serviço”. 


Foi então que o Maia, mais o Seixas, assumiram a liderança reivindicativa dos “justos direitos” e foram interpelar o comandante do destacamento, o Alferes Bastos:
- Meu Alferes, nós também queremos foder. Estamos a deixá-las passar e …ficamos “a ver navios”. E quando lhes dizemos qualquer coisa, elas mandam-nos ir a Bissau, que é perto. Aqui o Seixas, há dias, ainda conseguiu, disfarçadamente, dar-lhes umas apalpadelas, com o pretexto de ter que fazer “controlo de armas”, mas uma mulata quis “assapar-lhe” o pelo.

O Alferes, que também já se apercebera dessa movimentação, e que até já fora mimoseado por reconhecimento dessa sua autoridade local, em visita ao Mon Ami, acalmou-os e disse que ia pensar no assunto.

À noite, com os Furriéis, enquanto bebiam umas cervejas, a conversa versava o assunto da prostituição versus “necessidades fisiológicas” da nossa tropa. O Furriel Moura aproveitou para demonstrar os seus conhecimentos nessa matéria, dando como exemplo o que se se passava no Vietname. Falou do grande número de prostitutas que quase chegava a rivalizar com os 500 mil militares. Ao contrário da nossa situação na Guiné, aos americanos “não faltava onde despejar os tomates”. 


Mesmo assim, lembrou o facto de grandes artistas americanos visitarem periodicamente as tropas, moralizando-as e mantendo-as racionalmente ligadas ao seu mundo de origem. Lembrou a Raquel Welch e a Joan Collins. Esta, que sendo capa da Playboy, foi pessoalmente entregar exemplares da tiragem dos 7 milhões dessa edição recorde. A Playboy subira de tiragem desmesuradamente, graças à sua procura no seio das forças armadas.

Por sua vez, o Alferes Bastos referiu um facto curioso, também relacionado com o Vietname. Dizia que numa determinada zona, ocupada por cerca de 20.000 militares, se haviam desenvolvido doenças venéreas com tal gravidade que, por precaução sanitária, os militares foram impedidos de se deslocarem à cidade mais próxima, o que provocou nocivos reflexos psicológicos, sociológicos e económicos. 


Então, o chefe dessa região teve uma ideia brilhante. Em parceria com as autoridades militares, fundou um enorme bordel, conhecido por “Disneyland Oriental”, que consistia essencialmente numa zona de 10 hectares, devidamente cercada, implantada com 40 quartos/casa dispersos, para satisfação sexual dos visitantes. E, em simultâneo, foram admitidas, identificadas e controladas as prostitutas, bem como o desenvolvimento de condições de tratamento aos infectados, tudo integrado num adequado serviço de controlo e apoio sanitário.

Porém, é sabido que, apesar do grande esforço médico, apoiado em carradas de “Penicilina” e “Penisulfadê”, o drama causado pelas doenças venéreas foi dos piores inimigos enfrentados pelos militares. Fala-se muito de suicídios de militares, incapacitados sexualmente, na hora do regresso do Vietname, mas, nós sabemos que isso também acontecia entre os nossos combatentes da Guiné. E muitos dos afectados optaram por ficar por lá.

Da conversa, voltou-se à análise da nossa situação e à nossa real dimensão. Momentaneamente, o que mais preocupava estes graduados era o aproveitamento do movimento “putéfio” para resolver a satisfação sexual da tropa do seu destacamento. E foi assim que com mais cerveja ou menos conversa, o Alferes determinou democraticamente, sem qualquer votação, contestação ou parecer superior, que ali também seria criado um serviço contínuo de Controlo Sanitário. A partir de agora, todas as mulheres, supostamente prostitutas, que ali passassem para exercício do seu métier em outras zonas, teriam que ser submetidas a exame prévio. 


Desta forma, se daria a oportunidade dos nossos militares, agora habilitados ao uso de bata branca, poderem, alternadamente, usufruir de (e cobrar) contactos seguramente mais agradáveis.

Uns dias depois, perante as novas valências do Controlo Militar e o enorme entusiasmo criado, o Alferes Bastos foi obrigado a aprovar uma rigorosa escala de serviço na Enfermaria, por via do Controlo Sanitário de mulheres, em trânsito, a caminho do norte.


