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domingo, 4 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1492: Álbum das Glórias (7): Eu, o Mário Soares, o grande cantautor de Coimbra, Luiz Goes, e o Spencer (António Pinto)


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > BCAÇ 506 > Abril de 1964 > Da esquerda para a direita: O Alf Mil António Pinto, o Mário Soares, comerciante de Pirada, o Alf Médico (e hoje conhecido como o grande intérprete do fado de Coimbra) Luiz Goes (1) e o Alf Mil Spencer.

Série Álbum das Glórias (2)


Foto: © António Pinto (2007). Direitos reservados (3).

______

Notas de L.G.:

(1) Vd. sítio Coimbra XXI, Gestão e Promoção Cultural > Sobre Luiz Goes (Reprodução do texto, com a devida vénia):

"Luiz Fernando de Sousa Pires de Goes

"Coimbra, 5 de Janeiro de 1933

"Licenciado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, em 1958, exerceu a profissão de médico estomatologista, em Lisboa, até 2003. Prestou serviço militar na Guiné como Tenente-médico, entre 1963 e 1965 [, BCAÇ 506].

"Iniciou-se no Fado de Coimbra por influência do seu tio, Armando Goes, um dos grandes cantores e compositores dos anos vinte, contemporâneo de Edmundo Bettencourt, António Menano, Lucas Junot e Paradela de Oliveira.

"Cantou pela primeira vez em público com apenas 14 anos de idade, numa festa do Liceu D. João III, em Coimbra, interpretando a Feiticeira, de autoria de Ângelo de Araújo. Já anteriormente tinha tido o privilégio de ser acompanhado, em convívios de antigos estudantes, por Artur Paredes, Afonso de Sousa e Francisco Menano, irmão mais velho de António Menano. Fez as primeiras gravações em 1953 com José Afonso, António Brojo e António Portugal.

"Enquanto estudante, integrou o Orfeon Académico, onde foi solista, e o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), sob a direcção do Prof. Paulo Quintela. Colaborou ainda com outros organismos académicos como o Coral da Faculdade de Letras e a Tuna Académica.

"Com José Afonso, Fernando Rolim e Machado Soares participou na gravação de discos de setenta e oito rotações, os primeiros depois da geração de oiro dos anos vinte, acompanhado por António Brojo, António Portugal, Mário de Castro e Aurélio Reis. ´

"Luiz Goes tem desenvolvido uma actividade artística regular enquanto cantor, compositor e poeta, sendo unanimemente reconhecido como o maior intérprete da segunda metade do século XX da Canção de Coimbra. Gravou vários LP´s sendo de destacar: Serenata de Coimbra (Coimbra Quintet), Coimbra de ontem e de hoje, Canções do mar e da vida, Canções de amor e esperança e Canções para quase todos.

"É Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique e recebeu a Medalha de Oiro da Cidade de Coimbra e a medalha de Mérito Cultural do Município de Cascais.

"Carlos Carranca disse, a 4 de Julho de 1998, aquando da cerimónia de entrega da Medalha de Ouro da Cidade de Coimbra a Luiz Goes:

"Dizia Teixeira de Pascoaes que a voz de Hilário "subia nas noites de Coimbra até se ouvir na lua". Ele era o primeiro grande cantor das inesquecíveis noites de luar da Velha Alta. Hoje, no dealbar do novo milénio, cem anos depois de Hilário, a voz de Luiz Goes enche a noite, universalizando a toada coimbrã, penetrando fundo na cósmica inquietação do Futuro. A alma de Coimbra é a voz de Luiz Goes e a voz de Luiz Goes é a voz telúrica e trágica da condição humana. A sua obra é um monumento humano. É obra moça. Não exibe velhices precoces, é fruto de uma personalidade riquíssima, de uma sensibilidade invulgar e de uma visão plural da vida.
"- É através de ti, da tua voz, das tuas interpretações, dos teus poemas, que Coimbra ultrapassa os limites da cidade, vai mais longe. Vai ao encontro de quem sonha, do homem só, adquire sangue novo. Chega mais longe porque tu lhe insuflaste a tua própria vida, lhe deste a tua inteligência e a tua criatividade inacessíveis aos que de Coimbra se contentam em imitar o estilo, a exibir erudição, a contabilizar louvores.

"Com Luiz Goes o canto de Coimbra rompe com a 'lamechice', desce às raízes, ganha autenticidade e sensualidade. Luiz Goes não só canta, como escreve sobre nós, e fá-lo apaixonadamente. Os labirintos da nossa alma profunda percorrem as nossas canções. São pedaços de nós, de Portugal, de uma paisagem física e humana que visceralmente somos. Seus versos pedem canto. E o que é cantar? É talvez o meio de sermos por fora o que somos por dentro. É escancarar o que nos vai na alma reduzindo a distância que nos separa. E não há forma mais perfeita de estar com os outros.

"Em Luiz Goes habitam as múltiplas influências do trovador inquieto e intemporal, do poeta, do respeitador da tradição no que ela possui de essencial, rejeitando exibicionismos vocais, poéticos saudosismos serôdios e intransigências reaccionárias. Luiz Goes é um cantor da Saudade. Mas de uma saudade que nos faz compreender que todos nós participamos num ser universal".

(2) Vd. post de 30 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1473: O álbum das glórias (6): A 'dolce vita' de Bolama (Joaquim Mexia Alves, CART 3492)

(3) Vd. post de 3 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1491: Gabu: Fotos com legenda (António Pinto, BCAÇ 506 e 512) (2): Nova Lamego, Pirada, Buruntuma, Senegal

sábado, 3 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1491: Gabu: Fotos com legenda (António Pinto, BCAÇ 506 e 512) (2): Nova Lamego, Pirada, Buruntuma, Senegal













Fotos: António Pinto (2007). Direitos reservados.

Mensagem do António Pinto, com data de 3 de Janeiro último, enivada ao José Martins:

Caro José Martins:

Permito-me enviar mais algumas fotos (1), que legendei, esperando que sejam recebidas em boas condições. Ainda não são de Madina e Beli pois ainda não as encontrei.

Como diz o teu neto, temos que ser os escritores da nossa história, para que ele, bem como as minhas netas (tenho 4) e também todos os netos dos nossos camaradas, percebam um pouco do que foi a nossa passagem por terras da Guiné.

Um abraço do

António Pinto
(ex- Alf Mil, BCAÇ 506 e 512,
Nova Lamego, Pirada, Madina do Boé, Beli,
1963/65)

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

23 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1456: Gabu: Fotos com legendas (António Pinto, BCAÇ 506 e 512) (1): Pirada e Piche

17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1437: Estórias de Madina do Boé (António Pinto) (1): a morte horrível do Gramunha Marques e o ataque a Beli em que fui ferido

3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1397: Ataque ao destacamento de Beli em Maio de 1965 (António Pinto, BCAÇ 512)

20 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1378: António de Figueiredo Pinto, Alf Mil do BCAÇ 506: um veterano de Madina do Boé e de Beli

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1456: Gabu: Fotos com legendas (António Pinto, BCAÇ 506 e 512) (1): Pirada e Piche






Fotos e legendas: © António Pinto (2007). Direitos reservados.


Mensagem datada de 5 de Janeiro do corrente, enviada pelo António Pinto, ex-alf mil dos BCAÇ 506 e 512 (Zona Leste, 1963/1965):

Caro Luís Graça

Cada dia que passa mais eu recuo no tempo, graças ao que vou lendo de tantos Camaradas que queimaram parte da sua juventude em terras da Guiné.

