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quinta-feira, 5 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18486: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XXVi: Gabu, set 67 / fev 68, gozando as delícias da "tabanca do Morteiros", alcunha do alf mil Azevedo, cmdt do Pel Mort 1191, alentejano de Évora


Foto nº 2 >  1968


Foto nº 3  > Janeiro de 1968


Foto nº 4 >  26 de dezembro de 1967


Foto nº 5 >  Janeiro de 1968 


Foto nº 6 > Janeiro de 1968


Foto nº 7 > 21 de janeiro de 1968


Foto nº 7A > 21 de janeiro de 1968


Foto nº 8 > 21 de janeiro de 1968


Foto nº 9 > 21 de janeiro dwe 1968



Foto nº 10 > Janeiro de 1968


Foto nº 11 > Janeiro de 1968


Foto nº 12 > Fevereiro de 1968

Foto nº 13 > Dezembro de 1967.


Foto nº 1 > Setembro de 1967

Guiné > Região de Gabu  > Nova Lmago  >  CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69).



Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69), e que vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado [, foto atual à direita]. (*)


Guiné 1967/69 - Álbum de Temas > T033 – A Tabanca do Morteiros

I - Anotações e Introdução ao tema:


A – História do Sector L3 – Nova Lamego – Parte I:

INTRODUÇÃO:

Vou dar início à história do meu batalhão no sector L3 de Nova Lamego.

Para isso vou servir-me, porque já não preciso de escrever mais nada, dumas páginas do meu livro – não editado – onde já desde 2010 contava esta fase da minha história.

O teor e a forma de escrever e exprimir-me pode parecer estranho, mas isto passa-se em vários meses e até anos – 2010 a 2015 -, e em cada momento a nossa vida muda e também o humor e a forma de encarar tudo isto.

Vou mandar as fotos que já recolhi da minha vivência em Nova Lamego com o comandante do Pelotão de Morteiros 1191, que esteve em Nova Lamego entre abril de 1967 e março de 1969, às ordens do BCAÇ 1933 e depois do BCAV 1915].

O alf mil Azevedo   tinha uma casa e uma vida independente de todos os outros. Fiz uma boa amizade, com este alentejano, vindo de Évora, no centro do Alentejo. Fui-me deliciando com os seus petiscos que ele próprio fazia na sua casa, a que passei a chamar sempre de a Tabanca do Morteiros’ e era para lá que ia quando me era possível, pois não faltava nada lá na sua Tabanca. Ele era independente e acho que nunca saiu de Nova Lamego, pelo menos nos 5 meses que lá passei.


B - Fotos do tema T033 – Imagens da Tabanca do Morteiros no Gabu:

Legendas e numeradas de f1 a f13

F01 – Este era o edifício em pedra e cimento, sede de comando do Pelotão de Morteiros 1200, comandado pelo Alferes Miliciano Azevedo. Ele aparece na foto, na porta de entrada e comigo nas cavalitas, eu era uma pena nas mãos daquele homem. Esta primeira foto data do mês de Setembro, quer dizer que ao fim de menos de uma semana eu já tinha ali um amigo. Ele também precisava de mim, dada a minha função, ele já estava lá quando chegamos e sabia do antecedente que dependia muito de eu lhe facilitar a vida, ou não.

F02 – As fotos não estão por ordem cronológica, por isso esta já é de data bastante posterior. Por ali se vê que não falta nada em termos de condição de vida, cozinha, cama , mesa e roupa lavada, um rapaz negro como criado, ar condicionado – entenda-se ventoinhas – frigorifico, arca, estereofonia, só faltava mesmo era a TV e um Telemóvel última geração. Na foto está o Azevedo, eu ao lado, e também o Furriel Rocha, o tal algarvio que já falei que foi ali cair de paraquedas, e não queria outra vida, pois não fazia nada. A foto data já dos inícios de 1968.

F03 – Uma foto a descansar sobre uma rede que também ele lá tinha, para dormir a sesta. Era uma forma de passar os tempos livres. Datada também de Janeiro de 1968.

F04 – Numa sala com todas as comodidades, os roncos pendurados nas paredes, cartazes de férias, não falta nada. Eu estou mais uma vez de Oficial de Dia, e pelos vistos devo ter escorregado pois tenho um penso no braço, de certeza nem me lembro de que foi aquilo. Só sei que estamos no dia 26 de Dezembro de 1967, um dia depois do Natal de 67. A cabeça já está toda rapada, pois foi por indicação dele, que andava sempre careca, e fiz isso depois de uma praga de piolhos que apanhei e assim acabei com tudo de uma só vez.

F05 – Uma brincadeira à entrada da Tabanca do Morteiros. Não sei se ele não me deixava entrar? Janeiro de 68.

F06 – Fumando o meu cigarro, à entrada da Tabanca do Morteiros. Eu fumava não por vício, mas por prazer da boca, nunca travei o fumo, por isso mais tarde optei pelos puros – os charutos Cubanos, foram mais de 15 anos, mas nunca me viciei e assim hoje não fumo. Data de Janeiro 68.

F07 – Fui dar uma volta pelas ruas na Bicicleta do Azevedo, junto à sua residência oficial, ele tinha boas instalações naquela terra que havia alguma coisa que se aproveitava, pelo menos o clima era mais quente mas mais seco. Data 21Jan68.

F08 – Na comezaina na Tabanca do Morteiros, em camisola interior o nosso ten SGE Albertino Godinho, Chefe da Secretaria, e o homem do confiança do nosso comandante. Veja-se os olhos do miúdo empregado, a olhar para os pratos. Será fome ou apetite? 21 de janeiro de 68.

F09 – Nós os dois num repasto na hora do almoço, ainda fardado, acho que me lembro que eram uns ovos escalfados com chouriça, acompanhado de cerveja. Aquilo era um restaurante 5 estrelas e uma Michelin. Nova Lamego,  21 jan 68

F10 – Na mesma Tabanca, o nosso médico ten Carlos Parreira Pinto Cortez, e sua esposa, sempre presente em toda a nossa estadia em Nova Lamego. Havia condições para isso. Também eram convidados para a Tabanca. Eles estão a arregalar os olhos por me verem a beber, não sei, mas pelos risos deve ser isso. Nova Lamego,  jan 68.

F11 – Na mesma Tabanca, agora também com o Furriel Rocha – cuidado com o enorme membro dele,  nunca o vi nem tive curiosidade, mas ele nunca andou de calção curto, teria medo de a ‘coisa’ sair fora do calção? Lá estava eu deitado a dormir a sesta, com música de fundo, mas sempre de olho alerta. Nova Lamego, jan 68.

F12 – O Alferes Azevedo com o seu boné, à porta da sua Tabanca, e eu a conduzir o seu Jeep, pois ele tinha direito a essa Mordomia – Era ‘El Comandante’! -. Também tive umas lições de condição neste jipe. Nova Lamego,  fev 68

F13– No jipe do Morteiros, na porta da sua Tabanca, ainda no ano de 1967. Andava a dar as primeiras lições no seu jipe.  Nova Lamego,  dez 67.

Em, 05-03-2018

Virgílio Teixeira

«Propriedade, Autoria, Reserva e Direitos, de Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BATCAÇ1933/RI15/Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21SET67 a 04AGO69».
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Nota do editor:

sábado, 28 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16141: In Memoriam (258): Soldado Ilídio Fidalgo Rodrigues, o "Esgota Pipas" da CCAÇ 2382, morto por um estilhaço de um projéctil IN (Manuel Traquina, ex-Fur Mil)



1. Mensagem do nosso camarada Manuel Traquina (ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70), com data de 17 de Maio de 2016:


Ilídio Fidalgo Rodrigues

O Infeliz “ Esgota Pipas”

Na tropa, de um modo geral todos têm um alcunha, na maior parte das vezes são chamados por esse alcunha, ou pelo número que lhee foi atribuído. Em muitos casos é pelo seu verdadeiro nome, que são menos conhecidos.

Neste caso o soldado de nome (Ilídio?) Elídio Fidalgo Rodrigues, foi ele próprio que escolheu a sua alcunha, nem mais nem menos “Esgota pipas”. Foi esta a alcunha que ele próprio escolheu.