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Notas do editor:

(**) Vd. poste de 6 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17146: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (27): Controlo sanitário


(***) O autor não precisa de apresentações... Mas, para os que chegaram só agora à Tabanca Grande, podem a ficar a saber o seguinte sobre ele:
José Ferreira da Silva:

- Nasceu em 1943, no concelho da Feira.

– Aos 10 anos de idade começou a trabalhar no sector corticeiro.

– Fez os estudos liceais e outros através de ensino particular.

– Durante o serviço militar, esteve nas seguintes unidades: Escola Prática de Cavalaria – Santarém Set/Dez 1965;  Escola Prática de Artilharia – Vendas Novas,  Jan/ Março 1966; GACA 3 – Espinho,  Abr/Set 1966;   CIOE (Rangers) – Lamego,   Set/Dez 1966; RAP 2 – V. N. Gaia, Jan/Fev 1967

– Partiu para a Guiné no Navio Uíge em 26 de Abril de 1967, integrado na CART 1689 do BART 1913. Chegado a Bissau, a CART 1689 saiu do Uíge directamente para barcaças rumo a Bambadinca, subindo o Rio Geba.

– A CART 1689 esteve colocada em Fá Mandinga, Catió, Gandembel, Cabedu, Dunane, Canquelifá e Bissau. Com Companhia de Intervenção, a CART 1689 actuou em mais de metade do território do CTIG, vindo a ser premiada com a Flâmula de Honra em Ouro do CTIG, o mais alto galardão atribuído a companhias operacionais.

– Regressou da Guiné, chegada a V. N. Gaia em 09 de Março de 1969.

– Começou a trabalhar como Comercial no ramo de Tintas e Vernizes, mas logo seguiu para Angola, terra de seus sonhos.

– Trabalhou na secção de Contabilidade da Câmara Municipal de Cabinda.

– Regressado de férias, em 1974, demitiu-se da C.M. Cabinda e foi viver para Crestuma, Vila Nova de Gaia, terra natal de sua Mulher.

– De 1975 a 1985, trabalhou numa empresa de fundição, como Director de Serviços.

– De regresso ao sector corticeiro, trabalhou como Director Comercial, vindo a criar uma pequena empresa direccionada para o apoio ao engarrafador.

– Como amante do desporto e do associativismo, ajudou à criação e desenvolvimento de vários clubes e associações desportivas, cultura, solidariedade e recreio.

– Praticou Canoagem, chefiou a Federação Portuguesa de Canoagem,   é Sócio Honorário, por aclamação, da F. P. Canoagem.

– Foi reconhecido pela Comunicação Social como Presidente do Ano, mais que uma vez; também foi homenageado em Espanha.; foi galardoado como Personalidade Desportiva do Século XX (como foram Eusébio, Joaquim Agostinho, Moniz Pereira e outros ilustres desportistas).

sábado, 16 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19592: (D)o outro lado do combate (48): A Missão Especial da ONU na Guiné - Abril 1972 (António Graça de Abreu / Luís Graça) - III (e última) Parte: capa + pp. 9-11.


1. Terceira e última parte do relatório, de 11 (onze) páginas, policopiado, que tem por título em português "A Missão Especial da ONU na Guiné - Abril de 1972" (*). 

Trata-se de uma versão, mais resumida do original, "Report of the Mission of the United Nations Special Committee on Decolonization after visiting the liberated Areas of Guinea-Bissau (A/AC. 109/L. 804; 3 July 1972)".

A cópia, em papel, de que dispomos foi-nos fornecida, com vista a uma eventual publicação no blogue, pelo nosso camarada António Graça de Abreu, por volta de 2010, na sequência dos comentários ao poste P5680 (*).

O documento de que publicamos agora  as três últimas páginas (9, 10 e 11)  parece corresponder à seguinte referência que encontramos na base de dados bibliográfica do CIDAC - Centro De Intervenção Para O Desenvolvimento Amílcar Cabral:


BAC-051/2
CIDAC

BORJA, Horácio Sevilla ; LOFGREN, Folke ; BELKHIRIA, Kamel
A Missão especial da ONU na Guiné Bissau, Abril 72 / Horácio Sevilla Borja, Folke Lofgren, Kamel Belkhiria . - [S.l.] : PAIGC, 1972. - 11 p


A edição é atribuída ao PAIGC. Mas as partes traduzidas em (mau) português correspondem ao original em inglês. Não sabemos de quem é a tradução. Há diversos erros quer de datilografia quer de português. A autoria é atribuída aos três membros da Missão Especial, os diplomatas Horácio Sevilla Borja (Equador), Folke Lögfren (Suécia) e Kamel Belkhiria (Tunísia), os dois primeiros ainda vivos.

