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domingo, 28 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25117: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (16): Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'


Guiné > Zona leste > Região de Gabú > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Coluna logística, vinda de Piche, a chegar à Ponte Caium... À frente uma Chaimite,  seguida de uma White...  

Foto do álbum fotográfico do nosso camarada Jacinto Cristina (natural de Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo), o mais famoso padeiro do CTIG, esteve mais de um ano no destacamento da Ponte de Caium.

Foto: © Jacinto Cristina (2010) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].





Imagem da parada de Bajocunda, em dia de chuva... Foto cedida por Amílcar Ventura, ex-fur mil mec auto, 1ª CCAV / BCAV 8323 (Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74).  

Foto: © Amílcar Ventura (2010) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Contos com mural ao fundo (16): Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'

por Luís Graça


Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'...Trata-se de uma alcunha, "Bate-chapas", o que era vulgar na tropa e na guerra. A começar pelo Spínola, toda a gente tinha alcunhas. E algumas bem brejeiras, se não mesmo pornográficas. Dizem os entendidos que a palavra vem do árabe al-kunia, sobrenome... (Significa: epíteto, geralmente fundado nalguma particularidade física, moral ou comportamental do indivíduo ao qual ele se atribui.) 

Neste caso, o indivíduo és tu, fotógrafo amador que, nas horas vagas, fazias retratos dos teus camaradas, na Guiné, tendo um pequeno laboratório de fotografia, a preto e branco, onde revelavas os negativos. Frequentemente usavas a expressão  "Vamos bater uma chapa"... Daí a alcunha...

Estes excertos fazem parte de um texto que, se um dia passar no crivo da crítica,   talvez  ainda possa vir s ser publicado como livro de memórias de um ex-combatente, numa  singela edição de autor.  (
Só tens dúvidas sobre o eventual interesse que as tuas memórias poderão ter para a posteridade.)


2/3/2018

Dia de inverno. Não admira, estás em março. E a primavera é só daqui a três semanas. E parece que vai continuar assim nos próximos dias. Partidas da meteorologia. Ou nem por isso. Se há algo que é previsível (ou devia sê-lo) é o tempo. Razão por que há as previsões meteorológicas e os meteorologistas. Ciência matemática, garantem-te, o que não quer dizer exata. Como a ciência militar, que é arte e engenho...

Dantes, qando eras miúdo,  pensavas que era o São Pedro quem mandava nos céus e arredores. Metiam-te medo com o dilúvio e a arca de Noé na catequese. Santa ignorância, quando se é puto. Quem te metei isso na tua cabeça,  essas patranhas ?  O senhor abade, a catequista, a professora (cresceste na aldeia)... 

Agora parece que já destronaram o santo, não havendo ninguém de respeito que mande nesta... "merda" cá em baixo. Anda tudo desregulado: o tempo, o clima, a economia, os quatros humores, a saúde, a cabeça dos humanos… Até as estações do ano andam trocadas.

Quando eras puto, havia quatro estações, e o Natal era no inverno, e fazia frio, e caía neve. Ou, pelo menos, a água gelava no fontanário da aldeia da tua mãe. 
Na Guiné, no teu tempo, havia duas estações, dividindo o ano ao meio: a das chuvas (de maio a outubro), e a do tempo seco (de novembro a abril). 

E quando as primeiras chuvas caíam era uma explosão de vida e de alegria. Lembras-te dos milhões de insetos que caíam no chão (e no prato da sopa, se era à hora do rancho). É das imagens de rara beleza que tu guardas de África, a alegria de miúdos e graúdos que vêm para a rua "embebedar-se de água". Literalmente, "embebedar-se de água". Tens pena de nunca ter tirado uma "chapa" a cenas "bíblicas",  como esta.

Até tu, ó "Bate-chapas", pé de chumbo, vinhas para a rua, no meio da tabanca, dançar com os "djubis", as bajudas e as mulheres grandes. Grande tonto!... Mas, de facto,  nunca te lembraste de tirar umas "chapas" desses momentos que, afinal, eram dos mais felizes da vida na Guiné, os primeiros dias de chuva!... E o cheiro que  a terra molhada recendia!...

Reflexão amarga, quando pensas nesse tempos, de há 50 anos atrás: hoje o deserto avança, e
stás a dar cabo da tua casa, do teu chão, do teu teto, da tua terra, dos teus rios, dos teus mares. Aqui  e na  Guine, pelo que te têm  contado, a malta que lá voltou..  A fauna e a flora, as criaturas de Deus, sofrem sem terem culpa, à exceção do bícho  homem.

Pintem-no de todas as cores, para que ele apareça ainda mais feio, fero e mau, neste caso o "diabo branco" que metia medo aos "djubis" na "festa do fanado"!… O povo precisa, em todas as culturas, da figura de um diabo, ora branco, ora preto, ora vermelho,  que simbolize o mal absoluto, que aterrorize, mas que também brinque com a gente. Como os caretos transmontanos da tua infância.

Em dias assim, o que te resta é meter-te num centro comercial, o mais perto de casa, com estacionamento à borla, luzes, lojas, ar condicionado, ... e o formigueiro humano, 
gente tão solitária como tu,   cada um no seu carreiro, co a formiga,  subindo e descendo escadas rolantes...

Enfias-te num cinema, dantes ia-se para a tasca, o homem, ou a igreja, a mulher. A oferta é muita mas a maior parte é lixo. Puxas dos cartões, à cata de descontos. Sempre dão para as pipocas. Afinal, ser velho  é um "privilégio"  nesta ociedade!....  Sénior, se faz favor
 Veterano!....

Não sejas intelectualmente arrogante. Se o lixo está em cartaz, é porque há clientes, há público para consumir o lixo. Ainda por cima pagam para comer lixo. 

Não sejas mau, da tua parte também és um consumidor de lixo, seja cinema, sejam salmões da Noruega,  ou douradas da Grécia, ou nozes da Califórnia,  ou as mensagens de gente megalómana ou mesquinha  nas redes sociais. (Felizmente, e para bem da tua saúde mental, eliminaste a tua conta no Facebook.)... Sem esquecer  o  futebol ou as pregações evangélicas ou os "sites" pornográficos. Ou os "best-sellers" de Natal. O último romance do...  "Ah!, Ainda não o leste, bolas, não sabes o que estás a perder ?!... Devias ter lido, está no 'top ten'.... É o máximo!"...

Em suma, o que se vende é o que é badalado, o que é visto na televisão.   Claro, há uns gajos de fato completo e gravata que gozam à brava com isto tudo, e vão aumentando as suas contas bancárias e fortalecendo as suas redes de poder e de influência. As lojas e as redes sociais estão cheias de lixo, barato, a preço de saldo, que tu compras. E "a malta não olha a preços, quer é descontos"… e viver, freneticamente, o cagagésimo de segundo do presente... que amanhã já será passado. E pesado.

"O último a morrer que feche a tampa do caixão!", lembras-te do sacana do quarteleiro que nunca saia do quartel, era a função dele,  ficava a guardar as armas e as bagagens, quando a gente saía....  Mas  tinha um medo do caraças de  um eventual ataque ao quartel com foguetões 122 mm. (Não o dizia nem o confessava, mas percebia-se.)

Lembras-te, ó "Bate-chapas"?!... Foi a frase publicitária de maior sucesso que tu criaste lá no quartel: "A malta não olha a preços, quer é descontos"… Tão atual, hoje em dia, cinquenta anos depois!... Eh, pá, tu devias ter ido para o marketing criativo!...e nunca para fotógrafo de casamentos e batizados!... E será que hoje serias mais rico e feliz ?

Houve "chapas" ao preço da chuva, no primeiro Natal que lá passaste. A malta mal ganhava para a cerveja. Mas um luxo era a fotografia para mandar para casa... Não perdeste dinheiro, até ganhaste algum. Foi uma operação de "marketing", para lançar a marca do "Bate-chapas". E o sucesso foi de tal ordem que vendeste logo umas largas dezenas de fotos da malta vestida de pai Natal tropical, ladeado de bajudas de "mama firme"... Fizeram sucesso, os gajos da CCS do batalhão  também se juntaram à festa, a clientela foi aumentando...

Com esse  "patacão" começaste a  investir em máquinas fotográficas e outro  material  para o laboratório. No final da comissão, tinhas três máquinas compradas em Bissau, lá na loja dos libaneses, o tal Taufik Saad...  E compraste peças de artesanato em prata, feitas pelo ourives de Bafatá... E mais quinquilharia asiática, louça chinesa, etc. , que chegava a Bissau, oriunda de Macau.  Ainda chegaste a embalar tudo, até que um incêndio reduziu os teus "recuerdos" da Guiné a cinzas...

Havias gajos que arriscavam,  faziam chegar algum contrabando, como as bebidas alcoólicas da Intendência, através desse truque dos caixotes feitos com tábuas de madeira preciosa, que valiam ouro na metrópole, nessa época.

"Bate-chapas"!!!... A princípio, não achaste piada nenhuma à alcunha... "Bate-chapas" era uma especialidade dos gajos da ferrujem. Havia bate-chapas,  estofadores e até correeir
os.  Afinal, a tua arma era a cavalaria. 
Mas não te lembras de ver por lá alimárias, a não ser uma ou outra besta humana... , coisa que, de resto existe em todo o lado.

"Bate-chapas!"... Que insulto!.... Era desvalorizar o teu talento e a tua arte de fotógrafo. Mas toda gente tinha uma alcunha. E tu acabaste por assumir a tua. Até a mulher do capitão, era a "Capitoa". E o alferes "Casanova", do esquadrão,  era o... "Picha d'Aço". E o cozinheiro, o "Merda Seca"... E o impedido do capitão  o "Meia-Leca"...

As lojas aqui, no centro comercial, também tresandam a "merda seca", "made in" China, Indonesia, Bangladesh. Dantes, tinhas "scotch whisky", marca branca, que vinha diretamente da Escócia em barris para a malta da tropa. O mais baratinho. E depois engarrafado no Beato com água do Tejo, dizia-se. Chamavam-lhe "uísque de Sacavém". Para os bravos que se batiam para sobreviver à tona de água do Geba!... Nunca foi coisa que apreciasses, tinhas os teus problemas de estômago...