Efectivamente, recordámo-lo na Guiné, ele gostava de beber o seu copo, a sua cerveja, porém não se poderia dizer que fosse grande bebedor! Poderemos dizer que esta alcunha, era mais uma brincadeira que outra coisa.

Era um bom rapaz, natural da zona de Palmela, considerado a figura típica da Companhia 2382, e que passou a ser conhecido por todos, pela sua simplicidade humorística, a tropa para ele não contava, cada passo que dava era por “brincadeira”.

Talvez por ser simples de mais, no aquartelamento de Buba ele foi dispensado das saídas para o ”mato”, e assim ficou como ajudante de cozinha. Mas a Guerra na Guiné era assim e, só porque a sua actividade se resumia a trabalhos auxiliares dentro do aquartelamento, não quer dizer que não corresse riscos.
Assim aconteceu na fatídica noite de 14 do mês de Fevereiro de 1969, em que o aquartelamento sofreu um dos maiores ataques.

Ao fim da tarde o soldado Ilídio ocupava-se da limpeza do refeitório quando rebentou o ataque, como habitual correu a abrigar-se na vala que circundava o refeitório, porém o infortúnio acompanhou-o e, muito perto explodiu um projéctil em que alguns estilhaços lhe atingiram seriamente um órgão vital.
Evacuado na manhã seguinte, passados dias veio a falecer no Hospital Militar de Bissau, sem tempo sequer para mais uma “laracha” com os amigos.

(Do livro “Os Tempos de Guerra - De Abrantes à Guiné” de Manuel Batista Traquina)


 Fuselagem do projéctil do inimigo que terá causado morte ao Ilídio

Alguns membros do Núcleo da Liga dos Combatentes de Pinhal Novo e da CÇaç 2382 junto à campa do infeliz Ilídio no cemitério de Palmela, por ocasião do Almoço / Convívio da Companhia que se realizou no dia 7 de maio em Fernão Ferro.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16057: In Memoriam (257): José Eduardo dos Santos Alves, o "Leça" (1950-2016), ex-sold cond auto, CART 6250, Mampatá (1972/74): homenagem da Tabanca Grande

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14858: (De)caras (23): José António Canoa Nogueira (1942-1965), natural da Lourinhã, sold Pel Mort 942... Não morreu em Ganjola, mas numa operação para a instalação das NT em Cufar, da qual também fiz parte... Estranhamente tinha por alcunha o "Bombarral"... (João Sacôto, ex-alf mil inf, CCAÇ 617 / BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66)






Lourinhã > Cemitério local > 6 de maio de2012 > Lápide funerária referente ao José António Canoa Nogueira (1942-1965), o primeiro militar lourinhanense a morrer em terras da Guiné, em 23/1/1965... Era sold ap mort Pel Mort 942 / BCAÇ 619 (Catió, 1964/66).

Era meu primo, em terceiro grau, pelo meu lado materno. Foram vinte os meus conterrâneos, mortos na guerra do ultramar. O seu funeral, três meses e meio depois, tocou-me muito. Tinha 18 anos e na altura, eu era o redactor-chefe do quinzenário regionalista "Alvorada"... E devo ter publicado uma das últimas cartas que ele escreveu (datada de Ganjola, 10/1/1965, e dirigida ao diretor do jornal). Sempre pensei que tivesse morrido nalgum ataque ao destacamento de Ganjola,

Os seus restos mortais estão em jazigo de família, não no novo talhão criado para os antigos comabtentes (I Guerra Mnudial e Guerra Colonial).

Fotos (e legendas): © Luis Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Trocando emails,  há dias, com o João Sacôto sobre Ganjola, destacamento de Catió (*), vim a a tomar conhecimento de factos novos, que eu desconhecia, sobre as circunstâncias da morte  do meu primo, mais velho do que eu cinco anos, José António Canoa Nogueira (1942-1965), o primeiro lourinhanense a tombar em combate na Guiné...

Prometi ao João publicar um poste sobre o assunto... Também lhe disse que achava   estranho  o facto do Canoa Nogueira ter a alcunha de "Bombarral" (já que ele era natural da Lourinhã, concelho vizinho...) ,Em contrapartida,  o  João Fernandes Almeida, soldado do pelotão do João Sacôto, tinha por alcunha o "Lourinhã"...

Aqui vai a nossa troca de mensagens. (Também vim a descobrir que o João Sacôto andou na aviação comercial e foi comandante da TAP, além de ter ligações, afetivas, com a minha terra!... Na realidade, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!).


2. Mensagem do João Sacôto, de 30 de junho e de 1 de julho de 2015:


[foto à esquerda, João Sacôto, ex-alf mil da CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), em  Ganjola, 1965, tendo por detrás a LDM 309, a manobrar para atracar;  João Gabriel Sacôto Fernandes,  que tinha já a frequência da licenciatura em ciências ecoonómico- financeiras  do ISCEF, hoje, ISEG,  (que não completou depois de vir da Guiné), foi piloto da aviação comercial e comandante da TAP, estando hoje reformado]


(i) Quanto ao teu primo José António Canoa Nogueira (1942-1965), natural da Lourinhã, sold do pelotão de morteiros 942 do BCaç 619, com sede em Catió, que tinha por alcunha o "Bombarral" e era muito amigo de um soldado do meu pelotão, o João Fernandes Almeida, alcunha o "Lourinhã", não morreu em Ganjola, mas sim, em combate, numa das operações para a instalação das NT em Cufar, da qual também fiz parte (CCaç 617) numa altura em que, estando a municiar o morteiro, saiu do abrigo para ir buscar granadas, foi atingido, na cabeça, por um estilhaço de granada do IN.

Ainda foi evacuado por helicóptero mas infelizmente, não sobreviveu aos ferimentos.

Sei também que se encontra sepultado no cemitério da Lourinhã, num talhão próprio de antigos combatentes, mortos em combate.

(ii) Realmente também achei estranho, sendo o Canoa da Lourinhã, ter a alcunha de "Bombarral". Acabei de ter o esclarecimento por telefone com o João Almeida (o "Lourinhã"): entre o pessoal havia, por vezes,  a tendência de gozarem com o pessoal da Lourinhã, velhas estórias que conhecerás.  Daí, o Canoa ter feito crer que era do Bombarral e não da Lourinhã, para não ser chateado. 

O João Almeida que era um grande amigo do Canoa, brincava, na altura, dizendo que ele era o "Lourinhã", muito embora não fosse exactamente de lá, da vila, mas sim de uma aldeia do concelho, ao passo que o Canoa,  sendo mesmo da Lourinhã. não tinha essa alcunha mas sim a de "Bombarral". (**)


3. Resposta de LG, com data de 1/7/2015:

Obrigado, João,  pelos teus completíssimos esclarecimentos... Tenho que descobrir o paradeiro do Almeida... Vou todos os fins de semana à Lourinhã... A tua explicação faz todo o sentido: na época a malta do norte (, mesmo sem saber de geografia...)  tinha uma expressão curiosa: "Mas tu julgas que eu sou da Lourinhã?!"... Ou seja: não me tomes por parvo!...

A terra era sinónimo de gente parva por causa da história da loba (que remonta aos anos 30) ... Confundiram uma loba da Alsácia, de uma quinta das vizinhanças (Quinta do Perdigão)  com uma loba selvagem que andaria a dizimar os galinheiros do pessoal e a espalhar o terror (na Lourinhã e no Bombarral)...

Chegaram a pedir a intervenção militar, os parolos!... Feita uma batida, o animal foi morto e levado em triunfo para um pátio camarário (onde é hoje o museu da Lourinhã, dedicado aos dinossauros), e até a banda local veio para a rua, a  tocar festivamente...

Um chico esperto qualquer lembrou-se inclusive de cobrar dinheiro aos mirones que, de longe e de perto, se deslocaram vere o bicho... Quando foi descoberto o engano, a Lourinhã passou a ser conhecida, depreciativamente, como a "terra da loba"... E a banda filarmónica como a "banda do toca ao bicho"... Dois insultos juntos para as gentes da mesma terra!...