O António Graça de Abreu poderá explicar-nos a origem do documento. É possível que tenha circulado antes do 25 de Abril, clandestinamente. De qualquer modo, é ainda pouco conhecido, ao fim destes anos todos.   Os nossos leitores, e nomeadamente os que combatiam, nesta altura (abril de 1972), no TO da Guiné, têm direito a conhecer o documento. 

É o elementar direito à informação que nos era negada no tempo da ditadura: com o país em guerra, era impensável a censura deixar passar, na imprensa, referências detalhadas a esta Missão Especial da ONU e, muito menos, deixar divulgar o o seu relatório, considerado como "propaganda inimiga".

Por outro lado, no início de abril de 1972 ninguém sabia (nem podia saber por "razões de segurança") desta "missão", a não ser um reduzido número de pessoas do "staff" da ONU, do PAIGC e do governo da Guiné-Conacri, para onde viajaram, desde Nova Iorque, em 28 de março de 1972, os cinco membros da Missão Especial. 

Pormenor curioso: o líder histórico do PAIGC não se jutou  com a Missão Especial na visita  às "áreas libertadas", fazendo as honras à casa, como em  princípio devia... Deixou essa incumbência à estrutura político-militar do PAIGC... Foi Aristides Pereira que deu as boas vindas à Missão Especial, no dia 1 de abril de 1972, no "quartel general do PAIGC"... em Conacri, tendo depois partido para o mato no dia seguinte (entrada no sul da Guiné-Bissau, por Boké-Kandiafara).

De resto,  no início de abril de 1972, os títulos de caixa alta do "Diário de Lisboa" era a escalada da guerra do Vietname", a ofensiva do vietcong e do Vietname do Norte contra o Vietname do Sul e a  os seus aliados dos Estados Unidos: vejam-se os títulos de caixa alta dos jornais da época... "Guiné ?... Isso é longe do Vietname", ironizavamos nós, em 1969, no bar de sargentos de Bambadinca... 



Diário de Lisboa, 14 de abril de 1972 >  Pela primeira vez há uma referência à Missão Especial da Comissão de Descolonização da ONU e à sua visita ao território da Guiné-Bissau, de 2 a 8 de abril (pp. 1 e 24). A Missão Especial, de 5 elementos, afirmou que o PAIGC controlava efetivamente o território,  escreve o jornal.  Por sua vez, o delegado protuguês negou veementemente que: (i) o PAIGC controlava uma ou mais partes do território da Guiné;  (ii) que a Missão Especial  tenha entrado alguma vez no interior da Guiné.




Capas do "Diário de Lisboa", do mês de abril de1972... (Cortesia da Fundação Mário Soares >Casa Comum > Diário de Lisboa / Ruella Ramos)

Eis alguns dos títulos:

"Ofensiva em três frentes no Vietname do Sul" (segunda-feira, 3 de abril de1972)

"Vietname: avanço para Hué" (terça-feira, 4 de abril de 1972)

"Saigão apela para Nixon: a situação militar é muito critica"(quarta-feira, 5 de abril de 1972)

"A aviação americana está a bombardear o Vietname do Norte" (quinta-feira, 6 de abril de 1972)

"Hanói pede negociações secretas comKissinger" (sexta-feira, 7 de abril de 1972)

"Saigão é o alvo" (sábado, 8 de abril de 1972)

"O medo do ano 2000" (domingo, 9 de abril de 1972)

"A 100 km de Saigão: comneçou a batalhade An Loc" (segunda-feira, 10 de abril de 1972)

"Vietcong ao ataque em todas as frentes" (quarte-feira, 12 de abril de 1972)

Os três membros do Comité Especial de Descolonização da ONU, mais dois membros do "staff" da ONU (incluindo o fotógrafo Yutaka Nagata, de nacionalidade japonesa) (*),  visitaram as "áreas libertadas da Guiné-Bissau" (sic), de 2 a 8 de abril de 1972, antes da época das chuvas, a convite do PAIGC, e à revelia do Governo Português. 