É de louvar a tua iniciativa, que descobri tarde demais, mas que, julgo, ainda vou a tempo de contribuir para que os nossos vindouros se apercebam do que foram aqueles anos em que nos obrigaram a fazer tanta coisa, quer contra os nossos princípios, quer contra as nossas convicções.

Sem querer ser fastidioso e inoportuno vou tentar enviar umas fotos, que julgava já ter enviado, mas não tenho a certeza se foram recebidas. Mando-as somente porque numa das conversas que tivemos, falei no Luís Góis, no meu grande Amigo Gramunha Marques e na empanagem da granada de morteiro que me ia levando desta vida.

Vou legendá-las aqui, pois apesar de ter escrito abaixo das fotos, julgo não se perceber:

-1ª, do lado esquerdo > Pirada > Janeiro de 1964 > Parte do Destacamento de Pirada. Era um celeiro. Pode ver-se o refeitório.

-2ª, do lado direito > Pirada > Fevereiro de 1964 > Construção de um dos abrigos

-3ª , do lado esquerdo > Pirada > Março de 1964 > Obras de ampliação do Quartel e continuação dum abrigo com troncos de cibe

4ª, do lado direito > Pirada > Janeiro de 1965 > Em primeiro plano o Martinho Gramunha Marques, de que te falei, eu e o Sarg Piedade.

5ª, do lado esquerdo > Piche > Abril de 1964 > Comigo um comerciante de Pirada, chamado Mário Soares, depois o conhecido Dr Luís Góis e o Alf Spencer .

6ª, do lado direito > Foto que tirei há pouco tempo da empanagem da granada de morteiro que Maio de 1965, em Beli, quase me levava; caíu a cerca de um metro de mim.


Um grande abraço e desculpa se me estou a repetir.

Pinto

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1437: Estórias de Madina do Boé (António Pinto) (1): a morte horrível do Gramunha Marques e o ataque a Beli em que fui ferido

3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1397: Ataque ao destacamento de Beli em Maio de 1965 (António Pinto, BCAÇ 512)

20 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1378: António de Figueiredo Pinto, Alf Mil do BCAÇ 506: um veterano de Madina do Boé e de Beli

(...) " Alguns dados sobre a minha estadia na Guiné:

(i) Embarquei em Novembro de 1963, em rendição individual. Fui substituir um colega que se pirou para o Senegal;

(ii) Estive algum tempo em Nova Lamego, tendo sido, em seguida destacado para Pirada onde reconstrui o aquartelamento.

(iii) Estive algum tempo em Geba, zona na altura um bocado perigosa, mas sem problemas.

(iv) Vim de férias em Outubro de 1964 (...);

(v) No regresso, fui destacado para Madina do Boé, tendo sido o primeiro pelotão a chegar lá onde montei o primeiro aquartelamento.

(vi) Depois fui para Beli , onde ao fim de algum tempo, e depois também de ter sido o primeiro pelotão a lá chegar e ter montado o destacamento, em Maio de 65, fomos atacados tendo aí sido ferido (mais seis companheiros) mas, felizmente ninguém morreu. Os meus ferimentos foram motivados pelo rebentamento de uma granada de morteiro, que me encheu o corpo de pequenos estilhaços, mas depois de um mês no hospital em Bissau, fiquei OK.

(vii) Depois de sair do hospital, mandaram-me para Bolama, dar instrução onde terminei a comissão.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1442: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (29): Finete contra Missirá mais as vacas e o bombolom dos balantas

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Finete > 1969 > O ex-Fur Mil Henriques, da CCAÇ 12, com uma menina, em frente à casa principal da tabanca que, "salvo erro, pertencia à família do comandante do pelotão de milícia, Bazilo Soncó" (LG). Finete ficava frente a Babambadinca, do lado (direito) do Rio Geba.


Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Rio Udunduma > 1970 > A economia local dependia também também da produção pecuária que por sua vez estava dependente da prática da transumância, prática essa que a guerra veio limitar ou inviar... Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.



Lisboa > Hospital Militar Principal > 1969 > Fotografia do 2º sargento Fodé Dahaba. Pertencia ao Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Missirá ) . Foi gravemente ferido em 22 de Fevereiro de 1969 na Op Anda Cá (Fevereiro de 1969). Vive hoje em Lisboa e visita regular do seu antigo comandante, o Beja Santos.

Texto e foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em 22 de Dezembro de 2006:


Caro Luís, aqui vai o segundo texto de 1969. A seguir, inopinadamente, o Comandante Chefe e séquito chegam a Missirá onde tudo está mal, desde a insegurança dos abrigos, a tropa mal indumentada, há balas perdidas no chão e por azar dos Távoras o soldado Bacari Djassi entrou numa discussão com o alto comando sobre a diferença entre a luz do mato e a ausência de um gerador...

Apanhei um calafrio e uma reprimenda brutal do Hélio Felgas [, comandante do Agrupamento de Bafatá,] (2), e no mês seguinte dois dias de prisão. Esta toada surrealista ainda é mais incompreensível para quem sabe o que recebi e o que estou a procurar fazer em terras do Cuor. No tocante a ilustrações, acho que chegou a oportunidade para te socorreres do material fotográfico do Luís Casanova.

Aceita um abraço e os votos que 2007 só te dê grandes alegrias, em casa, no trabalho e nos afazeres tertulianos, Mário Beja Santos.


A conjura de Finete e as vacas de Mero

por Beja Santos

É a primeira vez que revisito o passado do Cuor com Fodé Dahaba (3). Pedi-lhe uma primeira ajuda para falarmos de um estranho drama ocorrido em Janeiro envolvendo um pseudo manifesto colectivo que fora transmitido ao Comandante de Bambadinca e em que eu era directamente acusado de maus tratos à população e às milícias; igualmente lhe pedira para me ajudar a esclarecer a colaboração e os apoios de Mero às gentes de Madina/Belel [, base do PAIGC, a noroeste de Missirá].


O Fodé Dahaba que está na minha frente, ladeado pela sua mulher, Fatemana, vestida a rigor para dia de festa, e de Margarida, um dos seus 7 filhos, que lembra uma jovem de Brooklin ou do East Side londrino, tem os olhos vazos, apõe o coto da sua mão sinistrada em 22 de Fevereiro de 1969, mesmo junto a Madina, e sorri com a mesma inocência e beleza de feições com que o conheci em 1968.
- Fodé, nunca entendi o que pretendiam as pessoas que foram caluniar-me junto do Comandante de Bambadinca. Não tinha pés nem cabeça, era inevitável a reacção da população a meu favor, nunca entendi o porquê, a justificação de uma mentira tão facilmente desmontável. Agora que estou a escrever o relato daquele tempo, conto com a tua sinceridade.


A luta pelo poder entre as milícias de Finete



Tudo começara com o chamamento urgente feito pelo Pimbas [, o tenente-coronel Pimentel Bastos, comandante do BCAÇ 2852] (4). Recebeu-me no seu gabinete, senti-o contrafeito mas após algumas preliminares inócuas, atacou o assunto:
- Olha, isto parece uma história maluca. Apareceu-me aqui um soldado com uma carta a dizer que o povo e as milícias de Finete não querem o teu comando. Segundo os queixosos, tu dás muito menos a Finete do que dás a Missirá, tu exiges grandes esforços e gritas com eles. Ouvi-o e imagina tu que não tinha passado uma hora tinha aqui à porta os homens grandes com o chefe de tabanca à frente a dizerem que era tudo mentira o que se dizia a teu respeito. Não sei o que te diga, e queria saber o que tu pensas.