"Beber a água do Geba"...  Lembras-te da expressão ?!... Bebeste algumas vezes a água do Geba, mas nunca tiveste saudades da Guiné nem muito menos vontade de lá voltar. Mas quem recorda, não desdenha, é isso ?!

E nos saldos saldam a roupa de inverno e os sapatos de inverno, porque já vem aí a primavera e logo a seguir o verão do contentamento da malta. "Ainda vamos ser felizes, meu amor, com casa à beira da praia no reino de Portugal e dos Algarves", diz a chavala para o gajo, ali ao teu lado, comendo pipocas. (Não percebes esta mania, horrorosa, de as miúdas de agora se tatuarem de alto a baixo, parecem umas osgas, todas pintalgadas!)

Compra-se a crédito, barato, a casa de praia, pré-fabricada. E a mobília. E os electrodomésticos. E o amor. E a moda é quem mais ordena. Consumir é bom para a economia, que acelera e às vezes desacelera, para desespero do senhor ministro das Finanças… Mas nem tudo o que é bom para a economia é bom para o balanta, o felupe, o fula,  o mandinga ou o bijagó... Ou o morador do Bairro da Bela Vista em Setúbal onde vivia um dos teus antigos camaradas do esquadrão,  de quem não sabes noticias há já uns largos anos.  Era de Cabo Verde, chamavam-lhe o "Turra", na brincadeira. (HoJe acusavam-te de racista!)
 
10/3/2018

Foste à praia do Guincho, "levaste o carro a passear", gostas de lá ir no inverno. O mar está sujo, escuro e bravo como um touro. Espuma de raiva. Às vezes apetecia-te ter a raiva do mar. "Vamos ter forte temporal esta noite", dizem os metereologistas da Antena Um, os novos profetas da desgraça. Aviso amarelo a passar para o vermelho daqui a umas horas. Tempestade Félix. 

Não percebes nada de meteorologia, meu estúpido. O que é o anticiclone dos Açores ? E o que é uma tempestade ? E um furacão ? Há uma escala para medir estas fúrias dos elementos da natureza. Devias saber mais sobre estas merdas de que agora tanto se fala, as alterações climáticas, a subida da água dos oceanos, os fogos florestais....

Há gajos que são pagos para saber.  Tivestes 22 meses na Guiné, na puta da guerra, a defender a Pátria, nunca te explicaram quem era a Pátria, essa entidade nebulosa, hermafrodita, simultaneamento macho e fêmea. Nem nunca te disseram quem eram os pais da Pátria... Nunca te explicaram isso, nem na recruta nem na guerra. O teu capitão de cavalaria.  que até era um gajo fixe, afável, católico, não tinha jeito nenhum para as tiradas patrióticas. (Tinham má fama, não sabes porquê,  os oficiais e sargentos de cavalaria.) Nunca o ouviste falar da Pátria. Mas os camaradas que morreram na estrada de Piche, esses, "morreram em nome da Pátria"... Viste cópia do telegrama, "tipo chapa um", que se mandava para a família, da malta que morreu, calcinada na Chaimite. na estrada de Piche-Buruntma.

15/3/2018

Fazes horas… Meu estúpido, que raio de expressão?!... Se tu soubesses em que ano, mês, semana, dia ou hora a morte te vinha bater à porta, já tinhas dado um salto mortal no sofá, no "hall" do cinema, e programado os últimos dias ou meses que te sobravam para viver… Ninguém entra em pânico com esta hipótese felizmente teórica, a não ser quando ouve o verídico final do médico, do juiz ou do carrasco. Os médicos agora já não estão com paninhos quentes, olham-te, olhos nos olhos, e fuzilam-te:  "Dois ou três meses de vida, trate de fazer as malas"...

A sacana da tua médica de família mandou-te ir ter com os gajos do ACP, o Automóvel Clube de Portugal, para te passarem o atestado médico a enviar ao IMT – Instituto da Mobilidade e Transportes. Está de greve, a gaja! Ah!, querias revalidar a carta de condução ?!...Ela diz que não pode atestar a tua validade (e, muito menos, a virilidade, a acuidade auditiva, a sanidade mental, a integridade da rede neuronal, a verticalidade da coluna vertebral, e por aí fora)…

"Estamos todos a prazo, doutora… Quem me diz que não apanho uma macacoa ou não sou atropelado à porta do centro de saúde ?!... Ainda há dias, um velhote com 90 anos, sem carta (há mais de cinco anos!), me iam passando a ferro na passadeira… Velhote de 90 anos, um  piloto, medalhado!... Um histórico da TAP, que ainda pilotara os Super Contellation nos anos 60 e tinha saudades de Lourenço Marques do Kanimambo!"...

E tu que vais fazer setenta em 2020, se lá chegares ?!.. 20 anos de distância ainda é muito ano… Não é nada, idiota, é já daqui a 20 anos!... E a guerra já acabou há 50!...

Fazes horas!... em vez de estares a viver intensamente o resto dos dias que te faltam para cumprir calendário… Agora vives para cumprir calendário, para não dar cabo da estatística da esperança média de vida… Por patriotismo, para que o teu país não fique "mal na fotografia", como ficava nos anos em que lá andaste, na Guiné, apontador de Chaimite!...E, nas horas vagas, a tirar o retrato à malta... Toda a gente queria tirar o retrato para mandar para casa, no aerograma do dia seguinte, como "prova de vida"... "Estou bem, meus amores, até ao meu regresso!... Rezem por mim"... (Não se podia mandar fotografias nos aerogramas, mas a malta queria lá saber!)

Até tu, lembras-te ?!, ias fazendo um tracinho na parede, em cada semana que passava… 4 eram um mês, 48 um ano, mais coisa menos coisa… Que um gajo queria era cavar daquele campo de concentração!... E "a Pátria deles, que se fodesse"!...

Quando um gajo trabalhava, tinha horas para tudo, estava tudo planeado, regulamentado, havia normas e leis, livro de ponto,  usavas agenda e gravata, saías de casa de manhã, entravas à noite, metias-te no comboio de Sintra a caminho de Lisboa, com regresso a Rio de Mouro, a tua gaiola dourada com vista sobre o Palácio da Pena, a serra de Sintra, o pavoroso cimento à volta!...

 Um mouro de trabalho, isso sim, uma besta de carga, foi o que tu foste!... Sem sábados nem domingos, que eram dias de casórios e batizados... Para quê ?, para quem ?... E sobretudo porquê ?

Agora não já precisas da puta da agenda, nem de apontar o nome e o número de telefone dos clientes e fornecedores, a não ser para marcar a consulta do dentista e registares o dia e a hora da última vez em que deste uma queca! Fazes as palavras cruzadas e a sopa de letras que é para prevenir o Alzheimer, a recomendação da tua vizinha, ainda boazona, que vive sozinha com o cão, e que trabalha lá na clínica manhosa do teu bairro…(Deve pensar que ainda és um bom partido, com umas pequenas recauchutagens! )

Agora és um cinéfilo compulsivo, vais ao cinema todas as semanas...As sempre adoraste cinema. Foste ver opp filme "Três cartazes à beira da estrada"… Passa-se num cidadezinha ronceira do Missouri e há uma mãe justiceira que quer vingar a violação e a morte da filha, um lugarzinho do mundo onde nunca foste, nem onde nunca irás, porque é sítio que não interessa nem ao menino Jesus, tal como o Rio de Mouro, ou a puta da aldeia da tua mãe, Mazouco, lá em Freixo de Espada à Cinta onde nasceu também a tua avó e a tua bisavó (que nunca conheceste).  Tal como não conheceste o filho ilustre da terra, o almirante Sarmento Rodrigues que foi governador da Guiné, nos anos 40 (coisa que não sabias, imagina!).  Nem muito menos o poeta Guerra Junqueiro. (Nunca te falaram dele na escola.)

Morrerá de parto, a tua mãe, do teu mano mais novo, uns anos depois,  ainda andavas na escola, contava-te a chorar o sacana do teu velho, que voltou logo a casar, sem chegar a fazer o luto...

Cresceste sem mãe a partir dos 10 anos. A outra foi sempre madrasta… Mãe é mãe e só há uma... Também lá está a fazer tijolo, a tua madrasta, ela e o teu velho, morreram, há mais de dez anos, os dois num acidente de carro, na autoestrada a caminho do Norte… Um estúpido acidente com a gaja a conduzir com a mão direita, com o telemóvel na mão esquerda… Infelizmente, o teu velho morreu sem teres resolvido o contencioso que tinhas com ele… Nunca gostaste da gaja dele, que afinal o acabou por matar... Há anos que não falavas com ele e muito menos com ela...E estás com essa atravessada na tua consciência, acusa-te o teu irmão mais novo, que aparava o golpe. Sentes culpa por o teu velho ter morrido, nas circunstâncias trágicas em que morreu, sem nunca teres tido uma conversa séria com ele, nem que fosse de despedida, de filho para pai, de pai para filho...

E lá no Missouri, no sul, na América profunda onde nada acontece, o raio do realizador fez um filme que é um misto de tragédia, comédia, "western" e "thriller" policial. (Eh!, pá, andas a pensar fino e a falar grosso, ainda acabas em crítico de cinema… E já tens "nick name", o "Bate-Chapas", registado na Sociedade Portuguesa de Autores, para quando acabares de escrever e publicar o teu livro, "Memórias de um 'Bate-chapas' que queria ser fotocine na Guiné")…

Ea propósito, achas que é um bom título, camarada ?... Não é, não, senhor, vão-te confundir com os gajos da ferrugem… E depois é comprido demais!...."Bate-chapas", essa, sim, era uma especialidade dos gajos da ferrugem... Havia uma 1º cabo bate-chapas, na CCS do batalhão, que estava em Nova Lamego, mas a malta chamava-lhe o "Penedo Durão", era teu conterrâneo de Poiares, imagina como o mundo era pequeno!... (Chegaste a beber uns copos com ele, quando lá ficavas!... Perdeste-lhe o rasto,  nem sequer voltaste mais a Mazouca. )

E alguém sabe lá o que é um fotocine!… Estes gajos de agora não foram à tropa, esta geração do pós-25 de Abril… "Bate-chapas"… que raio de alcunha que te puseram!.. Tu nunca foste mecânico, eras operacional, 1º cabo apontador de cavalaria…   E fotógrafo nas horas vagas.