Enfim, os vizinhos de Peniche também têm a história dos "amigos de Peniche", expressão depreciativa (que remonta a 1580 e ao prior do Crato, um dos pretendentes ao trono), os Rio Maior, mais acima,  têm a história do "leão de Rio Maior", os de Pombal , no distrito de Leiria,  não gostam que a gente diga que vai "ao" Pombal... (Tal como em Cuba, no Alentejo,  nunca digas que vais a Cuba, mas sim "à" Cuba)... Enfim, histórias da nossa terra e suscetibilidades das gentes de cada terra... 

Eu, quando era puto, também não  gostava nada de dizer aos de fora que era da Lourinhã, com medo de ser gozado... Hoje, a Lourinhã é orgulhosamente a "capital dosdinossauros" (e o seu museu merece uma visita, se lá fores apita...). Enfim, a história da loba só ficou na memória dos mais antigos... Mas nos anos 60 estava ainda muito viva... 

E tudo isto a propósito do infeliz camarada (e primo) Canoa Nogueira. Coitado do Nogueira, era um rapaz simples e bom!... Fui eu que lhe fiz a notícia necrológica, na altura era o redator principal do jornal local, o "Alvorada"...

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(**) Último poste da série > 29 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14810: (De)caras (22): Quando os autocarros (de Bafatá e de Gabu) chegavam ao porto fluvial do Xime com população e até com provocadores, simpatizantes do PAIGC... Um dia, já depois do 25 de abril, ía havendo uma tragédia: estava eu a montar segurança na Ponta Coli e os meus homens, fulas, quiseram fazer fogo de bazuca, em resposta às provocações da malta do autocarro (António Manuel Sucena Rodrgues, um dos últimos guerreiros do império, ex-fur mil, CCAÇ 12, Xime, 1973/74)

quarta-feira, 18 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14385: Notas de leitura (693): "Neste mar é sempre inverno", romance de Tibério Paradela (edição de autor, 2014) (Parte II): a pesca do bacalhau e o paralelismo com a tropa e a guerra... (Luís Graça)




Elementos icónicos da primeira página, na Net, da Fundação Gil Eanes, com sede em Viana do Castelo...  (Reproduzidos com a devida vénia)...

No romance "Neste mar é sempre inverno", o navio hospital que apoiava a frota bacalhoeira chama-se "Angelisse" (pp. 155 e ss). Nome fictício, claro, para designar o Gil Eanes... (que representava para a tripulação dos navios da "frota branca", o que de certo modo representava, para nós, na Guiné, o Hospital Militar de Bissu)... 

Hoje o Gil Eanes é um navio-museu que merece a nossa visita...


[À esquerda: Imagem da capa do livro de Tibério Paradela, "Neste mar é sempre inverno" > Ficha técnica: ed. autor, agosto de 2014, Aveiro. Depósito legal: 379001/14. Tiragem: 500 ex. 262 pp. Capa de José A. Paradela. O livro pode ser pedido através do mail: paradela.tiberio@gmail.com ]


Mais algumas notas da minha leitura do livro do TibérioParadela (*):


Já desde 1927, do tempo da  Ditadura Militar, havia legislação que veio  promulgar medidas de incentivo ao desenvolvimento da pesca do bacalhau, e nomeadamente facilitar (e tornafr mais atrativo) o recrutamento do pessoal (vd. Diário do Governo, 1.ª série, Decreto n.º 13441, de 8 de Abril de 1927). 

Uma dessas medidas era a dispensa do serviço militar aos pescadores e marinheiros que tivessem cumprido um mínimo de seis campanhas de pesca consecutivas na frota nacional bacalhoeira. 

Noutros casos, os mancebos apurados para o serviço militar podiam beneficiar de adiamento até aos 26 anos. Além disso, a falta à junta de recrutamento podia ser relevada desde que os faltosos fizessem prova de que estavam embarcados... Em suma, a pesca do bacalhau na Terra Nova e na Groenlãndia era um desígnio nacional...

Pode todavia perguntar-se se havia algum paralelismno entre a vida a bordo e a tropa (e a guerra colonial) ? Nas notas que tomei, assinalei algumas notórias semelhanças, físicas, simbólicas e culturais:

(i)  Os pescadores, em geral recrutados pelo capitão do navio (ou por recrutadores a seu cargo, e por conta do armador), eram divididos em duas categorias em função da antiguidade (que, tal como na tropa, era um "posto" ou dava "estatuto"): os maduros (com uma ou mais campanha na pesca do bacalhau, em geral de seis meses); e os verdes, diríamos nós os "periquitos"... Competia aos maduros praxar os verdes, mas ao mesmo tempo apadrinhá-los, enquadrá-los, apoiá-los...

"O primeiro bote [dóri] a ser alcançado foi o número 8, o Fangueiro. (...) Sendo a primeira vez que arriava no bote, talvez de algum medo lhe estivesse a pulsar o coração. Quando o Nova Esperança passou à sua ilharga, o verde Fangueiro parou de alar, endireitou-se e rodou, todo ele, na contemplação da sua grande casa ali que, como se o ignorasse, se afastava sorrateiramente" (p. 87).

Mas não ficavam isolados os "verdes".. Por perto havia sempre um "maduro" que enquadrava,  supervisionava e, de algum modo, protegia:

 (...) "Não muito longe dali, o ti Armando Poveiro, o seu maduro, tinha-o debaixo de olho como as feras têm as suas crias. Não só para [o] proteger,mas também para o ensinar... e incitar" (p. 87)

(ii) As alcunhas, tal como na vida militar... Todos ou quase todos têm alcunhas,  em geral ligadas à sua proveniência geográfica ou terra natal, ou a alguma particularidade biográfica;

"Cá em cima, o Nazareno, o Farol [ilhavense,] , o Mira, o Poveiro, o Penicheiro, o Esquimó e também o Francisco, aliás, o Serrano" (p. 74)...

"O Francisco já se tinha apercebido de que as alcunhas tinham uma relação directa, nuns casos, com as terras de origem, noutros com o aspecto físico. O Nazareno, o Mira, o Penicheiro, o Poveiro, o Esquimó, o Chino. Outro tomara a alcunha da mãe, era o Gila. O Francisco estava agradado com o seu crisma. Ser da serra parecia que agora lhe dava um orgulho que nunca tinha sentido por não ser motivo para isso nascer-se no meio de cabras e de cumes" (p. 53).

(iii) O navio era a "grande casa", a caserna, o quartel, onde também havia segregação socioespacial... Por exemplo, não era habitual, os oficiais (capitão e imediato) entrarem, a não ser em situações excecionais, na área reservada ao pessoal (pescadores e moços de convés)... 

No bacalhoeiro "Nova Esperança", esse espaço, de "entrada reservada", chama-se rancho (que, segundo o gossário publicado no fim do livro, é o "espaço interior debaixo do castelo da proa", integrando a cozinha, refeitório e dormitório, p. 262).

Um dia, em que os homens andavam na faina na pesca (cada um com o seu dóri, e os devidos apetrechos), o velho Imediato lembrou-se de ir cozinha e pediu ao cozinheiro um café para ser servido no rancho, que o autor descreve sugestivamente nestes termos:

"Quando entrou no rancho o velho Oficial sentiu-se envolvido por um bafo agradavelmente morno mas acre de vinho e  cachaça. Noutro espectro odoroso, o fumo do cigarro feito na hora, o chulé e os restos de hálitos  não tratados. Tudo isto flutuva no ar havia uma hora, desde que os pescadores tinham partido para a faina" (p. 70)...

E onde não faltavam os calendários eróticos, com lindas raparigas com o corpinho à vela, tal como nas nossas casernas na Guiné, calendários que no caso de um navio balançam de maneira ritmada, "numa dança lasciva, sensual, convite à volúpia estonteante,  interminável" (p. 72)...

Perante o raparo do cozinheiro ("Não sei se eles [,os pescadores,]  iam gostar"), o velho Imediato comentou:

"Eu sei que os soldados não gostam que o Oficial de Dia lhes entre na caserna. Normalmente fazem-no mira de que haja algum desalinho para depois desferirem o castigo. Eu não vim aqui para isso, cozinheiro. Vim, simplesmente para tomar um café ao pé de si. Tenho uma enorme admiração pelos pescadores, mas não tenho menos por si, cozinheiro (...) Você sabe que a comida é motivo de muitas discórdias e guerras (...) (p. 71).