Eu não sabia de nada, embora fosse conhecedor das tensões permanentes entre mim e o Comandante das milícias, Bazilo Soncó, um dos irmãos do régulo. Agora supor que havia um estado de rejeição quando regularmente estava ou passava por Finete e mantinha as relações mais cordiais com todos, parecia manifestamente absurdo.
- Meu Comandante, peço-lhe que me deixe falar com a população e os milícias de Finete e de seguida um seu representante inquirirá sobre a situação existente. Depois tomará as decisões que entender.

Sem perda de tempo, cambei o Geba e uma hora depois reuni-me primeiro com os homens grandes e depois em separado com as milícias. Não precisei de falar. O chefe de tabanca, Mussá Mané, tomou a palavra para dizer que pediam a expulsão de Abdu Soncó, um cabo da milícia a quem acusavam de estar a mentir e cujo propósito seria o de Finete ficar em autonomia relativa, dependente do batalhão de Bambadinca. E que eu ficasse a saber que a população de Finete não aceitava ser misturada nas calúnias que sabiam constar numa carta entregue em Bambadinca.

Na reunião com os milícias, senti o silêncio de uns e a indignação de outros. O dito Abdu Soncó acusou-me de não dar cimento, armas e munições em quantidades satisfatórias, levar milícias para os trabalhos duros de Missirá e não pagar a tempo e horas. Recordo que Bacari Soncó pediu para falar, lembrando o que era Finete ainda há escassos meses e desmontou a argumentação do seu camarada. Não discursei mas avisei-os que ia transmitir ao Comando em Bambadinca o teor das duas reuniões havidas. Tudo se esclareceu rapidamente, pedi para não haver sanções sobre Abdu e a ala discordante mas nunca apurei o que motivara esta aparatosa e descocada conjura.

Fodé remexe-se na cadeira e deu-me a interpretação dos factos. Quem estaria por detrás da movimentação era o próprio Bazilo e um Sargento, Abás Jamanca. Por outras palavras, Bazilo e Abás temiam que Fodé e Bacari fossem escolhidos para comandar as milícias e eles afastados.

Eu criticava asperamente Bazilo por nunca sair do aquartelamento, isto quando Fodé e Bacari estarem permanentemente a meu lado nos patrulhamentos ou por sua iniciativa a patrulharem sobretudo na extensa bolanha entre Boa Esperança e Gã Gémeos. Aquela carta de Abdu fora uma tentativa desastrada de me procurarem afastar para manter o statu quo. Eu ia tomando nota destes apontamentos e perguntando a mim próprio se afinal não somos iguais no amor e no ódio, em qualquer atmosfera de guerra ou paz. Felizmente que um mês após a trágico-cómica conjura já ninguém se recordava desta lamentável história.


As vacas de Mero e o bombolom dos balantas

Falámos depois das vacas de Mero:
- Fodé, era impossível que os balantas de Mero não fossem todos coniventes com as gentes de Madina. Eu só me interrogo é como eles acordavam os dias e as horas e os itinerários dos encontros já que corriam riscos mortais. O que é que tu pensas?

Aqui Fodé encolheu os ombros como se aquela fatalidade viesse do fim dos tempos:
- Ouve, tu sabes como é que os balantas comunicam entre si? É através do bombolom, um tronco oco por onde envia mensagens. Antigamente era através dos cornos de vaca, mas depois o bombolom era o telemóvel deles. Estou seguro que os ouvíamos mandar mensagens para os grupos que vinham de Madina ao princípio da madrugada. Só os balantas é que conhecem aquela linguagem. Parece um batuque mas aquilo são tudo sinais. Eles tocavam e as gentes de Madina ficavam a saber que não havia perigo, podiam atravessar o rio Geba e regressar ao mato com vacas, mais gente para a tropa, tabaco, o que precisassem.

Então lembrei-me que uma noite estávamos emboscados junto de Gambicilai e avistámos movimento na bolanha em frente a Mero. Cautelosamente, emboscámos junto ao rio, esperámos que atravessassem com a sua carga. Vimos chegar vultos esfumados e vimos os contornos dos animais. Mas o azar nesse dia estava no nosso lado. Nhaga Macque, um fula possante, deu um espirro monumental no meio da noite, o grupo de Mero dispersou rapidamente e a única compensação que tivemos foi apanhar uma vaca que tinha atravessado o rio. Vezes sem conta pedi em Bambadinca que se fizesse o recenseamento da população, perdi sempre. Nessa altura as atenções estavam centradas nos Nhabijões e noutras tabancas em autodefesa.

Recordo que por essa altura também o Pimbas me tinha pedido a síntese sobre a situação político-militar no Cuor. Formei um grupo de reflexão de que faziam parte o régulo Malã, o Casanova, o Comandante das milícias de Missirá, Albino Amadu Baldé, Bacari Soncó e Fodé Dahaba. Nesse pequeno documento que entreguei ao Pimbas chamava a atenção para os seguintes pontos:

(i) o Cuor devia ser encarado militarmente na dimensão Enxalé-Missirá-Geba, independentemente de nos competir assegurar a manutenção da via marítima do Geba;

(ii) era totalmente impossível aumentar a capacidade ofensiva com tão reduzido contigente, com armamento inapropriado e nas condições logísticas mais deprimentes;

(iii) os rebeldes no Mansomine e no Oio precisavam de ser confrontados por uma conexão de esforços militares que permitissem a nossa presença mais assídua no Joladu e Mansomine, e Missirá nada mais podia fazer que receber as suas eventuais flagelações;

(iv) ou se criavam condições para pôr mais populações em autodefesa ou era inteiramente impossível melhorar a nossa inserção no território.

Entreguei o curto documento, o Pimbas achou interessante mas não houve qualquer seguimento. Eu estava cada vez mais convencido que o PAIGC pretendia obter a neutralização das nossas tropas, já que não havia população a conquistar e o seu esforço de guerra não encarava como prioritário querer aniquilar a nossa presença do rio Geba, algo que eles sabiam ser impossível, pois esta era a única porta aberta para o Leste. O ideal era alguém em Missirá que não fizesse ondas .


Missirá armadilhada pelo Alferes Reis

O Alferes Reis, o mais truculento sapador da Guiné, veio passar 4 dias connosco. Zaragateámos um pouco por causa da quantidade de trotil que ele pretendia enterrar em todos os atalhos que circundam Missirá. O Reis começa-se a afeiçoar à região e quando eu for operado em Março, será ele que apanhará o vendaval de fogo . Mas hoje ajudou-nos imenso a colocar correctamente as fieiras de arame farpado e deixei-o com carta branca para armadilhar junto da fonte de Cancumba, que é um local que tenta os rebeldes.

Fora de tempo e horas chega o pedido de comandante de Bula para eu não visitar os meus antigos soldados da CCAÇ 2402 (5), pois "havia o risco de os desmoralizar". Trata-se de uma história sórdida que não vale a pena aqui desenvolver . Também por esta altura parti uma dentadura postiça que seguiu para reparação num protésico em Lisboa (não havia quem fizesse ou reparasse próteses, pelo menos na região de Bafatá).