Chamavam-te "Bate-chapas", tamubém na reinação, os "djubis" e as bajudas, por que andavas sempre a tirar fotografias, no quartel, na tabanca, nas colunas, era o teu biscate, o teu "vício", para arredondar o pré ao fim do mês, e fazer um pé de meia para as férias… Eras um fotógrafo compulsivo, rconheces hoje. Revelavas e expunhas as provas, numeradas, num placard que servia de mostruário.

A Arminda e a garota, que tu mal conhecias (tinha escassos meses, a tua filha, quando partiste para a Guiné), ansiavam por ti, ainda faltavam dois ou três meses para vires de férias… Quem eram os cabos que vinham de licença de férias à metrópole nesse tempo? Só tu, que tinhas dois ordenados, e o cabo cripto, que era um gajo evoluído, com estudos como tu (por sinal,  chumbaram os dois no CSM), e o "escritas" que também comia da gamela com o "nosso primeiro"… E, claro, os graduados, os f urriéis, os sargentos, os alferes, e o capitão no 1º ano (no segundo ano levou para lá a esposa, a "Capitoa", uma valentões que aguentou com um ataque de foguetões 12mm ao).

Podias ter sido fotocine, se tivesses tido uma boa cunha, se tivesses tido sorte na puta da vida, era uma rica especialidade, não saías de Bissau, quando muito terias que fazer uma ou outra sessão de projeção de cinema no mato… Ias de avião até Bafatá ou Nova Lamego, depois apanhavas uma coluna… Na outra semana, descansavas e ias beber umas "bazucas" no Pelicano ou na 5ª Rep (o Café Bento!).

Lembras-te quando a malta do esquadrão esteve de prevenção em Bafatá?!... Mesmo assim, furava-se o esquema, ia-se à noite ao Bataclã ( uma espécie de clube noturno lá  do bairro), no dia dos teus anos, armaste-te em rico, até convidaste as gajas todas que fodiam com a tropa, para ir ao cinema, ver uma cagada de um filme cómico italiano do tempo da Maria Cachuca ?!… Foste que tu pagaste os bilhetes, foi bodo geral aos pobres... Os "djubis", as bajudas e as mulheres grandes, riam-se que nem uns perdidos, mesmo não percebendo patavina que os gajos e as gajas do filme diziam, em italiano, e muito menos as legendas… E o sacana do Lopes, trocista e racista, a mandar as suas bocas: "Ó Barrote Queimado, quem não sabe ler, vê os bonecos"…

O cinema de Bafatá, a grande obra de civilização que lá deixou o "tuga" no leste… Mais a piscina, e a mesquita, e a catedral… Nunca mais viste um filme quando a guerra começou a sério para o esquadrão, e os índios e os cobóis deixaram de ter tempo para limpar as armas…


16/3/2018

Rica vida de reformado, dirás tu, a gozar contigo próprio. Dias de inverno, a escassos dias da primavera que há-de vir (ou não). Foi um mês em que choveu sem parar. E vai continuar a chover , pelo menos até ao dia 22, segundo viste na Net. Afinal, do que seria de ti sem o raio da Net, mesmo já não tendo os teus amigos virtuais do Facebook... Aliás, não tens um   amigo verdadeiro, do peito, daqueles  que te possam dar um ombro para chorar, se um dia vieres a precisar. ("Que um homem não chora, muito menos os camaradas da Guiné", dizia o "Casanova", armado em durão...)

Voltas a enfiar-te no "porto de abrigo" do teu centro comercial. O que dá para ver a meio da tarde, ó cinéfilo ? O filme "Post", de SpielBerg, com o Tom Hanks e a Merry Streep. É sobre quê ?, perguntas. O papel do jornalismo nas democracias modernas. O braço de ferro do "Whashington Post" e do poder político-militar na América que queria cortar o bico aos jornalistas.

Não é nada de empolgante, mas é importante pelo episódio (histórico) que recria: publicação, pelo "New York Times" e pelo "Washington Post", dois jornais de referência, dos papéis do Pentágono, um documento ultrassecreto feito por académicos sobre o envolvimento americano no Vietname, desde o presidente Eisenhower. Os governos americanos foram-se atolando no Vietname e as perspetivas eram claramente as de uma crescente escalada e quiçá desastre a nível militar.

O estudo encomendado pelo Robert McNamara estava guardado a sete chaves até que uma cópia foi parar aos jornais… Mas há lá chaves e cofres que guardem um segredo ?!... Só a malta na Guiné é que foi apanhada de surpresa pelo Strela!... E antes pela notícia da morte do Amílcar Cabral, "teu vizinho de Bafatá" (dizia-se que a mãe vivia lá!), e depois pela declaração unilateral da indepência em 24 de setembro de 1973. Mas o que é que os "pides" andavam a fazer nessa época ? E os craques da Força Aérea… não sabiam que já havia uma arma dessas, o Strela, a ser utilizada no Vietname ?... E a golpada dos capitães, não se estava mesmo a ver que um dia haveria de estoirar a bernarda ?!... E os generais e os  almirantes do Caetano  ? Onde andavam ? A arear o bronze das cruzes de guerra?... Andavam todos, afinal,  a brincar ao faz-de-conta!...  Por isso o Império caiu sem honra nem glória!  ( Confesso que não dei conta do estrondo.)

Não te quiseram para fotocine, os sacanas  da tropa, tu que já eras fotógrafo, amador, na vida civil!... Amador, uma ova!, profissional, com cartão passado pelo sindicato corporativo!... Eras um fotógrafo encartado, fazias casamentos e batizados, tinhas um patrão, já velhote, que não podia a ir a festas, que se enfrascava todo, cortava a cabeça aos noivos com a bezana e dava cabo dos rolos… Valia-lhe o genro, que acabou por tomar conta do negócio...  

Mas, olha, safaste-te, a biscatagem deu-te para montar o teu negócio próprio, quando regressaste de vez, são e salvo, graças a Deus, benzia-se o teu velhote, amarrado a uma gaja vinte anos mais nova do que ele, e que o chupava até ao tutano… Pobre do velho que podia ter tido mais sorte na puta da vida!... Polícia da Brigada de Trânsito, com uma boa reforma e um bom pé de meia.  Também transmontano como a tua mãe, ali de Mogadouro.

Mais tarde, com as tuas economias todas, deixaste Lisboa e abriste uma papelaria e livraria com secção de fotografia, lá no teu bairro, em Rio de Mouro. Tal como na tropa, em matéria de fotografia, fazias tudo menos a revelação de diapositivos. Uma merda, veio depois a fotografia digital, a revelação automática, os computadores, os computadores,  as impressores, o "self-service",  os centros comerciais...  

O negócio foi por água a baixo!... Os livros vendiam-se pouco, a não ser o material escolar... E a fotografia deixou de ter procura...

Vendeste a baiuca, ainda antes da crise de 2008, 2009… Que tristeza, hoje recusas-te a passar por lá… Já passou por mais mãos. Agora deve ser uma loja de um chinês ou um templo evangélico. Valeu-te ao menos o dinheiro do trespasse, compraste títulos da dívida pública, que sempre te dão algum rendimento, no banco não vale a pena teres dinheiro, ainda tens que pagar por cima.

−Ó "Bate-chapas", tira-me aqui um chapa, e faz-me um postal com dois corações que é para mandar para a minha Maria  que vai fazer 21 anos e já pode casar comigo quando eu voltar!...

− Ó "Bate-chapas", arranja-me umas fotos das putas do Bataclã que é para eu mandar para o meu mano mais novo que vai às sortes, e que nunca viu uma gaja nua…

E a alcunha ficou mesmo, para o resto da vida, "Bate-chapas"... Não levas a mal. Já faz parte da tua identidade... Afinal, foste um "Bate-chapas" toda a vida... Ainda hoje te fazem uma festa quando vais aos convívios anuais do esquadrão:

− Ó "Bate-chapas", bate-me aqui uma!...

Eras um gajo popularucho. Tinhas centenas, milhares,  de provas e negativos, no teu estaminé, improvisado, por detrás da caserna grande... Tinha lá a tua "morança", de paredes de adobe, barrotes de cibe e cobertura de colmo,  com a devida autorização do capitão, a quem não levavas nada dos trabalhos fotográficos (nem a ele nem ao "nosso primeiro", como não podia deixar de ser)...  

Ficou tudo reduzido a cinzas quando houve aquela pavoroso incêndio, que até parecia um ataque dos gajos do PAIGC ao arame farpado… *Ninguém soube como aconteceu, contaram-te depois.)

Foram muitos os palpites, mas tudo indica que tenha sido um raio numa aquelas frequentes trovoadas tropicais… Houve quem dissesse que foi sabotagem, gajos civis que trabalhavam no quartel e que eram "turras", e que terão deitado o fogo à tua palhota, quando estavas fora, a fazer segurança a uma coluna logística até Piche ou Buruntima. Em boa verade, não te lembras de ter inimigos..., a não ser os gajos a quem apontavas o canhão  da Chaimite. ..

Estavas já perto do final da comissão, felizmente tinhas depositado um mês antes a guita, o teu pé de meia, no BNU, uma semana em que te desenfiaste até Bissau, com a devida  licença do capitão… Ficaste de tanga, sem máquinas, sem rolos, sem laboratório, sem arquivo, sem as bugigangas que querias trazer para a família, sem trocos, sem peúgas nem cuecas… Até a lista dos calotes ardeu!... 

 Não havia bombeiros no esquadrão!... E muito menos água e mangueiras e bocas de incêndio!... "Deixa arder, que o meu pai é bombeiro!", diziam alguns gajos, cínicos, que já estavam com a cabeça feita, a pensar no avião que os levaria de regresso a casa... 