(iv) O mar é o mato... E só ao fim de quarenta dias depois de partirem de Lisboa, é que os homens do "Nova Esperança" , agora a caminho da Groenlêndia, voltam a pisar terra, neste caso o mítico porto de St. John's... 

"Bastaram quatro [dias] no porto de St. John's para lhes retemperar os corpos e tonificar os espíritos, porque pisaram terra firme, encontraram amigos de outros barcos, deambularam pelas ruas da cidade, farejaram o odor dos perfumes das mulheres nas lojas e centros comerciais desafiando as suas sexualidadesd reprimidas" (p. 106)...

(v) Mas o mar (e a pesca à linha do bacalhau) também é a solidão e a violência (dos conflitos, da fúria do mar, da dureza da vida a bordo, do risco de acidente e de naufrágio)... Haveremos de falar disso noutro poste, com mais tempo e vagar...

"Um homem sozinho, assim, num bote, no meio do mar, sente a paixão da liberdade e, ao mesmo tempo, o peso do abandono. É o que eu sinto. Mas o pensamento ninguém mo tira! A minha pobre Rita!"... [Fala do Tio Quico, o mais velho, que tem um filho em França, na emigração, e outro, o mais novo, apanhado na fronteira, recambiado para a tropa e agora nas Áfricas...] (p. 42).

(vi) Refira-se também a importância do correio...

"Agora têm pela frente cinco dias sem faina de pesca [a caminho da Groenlândia]. Só navegar. (....) E nas horas de descanso, sentados nas locas ou deitados nos beliches, a relerem as cartas que tinham recebido das famílias e amigos em St. John's" (p. 106).

(Continua) (**)

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Notas do editor:


terça-feira, 29 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13444: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (4) - Reportagens da Época (1966): A morte do "Furriel Moreira, alcunha do milícia Nansá Camará

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 25 de Julho de 2014:

Prezado Luís Graça:
Antes de mais, saúde, e votos de BOAS FÉRIAS.
Depois, para alimentar o Blogue durante as férias, e dar, até, oportunidade aos psicólogos, e etnólogos, ou especialistas em cultura africana, para divagarem sobre o assunto, tomo a liberdade de enviar um texto bastante longo que, se o entender conveniente, poderá inserir no Blogue.

Um abraço
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1966) 
- REPORTAGENS DA ÉPOCA

4 - A MORTE O FURRIEL MOREIRA

Novembro de 1966 
Dia 1 

Pouco passava das oito horas quando, com os meus homens, parti em direção a Binta.
É o adeus ao céu de Guidage... Aquilo a que chamamos estrada, mas que de facto não passa de um caminho estreito, simples picada feita de lama e buracos, está num estado miserável.
Mesmo assim, a viagem decorreu com normalidade.
Às onze horas já estávamos no local do destino.

Ao partir, senti pena da população de Guidage. Quando as viaturas estavam para arrancar para Binta juntou-se quase toda a gente junto à porta d’armas e, muitos deles, ficaram a chorar. E as lágrimas são uma coisa muito delicada e bonita, digna de admiração. Na hora da despedida, a população brindou-nos com aquilo que nós, os humanos, temos de mais precioso, ou seja, as lágrimas.

Em Bissau, no Hospital Militar, faleceu, doente, o Nansú Camarã. Foi evacuado de Guidage por duas vezes. Sofria de mal-estar geral e de um abatimento psicológico muito grande.
Vou contar a história da doença do rapaz, do combatente leal, esforçado, solidário e corajoso.
É a história do pássaro maldito.

***

A morte do furriel Moreira

O Nansú Camará, ou o furriel Moreira, como nós lhe chamávamos, era um negro de pele relativamente clara, alto e magro, pertencente à milícia local, que aprendi a admirar desde os primeiros dias da minha estada em Binta.

Chamávamos-lhe o furriel Moreira, alcunha de que gostava, e que terá recebido da boca de alguém que, por certo, lhe admirava a lealdade, a dedicação e o grande espírito de sacrifício. E ele gostava da alcunha. Sentia mesmo orgulho quando lhe chamavam furriel...

Regra geral os furriéis eram sempre brancos. Atribuir-lhe a categoria que só os brancos possuíam dava-lhe um estatuto diferente, fazia dele alguém muito especial e respeitável. Para ele, chamar-lhe furriel, nada tinha de ofensivo. Entendia a alcunha quase como uma distinção. Gostava mesmo de que o chamássemos assim, e ficava vaidoso e contente com um nome tão distinto.

Possuidor de uma admirável resistência física estava sempre pronto a auxiliar qualquer de nós, nas horas mais difíceis. Muitas vezes, quando regressávamos das operações, das patrulhas, ou das emboscadas, ele aproximava-se dos mais cansados e ajudava-os a transportar a arma, as munições, ou as granadas. Era, em tudo, um homem bom e generoso. Uma daquelas pessoas que nasceram para ser desinteressadamente solidárias e amigas.

Um dia, logo ao amanhecer, veio procurar-me muito aflito, expressando medo e angústia. Nos seus olhos meigos adivinhava-se um sofrimento enorme, ou visionava-se mesmo o limiar da morte. Trazia uma expressão dolorosa, onde se adivinhava qualquer coisa de transcendente, ao mesmo tempo terrível e grande. Naquele momento vi nele um homem que estava a chegar, vindo não da sua casa simples e pobre, mas de um mundo diferente e desconhecido. O Nansú que tinha ali em minha era já outro homem. Tudo nele se me afigurava estar alterado.
Ele estava diferente nos gestos, nas palavras, no aspecto e nas atitudes. Era um homem triste, tímido e distante, longe da realidade do nosso dia a dia, irremediavelmente perdido para a vida.

Por entre lágrimas e tremores conseguiu dizer-me:
- Alfero... Durante a noite, quando estava de sentinela, eu vi Irã.

Estas palavras saíam-lhe bem do fundo da alma, murmuradas com serenidade cadavérica e sinceridade profunda.

E eu perguntei-lhe:
- E quem é Irã? - Eu nunca ouvi falar dessa pessoa. - Como te apareceu? Que foi que te disse?

Ele, receoso e triste, murmurou:
- Irã, é o mal. É um espírito negro e terrível. Só pode trazer-nos a morte. Agora sei que vou morrer. A vida para mim já terminou. Quem vir Irã não pode mais ficar aqui... Tem mesmo de morrer. Nas suas asas negras ele traz a mensagem do inferno. O meu futuro já não existe. Para mim tudo vai terminar muito depressa.

E tiveste medo, perguntei-lhe?
- Tive, respondeu-me. Mas não abandonei o posto nem a arma. Não fugi...

No seu rosto adivinhava-se qualquer coisa de mistério, uma amargura profunda, a tristeza de quem teve, naquela trágica noite, a visita de um anjo mau que lhe veio trazer a mensagem da morte, ou qualquer coisa bastante pior, indesejável para qualquer de nós, pobres mortais. ... E aquele rapaz já não seria mais o soldado corajoso, leal e destemido que sempre soubera ser. Aquela visão terrível, alucinante, traçara-lhe bruscamente o destino. Era a visão da morte.

Eu continuei:
- E como era Irã?
- Era, disse-me, uma espécie de pássaro negro, muito grande, que se manteve perto de mim, durante muito tempo, como que a dançar, em movimentos loucos e sucessivos, mas sempre fora da rede de arame farpado.
- E que te disse, perguntei-lhe?

E o Furriel Moreira, numa voz quase imperceptível, murmurou:
- Não me disse nada. Mas eu entendi tudo o que tinha para me dizer.
- E porque não disparaste, perguntei-lhe, uma rajada de G3, para o afugentar? Um bicho desses mata-se de imediato, sem qualquer receio.

Mas ele, com toda a seriedade, e com uma voz branda, nascida bem do fundo da sua alma amargurada, respondeu-me:
- Alfero! Tiro de espingarda não mata Irã. O deus do mal tem muita força e poder. Ninguém pode matar Irã.

Enquanto falávamos, todo ele tremia e transpirava. O suor escorria-lhe, em gotas enormes, pelas faces escuras, enquanto que do seu olhar meigo escapava um desespero triste profundo. E eu fui conversando com ele, durante bastante tempo, tentando retirar-lhe da mente aquela imagem tenebrosa que nem o deixava respirar. Mas foi tudo em vão. Aquela ideia sinistra dominava-lhe por completo a mente, apossara-se dele com tanta força, que iria ser muito difícil restituir-lhe o equilíbrio mental e a vontade de continuar a viver, e a ser pessoa. Estava dominado por uma alucinação terrível, que se apossou daquela mente rústica de uma forma indizível.