O Fodé entretanto pede-me para se ir embora, tem que ir à mesquita pois domingo segue para Meca e à saída disse à Margarida:
- A família de alfero e os seus amigos deram-me todo o apoio que me ajudou a suportar o muito sofrimento. E gostei muito do louvor que recebi depois da pancada recebida!

Se tudo correr bem, vamos reunir-nos em breve para falar da operação Anda Cá.

Os mais bravos soldados do mundo

Tenho muito orgulho nos louvores e pedidos de condecoração para os meus soldados. Um oficial é sempre o porta-voz do agradecimento e reconhecimento dos méritos e do bom uso da escala de valores. Louvei o Joaquim da Conceição, o Saiegh, o Domingos Ferreira e o Veloso. Pedi louvores para Adulai Djaló, Cherno Suane, António Teixeira e tantos outros por comportamentos excepcionais em teatro de operações.

Mas recorri igualmente ao louvor para destacar o primor de carácter, a abnegação, ou um só momento de valentia. Fi-lo com o Luís Casanova e outros como o Barbosa (aquele que tinha o fetiche pela sua boina verde) por ser entusiasta na reconstrução do quartel, por gostar de ajudar sem ser visto.

Lembro o Zé Pereira que durante uma flagelação entrou numa morança em chamas para retirar uma criança esquecida na precipitação da fuga. Este mesmo Zé Pereira era valente, bom professor e dava-me muito apoio nas traduções para crioulo. No dia em que li o seu louvor ao pelotão em formatura e onde se dizia que o víamos partir cheios de saudade, o pelotão aplaudiu de pé. Mas lembro, embargado pela emoção o louvor a Quebá Sissé, o Doutor, o mais risonho dos cozinheiros. Fazia reforços e ia a Mato de Cão como toda a gente.

Tive igualmente em conta as referências elogiosas aos meus soldados antes de ter chegado em Agosto. Por exemplo, Sibo Indjai, o mais indómito dos caçadores que nos trazia frequentemente porco e gazela do mato. Em Junho de 68, escrevi-lhe um louvor, porque com desprezo pela sua própria vida lançara-se num ataque a uma casa de mato, pondo em fuga o grupo rebelde. E sempre que me disseram que eu comandava alguns dos mais bravos soldados do mundo nunca protestei porque achasse exagerado, eu sabia que era verdade.

O fim da minha curtíssima carreira... poética

Não vou falar num livro prodigioso que estou a ler O Deus das Moscas, de William Golding, um belo e terrível livro que alguém classificara como o mais notável romance inglês do pós-guerra. Eu hoje quero comunicar que vou pôr termo à minha veia poética, reconhecendo a falência de inspiração.

Devo ao Ruy Cinatti o ter vindo a conhecer René Char, Francis Ponge ou Saint-John Perse. Este último influenciou-me muito, e momentos houve em que julguei que a boa poesia passa por manipular habilidosamente uma trovoada de imagens. Descobri no momento da verdade que a arrumação dos versos que o foguetório pode encher o olho mas não deixa o espírito saciado.

Lembro que uma vez escrevi "esta terra tem um cheiro a morangos podres e a pó de morcego" e depois desatei a rir porque não era mentira para os meus sentidos mas constituía uma afronta para a comunicação. Outra vez escrevi "dor em tabuada, vapor e trovoada" não me soava mal mas não passava de uma bolha de sabão. Momentos houve em que aceitei haver beleza num encadear de palavras, havia até uma toada épica que não me desagradava: "A quem me lembra e esquece, cada letra é uma homem em Missirá, cada letra sobe os ramos numa árvore prometida. Em cada letra sinto o brilho de uma catana que mutila e dela saem os gritos dos meus amigos que partem para sempre. À minha volta, há um arado e há sangue coagulado, há pássaros cegos que esvoaçam encadeados por uma melodia de sal. E Missirá resiste!".

Se vos conto esta intimidade é porque a guerra é também um bom momento para termos respeito pela nossa vocação e sermos sinceros com o que escrevemos. Eu vim a descobrir que escrevo com indizível prazer mas a veia poética é inexistente. E no entanto... momentos há em que me atiro para a frente, colo os versos como se os pregasse em forma de desenho de uma parede e me emociona com o resultado. Será assim quando um dia, em 2006, escrever para os meus camaradas da Guiné A Estrela de Belém a Missirá.

Este mês de Janeiro [ de 1969] reserva-nos as últimas chuvas. A escola funciona bem, as obras dos abrigos prosseguem, chegou mais cimento e chapas de zinco, desmata-se em Canturé, há Mato de Cão todos os dias e, não fosse esta perna que arrasto cada vez com mais dificuldade, eu diria que o Cuor é a minha segunda casa e estes homens com quem vivo dentro e fora do arame farpado os maiores amigos do mundo.

Um dia destes, enquanto desmatamos em frente a Missirá e um Unimog puxa com guincho cibes que cortámos de um palmeiral, vamos ouvir os rotores de dois helicópteros e vou conhecer o Comandante Chefe. Serei admoestado, o que não vai abalar as minhas convicções. Seguir-se-à Chicri e depois Quebá Jilã. A roda da fortuna vai de novo circular descompassadamente. E, pior do que tudo, seguir-se-à a amargura dessa falhada operação Anda Cá.

Há momentos em que me questiono de onde vem esta energia para reconstituir os factos sem gritar cheio de dor, tal a raiva das perdas.
_____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 10 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1418: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (28): Sol e sangue em Gambiel

(2) Vd. post de 13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas

(3) Vd. post de 22 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1102: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (12): Os meus irmãos de Finete

(4) Vd. posts de:

22 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852

(5) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1437: Estórias de Madina do Boé (António Pinto) (1): a morte horrível do Gramunha Marques e o ataque a Beli em que fui ferido

Mensagem do António Pinto (1):

Amigo José Martins (2),

Como o tempo, nesta altura, é coisa que me sobra, após a minha reforma,  e sobretudo porque, depois de ter encontrado a Tertúlia, conforme te disse na última mensagem vou tentar resumir mais uma ou duas histórias que ultimamente me tem assumido ao consciente, duma maneira quase actual.

(1) Gramunha Marques, morto em Madina do Boé.

Estava em Beli, já noite, quando através do rádio do Chefe de Posto soube o que aconteceu aos nossos camaradas, que foram vítimas duma emboscada fatal. A minha primeira reacção foi entrar em contacto com Nova Lamego e pedir autorização para ir tentar ajudá-los.

Levei uma nega do Ten Cor Figueiredo Cardoso que me deu ordens terminantes para ficar onde estava, em Beli, com redobrada vigilância. Com os nervos à flor da pele desliguei-lhe a comunicação depois de quase o ter insultado (e que mais tarde pedi desculpa, do acto impensado).

Pedi voluntários para irem comigo, mesmo desobedecendo às ordens e quem conseguiu demover-me, já com a pequena coluna pronta para arrancarmos, foi o Furriel Stichini, que me disse e não posso mais esquecer:
- Nós vamos, mas será o responsável pelas nossas mortes.

Acabei por ficar, destroçado e cheiro de raiva. O Gramunha Marques, soube-o depois, teve uma morte horrível, com uma perna esfacelada, esvaindo-se em sangue e sempre consciente até ao fim.