Claro que a missão tinha que ser secreta, por razões de segurança. Nesse curto espaço de tempo (menos de um semana), terão percorrido "200 quilómetros", de jipe (no território da Guiné-Conacri, até à fronteira) e depois a pé, tendo visitado "9 localidades diferentes", numa parte restrita da Região de Tombali: sectores de Bedanda, Catió e Quitafine.

Os diplomatos focaram a sua atenção nas estruturas militares, tabancas, escolas e armazéns, e fizeram depois apreciações, que constam no relatório, sobre "a situação no campo do ensino, da saúde, da administração da justiça, da reconstrução da economia e da formação de uma assembleia nacional". 

Os membros da missão vestiam fardas militares, com insígnias das Nações Unidas, e tiveram escolta de um bigrupo reforçado do PAIGC (cerca de 60 homens armados) sob o comando do Constantino Teixeira. No regresso, já a 6 de abril, a escolta passou a ser de 200 homens, provavelmente com o receio de alguma ação militar portuguesa com vista a capturar os diplomatas.

A principal base do PAIGC referida no relatório, dentro do território da então província da Guiné, era na zona de Balana / Gandembel, ou seja, no corredor de Guileje. Recorde-se que Balana e Gandembel tinham sido abandonados pelas NT, por ordem de Spínola, em janeiro de 1969.

(Continuação)

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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19489: A Galeria dos Meus Heróis (21): O "Duque de Palmela" ou o pão que o diabo amassou - Parte I (Luís Graça)

Luís Graça, ex-fur mil, CCAÇ 12,
 Contuboel, junho de 1969
A galeria dos meus heróis > O “Duque de Palmela” ou o pão que o diabo amassou - Parte I



por Luís Graça




1. “Duque de Palmela” foi alcunha que lhe puseram na tropa. Muitos militares tinham como alcunhas os nomes das terras donde provinham. Assim era mais rápido distinguir os Silva, os Santos, os Ferreiras, etc. , em cada pelotão ou companhia. E sempre era mais fácil que fixar o número mecanográfico, que na realidade ninguém sabia decor…

O Santos, antigo 1º cabo, emociona-se quando fala da Guiné. Dos camaradas que lá ficaram, uma boa meia dúzia. Dos que regressaram e que ele nunca mais voltou a ver. Da fome que passaram. Dos “embrulhanços”, das emboscadas no mato, das minas nas colunas logísticas, dos ataques e flagelações aos aquartelamentos,  destacamentos e tabancas… Do pão que amassou e cozeu em fornos, às vezes improvisados… E, claro, das “beijudas”… E ainda da sorte que, afinal, só teve na guerra, ao trocar a G3 pela amassadeira e a 
pá de padeiro...

Ainda se emociona, enfim, quando fala da sua infância e adolescência, marcadas pela pobreza e pela orfandade.

− Camarada, comi o pão que o diabo amassou!


2. Nasceu nas faldas da serra da Arrábida, perto da Quinta do Anjo, no concelho de Palmela. O pai, J. Santos, era de origem beirã, nascido em Gouveia. Fixou-se por ali, com a família, no início dos anos 30. Era pastor, quando, no período da II Guerra Mundial, fui chamado a cumprir o serviço militar obrigatório. Mobilizado pelo RI 11, em Setúbal, esteve como expedicionário, na ilha do Sal, em Cabo Verde. Rapou fome e sede, apanhou o escorbuto e nunca mais ficou bom dos pulmões. Regressou em 1943, casou em 1944, e teve o seu primeiro filho em 1945. O nosso herói.



3. Filho e neto de pastores, o J. Santos pastor continuou a ser, em regime de parceria pecuária. Tinha um rebanho de ovelhas que não era seu, era do patrão, um fabricante de queijo de Azeitão, um dos fundadores da cooperativa local em 1945.

No final do ano tinha direito a algumas crias que podia vender, mais tarde, como borregos, machos, em especial na altura da Páscoa, em que havia maior procura. O seu salário-base era uma miséria. Nunca conseguiu chegar a ter um rebanho seu.

Analfabeto, descobriu, por si mesmo, a importância que era saber ler, escrever e contar. Em Cabo Verde, tinha que pedir ao seu 1º cabo, um rapaz de Sesimbra, para lhe ler as cartas que recebia da namorada e dar-lhe a resposta na volta do correio.