Depois, acompanhei-o ao refeitório da companhia e pedi que lhe dessem o pequeno-almoço, pensando que fosse a fome e a má nutrição a causar-lhe aquelas alucinações. Mas ele quase não comeu. Depois, retirou-se para casa. Uma casa simples, coberta de capim, como quase todas as casas que na Guiné se constróem. Retirou-se macambúzio, triste.

 Durante a tarde mandei chamar o régulo da tabanca, - o Mamadu -, um homem já de bastante idade, muçulmano fervoroso e crente. Contei-lhe a história da visão que o Nansú tivera durante a noite, e perguntei-lhe:
- Quem é Irã? Que tipo de crença o povo tem e guarda nessa suposta divindade, ou anjo do mal?

E o régulo, discretamente, como que assustado com a história que lhe contara, lá me foi dizendo:
- Irã, é uma superstição. É uma crença antiga, pertencente às antigas religiões do nosso povo, na qual alguns de nós ainda acreditamos. É uma espécie de demónio, que só pode fazer mal às pessoas. Mas um bom muçulmano não pode acreditar em Irã, nem ter medo dele. Allah protege-nos contra os poderes do mal. Quem acreditar no nosso Deus está livre para sempre dos malefícios dessa crença. Mas, é verdade... Muitos de nós ainda acreditamos que Irã existe e domina este mundo obscuro, habitando algures, no coração da selva. É uma crença que permanecerá ainda por muito tempo na tradição do povo, sem que seja possível erradicá-la de todo. E, intimamente, todos nós temos ainda medo. Mesmo muito medo.

Depois, pausadamente, e como que dominado, também, por um estranho receio, continuou:
- ... No entanto, eu sei, que essa crença antiga já não devia subsistir. Ela é incompatível com a crença em Allah, o Deus em que acreditamos. Mas ainda são muitos os que acreditam e têm medo... Mesmo quando em público dizem que não acreditam, eles continuam presos a essa superstição.

E os dias foram-se passando. E o furriel Moreira começou a ficar mais doente... Deixou de se alimentar... Deixou de comparecer ao serviço... Definhava a olhos vistos, num desmoronar muito rápido e implacável da saúde física e mental de que antes parecia gozar quase em plenitude. A vivacidade que o caracterizava deu lugar a um homem amorfo e triste, em cujo olhar que se perdia a fixar, tenuemente, algo distante, só aflorava, imensa, uma amargura profunda e misteriosa.

Uma certa manhã, acompanhado pelo enfermeiro da companhia, fui mais uma vez visitá-lo e dei-lhe para tomar, um xarope e algumas vitaminas. Mas o rapaz não melhorava... Ia passando os seus dias, a pensar que já não seriam muitos, metido em casa, a merecer a compaixão de todos os que o visitavam.

 Dada a limitação de que dispúnhamos para o tratar, pediu-se uma evacuação, de helicóptero, e o Nansú foi internado em Bissau, no hospital militar. Talvez, pensei, longe do local da aparição fatídica, e beneficiando de razoável assistência médica, fosse ainda possível que a saúde voltasse de novo. Eu estava, aliás, bastante convencido de que se tratava apenas de um pequeno problema de natureza psíquica, que a intervenção de um psiquiatra resolveria com facilidade.

E os dias foram-se passando. Ao fim de quinze dias de internamento deram-lhe alta hospitalar e ele regressou a Binta. Mas não vinha curado. A visão de Irã não o abandonava... E, pouco a pouco, continuou a definhar... E foi-se lentamente apagando...

Já quase no fim pediu-se um novo internamento e ele regressou ao hospital militar, onde viria a morrer, ao fim de poucos dias, assassinado pela visão sinistra de um pássaro negro, cujo habitat permanece bem fundo, no inconsciente colectivo deste povo.

E numa qualquer tarde, quente e tristonha, vieram dizer-me:
- Morreu o furriel Moreira...

E eu pensei:
- Foi Irã, o pássaro maldito, quem o matou!...

Domingos Gonçalves
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Notas do editor

A propósito dos Irãs, do poste de 11 de Abril de 2012, de Cherno Baldé > Guiné 63/74 - P9732: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (35): O Irã animista e o Djinné muçulmano transcrevemos os seguintes parágrafos:

O Irã pode viver em qualquer sítio porque dotado de poderes e invisível ao olho humano, mas o seu habitat privilegiado são os poilões gigantes de base piramidal e altura imponente das florestas tropicais. Quanto a questão sobre como se desloca e de que se alimenta, os povos animistas, envoltos ainda num espesso nevoeiro de tabus, medos e secretismos não fornecem muitos detalhes a esse respeito, no entanto, sabe-se que a sua característica principal continua a ser o manto sagrado (manifestação do sagrado). O Irã, a imagem e semelhança dos seus seguidores é, acima de tudo, comedido e discreto, sendo também, por acréscimo, nacionalista acérrimo e incansável defensor dos usos e costumes tradicionais.

Quanto as cores que usa, no seu dia-a-dia, o Irã tem uma certa preferência pelas cores garridas, em especial a cor vermelha e a rosa, símbolos da vida, da fertilidade e da regeneração natural.

O Irã possui um carácter forte e afoito, tal qual o grau de álcool da sua bebida de eleição, a aguardente. Todavia, não é contra as bebidas mais finas, pois adora o vinho do Porto e não desdenha o uísque ou o conhaque Escocês. Não dispensa, ainda, a água simples e pura, bebedouro das almas penadas. O Irã é, também, um ser profundamente social, com famílias grandes e ruidosas sendo muito exigente quando se trata de zelar pela segurança dos seus bens e a integridade dos membros da sua família, em especial dos filhos.

Último poste da série de 27 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13336: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (3): Viagem a Madina do Boé

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11024: O Spínola que eu conheci (24): Alcunha, antonomásia, apodo, cognome ou epiteto... "Caco Baldé"... Qual a origem ? (Cristina Allen / Luís Graça / Jorge Cabral / Carlos Fabião / Cherno Baldé)


Alcunha  (do árabe al-kunia, sobrenome) s. f. > Epíteto, geralmente fundado nalguma particularidade física ou moral do indivíduo ao qual ele se atribui.
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O Velho, o Bispo, o Homem Grande de Bissau, o Aponta Bruno, o Caco, o Caco Baldé...

De todas estas alcunhas  já ouvimos falar, a propósito do homem que foi o comandante chefe de muitos nós, e em relação ao qual há (ou havia) uma estranha relação de amor-ódio: António de Spínola, ou Spínola, simplesmente. [, foto à esquerda]

Admirado por uns, idolatrado por outros, temido por muitos, odiado por outros tantos, caricaturado por alguns... Morreu como marechal do exército português, pertence agora à história, e como tal merece-nos o respeito de todos aqueles que da lei da morte se foram libertando.

Não sei como o PAIGC o tratava, em Conacri, na Rádio Libertação, por que alcunha (se é que a tinha, como devia ter,  já que todos na guerra têm alcunha, e por mais razão ele, objeto de especial ódio de estimação por parte do IN).  De qualquer modo, estamos ainda em  tempo de averiguar (ou simplesmente especular) sobre a origem da alcunha, antonomásia, apodo, cognome ou epíteto por que era mais conhecido, Caco Baldé,  não só entre os tugas como entre os fulas e outros grupos da população guineense que Spínola (re)conquistou com a sua política Por uma Guiné Melhor...

Fomos desencantar postes dos muitos que a ele se referem (são já cerca de 150)  como figura incontornável (quer se goste ou não) do cenário de guerra na Guiné, e nomeadamente durante o seu consulado (1968/73). Aqui vão alguns excertos. A amostra é de conveniência, não aleatória, logo não representativa...

Caco Baldé (ou simplesmente Caco)  era a a alcunha por que era mais conhecido o General Spínola entre os seus soldados. O Velho, era como ele era tratado entre o seu estado maior.  O Bispo era nome de código, e era assim  que o tratavam os nossos camaradas da FAP.