(2) Ataque a Beli em Maio de 1965

Em 20 de Maio de 1965 fomos atacados em Beli. A noite estava maravilhosa e o silêncio à volta do Destacamento era total, embora existisse perto uma tabanca com muitas dezenas de palhotas.

Era perto da 1 hora da manhã, estávamos cá fora a petiscar qualquer coisa e nessa altura já estávamos, com certeza, a ser alvo dos guerrilheiros que cercaram o destacamento, e que segundo me disseram depois eram mais de 400.

Deitámo-nos e por volta das 2.30h mais ou menos ouviu-se um único tiro, que perfurou a perna de um sentinela, seguindo-se depois um tiroteio, com armas muito mais sofisticadas do que as nossas, mas nessa altura já estávamos todos na vala, que fizemos a toda a volta do destacamento, respondendo como podíamos.

Incendiaram quase toda a tabanca e as morteiradas caíam por todo o lado. Uma delas rebentou com os bidões de combustível que lá tínhamos.... parecia o Incêndio de Roma.

A granada que me feriu caiu muito perto de mim e a minha sorte foi termos feito a vala, como nos ensinaram em Mafra (sinuosa) e a mesma ter rebentado numa das curvas da dita vala.

Segundo me disseram, depois, estive desmaiado cerca de 10 m e parecia um croquete pois estava só em trousses e corpo todo cheio de sangue dos estilhaços, a maior parte pequenas pedras e areias e também pequenas partículas de aço. Os estilhaços que matavam, felizmente, passaram ao lado...

Depois, como sabes, lá amanhecia muito cedo e por volta das 4 horas eles começaram a debandar, pois estavam a cerca de 20 km da fronteira da Guiné ex-francesa.

Ao amanhecer vieram de Nova Lamego e fomos, salvo erro, seis evacuados para Bissau.

Foram momentos um bocado apertados e, embora já tenham passados quarenta e dois anos, muitas vezes ainda sonho com esse dia.

Amigo Martins, desculpa ter escrito tanto.... mas há tanta coisa para contar e eu, embora tentando sintetizar, deixei correr o pensamento. Desculpa.

Vou tentar mandar mais algumas fotos, não de Madina e Beli, pois ainda não as encontrei e numa delas está o grande amigo que lá morreu o Marques, de que te falei no outro dia.

Um feliz Natal e um 2007 melhor que bom.

Um grande abraço
António Pinto

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1397: Ataque ao destacamento de Beli em Maio de 1965 (António Pinto, BCAÇ 512)

20 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1378: António de Figueiredo Pinto, Alf Mil do BCAÇ 506: um veterano de Madina do Boé e de Beli

(2) Vd. posts de:

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1292: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte I)

15 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)

21 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1388: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (III parte)

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1422: A derrocada do Leste e a mina que desgraçou o meu amigo de infância André, da CCAV 3864 (A. Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L3 > Nova Lamego > O António Santos no seu posto de rádio, acompanhado de dois camaradas. Operador de mensagens, por ele passavam muitas notícias da guerra. Ele acompanhou, à distância, a progressiva derrocada militar da região de Gabu.
Foto: © António Santos(2006). Direitos reservados.


Mensagem do nosso camarada A. Santos, Ex-Sold Trms, Pel Mort 4574/72, Zona Leste, Sector L3, Nova Lamego,1972/74:

Camarada, Luís Graça.

Boa saúde.

Os posts P1409 e P1410 em que se faz a recensão do livro de Benigno Fernando (1), tem referências a acontecimentos (verídicos) que se passaram na Zona Leste, sector L6. Este assunto a que se refere este post do Beja Santos, é só a confirmação do que te falei no nosso primeiro encontro, na tua faculdade (2).

Nessa altura referi também outra localidade que acabou por ser o alvo que mais embrulhos sofreu, Canquelifá, que pertenceu ao Sector L4. Já fiz uma abordagem ao tema no post 1216 (2).

O Cap Cruz, cmdt da 1ª companhia do BCAV 8323, de seu nome Angelo César Pires Moreira da Cruz (não sei se posso ditar o nome completo, mas aqui está, conforme é referido nos canhenhos da guerra) foi substituído pelo Cap Fernando Loureiro.

Isto tudo traz-me à memória um outro caso em tudo idêntico, que eu tenho feito por não lembrar desde 1973. Durante algum tempo penso ter conseguido, mas periodicamente vêm ao de cima, tento de novo esquecer mas em vão, este post do Beja Santos veio definitivamente obrigar-me a não esquecer.

No Batalhão anterior ao BCAV 8323, dois elementos que o compunham, são rapazes da minha infância, um na CCS outro na CCAV 3864, o André. Durante os 6 meses finais de 1972 e o ano de 1973 quase todo, quando passavam por Nova Lamego os meus amigos vinham ter comigo para a confraternização da praxe, conversar sobre a vidinha, e beber umas cervejas. Isto aconteceu repetidas vezes, até que um dia quando eles faziam 22 meses de comissão, o meu amigo André pisou uma maldita mina, num maldito trilho, que o desgraçou para todo o sempre, nunca mais foi o mesmo.

No nosso almoço, na Ameira, distribuí um CD onde no ficheiro em formato Excel com o título lista_unidades na célula H-773, está a palavra Sissaucunda a vermelho. Não foi por acaso, esse vermelho simbolizava o azar do nosso camarada e meu amigo de escola, das brincadeiras de há 50 anos.

Como ja contei, o Leste nesta fase terminal da guerra estava a ser muito apertado, outra nova, amigo Luís, Nova Lamego nesse tempo foi sobrevoada à noite por diversas vezes e os aviões não descolavam de Bissalanca.

Desculpa ter tomado algum do teu tempo, mas o post P1410 teve este efeito em mim, porque normalmente sou mais de ler do que escrever ou falar, talvez defeito da passagem pelas trms.

Um Alfa Bravo

A. Santos
SPM 2558

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Notas de L.G:

(1) Vd posts de:

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1410: Antologia (57): O Natal de 1973 em Copá (Benigno Fernando)

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1409: Bibliografia de uma guerra (16): Pirada, Bajocunda, Canquelifá, Copá: o princípio do fim (Beja Santos)

(2) Vd. post de 27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)

(...) Copá foi extinto em 14 de Fevereiro de 1974, após violentas flagelações, Mareué idem em 11 de Março de 1974, mas o aquartelamento mais sacrificado foi o de Canquelifá, que sofreu flagelações a toda a hora. Neste caso a arma mais utilizada foi o morteiro 120, e houve abrigos que não resistiram.

"A 20 de Março de 1974, entrou em cena o Batalhão de Comandos Africanos, com as três companhias que dele faziam parte integrante. Saíram de Nova Lamego em coluna composta por viaturas militares e civis e dirigiram-se para o local. A operação durou 3 dias, de 21 a 23 de Março 1974. Segundo os canhenhos militares, capturaram 3 Mort. 120, 1 RPG, 2 espingardas, 367 granadas de Morteiro e deixaram 26 mortos do lado IN (do nosso lado nada dizem)...

"Mas cá o rapaz, no dia 22 [de Março de 1974], como não fazia nada, e porque o condutor da ambulância era do meu pelotão e foi chamado à pista, eu fui com ele. Chegados ao local, era um vaivém de helicópteros que traziam mortos e feridos. Eu dei uma mãozinha para pegar nas macas. Retirava dos Helis e, segundo instruções do médico, ora pousava na pista (estava morto), ora colocava num Dakota que estava logo ali (estava muito ferido)... Vi pernas destroçadas por estilhaços de não sei de quê!" (...).