Quando voltou à terra e casou, jurou a si mesmo que os seus filhos, se fossem machos, teriam que ir à escola, custasse o que custasse. Só teve rapazes e todos fizeram a 4ª classe, ou andavam na escola quando ele morreu, cedo, aos 38 anos, com a “doença dos pulmões" que trouxera da ilha do Sal.


Deixou viúva e 4 filhos menores. Estamos em 1958, o ano do ciclone político chamado general Humberto Delgado. Salazar continuaria sentado na cadeira do poder, mas o país nunca mais voltaria a ser o mesmo: no final dos anos 50 tinha começado a grande debandada rural…


4. O “Duque de Palmela”, o M. Santos, era o mais velho dos quatro irmãos. Tinha 13 anos. A mãe, viúva, ficou desamparada. Pouco ou nada tinha de seu. Vivia num casebre, com cobertura de colmo, numa propriedade do patrão e, por esmola, lá continuou a viver com um pequeno pedaço de horta que lhe dava uma mancheia de batatas e couves…

Naquele tempo não havia Segurança Social. A não ser para uma minoria de trabalhadores da indústria e serviços, cobertos pelas caixas de previdência, criadas no âmbito do sistema corporativo do Estado Novo. Os portugueses estavam divididos em três categorias sociais, conforme o rendimento: pensionistas, porcionistas e… indigentes. Só estes, uma espécie de párias, tinham direito a internamento hospitalar gratuito nos hospitais públicos, que de resto se contavam pelos dedos… Hospital queria dizer, até então, local onde se acolhem doentes pobres. Só os pobres iam para os hospitais para serem tratados e, em muitos casos, morrer. Os ricos tratavam-se e morriam... em casa.


5. O “Duque de Palmela” pegou numa sacola de serapilheira e aos treze anos, “homem já feito”, não teve outro remédio senão o de estender a mão à caridade, metendo-se ao caminho para arranjar o sustento da família.

− Não tenho vergonha de o contar aos meus netos que hoje vestem roupas de marca, e têm, cada um, o seu carro: uma rapariga que ainda anda na universidade e um rapaz, que já ajuda o pai, na administração da Panificadora, depois de tirar o curso de gestão hoteleira.

Bateu casais e aldeias nas faldas da serra, desde Azeitão e Quinta do Anjo até à vila de Palmela, "estendendo a mão à caridade". Ao fim do dia sempre havia algum pão, queijo, chouriço, toucinho, etc., para fazer o caldo, e meia dúzia de tostões, para além da fruta e legumes que ia surripiando, aqui e acolá, à beira dos caminhos.

− Os meus netos, uma vez, espantados, perguntaram-me se eu tinha passado fome… E eu respondi-lhes: ‘Não, meus queridos, eu, a vossa avó e os vossos tios não morremos de fome, graças a Deus… mas passámos muitas necessidades’… O que é diferente.

E, em jeito de conclusão, acrescentou:

− A roupa que tínhamos no corpo, aos mais novos, que ainda andavam na escola, valeu-nos a distribuição do pão, queijo e leite da Cáritas, para além do vestuário e do calçado em 2ª mão. Mas eu, aos 13 anos, fiquei conhecido como o “pé descalço”, porque as únicas botas que tinha, no tempo do meu pai, deixaram-me de servir…

− Camarada Santos, quantas histórias iguais à sua não poderiam contar muitos de nós que passámos pela Guiné ? Éramos um país de pobreza envergonhada! – interrompi eu.

− Diz bem, camarada, pobreza envergonhada!... Nos primeiros dias e semanas, custa muito um gajo estender a mão à caridade dos outros.. E eu já não era uma criança inocente… Corava de vergonha e baixava os olhos quando eram raparigas ou jovens mulheres que me vinham abrir a porta…


6. Depois a mãe pô-lo a trabalhar, por volta dos 14 anos. Teve vários ofícios. Andou a trabalhar à jorna no campo, na debulha do trigo, e foi aprendiz de moleiro. Só não quis ser pastor como o pai. Na altura cultivava-se muito cereal por aquelas bandas, e não faltavam moinhos de vento.

Até que por volta dos 16 anos arranjou trabalho como ajudante de forneiro numa panificadora, num dos  concelhos vizinhos. Comprou uma “pasteleira” em segunda mão, ia e vinha todos os dias de bicicleta, com sol ou com chuva… Cerca de 20 e tal quilómetros, ida e volta.