Caco Baldé... Caco queria referir-se ao vidrinho ou monóculo que ele usava... Baldé era um dos apelidos mais vulgares entre os fulas, aliados de Spínola... Esta é explicação commumente aceite por todos nós...Mas há outras teorias, como a do Cherno Baldé... 

2. Cristina Allen [, a ex-esposa de Mário Beja Santos, foto à direita, c. 1970]

(...) Dançando o tango com o Caco Baldé (...)

(...) Apressava-me, na saída, não fosse encontrar Spínola, que, diariamente, visitava os seus doentes. Atrasei-me três vezes e três vezes me aconteceu encontrá-lo à porta de armas (chamava-se assim?) do hospital. Andávamos, ao que parecia, cronometrados…

Havia um toque (A recolher? Por causa dele? Nunca perguntei). Mas via aquele homem passar para a mão esquerda o pingalim, encostá-lo firmemente à perna, pôr-se em sentido, crescer, enchendo o peito de ar, o ventre liso, o braço direito, o cotovelo, a mão, na mais perfeita continência que jamais vi. Ficava desmesuradamente imenso, desmesuradamente rígido, só o monóculo coruscava.

Estarrecida, não sabia que fazer dos pés, das mãos, da mala, da mini-saia, parava, cruzava as mãos, endireitava-me (postura por postura, não baixaria a cabeça, olhava-o nos olhos, ou, melhor dizendo, no olho e no monóculo). Acudiam-me ideias bizarras – que o meu avô materno fora lanceiro e, certamente, teria sabido fazer aquilo mesmo; que ele, Spínola, escorregara em Missirá, numas cascas de batata e fora ao chão, pose, pingalim, monóculo e tudo, soltando palavrões… que aquele homem era o… “Caco Baldé”! Apertava os lábios para não me rir: este é o Caco, Caco Baldé…

Mas este era apenas o primeiro acto desta farsa. O segundo, começava com a questão “Passas tu ou passo eu?”. No terceiro, resolvia eu recuar, só então ele passava e, perfeito cavalheiro, punha-se de lado e cumprimentava: “Muito boas tardes, minha senhora”. E eu respondia-lhe: “Muito boas tardes, Senhor Governador”. Afinal de contas, era fácil dançar o tango com Spínola. Dobrado contra singelo, diria que, em seus tempos, o teria dançado na perfeição, sem pisar os pés do par…

Deixemos, por ora, o Mário na sua cama, entre dois outros perturbados, que, continuamente, discutiam…

Quando, escassos anos volvidos, leria atentamente Portugal e o Futuro, fecharia o livro, e, olhos cerrados, para mim mesma o interpelava: “Então, meu Caco, só agora?!”

Para todas as coisas há o seu tempo. Nos anos de brasa que decorreriam, e, mais ainda, nos outros que vieram, ele seria, talvez, uma das mais contraditórias e inquietantes personagens.

Recordo, hoje, os quatro majores que, num gravíssimo erro de cálculo – ou num quase infantil erro de cálculo – ele enviou para o martírio e penso em tantos jovens anónimos que perderam suas desgraçadas vidas. Nos estropiados, nos cegos, nos perturbados, nas nossas lágrimas.

E, todavia, ele, feito Marechal António de Spínola, será sempre, para mim, a mais trágica figura do braseiro que outros atearam, sem ele, com ele, ou em seu nome.

Que Deus e a História sejam clementes para com este homem. (...)
cionário Priberam de Língua Portuguesa


3.  Luís Graça [, foto à esquerda, Bambadinca, 1970]

(...)  Excertos do Diário de um Tuga (L.G.)

Ponte do Rio Udunduma, 3 de Fevereiro de 1971

De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de cães grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande, o Caco Baldé). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivente da Wermacht nazi.

Mas o que é que faz correr este velho soldado, como ele próprio gosta de se chamar ? É difícil adivinhar-lhe a sua paixão secreta, o seu móbil, sob a sua impassibilidade de samurai (ou de figura de cera?): a mitomania, o culto da personalidade ou, hélàs!, a presidência da república ?

Há qualquer coisa de sinistro na sua voz de ventríloquo, no seu olhar vidrado ou no seu sorriso sardónico: talvez seja a superioridade olímpica do guerreiro.

Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba…

A visita-surpresa do Deus-Todo-Poderoso foi o meu único monumento de glória em toda esta guerra… Ao fim de vinte meses!... Só quero regressar, são e salvo, a casa, daqui a um mês e, se possível, levar comigo a barba que deixei crescer… na Guiné, longe do Vietname. (...)

4.  Jorge Cabral [, foto à direita, Xime, c. 1971]

(...) Quando Sexa o Caco, em Missirá, ia perdendo o dito...

Poucos dias faltavam para o Natal, e a tarde estava quente. Todo nu no meu abrigo, fazia a sesta, quando sou despertado por enorme algazarra misturada com os ruídos do helicóptero.
-Alfero, Alfero, é Spínola! - gritam os meus soldados.

(Estou tramado, o quartel está uma merda. Que visto? Apresento-me em estado de nudez? Não há tempo a perder. O pássaro já poisou e o General avança. Enfio uns calções antigamente verdes, umas chinelas, e claro uma boina, para poder fazer a devida continência).

Eis-me assim, garboso Comandante, apresentando a tropa, e os milícias, todos eles mal fardados, como era habitual. Sua Excelência, pede um intérprete, pois vai botar discurso. E começa:
- Debaixo desta bandeira… - e aponta o braço na direcção onde pensava que a mesma existia. Fica-lhe o braço no ar, mas continua:
- ... A Pátria… - , e notando a atrapalhação do tradutor, pergunta-lhe:
- Sabes o que é a Pátria?
- Não - responde aquele.

(Lixei-me! Vou ser despromovido, talvez preso. Dentro de mim um turbilhão de maus presságios começa a fervilhar. Mentalmente preparo réplicas. Não é necessária bandeira, pois a Pátria está dentro de nós, e por isso, meu General, é indefinível, responderei).

Mas o Caco nada me pergunta. Vem acompanhado de três majores e um capitão. Querem ver tudo. Primeiro a Escola. Onde funciona?

(Escola? Qual Escola? Pensa rápido, Jorge! Inventa!)

- Sabe, meu Major, estas crianças também frequentam o ensino corânico, que decorre ao ar livre. Por isso considerei que a nossa escola não devia ser enclausurada, pois tal podia traumatizá-las.
- Ainda assim…- começou o Major, impedido de continuar por um olhar do Com-Chefe.
- E o Heliporto? - indagou um outro Major - Parece muito atrasado.
- É que, meu Major, faltam os materiais e também operários especializados.
- Operários especializados? Então e os seus soldados?!
- Todos homens de Fé, meu Major. Tirando a actividade operacional, dedicam-se à reflexão.

Nem respondeu este Major. Logo outro se adiantou, interrogando o Amaral, sobre as povoações mais próximas. Em sentido, sério, calmo, respondeu o Amaral:
- Mato a Norte, mato a sul, mato a leste, mato a oeste, meu Major.

(Ah! Grande Amaral, vais fazer-me companhia na porrada!)
Mas o pior estava para vir! Sua Excelência queria testar o plano de defesa:
- Qual o sinal, nosso Alferes?
- Uma granada - improvisei eu.

Tendo-me dirigido à arrecadação não encontrei nenhuma granada ofensiva. Peguei então numa defensiva, e zás, lancei-a. Tudo tremeu! Manteve-se de pé o General, mas o caco caiu. Entretanto os meus soldados, querendo mostrar heroicidade, encostaram-se ao arame, de peito descoberto, alguns mesmo sem arma.

(Agora sim, está tudo perdido! Que vergonha! E logo eu, neto de um herói de Chaimite).

Recomposto o Caco, olhou-me uma última vez e disse:
-Já vi tudo!.

Ao encaminhar-se para o helicóptero, ainda lhe ouvi comentar para a comitiva:
-Porra, que não é só o Alferes! Estão todos apanhados!

Deve porém ter ficado impressionado, pois três dias depois voltou. Eu não estava. Tinha ido a Fá, buscar uma garrafa dewhisky, prenda mensal do Capitão João Bacar Djaló (3). Contou-me o Branquinho (4) que quando o informaram da minha ausência, Sua Excelência exclamou:
- Ainda bem! (...)