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1419: Estórias cabralianas (17): Tirem-me daqui, quero andar de comboio (Jorge Cabral)

A 17ª estória do Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71 (1)


Ainda o Amaral, mas desta vez, Mestre – Escola : Quero andar de Comboio!

Creio que foi em Fevereiro de 1971, que em Missirá, recebi a ordem de Bissau – um dos furriéis passava a ser Professor, com dispensa de toda e qualquer actividade operacional. Ponderada a situação, optei pelo Amaral (2), cujo porte rechonchudo e as maçãs do rosto vermelhuscas, lhe davam um ar prazenteiro e bonacheirão, nada condizente com as funções de comandante de secção combatente.

Por outro lado, pesou na minha decisão, o facto de ele ser filho de professores primários… pois filho de peixe, pensava eu, saberia nadar…

Enquanto Professor, ao Amaral, competia ensinar não só as crianças, mas também os Soldados Africanos, que deviam completar a terceira e quarta classes. Arranjado o espaço, preocupou-se logo o nóvel Professor em obter dois instrumentos, segundo ele, indispensáveis à sua actividade – um longo ponteiro e uma régua, que ele denominava “menina dos cinco olhos”.

Às oito horas, o Amaral formava as crianças, as quais em marcha acelerada entravam na escola, clamando em coro:
– Bom dia, Senhor Furriel Professor.- Depois permaneciam toda a manhã em afinada ladainha:
– Um mais um dois, dois mais dois quatro, ba, bá, ca, cá, da, dá, etc, etc.

Qualquer erro ou desatenção, dava lugar a castigo, que para isso servia a “menina dos cinco olhos”, gabando-se o Mestre, do seu exemplar método pedagógico, exactamente igual ao que fora utilizado na sua escola primária. À tarde, era a vez dos Soldados e eu de vez em quando ia assistir.

Porém, talvez pela maior complexidade da matéria ou pela idade dos discípulos, o Amaral sentia muitas dificuldades. Recordo uma aula, na qual o Professor explicava aritmética, enunciando problemas:
-Tu, Sambaro, diz-me lá? Se gastas 300 quilos de arroz por mês, quantos gastas em 15 dias? - Aqui, o Sambaro começava a discutir, afirmando que lhe chegavam 100 quilos, retorquindo o Amaral:
- Faz de conta, isto é um problema!
- Mas eu nunca comprei 300 quilos - teimava o Soldado. Quase apopléctico o Amaral desistia… Também na História de Portugal, as coisas corriam mal. Castelhanos sem ser turras, era difícil de entender, e quanto a D. Afonso Henriques, fora transformado em pai do Almirante Américo Tomás…

Um dia o Amaral todo ufano, convidou-me para ir à aula. O Mamadu tinha feito progressos. Era o melhor aluno. Lá fui, tendo presenciado o interrogatório sobre as linhas de caminho de ferro e respectivas estações. Mamadu tinha decorado tudo!

Linha do Norte, do Sul, do Oeste… Todos os ramais, estações e apeadeiros. Como ir da Pampilhosa ao Entroncamento, e de Faro à Covilhã.

Radiantes, Professor e Aluno, esperavam o meu elogio. Lembrei-me porém, de perguntar:
- Sabes o que é um Comboio?
- Alfero, nunca n´ca ódja um! – respondeu , Mamadu.

Foi a partir de então que acrescentámos o nosso desabafo de chatisse:
-Tirem-me daqui! Quero andar de Comboio”! – passámos a gritar.

Jorge Cabral

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Notas de L.G.:

(1) Vd. último post > 14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1369: Estórias cabralianas (16): As bagas afrodisíacas do Sambaro e o estoicismo do Sousa

(2) Vd. post de 6 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1344: Estórias cabralianas (15): Hortelão e talhante: a frustração do Amaral (Jorge Cabral)

Guiné 63/74 - P1418: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (28): Sol e sangue em Gambiel

Capa do romance Barranco de Cegos, de Alves Redol. Lisboa: Portugal Editora, 1961. (Contemporânea, 29). Capa de João da Câmara Leme (Digitalização a partir de uma exemplar, autografado pelo autor, e gentilmente cedido pelo escritor Mário Braga, amigo do Mário Beja Santos).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1968 > O Furriel Miliciano Casanova. "O Casanova é um dos meus mais agudos problemas de consciência. Chegou no final de Agosto a Missirá e, progressivamente, tornou-se o meu interino. Chegou muito triste, procurando estudar seres humanos e situações. Depois levantou voo, foi imaginativo e um grande colaborador. Distrai-me e não dei pela sua exaustão. Quando partiu com um colapso nervoso é que me apercebi do peso da sua ausência. Ele foi a minha rectaguarda, confiei-lhe as contas e a sorte dos aquartelamentos sempre que estava no mato" (BS).


Texto e foto: © Beja Santos (2006). (Com os nossos agradecimentos ao ex-furriel miliciano Luís Casanova que disponibilizou esta e outras fotos). Direitos reservados.


Texto enviado pelo Mário Beja Santos em 19 de Dezembro de 2006:

Aqui vai o primeiro texto referente a 1969. Foi uma semana agitada, aquela que preludia a primeira visita de Spínola a Missirá. Creio que com as fotografias do Casanova tu ganhaste um novo fôlego ilustrativo. Por exemplo, podias aqui recorrer à fotografia do bazuqueiro Adulai Djaló. Seguirá por correio o livro Barranco de Cegos, de Alves Redol, com dedicatória do autor a Mário Braga. Eu já desesperava de o encontrar nas minhas andanças pela Feira da Ladra, e em conversa com o Mário Braga ele disse-me que cedia a obra, seguramente o grande livro do Redol. Enviar-te-ei em breve o original da minha punição, que ficará a teu cargo, como tudo mais. Tudo farei para que esta semana recebas dois textos, já que na semana de Natal vou reorganizar os primeiros 6 meses de 1969 e procurar preencher lacunas com o Casanova, o Queta Baldé e o Fodé Dahaba. Depois fujo para a floresta, para Casal dos Matos. A saga continua. Recebe um abraço do Mário.



Nas margens do rio Gambiel, fogo imprevisto entre os palmeirais
por Beja Santos



A 1 de Janeiro, a pretexto de uma coluna e acompanhamento de obras em Finete, fui à missa a Bambadinca. Mas em Canturé, bem expostas à evidência, encontrámos sinal da cabança de bovinos de Mero a caminho de Madina: as bostas, por azar de quem viajou de noite, era um eloquente testemunho bem exposto na picada.

Reorganizei o programa, o Furriel Pires (recém-chegado a Missirá para substituir o Saiegh) ficou em Finete e fui patrulhar a bolanha entre Gambicilai e Boa Esperança. A colheita não foi despicienda: três carregadores de PPSH perdidos e sinais evidentes da cambança do rio em frente da bolanha de Mero.

Um RVIS sobre um dos santuários da guerrilha

Regressámos a Missirá onde já nos esperava uma mensagem para me apresentar na manhã seguinte ao oficial de operações em Bambadinca. É então que vou ouvir pela primeira vez a palavra RVIS, ou seja fazer um patrulhamento aéreo à procura de sinais da vida militar e civil dos rebeldes.