Ainda se cozia o pão a lenha, nessa época, só mais tarde vieram os fornos a eletricidade e depois a gás. A ver os colegas a amassar, a estender a massa, a cortar e a enfornar, depressa aprendeu o ofício de padeiro. De resto, a sua mãe também fazia pão em casa, com sobras da farinha do moleiro ou da Cáritas. Foi com ela que aprendeu mais alguns pequenos segredos da arte de padeiro.


7. Aos vinte anos foi chamado para a tropa, já a guerra tinha rebentado em Angola, e depois na Guiné e em Moçambique. Pela primeira vez, saiu da região: a viagem que tinha feito mais longe fora até Setúbal. Lisboa ficava na outra margem do rio Tejo, e ele nunca tinha andado de barco. Mais longe era ainda o Porto, aonde se chegava de comboio.

Deram-lhe a especialidade de atirador de infantaria, foi mobilizado para a Guiné, formou companhia no Campo Militar de Santa Margarida. E numa madrugada fria de inícios do ano de 1966 chegou de comboio ao Cais da Rocha Conde de Óbidos para embarcar, com a sua companhia, independente.


8. Na instrução da especialidade, o M. Santos foi o primeiro classificado em quase tudo. Ninguém o batia na carreira de tiro, com a G3, nem os oficiais do quadro permanente que vinham da Academia Militar, e que tinham muito mais treino. Nas provas físicas, era o campeão. Fazia um crosse de 30 quilómetros, quase a brincar, deixando a “concorrência” a grande distância. Baixo, entroncado, com um boa caixa de ar, era o típico militar português, de origem rural, capaz de sobreviver a muitas provações e até desaires. Vaticinava o segundo comandante da companhia, que tinha feito o “curso de operações especiais” de Lamego, ao mesmo tempo que evocava o exemplo do "Palmela" (mais tarde, já na Guiné, "Duque de Palmela"):

− Na hora do combate, debaixo de fogo inimigo, o “Palmela” será o primeiro a reagir, de pé, sem medo, o peito feito às balas… Nos ataques ao quartel, será o primeiro a saltar para as valas e a varrer o inimigo na orla da mata, ou junto ao arame farpado…

− E assim foi – confirmou o “Duque de Palmela” −, na primeira emboscada que tivemos, logo numa das primeiras colunas logísticas, uma vez que fomos buscar mantimentos a Buba, eu fui o único que fiz fogo de pé… Valeu-me o capitão, a meu lado, que me obrigou a amochar os cornos… E no primeiro ataque a um dos nossos destacamentos, fui eu e o capitão que manobrámos o morteiro 81, o capitão punha as granadas e eu aguentava o tubo com o ombro… No meio daquela confusão toda, não tínhamos o tripé, só o prato…

Se fosse furriel ou alferes, o “Duque de Palmela” tinha-se oferecido para os comandos.

− Chumbaram-me nos psicotécnicos, não sei porquê. Com números e letras é que nunca fui bom na tropa. Tirei a 4ª classe à rasquinha, não tenho vergonha de o dizer.

− E para os paraquedistas ? – atrevi-me eu a sugerir.

− Para os paraquedistas, nem pensar. Nunca me deu bem com as alturas! – explicou ele.


9. Ainda em Santa Margarida foi abordado por um oficial, português, com brilhante currículo em África, um dos heróis de Angola em 1961. O Santos disse-me o nome, mas por razões óbvias não o vou aqui citar. Andava ele, mais um cabo miliciano, e um primeiro sargento, a recrutar futuros voluntários para a Rodésia, a África do Sul e sobretudo o  Vietname.

− 'No caso de regressares com vida e saúde, como esperamos, finda a tua comissão na Guiné, tens aqui o meu contacto. Podemos fazer um pré-contrato. Se quiseres, assinas já, sem compromisso’… Esperamos por ti! − disseram-me eles.


Para o “Duque de Palmela” era a sua “independência económica, o prémio da lotaria que nunca lhe calhara, porque também nunca tivera dinheiro para jogar”!, exclamou ele, com um brilhozinho nos olhos.

Sobretudo, no Vietname, um 1º cabo de infantaria era capaz de ganhar tanto ou mais do que um capitão na Guiné, garantia-lhe um dos engajadores.