E hoje aqui estás, viúvo, reformado, fechado numa sala de cinema de um centro comercial, comendo pipocas para aliviar a angústia do fim de tarde… Antes de ires para casa, e aqueceres a sopa requentada que a tua empregada, guineense do Biombo ou Binar (vê lá tu!),  faz-te para toda a semana… Trabalha como segurança, de segunda a sexta, e o serviço doméstico é uma biscatagem. Ela tem um bom físico, é de origem balanta. Mas já nascida em Portugal.  (O avô morreu numa  mina nossa, no corredor de Guileje, em 1973.)

De tempos a tempos, meia dúzia de vezes se tanto por ano, falas pelo Skype com a tua filha que está na Austrália, casada com um grego... E mal conheces os teus netos que não falam português. Porra, tens uma filha com 50 anos!... Foste pai aos 20, grande irresponsável!...

E lá vais escrevinhando o teu diário, falando em voz alta com o teu "alter ego", o mesmo é dizer, falando para as paredes do teu T2 em Rio de Mouro, agora grande demais para um homem só.

Podias ter sido um grande fotocine, um grande fotógrafo, até um grande cineasta, quem sabe ?!... Foste apenas uma "Bate-chapas"… 

Consola-te: levaste um pouco do calor da amizade e da camaradagem da Guiné a muitos lares portugueses, mães e pais, esposas, namoradas, madrinhas de guerra…, arrancaste muitos sorrisos a "djubis", bajudas de "mama firme" e mulheres grandes de teta caída… E até a homens grandes, régulos, milícias, guerreiros que habitualmente nunca sorriam... Foste à guerra, deste e levaste… Tiveste mulheres que gostaram de ti. E tiveste sorte de não ter ficado esturricado dentro de uma caixão blindado como era a Chaimite.

E hoje ? Nem amigos e amigas tens, do Facebook, tristes e empedernidos corações solitários… E olhas-te para o espelho e vês um gajo velho, como ó caraças!,… e pegas no teu bilhete de identidade, que é vitalício, e a foto que lá está não condiz com a puta da imagem que vês no espelho da casa de banho … O São Pedro não te vai deixar entrar no Paraíso, quando chegar a tua vez… 

Mal por mal, vais ficando por aqui, esquecido (e oxalá que ainda por uns bons aninhos!), no Limbo da Terra, depois de teres conhecido o Inferno da Guiné.  Gostavas, em todo o caso, que na tua lápide, alguém escrevesse por ti:

"Não adianta reclamar, ó 'Bate-chapas', ninguém te vai devolver o dinheiro... Nâo há livro de reclamações no Céu, no Paraíso ou no Olimpo dos deuses e dos heróis, como lhe queiras chamar: tu é que compraste o bilhete errado para a sessão de cinema errada… Trocaste o filme… da tua vida, ó 'Bate-chapas'! "...

© Luís Graça (2018). Revisto em 28/1/2024.
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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de janeiro de  2024 > Guiné 61/74 - P25101: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (15): A vida é curta e a arte é longa: memórias de um médico que também passou pelo Hospital Militar de Bissau

sábado, 30 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23214: Humor de caserna (53): O anedotário da Spinolândia (III): a "melena" do cap inf Vasco Lourenço que irritou o célebre "Coronel Onze" (Fernando Magro, ex-cap mil art, BENG 447, Bissau, 1970/72)

 


Capa do livro do Fernando Magro - Memórias da Guiné. Lisboa: Edições Polvo, 2005, 86 pp.  Na foto, o filho, Fernando Manuel, e o seu cão, na casa em que a família vivia em Bissau. 



Fernando Pinto Valente (Magro), ontem e hoje


1. Mais uma história da Spinolândia (*): desta vez não envolve diretamente a figura do gen Spínola,  mas sim um dos seus próximos colaboradores, o "Coronel Onze",  e um futuro capitão de Abril, o capitão inf Vasco Lourenço, cmdt da
CCAÇ 2549/BCAÇ 2879 (Cuntima e Farim, 1969/71).

Foi já aqui oportunamente contada  pelo Fernando Valente (Magro) (**) que, aos 33 anos, casado e pai de um filho menor, foi mobilizado para o CTIG,  como cap mil art,  BENG 447,Bissau, 1970/72, e que publicou em 2005 um livrinho com as suas memórias da Guiné, de 86 pp.  (reproduzidas no nosso blogue, na série "Memórias da Guiné,  por Fernando Valente (Magro)".

Há dias recebi, pelo correio, uma cópia do livro, via Hélder Sousa (que faz parte parte dos corpos sociais da ANET - Associação Nacional dos Engenheiros Técnicos, tal como o Fernando Magro; aliás, a edição do livro teve o apoio da ANET, e havia por lá sobras do livrinho: obrigado, Hélder, pela encomendinha que chegou a boas mãos pelo correio).



Capa do livro de Vasco Lourenço do Interior da Revolução, entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Lisboa, Âncora, 2009, 608 pp.  

"Vasco Correia Lourenço nasceu em 19 de junho de 1942, em Lousa, Castelo Branco. Integrando desde o início o Movimento dos Capitães, coordenou a organização da sua primeira reunião em 9 de setembro de 1973, vindo a pertencer à sua Comissão Coordenadora e à sua Direção. Único oficial que pertenceu sempre aos órgãos de cúpula do Movimento dos Capitães (CC e Dir.) e do MFA (CCPMFA, CE, C20 e CR). Das várias condecorações que possui, destacam-se a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade e a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Presidente da Direção da Associação 25 de Abril, desde a sua fundação em outubro de 1982. Coronel na Reforma". Fonte: Wook


A melena, pouco "regulamentar", 
do cap inf Vasco Lourenço 


(...) Instalado no Clube de Oficiais, em Santa Luzia, próximo do Quartel-General, iniciei a 21 de Abril de 1970 a minha actividade nos Serviços de Reordenamentos Populacionais no Comando Chefe (Amura).

Durante a minha estadia nesse clube tive contacto com vários oficiais do quadro permanente e do quadro de complemento (milicianos) que também lá se encontravam instalados ou que, estando sediados fora de Bissau, por lá passaram para tratar assuntos relativos às companhias que comandavam.

Em finais de Abril o General Spínola reuniu numa grande sala do Palácio praticamente todos o capitães em serviço na Guiné. Eu, praticamente acabado de chegar, também estive presente nessa reunião.

O General traçou novos rumos no que dizia respeito à luta contra a subversão. Deu a entender que se estavam estabelecendo negociações com os chefes terroristas no sentido da resolução política do diferendo. Ordenou que as Companhias Operacionais não mais tomassem atitudes ofensivas, mas simplesmente defensivas. Mandou que se procedesse sem ódio nem brutalidade contra os prisioneiros de guerra e as populações afectas ao inimigo, de modo a que se possibilitasse a sua apresentação às autoridades e se pudesse caminhar para a pacificação.

 (...) Na referida reunião dos capitães com o General Spínola, fui surpreendido pela forma descontraída, directa e muito incisiva, como o Capitão Vasco Lourenço procurou saber do General mais pormenores sobre o modo como actuar futuramente face às novas directivas. Directivas que passados alguns dias foram canceladas, dado que foram mortos três majores e um alferes que, desarmados, procuravam o contacto com chefes terroristas de que havia indicação de se quererem entregar.

Um dos majores (Pereira da Silva) conhecia-o muito bem, pois havia privado com ele no GACA 3 tendo ele, na altura, o posto de Tenente.

A minha vida ia correndo sem grandes sobressaltos entre o Comando-Chefe e o Clube de Oficiais. Aqui no Clube, havia uma piscina e à noite por vezes havia cinema e outros espectáculos ao ar livre. Lembro-me de ter visto espectáculos de música, de ilusionismo e uma vez de hipnotismo. Neste último um soldado, depois de hipnotizado, foi convencido que estava uma noite gélida (ao contrário do que acontecia, pois tratava-se de uma cálida noite africana) e recordo-me como ele tremeu de frio e se agasalhou o mais que pôde com as roupas que tinha por perto.

Estando à beira da piscina, no dia 19 de Maio de 1970, ouvi pela primeira vez a artilharia dos independentistas em acção. Eram cerca de 23 horas quando foi desencadeado um ataque com artilharia ao Quartel de Tite. Os rebentamenros era perfeitamente audíveis em Bissau. O poder de fogo era grande, tendo havido lançamento, por parte das forças inimigas, de cinco mísseis.

No Clube de Oficiais fazia a minha vida depois de findo o meu serviço no Comando-Chefe. Era a minha casa. Lá tinha tudo: alimentação, dormida e até barbearia. Foi justamente na barbearia onde certo dia fui cortar o cabelo que se deu este episódio com o Capitão Vasco Lourenço que vou passar a contar.

Encontrando-me uma vez sentado numa das cadeiras da barbearia do Clube de Oficiais de Bissau, acomodou-se a meu lado o Capitão Lourenço. Imediatamente solicitou que lhe cortassem o cabelo. Este pedido surpreendeu o soldado da barbearia que, tartamudeando, se aprontou para o atender.
Mas... meu capitão, ainda nem há uma hora lhe cortei o cabelo!
– Pois é. Mas vais cortar-mo de novo.

O rapaz não replicou, mas muito em surdina, ainda conseguiu pronunciar duas palavras que só eu pude entender, embora com dificuldade.
– Está "apanhado".

Também fiquei intrigado com o que se passava, pelo que procurei esclarecer o assunto mais tarde. Quando ambos abandonamos o Clube de Oficiais, o Capitão Lourenço satisfez a minha
 curiosidade.

Segundo me explicou, havia-se cruzado, após o primeiro corte de cabelo, com um dos chefes militares de Bissau. O Coronel Onze, como era conhecido e não me perguntem porquê, era muito rigoroso com o atavio e o porte dos seus subordinados, principalmente com os oficiais. Quando se cruzou com o Capitão Lourenço te-lo-á interpelado com severidade, chamando-o à atenção para o facto de o seu corte de cabelo não ser o regulamentar.
– O Senhor Capitão é miliciano?
– Não, não, meu Coronel. Eu pertenço ao quadro permanente.
– Mas isso é indisculpável. Faça o favor de ir cortar o cabelo imediatamente. Essa melena na testa é uma vergonha. Depois apresente-se no meu gabinete.