5. Manuel Lucena / Carlos Fabião [, foto à esquerda, c. 1971/73, quando era comandante do Comando Geral de Milícias, na sua 3ª comissão no TO da Guiné]

(...) Manuel de Lucena: O general Bettencourt Rodrigues disse-me uma vez que tinha as mais vastas dúvidas sobre isso da popularidade do general Spínola na Guiné e estava a falar das populações. Um grande
chefe, mas …

Coronel Fabião: O Caco Baldé! [, Alusão irónica ao monóculo (caco …) do general e ao apelido mais comum na Guiné (Baldé), como se fosse «Silva»]. (...)



6. Cherno Baldé [, foto atual, à direita]

(...) “Caco Baldé” tem origens no meio e língua fulas, é uma alcunha bem conseguida e duplamente interessante. Caco,khaco ou haco, originalmente, quer dizer cor castanha (a cor das folhas secas), na língua fula, e servia inicialmente para designar a cor da farda das autoridades administrativas e/ou da tropa colonial.

Mais tarde, para simplificar, este termo seria simplesmente utilizado para designar, de forma disfarçada e caricatural, as autoridades coloniais ou seus representantes.

O apelido Baldé seria lindamente encaixado em acréscimo, certamente, seguindo a lógica da brincadeira muito habitual entre grupos que se consideram primos por afinidade (sanguínea ou territorial) - “Sanencuia”.

Por exemplo, os Djaló são primos dos Baldé por afinidade sanguínea, da mesma forma que o grupo fula, na sua generalidade, é primo do grupo etnolinguístico mandinga que abrange Saracolés, Soninqués, Bambaras etc., por afinidade territorial.

Também é bastante lógico se tivermos em conta que a maior parte dos chefes tradicionais fulas (régulos) e colaboradores das autoridades coloniais, no chão fula, ou pertenciam a esta linhagem ou tinham este apelido, de modo que é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma caricatura dirigida a linhagem dos Baldé, na minha opinião bem conseguida, por um primo, resultante da brincadeira entre grupos de afinidade, usando a figura da maior autoridade portuguesa, de então, no território da Guiné.

Não tenho a certeza e trata-se de uma conjectura da minha parte como pista para uma pesquisa mais aprofundada. (...)

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Nota do editor:

Último poste da série 30 de janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7697: O Spínola que eu conheci (23): No serviço de estomatologia, no HM 241, e eu a segurar-lhe o monóculo (Mário Bravo)

(...) Aproveito para contar um episódio ocorrido com o Marechal Spínola [, na altura general]. Como todos sabemos, o Marechal usava de modo constante um monóculo que era a sua imagem de marca. Um dia teve necessidade de consulta de Estomatologia e lá foi ao Hospital Militar. Era sempre um momento de alguma confusão e eu lá estava a tentar aprender a tirar dentes.

É evidente que quem o tratou foi o Chefe, mas havia necessidade que alguém tomasse conta do monóculo e logo me tocou a mim. É engraçado que senti aquele receio de ser o fiel depositário de tão solene objecto. Mas consegui não o deixar cair !!!

O Hospital Militar de Bissau, era na época um exemplo fantástico de modernidade e eficácia. (...)


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10342: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (25): "O Aguardente"

1. Em mensagem do dia 3 de Agosto de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais três das suas histórias e memórias. Segue-se a primeira desta série:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (25)


O “AGUARDENTE”

O soldado n.º 2377 do 2.º pelotão da CCaç 675, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor, recebeu aquela alcunha (aguardente) durante o 1.º ciclo de instrução que lhe foi ministrada noutra unidade por onde passou. Quando deu entrada no RI 16, integrou-se na gloriosa CCaç 675, já sobejamente conhecido por esta alcunha; ninguém o conhecia pelo seu nome legítimo. Mesmo hoje, qualquer elemento da nossa Companhia recorda com amizade e carinho o aguardente… mas pouquíssimos sabem quem é o Silvestre F. V. Flor.

Creio bem que é fácil depreender qual é a origem desta alcunha que se sobrepõe completamente ao nome de nascimento, abafando-o por completo. Isto ainda hoje acontece, muito frequentemente nas nossas aldeias; muitas vezes a alcunha passa até de pais para filhos, e casos existem em que passa a ser registada como nome. É natural de Figueira de Castelo Rodrigo onde actualmente tem residência fixa numa volumosa vivenda com um jardim ao longo de duas faces da casa.

Regressou da Guiné em 1966; passados uns meses junto da família, emigrou para a França; radicou-se em Paris, onde viveu com a família (esposa e dois filhos) até se reformar.

Todos os anos vinha com a cara metade e os rebentos passar um mês de férias na sua terra natal, onde recentemente voltou a fixar-se.

Ninguém terá pensado nisso, mas a Guerra do Ultramar serviu também para desenraizar os mancebos das suas aldeias de nascimento, retirando-lhes a protecção que lhes era proporcionada pelas saias da mãe. Antes de 1961 a maioria dos rapazes da província assentavam praça num dos quartéis do distrito. Quanto à minha região a maioria ia para Aveiro; um ou outro ia até à Figueira da Foz ou Coimbra; conheci um que foi parar ao Porto. No resto do interior do país aconteceria sensivelmente o mesmo.

Lembro-me apenas de um jovem que, contrariando todas as regras da época, nos idos 1940, foi cumprir serviço militar em Tancos. Diariamente, todas as mães da aldeia juntavam-se em casa dos pais daquele “azarado” magala, para… chorar dolorosamente e rezar com muita fé por aquele militar porque foi “ desterrado para o fim do mundo”. Era assim que, com tristeza e dó, manifestavam a sua dor e se associavam ao pesar da mãe.

Os jovens, por norma, cresciam, casavam e morriam nas aldeias onde nasceram ou nas povoações circundantes. Lá diz o ditado: “quem longe vai casar ou se engana ou vai enganar”.

O Silvestre Fernando era fisicamente bem constituído, robusto e duro; era um puro beirão (da alta); estatura pouco mais que média, sempre bem disposto, alegre e folgazão; era um desenrascado nato, sempre pronto a ajudar os outros a libertarem-se dos apertos em que, voluntariamente ou não, haviam caído. Tinha conversa fácil, atilada q.b., tinha um bom poder de argumentação – o pobre podia abandonar a porta sem esmola… mas não ia sem resposta. Naquela época, com 22 anos, já o cabelo rareava (talvez pelo efeito do capacete); hoje com o pouco “pelo” que lhe resta, usa um rabo-de-cavalo; faz-lhe falta um brinco… como lhe assentaria bem!

Durante o tempo que permanecemos em Bissau – cerca de mês e meio – os soldados andavam todos com os nervos em frangalhos, à flor da pele, emocionalmente descontrolados, porque, em vez de aferrar em Moçambique, como previsto, aportaram a Bissau! Autêntico descalabro!

Como consequência, os soldados desentendiam-se a todas as horas, por tudo e por nada e, com frequência, defendiam a sua dama… à bofetada.

O Flor – mas que flor! – e outro soldado desentenderam-se e agrediram-se mutuamente. Como estes casos eram bastante frequentes e não se via o fim da meada, o capitão Tomé Pinto procurou pôr água na fervura: ordenou, sem citação em O.S., que eu instaurasse um processo disciplinar. Ouvi os arguidos e testemunhas e elaborei cuidadosamente “a justa” sentença que se segue:

O Silvestre, porque provocou a contenda, é punido com cinco dias de detenção; o Frazão porque não soube evitá-la, cumpre três dias de privação de saída. Com estes castigos, as suas cadernetas continuaram “limpas”.

As admoestações foram afixadas em local bem à vista de todos para que se apercebessem que passava a haver castigos para quem usasse a força para decidir desentendimentos.

Todos acharam graça aos castigos aplicados! O certo, porém, é que a sentença resultou em pleno – todos passaram a entender-se bem e sem uso da força.

Numa bela tarde soalheira, em Binta, o Verges Flor foi protagonista dum acontecimento insólito, inimaginável.

Tínhamos surripiado umas dezenas de vacas aos “Turras” do Oio; no Domingo seguinte houve festa brava: ferrámos o “nosso” gado!

Uma das “nossas” vacas que marrava estupidamente, foi a última a ser ferrada; houve lugar a toureio (ameaça de) e o aguardente, sem saber como, fez uma pega… mirabolante. Ele distraiu-se, na “arena”… a vaca atacou furiosa e sorrateira; já sem tempo para fugir… curvou-se para a frente e… embarbelou-se – uma pega magistral. Este acto, a todos os títulos ousado, não saiu da memória nem do álbum de fotografias do Silvestre. Sempre que é oportuno, ele relembra a sua arte em tauromaquia, especialmente aquela pega prodigiosa e audaz. E ele nem era da região de touros, toureiros ou pegadores.

Enquanto esteve em Paris, o aguardente vinha a Portugal no mínimo uma vez por ano.

Durante umas férias da emigração, foi passar uns dias ao Algarve, com a família; no regresso visitou-me no Hotel Dom Carlos Park, onde pernoitou. Tivemos oportunidade para ali recordar as suas habilidades e façanhas, falámos da nossa passagem pelo norte da Guiné. Ninguém esquece aqueles anos! O sacrifício foi grande, mas… resta a amizade cimentada na guerra.

Nunca participou nas nossas reuniões, porque vinha a Portugal sempre no Verão. Mas tomou parte numa “mini” confraternização; - Contando com as esposas, éramos dez – num restaurante em Vilar Formoso, sito no rés-do-chão da vivenda do companheiro Espinha. Foi uma “mini” impagável, inesquecível. Os participantes eram divertidos e estavam inspirados. O Espinha (cara-rota) com os seus pés chatos foi o bombo da festa; todos malharam nele mas o aguardente também ouviu das boas!.

O Silvestre Flor veio algumas vezes de mota de Paris até Figueira de Castelo Rodrigo.

Um dia o Flor, talvez para fazer jus à sua alcunha, entendeu que devia entrar de mota no jardim da sua casa, sem passar pelo portão; não ousou saltar sobre o muro com a mota. Arranjou uma prancha de madeira larga q.b., suficientemente comprida e resistente. Apoiou-a, inclinada, sobre o muro e subiu por ela com a mota; a ponta superior da prancha ficou cerca de meio metro ou mais dentro da vedação; devido ao peso na extremidade superior, a prancha virou por cima do muro, abatendo-se pesadamente sobre a cabeça já descabelada do incauto Silvestre, que caiu inanimado. Recuperou em escassos segundos! Aprendeu logo como não devia passar por cima do muro… não repetiu a experiência.

É pai de dois filhos, um casal; ela é professora do ensino secundário e o filho vive em França.

O Silvestres sente-se orgulhoso porque casou com uma moça nascida em Ligares, aldeia contígua a Maçores, a Terra Natal do Gen Tomé Pinto. Até isto serve para se colocar nos píncaros!

Já me prometeu estar presente na nossa confraternização do próximo ano. Não costuma faltar à palavra dada. É um bom pagador de promessas! Costumava ser!

Lisboa Junho 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10075: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (24): O Soldado Lua

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8773: Contraponto (Alberto Branquinho) (39): O tempo está embrulhado

1. Em mensagem do dia 12 de Setembro de 2011, o nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), conta-nos este caso de meteorologia empírica:


CONTRAPONTO (39)

O TEMPO ESTÁ EMBRULHADO

Foi há pouco tempo, em meados do último Agosto. Andando por terras algarvias, olhei um velhote que inquiria o céu, olhando o horizonte no sentido sudoeste.

(Parêntesis: digo “um velhote” sem intuito depreciativo, mas “nós” não somos velhotes, pois andamos, continuamente, na demanda da juventude…perdida).

Pois, como estava dizendo, o velhote, ao mesmo tempo que franzia o sobrolho e olhava a formação de nuvens que começava a cobrir o céu do lado sudoeste, disse:
- O tempe está ficande embrulhade.

Esta afirmação fez-me saltar recordações. É que, não sei por que razão, foi integrado na nossa Companhia um rapaz algarvio, desgarrado no meio de nortenhos: tripeiros, minhotos, transmontanos…

Ao aproximar-se a época das chuvas (a primeira que passámos na Guiné), ele, ao acordar, manhã cedo, assomando à porta da caserna, olhou o céu e viu, depois de tanto tempo de céu azul, as primeiras nuvens e concluiu:
- Parece que o tempe está ficande embrulhade.

Assim contaram os que ouviram tal juízo, não entendendo porquê, andando nós sempre a “embrulhar”, agora era o tempo que “embrulhava” também.

Pois, como é óbvio, o rapaz continuou, durante algum tempo, a ver as nuvens serem cada vez mais, depois a chuva a cair sem parar e o azul do céu sem mais aparecer.

E ele passou a repetir, em cada dia:
- O tempe continua embrulhade.

Ora, como sabemos, a chuva continua, ininterruptamente, por meses e meses. E ele repetia:
- O tempe continua embrulhade.

Mas, um dia, alguém das camas mais próximas, irritado, acabou com a análise meteorológica:
- Ó “Tempo Embrulhado” acaba lá com essa merda, que já chateia.

Foi assim que passou a ser conhecido por “Tempo Embrulhado”: - Chama aí o “Tempo Embrulhado”. – Quem disse? - Foi o “Tempo Embrulhado”. O “Tempo Embrulhado” para aqui, o “Tempo Embrulhado” para ali…

E nem mesmo depois da chegada da época seca e do chamado “bom tempo” (!) deixou de haver… “Tempo Embrulhado”.

Alberto Branquinho
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8659: Contraponto (Alberto Branquinho) (38): As Frentes e os Homens

sábado, 10 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8762: Estórias avulsas (57): O 400 da CART 1746 (Manuel Moreira)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Vieira Moreira (*), ex-1.º Cabo Mec Auto da CART 1746, Bissorã, Ponta do Inglês e Xime, 1967/69, com data de 21 de Agosto de 2011:


Amigo e Camarada Luís,
Envio uma história das minhas "Memórias" no XIME. Se valer a pena, publica.


Um Abraço Camarigo para toda a Tabanca.
Manuel Moreira, ex. 1.º Cabo Mec Auto
CART 1746




O 400


O 400 era o Soldado que tinha o primeiro número de ordem da Companhia. De apelido Quinteiro, tinha muito vício de cravar cigarros a todos que fumassem.


Era como que o guarda costas do Alferes  Gilberto Madaíl, pelo que eram muito amigos. Tinha, além disso,  um farfalhudo bigode que fazia inveja.


Eu fumava SG Gigante, sendo os cigarros eram acesos com um isqueiro a gasolina que deitava muito fumo e ia passando despercebido.


Em finais de 1968, vim a Bissau fazer um estágio de mecânica diesel na Engenharia e comprei um isqueiro Ronson a gás muito bonito, que ainda hoje guardo de recordação porque tem gravadas as datas da minha "Guerra ".


Quando o 400 soube desta aquisição, com muito jeito me cravava todos os dia um cigarro, desta forma :
- Oh nosso Cabo, dê-me um cigarro dos seus que são grandes e acenda-mo com o seu Ronson.


Aquilo demorou muito tempo e, claro, comecei a pensar em tirar-lhe o vício da cravança.


Quando achei que já chegava, resolvi abrir a saída do gás no máximo ao isqueiro e queimei-lhe o bigode e parte da boca e nariz. Claro que me desfiz em desculpas pelo sucedido, argumentando que não fora por mal.


O certo é que poupei muitos cigarros a partir daí...


Já não fumo desde 1984, mas de vez em quando vou ver o isqueiro e lembra-me esta história.


Desde a nossa chegada, em 13 de Junho [ou Julho ?] de 1969, nunca mais soube nada do meu amigo Quinteiro que, salvo erro, é de Santiago do Cacém, e a quem mando um grande Abraço.  Caso ele leia esta História, que me dê notícias.


Saudações Camarigas, Manuel Moreira
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Notas de CV:


(*) Vd. poste de 5 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8226: Convívios (323): 13º Convívio da CCAÇ 2313 vai decorrer em 4 de Junho de 2011, Águeda (Manuel Moreira)


Vd. último poste da série de 6 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8643: Estórias avulsas (115): Quando o Dulombi foi flagelado pelo PAIGC com “Armas Pesadas” (Luís Dias)