Subimos para uma DO, atravessámos os Nhabijões, cruzámos o Geba e subimos Mato de Cão, depois Sinchã Corubal e então Madina. Sem saber ao que vinha (ou fingindo ignorar que estava a ver do ar a guerra que outros preparavam nos gabinetes), pedi ao major de operações para examinarmos mais ao pormenor o terreno a partir da região do Enxalé, e adiante de Madina, subindo em direcção ao Oio.

Os resultados foram interessantes e para mim, completamente inesperados: um entrelaçado de caminhos irradiando de Madina nas quatro direcções, quase estradas que se diluiam na floresta impenetrável, também em todas as direcções. Subindo para Norte do Cuor, pedi ao piloto para cirandar de Madina até Quebá Jilã, do rio do mesmo nome até ao rio Passa e daqui para o rio Gambiel. Não acreditava no que os meus olhos viam: as bolanhas completamente lavradas a quatro quilómetros em linha recta de Missirá. Ora, já tinhamos patrulhado Sancorlá e Salá, visto milimetricamente todo o terreno firme em direcção da Pate Gide, regressando por Cancumba, e nenhum sinal foi avistado.

Ora, saltava à evidência que toda essa grande estrada que vem de Porto Gole, passando por Enxalé, atravessando o rio Gambiel em direcção a Sare Ganã e daqui para Bafatá era muito mais utilizada pelo PAIGC do que pelas nossas tropas. Guardei para mim o assombro da revelação, sabia que aquele RVIS tinha a ver com uma operação à região de Madina para a qual não obtive nenhuma informação, parti imediatamente para Finete com um bom carregamento de materiais de construção civil e ao despontar da aurora da manhã seguinte parti com um grupo de 30 homens, dois morteiros e duas bazucas em direcção ao rio Gambiel.


A paisagem deslumbrante de Gambiel


Para quem não sabe, Gambiel é um dos sítios mais formosos do mundo. Os palmeirais estendem-se pelo rio que vai desaguar no Geba, acima da Aldeia de Cuor. São luxuriantes, de porte elevado, em declive para as bermas do rio, estendendo-se pelo horizonte desafogado. Tivemos sorte com o dia, translúcido, com pouca humidade e temperatura aceitável àquela hora. Depois de vistoriar o pontão dinamitado pelos rebeldes no início da luta armada (e que impediu as ligações directas entre Missirá e Geba e Bafatá) começámos a circundar os palmeirais do lado do Cuor, procurando identificar aquilo que na véspera vira como claramente visto na bifurcação dos regulados do Cuor, de Mansomine e Joladu.

É uma progressão dificil entre terra firme e caminhos enlameados, entre floresta cerrada e o campo descoberto. Interessava-me, em primeiro lugar, saber se a população civil que cultivava o rio Gambiel cambava em direcção a Missirá e, em segundo lugar, esclarecer se havia presença militar contínua neste recanto noroeste do Cuor. Súbito, pelo meio dia, o sol tornou-se uma fornalha, enquanto subíamos para a fronteira dos domínios do Cuor. Aí pelas 2 da tarde, ergo os binóculos e asseguro-me que os campos lavrados estão de facto no Mansomine e em toda a fronteira do Oio, não no Cuor.

Para me certificar em absoluto do que estávamos a ver, chegámos à margem da bolanha junto do rio Cuiá para depois descermos por Paté Gidé, e assim regressarmos a Missirá. É então que se ouvem três tiros de trovão e a lama despedaça-se num milhão de salpicos à nossa frente. Tínhamos sido detectados por um grupo de vigilância armada. Ou se recuava correndo o risco de estalar o pânico dentro da floresta ou se respondia com um mínimo de concerto.


E segundos decidi com o Casanova partirmos a coluna, eu responder com os morteiros para os pontos de saída do fogo rebelde, enquanto se lhes fazia saber que dispúnhamos de bazucas. Vi algum temor na tropa quando um grupo vestido de caqui amarelo correu bem à nossa frente a escassas centenas de metros, do outro lado do rio. Então, exactamente naquela direcção, descarregámos todo o potencial dos nossos morteiros. Desconheço as consequências, mas vi a força rebelde espalhar-se aos gritos em todas as direcções.

Campino, o bazuqueiro, com duas pernas estilhaçadas


Os morteiros, do outro lado, confrontavam-se com as nossas bazucas, naturalmente menos eficientes. É nessa altura que Adulai Djaló e Mamadu Djau, num ímpeto, se lançaram destemidamente para junto do rio, à procura de atingir o armamento rebelde. Nisto, uma morteirada explode entre os dois, atirando-os ao chão. Mamadu Djau levantou-se logo mas Adulai parecia inanimado e a bazuca abandonada. Fomos a correr, temendo o pior. Não era o pior mas era grave. Adulai, o nosso Campino tinha as duas pernas estilhaçadas.

Usando alguns dilagramas como cortina protectora, retirámos com o nosso ferido, daqui seguimos em marcha forçada até Missirá. Com desespero, vi o dia a caminhar para o ocaso, sem poder dimensionar a gravidade dos ferimentos. Chegados a Missirá, rasgadas as calças do ferido apurou-se que eram estilhaços superficiais e que o nosso Campino resistiria perfeitamente até ao amanhecer seguinte. Ele foi prontamente evacuado e uma semana depois apareceu orgulhoso com as suas pernas enfaixadas, mostrando-se sombranceiro, minimizando a escala do acidente, desabafando mesmo:
-Isto não são ferimentos para um bazuqueiro!. - Mal sabia ele que no dia 19, em Chicri, o seu desempenho voltaria a ser importante.

É no regresso a Missirá que confirmo a lástima em que tenho a perna direita: coxeio cada vez mais e não é a primeira vez que me estatelo no capim, na lama ou na terra seca. Em Bambadinca o David Payne já me avisou que tenho que ir rapidamente à faca, pois é a exostose será gradualmente mais dolorosa. Planeámos tudo para eu me aguentar em Missirá e Finete até fins de Fevereiro (sente-se no ar que Bambadinca e Bafatá preparam uma operação no Cuor. Temos depois as obras, embora eu confie que o Casanova as acompanhe melhor do que eu.

Morre-se de malária no Cuor

Nos solavancos da roda da fortuna há outros acontecimentos que não quero omitir. Chegou um relatório acerca daquele Amadu, o madinga saracolé de Bafatá que nos apareceu em pânico em Canturé, referido aqui há semanas atrás. Afinal o ataque dos rebeldes foi já dentro do Cuor na bolanha de S. Belchior, houve três mortos e doze feridos. O mais surpreendente é que os rebeldes tiveram ao seu dispor a escassos metros da margem uma embarcação carregada de víveres.

O Capitão Baptista Neves, Comandante da CCS [do BCAÇ 2852], visitou Missirá em inspecção amigável. Prometeu duas viaturas, muito cimento mas exige abrigos levados da breca, com tectos de betão. Todos os dias fazemos desmatações, a época das chuvas está a findar, a partir de agora a natureza vai dar sinais de viço. O Furriel Pires, não satisfeito com as paredes nuas da messe decorou-os com cartazes turísticos do Algarve, reproduções de El Greco, Matisse e Delacroix. Depois, aprimorou a decoração com afirmações de Mouzinho de Albuquerque que rodeavam uma expressiva ilustração do enterro do Conde Orgaz... achei aquilo um bocado bacoco mas não reagi.
O Setúbal, um dia destes, entrou a 100 à hora na porta de armas, uma pedra manhosa fez com que o Unimog desse uma guinada cínica, o Domingos Silva, o Jobo e o Serifo andaram pelos ares. O primeiro perdeu os sentidos, o segundo rasgou os beiços, o terceiro estava glopeado da cabeça aos pés. Felizmente, não houve consequências.