Seguidamente a este relato, que tentei aproximar tanto quanto me foi possível da realidade, o Capitão Lourenço teceu várias considerações e deu curso à sua revolta interior.

Explicada a razão pela qual o Capitão Lourenço teve necessidade de cortar o cabelo, pela segunda vez no mesmo dia, o referido oficial encaminhou-se para o gabinete do Coronel Onze. 
(...)

Fonte: Excertos de Fernando Magreo - Memórias da Guiné. Lisboa: Edições Polvo, 2005,  pp. 37

[Fixação / revisão de texto / título do poste: LG]

2. Comentário do nosso editor LG:

O nosso camarada José Câmara, em comentário ao poste P12028 (**) identificou o "Coronel Onze" como sendo o "Coronel Santos Costa". E acrescentava: "não era só austero, era desumano". Não conseguimos, no entanto,  encontrar nenhum coronel, no CTIG, com este apelido nos livros da CECA...

Será que se trataria do cor cav Fernando Rodrigues de Sousa Costa, um dos comandantes do COMBIS (Bissau), não ?!

O Carlos Pinheiro acrescentou (**): "Gostei desta memória e acima de tudo de ouvir falar do tal "coronel 11" que era mais que famoso na cidade de Bissau. A maior parte dos militares nem o chegou a conhecer, mas histórias acerca dele toda a gente conhecia."

Veja-se este episódio do "anedotário da Spinolândia" também como uma homenagem ao sentido do humor do nosso veterano Fernando Magro (um dos seis membros da família Magro que fizeram a "guerra do Ultramar") e sobretudo ao capitão de Abril , Vasco Lourenço, uma figura que, como diz o Carlos Silva (**), já pertence à história deste país, tal como o gen Spínola,  e que, como tal, merece o nosso respeito. (Felizmente ainda está vivo e vai fazer em breve 80 anos.)

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23182: Humor de caserna (51): O anedotário da Spinolândia (I): "Sabes o que é um lapso, rapaz?" (Rogério Ferreira, ex-fur mil at inf, MA, Teixeira Pinto, Bachile, Nhamate, Galomaro, Nova Lamego, Pirada, Paiama, Paunca, Sinchã Abdulai e Mareue, 1970/71)

1.  Não é só do "Gasparinho", "nickname", do cap e depois major art José Joaquim Vilares Gaspar (1935 - 1977) que se alimenta o anedotário da Spinolândia... 

O próprio Com-Chefe e Governador-Geral  do CTIG, António Spínola, brigadeiro e depois general, entre 1968 e 1973, alimentou o bom e o mau hunor das nossas casernas...

Caco Baldé  ou simplesmente Caco era alcunha mais popular do Gen Spínola. Mas também  era tratado por Homem Grande de Bissau,  O Velho. O Bispo... 

Origem da alcunha: vem de caco, monóculo, mais  Baldé, apelido frequente entre os fulas. O historiador Luís Nuno Rodrigues escreveu a sua biografia (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010; a foto ao lado é retirada da capa do livro, com a devida vénia...)

Recorde-se que o monóculo é um tipo de lente corretiva utilizada para corrigir a visão em apenas um olho, sendo constituída por uma lente circular, geralmente com um fio ao redor da circunferência do anel que pode ser associado a uma corda; a  outra extremidade da corda é então ligada ao vestuário em uso para evitar a perda do monóculo. Origem da palavra: do grego: mónos, único e do latim, oculu, olho (Fonte: Wikipedia)..

Andam por aí muitas histórias deliciosas (anedotas ou não) do militar mais carismático do nosso tempo de Guiné.  Vamos tentar compilar algumas, inéditas ou já publicadas. Elas também falam o nosso quotidiano, os nossos camaradas e os nossos chefes.  Na série "Humor de caserna" cabe toda a gente.

Só se contam anedotas de quem a gente gosta, aprecia, valoriza, respeita, teme, e às vezes ama e odeia ao mesmo tempo... E o Gen Spínola foi tudo isto, durante a guerra colonial e depois do 25 de Abril (e até chegou a Marechal, que a democracia é como o sol   quando nasce é para todos, e tem uma esponja grande para limpar as nódos do camuflado)....


2. Havia, por parte da maioria da malta do nosso tempo, do Zé Soldado, mas também dos milicianos, um sentimento algo ambivalente em relação ao Caco Baldé... Não sei se ele era verdadeiramente adorado, como ele gostava de o ser (ou de ter sido), por todos os seus subordinados, os metropolitanos e os do recrutamemto local, a par dos seus queridos "guinéus", do Cacheu ao Cacine.

De um modo geral, as praças respeitavam-no e admiravam a sua maneira de ser e de estar, de comandar, de aparecer onde menos se esperava, a sua coragem física, o seu paternalismo autoritário, o seu populismo ("avant la lettre"), o seu carisma,  a sua "mise em scène", o seu perfil prussiano, o monóculo, o pingalim, enfim, a sua demagogia também, a sua voz de "ventríloquo"...  Era uma figura militar a quem ninguém podia ficar indiferente.

O Caco Baldé, como todos os grandes chefes militares, era  amado  por muito boa gente, mas também  temido, sobretudo  por muitos oficiais superiores,  nomeadamente a nível de batalhão (desde que não fossem da mesma arma do general, que era a cavalaria, diziam as más línguas).  

Dizia-se também que os fulas e os manjacos (as duas etnias mais "leais" às autoridades  portuguesas) o tratavam, com respeito e deferência,  como o "homem grande de Bissau". Penso até que o admiravam muito, nomeadamente as hierarquias daquelas duas comunidades étnicas.  

Não havia sondagens naquele tempo, nem nunca foi feito nenhum plebiscito. Em suma, era difícil de avaliar a popularidade de Spínola com números na mão. Tudo o que se possa escrever é baseado na percepção e observação daqueles de nós que estivemos no TO da Guiné no seu tempo. Mas quem, de nós, pode dizer verdadeiramente que o conheceu? Teríamos que  ter o testemunho daqueles.

O anedotário da spinolândia é muito maior que os  textos que já aqui publicámos sobre o humor de caserna... No meu tempo (1969/71), tenho a ideia que toda a gente contava anedotas do Spínola... Mas, passados todos estes anos, parece que até as anedotas do Homem Grande de Bissau  ou do Caco Baldé se nos varreram da memória...

Fica aqui o apelo para refrescarmos as nossas memórias. O humor de caserna é um antídoto contra a crise, a depressão, o mau-estar, o azedume que a idade também traz consigo, bem as núvens negras que atingem nesta altura a Europa e o resto do Mundo...

Começamos por republicar aqui, uma história que nos foi enviada em  1 de outubro de 2008,  pelo Rogério Ferreira, natural de Santarém, ex-fur mil at inf,  Minas e Armadilhas,  CCAÇ 2658/BCAÇ 290
5 (Teixeira Pinto, Bachile, Nhamate, Galomaro, Nova Lamego, Pirada, Paiama, Paunca, Sinchã Abdulai e Mareue, 1970/71) (Foto à esquerda).


3. Anedotário da Spinolândia (1): 

Sabes o que é um lapso, rapaz ?

Quando da minha passagem por Paunca, estive num destacamento chamado Paiama [, na margem esquerda do Geba Estreito, a noroeste de Paunca,] e, alguns dias após o Natal de 70,  tivemos a visita do heli.

Mandados os soldados de piquete para a orla da mata a fazer segurança, o heli aterrou. Apareceu-nos então um sr. Capitão em passo de corrida, dizendo que era uma visita do nosso general (Caco Baldé), e que os soldados formassem como estavam nem que fosse em cuecas.

Logo instantes depois aparece o nosso General no seu camuflado de manga curta e seu monóculo. Olha em volta e, dando indícios de não conhecer o sítio, diz:
  Eu nunca aqui estive, isto quer dizer que não vos dei os votos de Boas Festas.

E virando-se para um dos nossos soldados, o J. J. 
 natural da Torre da Gadanha e cuja mãe lhe enviava umas ricas Boias, ou seja, pedaços de lombo de porco em banha numas latas tipo Cerélac, o qual hoje é carteiro na zona da Amadora  disse:
− Isto foi um lapso... Sabes o que é um lapso?
− Sei, sim, meu general, é uma coisa para escrever.

Grande risota geral, até do general.

Rogério Ferreira
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Notas do editor:


(**) Útimo poste da série > 18 de abril de  2022 > Guiné 61/74 - P23177: Humor de caserna (50): "O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. Conclusão: Siga a Marinha!": um documento do "Gasparinho" que ainda hoje nos suscita um sorriso amargo (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

terça-feira, 24 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20767: Memórias ao acaso (Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845) (5): Volkswagen "Pão de forma"

Volkswagen "Pão de forma"


Mais uma crónica do nosso camarada Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf.ª da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70):


MEMÓRIAS AO ACASO

05 - VW - "PÃO DE FORMA"

Era uma VW de passageiros do Exército (9 lugares), que às horas certas vinha a uma praceta da baixa de Bissau recolher os oficiais, que em trânsito pela capital, estavam alojados no "600", quartel fora de portas, famoso pela sua "vala comum", como apelidávamos o pouco dignificante dormitório.

Estávamos em meados de Setembro de 1969, o calor exterior era imenso, e a "pão de forma" com a sua térmica concentradora cor mate verde-escuro, e um único arremedo de isolamento no tecto, elevava a temperatura do habitáculo para próximo dos 50º!

Seria a viagem das 15 horas, e como pontualmente acontecia, dez minutos antes, a viatura chegou e estacionou no ponto de recolha. Era dado adquirido que assim que a lotação estivesse completa a carrinha abalava, caso contrário esperava pela hora certa para o fazer.

No banco da frente, junto ao condutor, sentava-se o oficial mais graduado, que nesse dia, se bem me lembro, seria um major.

Tomámos lugar mas faltava um viajante para que a largada se desse de imediato! Olhares esperançosos de todos nós para o dobrar das esquinas... e nada! Não aparecia mais ninguém! O calor estava ao nível de boca de forno de padaria!

Então com voz dorida, pausada e com as sílabas bem batidas, clamei :
- Condutor! Está completo, podes arrancar!

E à laia de justificação, acrescentei:
- Eu conto por dois! Têm-me fodido tanto que acredito que estou grávido!

O senhor major, de soslaio, avaliou o grau de "cacimbagem" que o meu semblante de 17 meses de mato denotava, e com um conveniente sentido de humor virou-se para o condutor e ordenou:
- Arranca! O nosso alferes é capaz de ter razão!
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20706: Memórias ao acaso (Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845) (4): Alcunhas

quinta-feira, 5 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20706: Memórias ao acaso (Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845) (4): Alcunhas

Foto n.º 1 > Soldado Ribeiro, o "Perna Facaia"

Foto n.º 2 > Soldado Toninho,  o "Senhor Doutor"

Foto n.º 3 > 1.º Cabo Bento,  o "Mal disposto"

Foto n.º 4 > Soldado Sá,  o "Capilé"

Foto n.º 5 > Soldado Dias, o "Padeiro"

Foto n.º 6 > Soldado Sousa, o "Simpático"

Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70) > Miliares do pelotão do alf mil Miguel Rocha e respetivas alcunhas...

Fotos (e legendas): © Miguel Rocha (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mais uma crónica do nosso camarada Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf.ª da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70):


MEMÓRIAS AO ACASO

04 - ALCUNHAS

As alcunhas, fruto duma criativa espontaneidade, eram servidas sem luvas e sem bandeja aos seus forçados titulares, num misto de picardia e natural bonomia. O nível de aceitação por parte dos visados era elevado dada a reciprocidade vigente!

Umas vincavam características de personalidade, quer por excesso, quer por antítese, outras visavam a oralidade, tanto nos seus regionalismos como no grau de dificuldade de expressão.

As profissões civis, bem como as funções militares, e ainda um ou outro episódio mais burlesco ocorrido já no teatro de guerra, eram farta e garantida sementeira para elas. Colavam-se-lhes à pele de forma indelével, substituindo no nosso registo de memória o nome e apelido do visado.

Do meu pelotão, recorrendo ao meu álbum de guerra e mais uma vez às fotos do meu aniversário (13.02.69), recordo com muito carinho as seguintes:

"TATIBITILÉ" - Pela forma titubeante como se expressava.
"PERNA FACAIA"- Argumento que usava para pedir escusa de operações.
"SIMPÁTICO" - Pura antítese.
"GÉMEO" - Por ter o seu irmão gémeo na Guiné.
"CUBA" - Por bem "decilitrar".
"MAL DISPOSTO" - Pelo condizente semblante.
"PADEIRO" - Profissão civil.
"TELEGRAFISTA" - Função Militar.

"XIPANÇO", "MIASSAS", "MÃO CERTA", "BRANQUINHO" e "CAPILÉ" são outras alcunhas que o significado já me escapa.

Havia ainda a "EQUIPA DO PINCEL" - todos oriundos da construção civil.

No meu álbum fotográfico, faço-me acompanhar de alguns daqueles que viram distintivas alcunhas substituir, no dia a dia, os seus nomes próprios. [Vd. fotos caima]
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20669: Memórias ao acaso (Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845) (3): Um Presépio de cartolina

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19208: A Galeria dos Meus Heróis (15): O "Bate-chapas" que queria ser fotocine... (Luís Graça)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá  > 2010  > O antigo cinema da vila e depois cidade de Bafatá, agora em ruinas... O regresso do Fernando Gouveia, 40 anos depois...

Foto (e legenda): © Fernando Gouveia (2014).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Luís Graça, Contuboel,  
CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, 
julho de 1969, 
Luís Graça >  A galeria dos meus heróis (15) >  O "Bate-chapas" que queria ser fotocine...



Excertos do "Diário de um bate-chapas" (*)

2/3/2018

Dia de inverno. Não admira, estás em março. E a primavera é só daqui a três semanas. E parece que vai continuar assim na próxima semana. Partidas da meteorologia. Ou nem por isso. Se há algo que é previsível é o tempo. Por isso há as previsões meteorológicas e os meteorologistas. Ciência matemática, dizem os gajos. 

 Dantes pensavas que era o São Pedro quem mandava nos céus e arredores. Metiam-te medo com o dilúvio e a arca de Noé. Santa ignorância, quando se é puto. Quem te metei na cabeça essas patranhas ? Agora parece que destronaram o Santo e já não há ninguém de respeito que mande nesta merda. Anda tudo desregulado: o tempo, o clima, a economia, os quatros humores, a saúde… As estações andam trocadas. 

Quando eras puto, havia quatro estações, e o Natal era no inverno, e fazia frio, e caía neve. Na Guiné, no teu tempo, havia duas estações, dividindo o ano ao meio: a das chuvas (de maio a outubro), e a do tempo seco (de novembro a abril). E quando as primeiras chuvas caíam era uma explosão de vida e de alegria. 

 Até tu, ó "Bate-chapas", pé de chumbo, vinhas para a "rua", no meio da tabanca, dançar com os "djubis", as bajudas e as mulheres grandes. Grande tonto!... Mas nunca te lembraste de tirar umas chapas desses momentos que, afinal, eram os mais felizes da vida na Guiné, os primeiros dias de chuva!...

Estás a dar cabo da tua casa, do teu chão, do teu teto, da tua terra. A fauna e a flora, as criaturas de Deus, sofrem sem terem culpa, à exceção do bicho homem. Pintem-no de todas as cores, para que ele apareça ainda mais feio, fero e mau, o "diabo branco" que metia medo aos "djubis" na festa do fanado… A malta pre
cisa, em todas as culturas, da figura de um diabo que simbolize o mal absoluto. 

Em dias assim, o que te resta é meter-te num centro comercial, o mais perto de casa, com estacionamento à borla, luzes, lojas, ar condicionado, e gente tão solitária como tu… Perdidos, automatizados, alienados. 

Enfias-te num cinema. A oferta é muita mas a maior parte é lixo. Puxas dos cartões, à cata de descontos. Sempre dão para as pipocas. Não sejas intelectualmente arrogante. Se o lixo está em cartaz, é porque há clientes, há público para consumir o lixo. Ainda por cima pagam para comer lixo. És um  consumidor de lixo, seja cinema, sejam salmões da Noruega ou douradas da Grécia ou caju da Guiné ou nozes da Califórnia ou as mensagens dos Trumps no Twitter. Ou o futebol ou as pregações evangélicas ou os "sites" pornográficos. Ou os "best-sellers" de Natal.

Há uns gajos de fato completo e gravata que gozam à brava com isto tudo, e vão aumentando as suas contas bancárias e fortalecendo as suas redes de poder e de influência. As lojas e as redes sociais estão cheias de lixo, barato, a preço de saldo, que tu compras.  E "a malta não olha a preços, quer é descontos"… e viver, freneticamente, o cagagésimo de segundo do presente... "O último a morrer que feche a tampa do caixão!"...

Lembras-te, ó "Bate-chapas"?!... Foi a frase publicitária de maior sucesso que tu criaste lá no quartel, em Bafatá, antes de a companhia ir para a região do Gabu: "A malta não olha a preços, quer é descontos"… Tão atual, hoje em dia, cinquenta anos depois!... Eh, pá, tu devias ter ido para o marketing criativo!...


Houve "chapas" ao preço da chuva, no primeiro Natal que lá passaste. Não perdeste dinheiro, mas também não ganhaste. Foi uma operação de "marketing", para lançar a marca do "Bate-chapas". E o sucesso foi de tal ordem que vendeste logo uma centena de fotos da malta vestida de pai Natal tropical, bajudas de "mama firme", e até a cabeça cortada de um desgraçado de um turra, uma foto que um fotógrafo de Bambadinca, teu conhecido, te passou às escondidas em Bafatá, bem como fotos dos comandos africanos empunhando as Kalashes da vitória.

Recordas-te ? Chegaram a vender-se Kalashes, plural de Kalash, em Bambadinca e Bafatá, por 500 pesos cada uma. Vinham, novinhas em folha, diretamente de Conacri, depois do regresso dos comandos africanos. Como é que se chamava essa operação, lembras-te ?... Ah!, sim, Operação Mar Verde, ordem para invadir um país independente, ordem para matar. Só não convidaram cá o "Bate-Chapas" para fazer a cobertura fotográfica. 

Não, nunca tiveste vontade de ter uma Kalash... Ainda apanhavas uma porrada... Como é que a fazias chegar à metrópole ? Desmontada, em peças, escondidas num caixote feito de madeiras exóticas, fintando os gajos das Alfândegas ?... Preferias investir em máquinas fotográficas, tinhas três, compradas em Bissau, lá na loja dos libaneses. o tal Taufik Saad, não sei quantos... Havias gajos que arriscavam, os oficiais e sargentos do quadro permanente, faziam chegar muito contrabando através desse truque dos caixotes feitos com tábuas de madeira preciosa, que valia ouro na metrópole, nessa época.


"Bate-chapas"!!!... A princípio, não achaste piada nenhuma à alcunha... Isso era alcunha dos gajos da ferrujem.  Era desvalorizar o teu talento e a tua arte de fotógrafo. Mas toda gente tinha uma alcunha. E tu acabaste por assumir a tua. Até a mulher do capitão, era a "Capitoa". E o "Pastilhas" que era o enfermeiro. E o teu alferes que era o "Ranger", e o Casanova da companhia que era o "Picha d'Aço". E o cozinheiro que era o "Merda Seca"..
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As lojas aqui, no centro comercial,  também tresandam a merda seca, "made in" China, Indonesia, Bangladesh. Dantes, tinhas "scotch whisky", marca branca,  que vinha diretamente da Escócia em barris para a malta da tropa. O mais baratinho. E depois engarrafado no Beato com água do Tejo. Chamavam-lhe uísque de Sacavém. Para os bravos que se batiam para sobreviver à tona de água do Geba. "Beber a água do Geba"... Lembras-te da expressão ?!... Bebeste muitas vezes a água do Geba, mas nunca tiveste saudades da Guiné nem muito menos vontade de lá voltar. Mas quem recorda, não desdenha, é isso ?! 

E nos saldos saldam a roupa de inverno e os sapatos de inverno, porque já vem aí a primavera e logo a seguir o verão do nosso contentamento. "Ainda vamos ser felizes, meu amor, com casa à beira da praia no reino de Portugal e dos Algarves",  diz a chavala para o gajo, ali ao teu lado, comendo pipocas. Não percebes esta mania, horrorosa, de as miúdas de agora se tatuarem de alto a baixo. Parecem umas osgas, todas pintalgadas! 

Compra-se a crédito, barato, a casa de praia. E a mobília. E os electrodomésticos. E o amor. E a moda é quem mais ordena. Consumir é bom para a economia, que acelera e às vezes desacelera, para desespero do ministro das Finanças… Mas nem tudo o que é bom para a economia é bom para o balanta, o felupe, o fula ou o mandinga ou o morador do Bairro da Bela Vista em Setúbal. 


10/3/2018

Foste à praia do Guincho, gostas de lá ir no inverno. O mar está sujo, escuro e bravo como um touro. Espuma de raiva. Às vezes apetecia-te ter a raiva do mar. "Vamos ter forte temporal esta noite", dizem os metereologistas da Antena Um, os novos profetas da desgraça. Aviso amarelo a passar para o vermelho daqui a umas horas. Tempestade Félix. Não percebes nada de meteorologia, meu estúpido. O que é o anticiclone dos Açores ? E o que é uma tempestade ? E um furacão ? Há uma escala para medir estas fúrias dos elementos da natureza. Devias saber mais sobre estas merdas de que agora tanto se fala, as alterações climáticas, a subida da água dos oceanos, os fogos florestais... 

Há gajos que são pagos para saber. Tivestes 22 meses na Guiné,na puta da guerra, a defender a Pátria, nunca te explicaram quem era a Pátria, essa entidade nebulosa, hermafrodita, simultaneamento macho e fêmea. Nem nunca te disseram quem eram os pais da Pátria... Nunca te explicaram isso, nem na recruta nem na guerra. O teu capitão, do quadro permanente, que até era fixe, afável, católico, não tinha jeito nenhum para as tiradas patrióticas. Nunca o ouviste falar da Pátria. Mas os camaradas que morreram, esses, "morreram em nome da Pátria"... Viste cópia do telegrama, chapa um, que se mandava para a família.


15/3/2018

Fazes horas… Meu estúpido, que raio de expressão?!... Se tu soubesses em que ano, mês, semana, dia ou hora a morte te vinha bater à porta, já tinhas dado um salto mortal no sofá, no "hall" do cinema, e programado os últimos dias ou meses que te sobravam para viver… Ninguém entra em pânico com esta hipótese felizmente teórica, a não ser quando ouve o verídico final do médico, do juiz ou do carrasco. Os médicos agora já não estão com paninhos quentes, olham-te, olhos nos olhos, e fuzilam-te: "Ou tens juízo ou não te dou mais do que seis meses de vida"… 

A sacana da tua médica de família mandou-te ir ter com os gajos do ACP para te passarem o atestado médico a enviar ao IMT – Instituto da Mobilidade e Transportes. Está de greve, a gaja! Ah!, querias revalidar a carta de condução ?!...Ela diz que não pode atestar a tua validade (e, muito menos, virilidade, acuidade auditiva, sanidade mental e por aí fora)… 

"Estamos todos a prazo, doutora… Quem me diz que não apanho uma macacoa ou não sou atropelado à porta do centro de saúde ?!... Ainda há dias, um velhote com 90 anos, sem carta (há mais de cinco anos!), me iam passando a ferro na passadeira… Velhote de 90 anos, um ova, general, medalhado!... O homem parou a 10 cm de mim!... E ainda tive que lhe bater a pala!"... 

E tu que já tens 70 ?!.. 20 anos de distância ainda é muito ano… Não é nada, idiota, é já daqui a 20 anos!... E a guerra já acabou há 50!...

Fazes horas!... em vez de estares a viver intensamente o resto dos dias que te faltam para cumprir calendário… Agora vives para cumprir calendário, para não dar cabo da estatística da esperança média de vida… Por patriotismo, para que o teu país não fique mal nas fotografias, como ficava nos anos em que lá andaste, na Guiné, com a puta da canhota!...E, nas horas vagas, a tirar o retrato à malta... Toda a gente queria tirar o retrato para mandar para casa, no aerograma do dia seguinte, como "prova de vida"... "Estou bem, meus amores,  até ao meu regresso!... Rezem por mim"...

Até tu, lembras-te ?!, ias fazendo um tracinho na parede, em cada semana que passava… 4 eram um mês, 48 um ano, mais coisa menos coisa… Que um gajo queria era cavar daquele campo de concentração!... E a Pátria deles, que se fodesse!...


Quando um gajo trabalhava, tinha horas para tudo, estava tudo planeado, regulamentado, havia normas e leis, usavas agenda e gravata, saías de casa de manhã, entravas á noite, metias-te no comboio de Sintra a caminho de Lisboa, com regresso a Rio de Mouro, a tua gaiola dourada com vista sobre o Palácio da Pena, a serra de Sintra, o pavoroso cimento à volta!... Um mouro de trabalho, uma besta de carga, foi o que tu foste!... Para quê ?, para quem ?...

Agora não já precisas da puta da agenda, nem de apontar o nome e o número de telefone dos clientes e fornecedores,  a não ser para marcar a consulta do dentista e registares o dia e a hora da última vez em que deste uma queca! Fazes as palavras cruzadas e a sopa de letras que é para prevenir o Alzheimer, a recomendação da tua vizinha, ainda boazona, que vive sozinha com o cão, e que trabalha lá na clínica manhosa do teu bairro…

Agora és um cinéfilo compulsivo, vais ao cinema todas as semanas... Foste ver o filme "Três cartazes à beira da estrada"… Passa-se num cidadezinha ronceira do Missouri e há uma mãe justiceira que quer vingar a violação e a morte da filha, um lugarzinho do mundo onde nunca foste, nem onde nunca irás, porque é sítio que não interessa nem ao menino Jesus, tal como o Rio de Mouro, ou a puta da aldeia, Mazouco,  lá em Freixo de Espada à Cinta onde nasceu a tua avó e a tua bisavó, gente que nunca chegaste a conhecer. E aonde nunca foste, a terra das velhotas… Morreu de parto, a tua mãe, do teu mano mais novo,  contava-te a chorar o sacana do teu velhote, que voltou logo  a casar, sem fazer o luto... 


Cresceste sem mãe a partir dos 10 anos. A outra foi sempre madrasta… Mãe é mãe e só há uma... Também lá está a fazer tijolo, a tua madrasta, ela e o teu velhote, morreram, há quinze anos,  os dois num acidente de carro, na autoestrada a caminho do Norte… Um estúpido acidente com a gaja a conduzir com a mão direita, com o telemóvel na mão esquerda… Infelizmente, o teu velhote morreu sem teres resolvido o contencioso que tinhas com ele… Nunca gostaste da gaja dele, que afinal o acabou por matar... Há anos que não falavas com ele e com ela...E estás com essa atravessada na tua consciência, acusa-te o teu irmão mais novo. Sentes culpa por o teu velhote ter morrido, nas circunstâncias trágicas em que morreu, sem nunca teres tido uma conversa séria com ele, nem que fosse de despedida, de filho para pai, de pai para filho...

E lá no Missouri, no sul, na América profunda onde nada acontece, o raio do realizador fez um filme que é um misto de tragédia, comédia, "western" e "thriller" policial. Eh!, pá, andas a pensar fino e a falar grosso, ainda acabas em crítico de cinema… E já tens "nick name", o "Bate-Chapas", registado na Sociedade Portuguesa de Autores, para quando acabares de escrever e publicar o teu livro, "Memórias de um Bate-Chapas que queria ser fotocine na Guiné"… 


Achas que é um bom título, camarada ? Não é, não, senhor,  vão-te confundir com os gajos da ferrugem… "Bate-chapas", essa, sim, era uma especialidade dos gajos da ferrugem... Havia uma 1º cabo bate-chapas, na CCS do batalhão, em Nova Lamego,  mas a malta chamava-lhe o "Trancoso", se bem estás recordado.

Alguém sabe lá o que é um fotocine… Estes gajos de agora não foram à tropa, esta geração do pós-25 de Abril… "Bate-chapas"… que raio de alcunha que te puseram!.. Tu nunca foste mecânico, eras operacional, 1º cabo atirador de infantaria… E até comandaste uma secção no último ano… O furriel, lembras-te ?,  fora destacado para Bambadinca, para os reordenamentos, era preciso fazer casas para a balantagem que vivia na zona ribeirinha do Geba, e que fornecia o Zé Turra e a Maria Turra com aqueles coisas elementares que o Zé Tuga vendia, lá na tasca dele, tabaco, petróleo, velas, cola, arroz, aguardente de cana, redes mosquiteiras… Gostavas de passar por lá, quando ias ao Xime, em colunas logísticas, buscar os abastecimentos para a companhia... O Zé Tuga estava sempre a sacudir a água do capote, quando a malta insinuava, na reinação, que o gajo era turra: “Eu só quero que a minha vidinha corra, não quero que ninguém morra”… O gajo estava feito com a balantagem,… E era tão branco como tu…

Chamavam-te "Bate-chapas", os "djubis" e as bajudas, por que andavas sempre a tirar fotografias, no quartel, na tabanca, nas colunas, era o teu biscate, para arredondar o pré ao fim do mês, e fazer um pé de meia para as férias… Eras um fotógrafo compulsivo. Revelavas e expunhas as provas, numeradas,  num placard que servia de mostruário.

A Arminda e a garota, que tu mal conhecias (, tinha escassos meses, a tua filha, quando partiste para a Guiné), ansiavam por ti, ainda faltavam dois ou três meses para vires de férias… Quem eram os cabos que vinham de de licença de férias à metrópole ? Só tu, que tinhas dois ordenados, e o cabo cripto, que era um gajo evoluído, com estudos como tu, e o "escritas" que também comia da gamela com o "nosso primeiro"… E, claro, os graduados, os furriéis, os sargentos, os alferes, e o capitão no 1º ano (, no segundo ano levou a esposa, a "Capitoa", que vivia em Bafatá..., o que era um pretexto para ele lá ir dormir aos fins de semana, quando a guerra abrandava...).

Podias ter sido fotocine, se tivesses tido uma boa cunha, se tivesses tido sorte na puta da vida, era uma rica especialidade, não saías de Bissau, quando muito terias que fazer uma ou outra sessão de projeção de cinema no mato… Ias de avião até Bafatá ou Nova Lamego, depois apanhavas uma coluna… Na outra semana, descansavas e ias beber umas boas bejecas no Pelicano ou na 5ª Rep.

Lembras-te quando a malta esteve dois ou três em Bafatá, a caminho do Gabu... Ía-se à noite ao Bataclã e um dia, no dia dos teus anos,  até convidaste  as gajas todas que fodiam com a tropa, para ir ao cinema, ver uma cagada de um filme cómico italiano do tempo da Maria Cachuca ?!… Foste tu pagaste os bilhetes, foi bodo geral aos pobres... Os "djubis", as bajudas e as mulheres grandes, riam-se que nem uns perdidos, mesmo não percebendo nada que os gajos e as gajas do filme diziam, em italiano, e muito menos as legendas… E o sacana do Lopes, trocista e racista, a mandar as suas bocas: "Ó Barrote Queimado, quem não sabe ler, vê os bonecos"…

O cinema de Bafatá, a grande obra de civilização que lá deixaste no leste.ó tuga… Mais a piscina, e a mesquita, e a catedral… Nunca mais viste um filme quando a guerra começou a sério, e os índios e os cobóis deixaram de ter tempo para limpar as armas…


16/3/2018

Rica vida de reformado, dirás tu, a gozar contigo próprio. Dias de inverno, a escassas dias da primavera que há-de vir (ou não). Foi um mês em que choveu sem parar. E vai continuar a chover , pelo menos até ao dia 22, segundo viste na Net. Afinal, do que seria de ti sem o raio da Net e os teus amigos virtuais do Facebook, tu que não tens um amigo do peito que te dê um ombro onde possas chorar. Que um homem não chora, muito menos os camaradas da Guiné.

Voltas a enfiar-te no porto de abrigo do teu centro comercial. O que dá para ver a meio da tarde, ó cinéfilo ? O filme "Post", de SpielBerg, com o Tom Hanks e a Merry Streep. É sobre quê ?, perguntas. O papel do jornalismo nas democracias modernas. O braço de ferro do "Whashington Post" e do poder político-militar na América que queria cortar o bico aos jornalistas.

Não é nada de empolgante, mas é importante pelo episódio (histórico) que recria: publicação, pelo "New York Times" e pelo "Washington Post", dois jornais de referência, dos papéis do Pentágono, um documento ultrassecreto feito por académicos sobre o envolvimento americano no Vietname, desde o presidente Eisenhower. Os governos americanos foram-se atolando no Vietname e as perspetivas eram claramente as de uma crescente escalada e quiçá desastre a nível militar.

O estudo encomendado pelo Robert McNamara estava guardado a sete chaves até que uma cópia foi parar aos jornais… Mas há lá chaves e cofres que guardem um segredo ?!... Só a malta na Guiné é que foi apanhada de surpresa pelo Strela!... E depois pela declaração unilateral da indepência em 24 de setembro de 1973. Mas o que é que os "pides" andavam a fazer nessa época ? E os craques da Força Aérea… não sabiam que já havia uma arma dessas, o Strela, a ser utilizada no Vietname ?!


Não te quiseram para fotocine, os cabrões da tropa, tu que já eras fotógrafo, amador, na vida civil!... Amador, não, profissional, com cartão passado pelo sindicato corporativo!... Fazias casamentos e batizados, tinhas um patrão, já velhote,  que não podia a ir a festas, que se enfrascava todo, cortava a cabeça aos noivos  e dava cabo dos rolos… Valia-lhe o genro, que acabou por tomar da casa... Mas, olha, safaste-te, a biscatagem deu-te para montar o teu negócio próprio, quando regressaste de vez, são e salvo, graças a Deus, benzia-se o teu velhote, amarrado a uma gaja vinte anos mais nova do que ele, e que o chupava até ao tutano… Pobre do velho que podia ter tido mais sorte na vida!...

Mais tarde, com as tuas economias todas, abriste uma papelaria e livraria com secção de fotografia, lá no teu bairro, em Rio de Mouro. Tal como na tropa, em matéria de fotografia, fazias tudo menos a revelação de diapositivos. (Uma merda, veio depois a fotografia digital, a revelação automática, o "self-service" os centros comerciais, o negócio foi por água a baixo!... Os livros vendiam-se pouco, a não ser o material escolar... Vendeste a baiuca… Que tristeza, recusas-te a passar por lá… Agora  deve ser uma loja de um chinês ou um templo evangélico. Valeu-te ao menos o dinheiro do trespasse, compraste títulos da dívida pública, que sempre te dão algum rendimento, no banco não vale a pena teres dinheiro, ainda tens que pagar por cima.)

−Ó bate-chapas, tira-me aqui um chapa, e faz-me um postal com dois corações que é para mandar para a miúda que vai fazer 21 anos e já pode casar quando eu voltar!...

− Ó bate-chapas, arranja-me umas fotos das putas do Bataclã que é para eu mandar para o meu irmão mais novo que vai às sortes, e que nunca viu uma gaja nua…

E alcunha ficou mesmo, para o resto da vida… Não levas a mal. Já faz parte da tua identidade... Afinal, foste um "Bate-chapas" toda a vida... Ainda hoje te fazem uma festa quando vais aos convívios anuais da companhia:

− Ó bate-chapas, bate-me aqui uma!...

Eras um gajo popularucho na companhia. Tinhas milhares e milhares de provas e negativos, no teu estaminé, improvisado, por detrás da caserna grande, onde ficava a malta do 1º e 2º pelotões… Ficou tudo reduzido a cinzas quando houve aquela pavoroso incêndio, que até parecia um ataque dos gajos do PAIGC ao arame farpado… Ninguém soube como aconteceu!... Foram muitos os palpites, mas tudo indica que tenha sido um raio numa daquelas frequentes trovoadas tropicais… Houve quem dissesse que foi sabotagem, gajos civis que trabalhavam no quartel e que eram turras, e que terão deitado o fogo, quando a malta do 1º e do 2º pelotões estavam no mato... 

Estavas já perto do final da comissão, felizmente tinhas depositado um mês antes a guita, o teu pé de meia, no BNU em Bissau… Ficaste de tanga, sem máquinas, sem rolos, sem laboratório, sem arquivo… Até a lista dos calotes ardeu!... Muitos camaradas perderam tudo, armas, roupa civil, o pouco patacão que tinham… Não havia bombeiros no mato!... E muito menos água e a mangueiras e bocas de incêndio!... Aquilo era no cu de Judas, no Freixo de Espada à Cinta lá no chão dos fulas!....

E hoje aqui estás, viúvo, reformado, fechado numa sala de cinema de um centro comercial, comendo pipocas para aliviar a angústia do fim de tarde… Antes de ires para casa, e aqueceres a sopa requentada que a tua empregada cabo-verdiana faz para toda a semana… De tempos a tempos, meia dúzia de vezes se tanto por ano,  falas pelo Skype com a tua filha que está na Austrália, casada com um grego... E mal conheces os teus netos que não falam português. Porra, tens uma filha com 50 anos!... Foste pai aos 20, irresponsável.


E lá vais escrevinhando o teu diário, falando em voz alta com o teu "alter ego", o mesmo é dizer, falando para as paredes do teu T2 em Rio de Mouro, agora grande demais para um homem só.

Podias ter sido um grande fotocine, um grande fotógrafo, um grande cineasta, quem sabe ?!...
Foste apenas uma "Bate-chapas"… Consola-te: levaste um pouco do calor da amizade e da camaradagem da Guiné a muitos lares portugueses, mães e pais, esposas, namoradas, madrinhas de guerra…, arrancaste muitos sorrisos a "djubis", bajudas de fama firme e mulheres grandes de teta caída… E até a homens grandes, régulos, milícias, guerreiros que habitualmente nunca sorriam... Foste à guerra, deste e levaste… Tiveste mulheres que gostaram de ti. 

E hoje ? Só tens amigas do Facebook, tristes e empedernidos corações solitários… E olhas-te para o espelho e vês um gajo velho, como ó caraças!,… e pegas no teu bilhete de identidade, que é vitalício, e a foto que lá está não condiz com a puta da imagem que vês no espelho da casa de banho … O São Pedro não te vai deixar entar no Paraíso, quando chegar a tua vez… Mal por mal, vais ficando por aqui, esquecido (, e oxalá que ainda por uns bons aninhos!), no Limbo da Terra, depois de teres conhecido o Inferno da Guiné. 

 Não adianta reclamar, ó “Bate-chapas”, ninguém te vai devolver o dinheiro... Nâo há livro de reclamações no Céu, no Paraíso ou no Olimpo dos deuses e dos heróis, como lhe queiras chamar: tu é que compraste o bilhete errado para a sessão de cinema errada… Trocaste o filme… da tua vida, ó "Bate-chapas"! 


Luís Graça (**)
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Nota do editor:

(*) Trata-se de uma alcunha, o que era vulgar na tropa e na guerra, sobretudo entre os praças... Palavra que vem do árabe al-kunia, sobrenome... Significado: epíteto, geralmente fundado nalguma particularidade física, moral ou comportamental  do indivíduo ao qual ele se atribui. Neste caso, o indivíduo em questão era um fotógrafo amadora que, nas horas vagas, fazia retratos dos seus camaradas, tendo um pequeno laboratório de fotografia, a preto e branco, onde revelava os negativos. Frequentemente usava a expressão"Vamos bater uma chapa"... Estes excertos fazem parte de um texto manuscrito que ele nos facultou, para apreciação crítica, e que pode vir a dar origem a possível livro de memórias, caso se arranje um editor.