Começou a fazer contas por alto, e a ficar baralhado com os números. A cabeça nunca mais teve sossego. O risco era “um gajo lerpar e ficar por lá”. Mas isso também podia acontecer na Guiné, logo aos primeiros tiros. Era só preciso “confiar na estrelinha da sorte” e “rezar, todas noites, ao anjo da guarda", conforme a mãe lhe recomendara.

Confessou-me que nessa altura nunca ou raramente pensava na morte.

− Quando um gajo tem 20 ou 21 anos, não pensa sequer na morte. Tem a vida toda à frente dele. E nem sequer é capaz de imaginar o sofrimento daqueles que o amam… e que estão longe!

Por outro lado, quando embarcou em Lisboa, com destino à Guiné, os seus sentimentos eram muitos diferentes de boa parte dos seus camaradas:

− Para alguns dos meus camaradas, era como ir para a forca! Houve quem chorasse baba e ranho. Havia-os já casados e com filhos… Mas, para mim, não!... Não vou dizer que fiz uma festa a bordo, mas não conseguia esconder que estava algo excitada com a ideia de ir para a a guerra, a milhares de quilómetros de casa.

− Excitado ?!... Mas com saudades, não ?!...

− Claro, tive saudades da minha mãe e irmãos, ficaram cá dois para ajudá-la. O outro, a seguir a mim, já tinha cavado para França, e mandava-nos algum dinheiro.

E depois fez-me uma confidência:

− Nunca contei isto a ninguém, muito menos à família. Eu parecia um puto a quem deram um brinquedo, neste caso a G3. Mal comparado, era como o cão de caça, excitado pela algazarra dos homens e animais, antes dos caçadores e das matilhas largarem para a caça…

−É caçador, o camarada ?

− Tenho poucos vícios, mas este é um deles…

− Em suma, convenceram o camarada de que era um bom soldado e um grande português!

− E era, sem peneiras! Oxalá todos fossem como eu, ontem e ainda hoje! A vida foi-me madrasta até aos vinte e tal anos, mas depois compensou-me. Posso bem dizê-lo: passei um terço da minha vida, até aos vinte e tal anos, a viver mal, a comer o pão que o diabo amassou… E os outros dois terços a viver menos mal, graças a Deus. Claro, a trabalhar 12 horas e mais por dia na Panificadora…


A sua ideia fixa era ganhar dinheiro, "manga de patacão",  para depois montar o seu negócio quando voltasse:

− Estava a apontar lá para os 30 anos… Nessa altura, arrumava a farda, a espingarda automática, as cartucheiras e as botas… Regressava à terra, casava-me, constituía família, tornava-me um gajo decente, comprava um carro… Abria um café com fabrico próprio de pastelaria, em Palmela ou nas terras próximas…


10. Está grato a duas pessoas que lhe tiraram da cabeça “essa maldita ideia de ir para o Vietname”. Estava a ser uma obsessão. Nos primeiros tempos de Guiné, não se coibiu de partilhar o “segredo” com alguns dos seus camaradas mais próximos. Não sabe bem porquê, nem exatamente quando, começou a convencer-se de que poderia ficar “rico” se enveredasse pela vida de “mercenário” ou “legionário”. Impacientava-se, ainda tinha quase dois anos pela frente até acabar o raio da comissão na Guiné. 


Chegou a mesmo a arquitetar um plano para “desertar”, fugindo pela Guiné-Conacri. Afinal, a fronteira era ali tão perto. Bastava, numa noite de luar, ir à tabanca, e não voltar ao quartel, despedir-se da sua “beijuda” e, por volta das 3 da madrugada, rezar ao seu anjo da guardar e… zarpar!

Começou a estudar os trilhos que levavam à fronteira e que eram conhecidos dos gilas, os comerciantes ambulantes. O problema é que não tinha nenhum mapa do país vizinho. E depois havia a língua, as comunicações, os transportes, os papéis, o risco de ser apanhado pelo PAIGC ou pelas autoridades da Guiné-Conacri… E, claro, "encostado a um poilão" para lhe limparem o sebo!


Por outro lado, interrogava-se ele, como é que voltaria a contactar o grupo dos engajadores, que de resto eram portugueses e militares do exército português?!... Que história é que ele lhes iria contar ? … A par disso,  ele sabia que a estadia na Guiné, em zona de guerra, era fundamental para fazer currículo e se poder alistar amanhã num exército estrangeiro… E, por certo, eles não iriam querer um “desertor" no seu lote...