Morreu um Bacari Soncó, de 30 anos, irmãozinho do régulo, vitimado pela malária e levámos a família Soncó ao choro no Cossé. Mamadu Djau, além de bazuqueiro é um homem que sofre. Entrou-me numa madrugada destas na morança com os olhos emudecidos. Soubera que um dos seus irmãos, soldado no Moricanhe, ficara volatizado quando pisou uma mina na estrada de Mansambo. Este o nosso quotidiano tranversal.

Barranco de Cegos e outras prendas do Ruy Cinatti

Nesta época, graças às prendas que o Ruy Cinatti (2) me mandou, ando de papo cheio. São leituras marcantes e registo-as num caderno que depois mando para Lisboa. Por exemplo, do Raúl de Carvalho, em Talvez Infância: "É vergonha ser forte e dar o braço a torcer; É vergonha falar de coisas que não se entendem, ou então das cosias que a gente não confessa a ninguém; não é vergonha ser pobre, e estar calado; não se queixar, ser assim: - não vês a terra, que por mais sol que faça ou chuva que encharque, fica sempre na mesma; árida, plana a toda a sua redondeza, e por mais que a gente cave ou charrue ou a revolva, fica sempre na mesma, não acaba... a gente deve ser assim como a terra".

Ou ainda Herberto Helder: "Assim uma cidade vem de longe, cantando muito baixo- e eu recebo-a em casa, ao pé do fogo. Limpo-lhe as folhas, e digo que a sua canção, entre a poeira, era bela e terrível. Aliso as penas de uma formidável morte. Branca é a europa diante da noite, soda ocidental. Grandes barcos chegam batendo as águas. Morrer cedo é como um livro onde as pessoas passem ao fundo, dormindo. Viro as páginas de noites leves. Grandes barcos chegam, batendo o coração. Morrer cansa, ao soletrar a noite de páginas distraídas".

De um livro de poemas de René Char, que o Cinatti também me mandou, sublinho de um poema: "Pour qui oeuvrent les martyrs? La grandeur réside dans le départ qui oblige. Les êtres exemplaires sont de vapeur et de vent.". Mas a leitura mais impressiva deste tempo é Barranco de Cegos, de Alves Redol, que o meu padrinho me ofereceu. É uma epopeia ribatejana, envolvendo a família Relvas, abastados lavradores com propriedades no Ribatejo e no Alentejo.

Tudo começa à volta do Ultimatum e o colapso financeiro, em 1891. Diogo Relvas, o senhor de Aldebarã, tem uma estatura literária gigantesca. Mal sabia eu que nunca voltaria a encontrar em torno do Ribatejo uma outra criação igual. É um pouco da História de Portugal, com miguelismo, marialvismo, sanha conservadora, um tirano agrário que põe e dispõe da vida dos filhos e dos trabalhadores. Com o advento da República, já envelhecido, desaparece numa torre, um neto manda embalsemá-lo e um dia numa corrente de ar desfaz-se em pó. Seria o salazarismo que Alves Redol visava também em 1961?.

As próximas semanas irão introduzir uma reviravolta nos meus projectos. Vou emboscar frente a Mero, vou receber o Comandante Chefe numa visita estranhíssima que culminará no mês seguinte numa punição. Vai haver de novo Chicri. Arrasto cada vez mais uma perna doente. No dia 1 de Fevereiro, o pelotão 52 joga uma partida de futebol com o pelotão 53, recém-chegado do Xime. Enquanto jogamos o céu escurece-se com uma força aérea que se desloca para os lados de Bafatá. Nós não sabíamos, mas ia a começar a evacuação de Madina de Boé. E Fevereiro será o mês de muita canseira em Mato de Cão, traremos um prisioneiro de Quebá Jilã e ouvirei os gritos horríveis de Fodé Dahaba em frente a Madina. É necessário, tenho que contar.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1399: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (27): Sinopse: os meus primeiros 150 dias

(2) 10 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1032: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (5): Uma carta e um poema de Ruy Cinatti

quinta-feira, 10 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P264: Tragam uma lágrima de um menino balanta ou biafada do Fiofioli (Luís Graça)

Amigos & Camaradas:

Um dia os historiadores haverão de ganhar dinheiro à nossa conta, da nossa e dos pobres guinéus que andaram, tal como nós, com a canhota na mão, no Fiofioli, em Guileje ou noutros sítios lá no "cu do mundo, longe do Vietname", como eu costumava chamar à Guiné, em 1969/71...

Enquanto eles não escrevem os seus livros, volumosos e bem encadernados, sobre a história do país dos tugas e da sua presença na Guiné-Bissau, a gente vai contando as nossas estórias, como muito bem pode e sabe...

Eu não estive no Fiofioli em Março de 1969. Já estava no Campo Militar de Santa Margarida (1), com o Humberto Reis e outros tertulianos (o Tony Levezinho, o Joaquim Fernandes...), com guia de marcha para a Guiné, aonde chegaríamos em finais de Maio desse ano para formar, em Contuboel, a futura CAÇ 12, uma companhia de "nharros" (sic)... E também nunca lá fui depois, ao Fiofioli, no meu tempo. Nem eu nem ninguém, que eu saiba. Estive/estivemos só nos arredores, mas ainda longe, em operações, com a minha/nossa tropa-macaca, que depois vos relatarei, se vocês ainda tiverem tempo e pachorra para ler o Luís Graça & Camaradas > Bogue-Fora-Nada...

Se algum de vocês, algum dia, antes, durante e depois da guerra, esteve no mítico Fiofioli (que pena eu não poder pôr isto meu currículo!), peço-vos que mandem o vosso testemunho, alguma estória, alguma foto, algum caderno escolar, mesmo sujo e rasgado, alguma lágrima de algum menino balanta ou beafada que nesse dia, 15 de Março de 1969, não pôde ir à sua escolinha, como de costume, debaixo do belíssimo poilão da sua tabanca, porque teve de cambar o Rio Corubal, à pressa, talvez em pânico, sob as bombas dos T-6 e dos Fiat G-91, a metralha do helicanhão e os gritos dos seus pais e irmãos: "tugas, tugas, foge, foge"...

Segue a terceira parte do relatório da Op Lança Afiada (vd. post anterior)... Agora é que os mapas digitalizados da região (que o Humberto teve a generosidade de nos arranjar) fariam um jeitaço aos tertulianos, para localizarem melhor a grande bolanha e a mata do Fiofioli, e acompanharem as andanças das NT, comandadas pelo Coronel Hélio Felgas, entre 8 e 19 de Março de 1969... Mas eu prometo, quando tiver mais tempo, de os pôr on line, como já fiz com o mapa geral da Guiné de 1961... Para já consultem o mapa (draft) do Sector L1 da Zona Leste... E sobretudo não percam os próximos capítulos!
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(1) Vd. post de 24 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXX: A cerimónia de despedida no Campo Militar de Santa Margarida