O seu sonho começou a cair por terra, como um castelo de cartas, à medida que se avolumavam as dificuldades para pôr em prática os seus planos de fuga… Começou a ter problemas de “consciência” e a “dormir mal”: desertar era virar as costas aos seus camaradas de armas, alguns dos quais eram já seus amigos do peito. E, se fosse apanhado, pelo lado português, tinha a vida estragada, apanhava uma porrada, uns bons anos de prisão… Até o poderiam fuzilar, alguém lhe tinha dito que, numa situação de guerra, podiam levar um desertor a um tribunal de guerra, condená-lo à morte e fuzilá-lo, sem apelo nem agravo…

Enfim, a coisa estava a tornar-se feia…



Na altura tinha várias madrinhas de guerra, mas havia uma com quem simpatizava mais. Era alentejana, “ali de Santiago do Cacém”.

− Olhe, acabaria por ser a minha senhora… Casámo-nos passado um ano e tal, do meu regresso da Guiné. Foi ela quem me tirou da cabeça essa “ideia maluca” de ir para o Vietname... Também me falavam da ‘Legião Estrangeira’ mas os sacanas dos franceses pagavam pior que os americanos..


11.E a outra pessoa a quem ele ficou “grato para o resto da vida”, foi o capitão, o seu comandante de companhia.

Era miliciano, tinha pelo menos dez anos a mais do que a maioria dos graduados da companhia, os alferes e os furriéis. Nunca confessou a ninguém o que pensava daquela guerra, mas estava lá porque fora “obrigado como a grande maioria do pessoal”… 


Aceitou a missão de comandar aqueles 160 homens e jurou, perante eles, todos formados na parada do Campo Militar de Santa Margarida, na véspera de partirem para o embarque, fazer tudo para os trazer de volta, "sãos e salvos", de regresso a casa e às suas famílias…

Sabia-se pouco sobre ele e a sua vida, se era casado, se tinha filhos, o que fazia na vida civil… Não era pessoa de muitas falas… Mas a verdade é que nunca se deixou intimidar quer pelo inimigo quer pelos superiores hierárquicos. Soube sempre defender, tanto quanto possível, os interesses e os bem-estar dos seus homens, pese embora a companhia ter feito uma boa parte da comissão às ordens do batalhão de Buba.

− E lá, fomos carne para canhão!... O primeiro ano foi duro… E tivemos os primeiros mortos… Depois ficámos em quadrícula, espalhados por alguns destacamentos e a ajudar a reforçar a autodefesa de algumas tabancas fulas da região do Forreá.

O capitão acabou por saber do “segredo de Polichinelo” do “Duque de Palmela”… Às tantas só faltava publicar na “ordem de serviço” um requerimento dele a pedir a autorização para se alistar nas tropas do Tio Sam…

Como o capitão o achava “temerário”, para não dizer "prematuramente apanhado do clima”, na melhor ocasião retirou-o do 1º pelotão, com o acordo expresso do respetivo alferes com quem, de resto, o nosso 1º cabo Santos, o “Duque de Palmela”, não fazia “farinha”…

− ‘Antes que o gajo faça alguma maluqueira e nos estrague a vida a todos’ – terá dito, na altura, o capitão.

Sabendo da sua profissão na vida civil, pôs o “Duque de Palmela” na padaria. Para qualquer outro no seu lugar, seria um prémio, uma promoção. Mas, para o nosso homem, foi uma tremenda desconsideração, quase uma despromoção… Padeiro era básico, tal como o cozinheiro… Nessa noite apanhou uma “cadela de todo o tamanho”…

− … Mas no dia aprazado já lá estou eu, no meu posto, a substituir o padeiro da companhia que, vim a saber mais tarde, tinha sido transferido para Bissau… 


De facto, o rapaz, que o Santos foi substituir,  fora pai, e logo de dois gémeos. Alguém meteu uma cunha à Cilinha, a patroa do Movimento Nacional Feminino. E o rapaz lá foi para o “bem bom” do quartel de Santa Luzia, em Bissau. Apesar de continuar com a exercer a sua especialidade, que era a de fazer pão para a tropa...  

(Continua)



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Nota do editor: