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domingo, 22 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9385: O Nosso Livro de Visitas (122): O meu batismo de fogo, nas férias grandes da escola, em jun/set de 1967, em Bula (Henrique Rodrigues, filho do 2º cmdt do BCAÇ 1876, 1966/1967)

1. Em 20 de Janeiro, recebemos a seguinte mensagem de Henrique Rodrigues, filho do Major César Rodrigues, 2º Comandante do BCAÇ 1876.

BCaç 1876

Caro amigo: 

Tendo estado convosco em Bula entre Junho e Setembro de 1967, como prémio de ter ultrapassado o 4º ano dado pelo meu pai,  o então Maj César Rodrigues, 2º Comandante do Batalhão. Pelo facto de ter apanhado o batismo de fogo nos três ataques a Bula, durante esse período, foi importante para ter dado um rumo à minha vida. Sou militar há quarenta anos e estou na reserva. Por acaso não fiz nenhuma comissão mas recordo bem o meu batismo de fogo em Bula. 

Um abraço a todos
Henrique Rodrigues

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Notas de M.R.:

1.    Em nome do Luís Graça e dos restantes Camaradas desta grande tertúlia, gostava de transmitir ao nosso amigo Henrique Rodrigues, que nos congratularíamos muito se resolvesse integrar o nosso "quadro de pessoal". 

É simples juntar-se a nós, bastando para isso cumprir a simples e habitual praxe, que é enviar-nos uma foto actual do tipo passe e, pelo menos, uma foto do tempo da tropa ( que pelos vistos foi bastante). 

Mais gostava de convidar este nosso leitor, a partilhar connosco fotos desse tempo de Bula, e que nos contasse, com pormenores, as referidas "férias grandes" (Jun/Set 1967). 

2.    Recorda-se que o BCAÇ 1876 foi mobilizado pelo RI 2, seguiu para o TO da Guiné em 20/01/1966 e regressou a 04/11/1967. Esteve em Bissau e em Bula. Comandante: Ten Cor Inf Jorge Manuel Piçarra Mourão*. Companhias de quadrícula: CCAÇ 1496 (Bissau, Pirada e Bula), CCAÇ 1497 (Bissau, Fajonquito, Binar, Bissum-Naga e Bissau) e CCAÇ 1498 (Có, Binar e Bissau). 

     3.  Aproveito a oportunidade para retribuir o abraço Amigo que nos enviou.

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Em tempo:

Correcção a este Poste:

Mensagem de : Afonso Silva [ leonel.silva@netcabo.pt]
Data: 23 de Janeiro de 2012 20:05
Assunto: P-9385

Bom dia.
Relativamente  à  noticia relacionada no poste  P9385 existe a seguinte imprecisão:
É mencionado, certamente por lapso mas indevidamente, como comandante do BCAÇ 1876 o Ten Cor Inf Jorge Manuel Piçarra Mourão.

Segundo informação que consta no livro  Os Anos da Guerra Colonial, 1961-1975, de  Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, no respeitante às unidades mobilizadas para o TO da Guiné  no ano de 1966, Jorge Manuel Piçarra Mourão era Capitão e comandante da CART 1525 (Mansoa e Bissorã).

Sou  um leitor assíduo da  vosso blogue  e pertenci a um Batalhão que esteve em Angola de 1973/1975 (COTI-2)  onde o Oficial de Operações do Batalhão era o Capitão Jorge Manuel Piçarra Mourão (já falecido).

Vd. poste 23 DE JANEIRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P9390: O Nosso Livro de Visitas (124): Relembrando o comandante da CART 1525 (Mansoa e Bissorã, 1966/67), Cap Art Jorge Manuel Piçarra Mourão (Afonso Silva)

Carlos Vinhal
28/12/2013

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Vd. último poste desta série em:


quarta-feira, 27 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8171: Memórias de Mansabá (24): Recordações de António Dâmaso, Sargento-Mor Pára-quedista - O baptismo de fogo na Guiné

1. Mensagem de António Dâmaso, Sargento-Mor da FAP na situação de Reforma Extraordinária, com data de 23 de Abril de 2011:

Subordinado ao tema "Não deixes que sejam os outros a contar a tua história" aí vai mais um texto à vossa consideração.

Um abraço
Dâmaso


RECORDAÇÕES DE MANSABÁ (2)

O BATISMO DE FOGO NA GUINÉ

Depois de eu ir para a Companhia, às sextas-feiras faziam-se Operações relâmpago de heli-assalto na zona de Bula em Choquemone. Uma dessas operações calhou numa sexta-feira dia 13 de Junho que até era dia de Santo António, efeméride que no momento não me lembrei. Saímos de Mansabá  transportados em viaturas, passámos por Mansôa, seguimos pela estrada em direcção a Bissau e paramos numa Tabanca quase paralela a Encheia, local que conhecia por já ter transportado para lá Companhias de Páras. Era um local de eleição para lançar héli-assaltos na zona a partir dali.
Uma vez levei uma Companhia de manhã, e à tarde tive de ir buscá-la por falta de tecto (céu limpo) para actuar, outra vez fui mesmo pela picada junto ao rio Mansôa recolher uma Companhia, na margem do rio frente a Encheia, tendo de levar uma escolta de dois homens por viatura.

Zona de Jundum > Operação “Orfeu”

Fomos heli-transportados para o Objectivo que era a bolanha de Jundum-Choquemone

Ainda ia no ar já assistia ao bombardeamento de uma parelha de T6 e outra de FIAT G91.

Um avião T6 em voo na Guiné (Foto do Pára Albano Martins > Álbum de Memórias do BCP 12)

Uma parelha de aviões FIAT em voo. Na Guiné não voavam assim juntinhos

Uma largada Héli na Guiné, (Foto Mor S Rosa Álbum de Memórias do BCP 12)

Fui largado na ponta sul da bolanha, cujo efectivo era de 20 homens que correspondia a quatro Hélis, apesar de periquito naquelas andanças, era o mais antigo e como tal tive de assumir o comando. Recebi ordem do PCA, (Posto de Comando Aéreo) que andava lá em cima a comandar a Operação, para me dirigir para norte ao encontro do resto do pessoal da Companhia. Mandei o Cabo Oitenta com a sua MG para a frente, meti-me atrás dele e lá fomos, embora fosse um iniciado, sabia da competência daqueles homens que já tinham passado por Gandembel e por outros buracos idênticos e estavam endurecidos pela guerra. Sentia-me seguro e integrado.

Os que saltaram a norte entraram logo em acção e quando se deu a reunião já tinham alguns prisioneiros. Cheguei a tempo de ver sacar mais dois de dentro de uma vala cheia de água, onde se encontravam a respirar por uma cana de capim, um militar mais atento viu as bolinhas de ar à superfície e os guerrilheiros não escaparam.

Um DO em voo, um faz tudo (Foto Álbum de Memórias dos Pára-quedistas)

Já se encontravam alguns elementos a juntar o material apreendido, para depois carregar nos Hélis e eu recebi ordem para destruir as palhotas do acampamento. Andava por lá um casal de velhotes confusos com o aparato, a meu ver atendendo à idade, acho devia ter havido um pouco mais de condescendência na maneira de os tratar, fui educado a respeitar os mais idosos, os buracos causados pelas bombas largadas ainda fumegavam, preocupei-me primeiro em manter a segurança s só depois foi a destruição do acampamento pelo fogo.

Pára-quedistas na destruição de um Acampamento (Foto Álbum de Memórias do BCP 12)

O Comandante da CCP 121 a carregar armamento no Héli na Operação “Adónis” em 1969 (Foto H BCP 12)

Como a Operação foi resolvida num dia em poucas horas, fomos recuperados para João Landim, local onde eu já tinha ido muitas vezes levar e recolher Companhias de Páras e depois via auto para Bissalanca, ainda deu para fazer uma visita à família.

Héli em aproximação para recuperação (Foto Cabo Pára Lopes > Álbum de Memórias do BCP 12)

Recuperação Héli (Foto Cabo Lopes > Álbum de Memórias do BCP 12)

Dali em diante comecei a conhecer mais de perto alguns pilotos dos Hélis que até ali conhecia de vista e que nos transportaram, uma vez que ia sentado ao lado do piloto.

Alguns dos pilotos de Héli que me transportaram para as Operações e na recuperação (Foto cortesia do Alf  Mil Pilav Jorge Félix com a devida vénia)


Resultados da Operação “Orfeu”: 
 - 17 guerrilheiros abatidos,
- 12 capturados,

Apreensão do seguinte material:
- 1 metralhadora pesada Guryunov,
- 1 morteiro 60, 1 LGF RPG 7,
- 1 espingarda automática Kalashnikov,
- 1 espingarda semi-automática Simonov,
- 1 carabina Mosin Nagant,
- 1 espingarda Mauser,
- 2 carabinas Zbrojovska,
- 1 pistola matralhadora Beretta,
- 1 pistola matralhadora Schmeisser,
- 2 pistolas-metralhadoras M-25,
- 1 pistola matralhadora Thompson,
- 6 pistolas-metralhadoras PPSH,
- 36 granadas diversas,
- 5 minas A/P,
- 32.100 munições para armas ligeiras
- material diverso, fardamento, medicamentos, etc.

A CCP 122 sofreu 4 feridos ligeiros, eu não dei um único tiro porque não tive ninguém na mira de fogo, mas deu para verificar que a margem direita do rio Mansôa era perigosa e que a linha entre a vida e a morte era muito ténue o que obrigava a matar para não morrer. O comportamento dos militares tornava-se quiçá mais desumano em tal situação.

Saudações Aeronáuticas
Dâmaso
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Vd. último poste da série de 30 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P8016: Memórias de Mansabá (12): Recordações de António Dâmaso, Sargento-Mor Pára-quedista - A minha estadia em Mansabá

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8064: O meu baptismo de fogo (24): Num ataque de... formigas (José Barros)

1. Mensagem do nosso camarada José Barros (ex-Fur Mil Atirador de Cavalaria, CCav 1617/BCav 1897, Mansoa, Mansabá e Olossato, 1966/68), com data de 4 de Abril de 2011:

Caro amigo e camarada Carlos Vinhal
Envio uma pequena história do meu tempo de “periquito” a que dei o nome de Baptismo de fogo.

Junto ainda fotografias de Mansoa e Cutia, que farás com elas, e com o texto, o que bem entenderes.



O meu baptismo de... formigas


Cutia, 1966-68 > Estes eram os homens da minha Secção.

Às primeiras horas da manhã de um certo dia de Novembro de 1966, tudo apostos para mais uma operação de treino operacional.

Saímos do quartel em fila indiana na direcção da mata, não me recordo que sentido seguimos.

À frente ia um Pelotão de Milícias, seguidos pelos elementos da Companhia dos “velhinhos” que nos iam dando algumas dicas sobre os perigos que poderíamos encontrar.

Andámos horas e horas pelo meio da mata, até que saímos do mato e entrámos numa bolanha, que na época estava seca. Caminhávamos há já algum tempo, quando reparo que em determinado local os homens da frente davam um salto, e toda agente a seguir chegava aquele local e saltava.

No lugar onde seguia não era visível nenhum obstáculo. Ia perguntando a mim mesmo o porquê daquele salto!

Não demorou muito para ficar a saber o porquê de tal salto.

No momento em que me aproximo do local, rebenta uma emboscada vinda da orla da mata. Vai toda a gente de imediato para o chão e vira fogo contra o IN.

Secretária improvisada para escrever o meu primeiro bate-estradas para minha mãe

Eu não fugi à regra, também fui para o chão, mas nem um tiro dei. Mal caí fui atacado por uma enorme quantidade de formigas, que imediatamente se meteram pelo camuflado dentro e foram alojar-se nas zonas mais sensíveis do corpo, nomeadamente nos “ditos cujos”. O desespero era tanto que nem conta dei da emboscada ter acabado. Os camaradas que seguiam junto a mim, nomeadamente o pessoal da minha Secção, fartaram-se de gozar com o sucedido durante algum tempo.

Continuamos o nosso caminho de regresso ao aquartelamento. As dores e o desespero lá foram desaparecendo com o decorrer do tempo.

Chegado ao aquartelamento, fui tomar banho. Espanto dos espantos! O raio das formigas estavam mortas, mas com as suas tenazes cravadas na pele. Tive que as catar como quem cata piolhos.

Nunca soube qual o nome dessa formiga. Sei apenas que era uma formiga preta e pequena.

Foi este o meu baptismo de fogo. Não fiz fogo, mas sofri a bom sofrer com as malfadadas formigas.

Um grande abraço
José Barros
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 22 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7984: Memórias de Mansabá (11): A construção da estrada Cutia-Mansabá e a defesa dos seus pontões (José Barros)

Vd. último poste da série de 24 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3511: O meu baptismo de fogo (23): Uma vacina para o enjoo... (António Paiva)

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5906: José Corceiro na CCAÇ 5 (5): Primeiro ataque a Canjadude, o meu baptismo de fogo

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 25 de Fevereiro de 2010:

Caros camaradas, Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães,

É com agrado que redigi alguns dos momentos passados, em Canjadude, quando do primeiro flagelo à CCAÇ 5.
Deixo ao vosso critério.
Um Abraço
José Corceiro

2. Caros Tertulianos
É com satisfação, que a vós me dirijo a relatar algumas das emoções que vivi, quando tinha um mês de Guiné e sofri o baptismo de fogo, no Aquartelamento de Canjadude, CCAÇ 5.


PRIMEIRO ATAQUE A CANJADUDE

Paira uma aura de receio e insegurança nos Gatos Pretos, do Aquartelamento de Canjadude, a movimentação e agitação operacional têm sido excessivas em função do que é habitual, os ventos que sopram não são de feição, não se aproxima bonança! Há desconfiança e cautelas redobradas com os passos que se dão na CCAÇ 5.

Dia 28 de Junho 1969, os Gatos Pretos, numa operação no mato, tiveram um contacto, ainda que fugaz, com o IN, foram vistos pouco mais de meia dúzia de elementos, que ao serem detectados e perseguidos pelas NT, se dissiparam e esfumaram no matagal deixando ténues vestígios da sua presença; um boné, algumas munições e pouco mais! A valentia e coragem dos Gatos Pretos, comandados pelo Capitão José Manuel Pacífico dos Reis, foi posta à prova demonstrando moral elevada, destemor, galhardia, audácia, ao perseguir o IN a peito aberto, sem fazer fogo e sempre a gritar, Gato Preto Agarra à Mão… Foi uma prova de fogo que deu para aferir que há avidez de guerrilha neste grupo, que quer vingar os seus irmãos de sangue, vá-se lá saber o quê e porquê, que só a ubiquidade e desígnio de Deus conhece.

No Posto de Rádio têm-se captado algumas comunicações em Espanhol atípico e manhoso, outras em língua irregular (mistura de idiomas), comunicações curtas, tipo flashs, ficando-se com a sensação de que um dos interlocutores estará por aqui muito perto, pois a intensidade do sinal da recepção, nos nossos equipamentos, é fortíssimo e um dos intervenientes fala quase sempre em surdina, mais parece estar retraído a falar baixo para não ser ouvido. Há uma certa impaciência que é evidente no pessoal, ninguém se atreve a fazer prognósticos.

A actividade operacional de saídas para o mato tem sido a ritmo alucinante, não tem havido tempo para pausa.

Dia 26 de Junho de 1969, coluna a Nova Lamego; dia 27, operação para o mato, a nível de Companhia, dois dias; dia 28, contacto com o IN; dia 29, coluna a Nova Lamego e saída para o mato à noite (nestas saídas para o mato, à noite, saía-se por volta das 20.00h e regressava-se por volta da 24.00h); dia 30, saída para o mato à noite; dia 1 de Julho, saída para o mato à noite; dia 2, operação para o mato, com dois pelotões, eu também fui, durante o dia progredimos, no terreno, praticamente sempre debaixo de chuva e a caminhar com os pés dentro de água. Acampamos, para pernoitar, todos encharcados e enlameados, durante a noite quase sempre a chover e os mosquitos a atacar, pela manhã levantamo-nos a tiritar com frio.

Regressámos ao aquartelamento dia 3, na parte da tarde. Dia 5, saiu um pelotão para o mato, regressou às 23.30h. Dia 6, saiu pelotão para o mato à noite; dia 7, choveu torrencialmente, ao ponto de inundar o abrigo dos graduados, houve estragos em objectos pessoais. Dia 8 de Julho, era para ter havido saída para o mato, com 3 pelotões, mas as condições atmosféricas não o permitiram, neste dia veio um capelão para a CCAÇ 5. Dia 9, coluna a Nova Lamego; dia 11 de Julho de 1969, sai toda a companhia, juntamente com grupos de Pára-quedistas, para uma operação de três dias no mato. Eu fiquei no aquartelamento, não era a minha vez de sair e estava de serviço ao Posto de Rádio, das 12.00h às 15.00h e das 00.00h às 03.00h do dia seguinte. No aquartelamento ficou o grupo da formação, pessoal que não está distribuído por pelotões, juntamente com um pelotão, que veio de outro destacamento para fazer segurança a Canjadude.

Paralelamente a toda esta actividade e movimentação operacional para o mato, no Posto de Rádio tem havido um persistente vai e vem de troca de mensagens, algumas com prioridade Zulu (relâmpago).

A noite estava serena, tudo muito sossegado, ninguém quis folia, eu encontrava-me no abrigo Norte, deitado em cima da minha cama a ler o livro - 2455 Cela da Morte, de Caryl Chessmann - pois ia entrar à meia-noite de serviço, no Posto de Transmissões.

Eram 22.48h, do dia 11 de Julho de 1969, quando se precipitou inusitado ribombar, em que eu, o primeiro estrondo que ouvi, quis-me convencer que fosse um trovão, mas em milésimos de segundo, acordei o espírito e consciencializei-me que era o meu baptismo de fogo que estava em urdidura, estava a perder a virgindade de fogo no flagelo ao Aquartelamento de Canjadude. Saltei da cama para o chão, da parte superior do beliche, quis encontrar uma G3, pois eu não tinha arma distribuída. A lei da necessidade primária, sobrevivência, impôs que eu agisse e procurasse instrumento para me defender. Nestas décimas de segundo o gerador de energia eléctrica foi-se abaixo e ficou tudo às escuras, eu corro de mãos vazias para a saída do abrigo, saio e meto-me numa das valas, que me poderá conduzir ao abrigo do Posto de Transmissões. Cá fora, os rebentamentos eram constantes e afiguravam-se ser mesmo por cima de mim, ouvindo-se um ruído sibilo a cruzar a atmosfera em todas as direcções.

Eu fiquei perplexo e pensei:
- Que festival de fogachal tão bem orquestrado é fogo de guerra mesmo para matar, parece que os deuses estão contra mim?!

O bramir do ribombar, era incessante e havia ecos de explosões de proveniência indeterminada, vinham de todos os lados! Eu cogitava, que razões assistem a estes seres para despoletar tamanha barbárie? Fiquei cismado, confuso, embora não estivesse nervoso, mas estava um pouco amedrontado! Sempre me imaginei a reagir, numa situação destas, com conduta bem pior do que esta que estava a revelar, ao defrontar-me perante uma bagunçada com esta factual perigosidade, para a minha integridade física. Foi uma grande surpresa, para mim, esta minha atitude comportamental, diante de ameaça tão iminente, concreta e real. O fogo continuava violento e insistente, desconcertante, indistinguível, não conseguia percepcionar, nem ajuizar qual a proveniência dos disparos, era uma barafunda de silvos no espaço por cima da minha cabeça que me deixava baralhado. Os roncos dos rebentamentos são no ar, na frente, por trás e dos lados, isto é aterrorizador. Da nossa parte a reacção é nula, não se fazem sentir esboços de defesa!

Nisto ouço uma voz aflitiva e ofegante, minha conhecida, gritar:
- Os cabrões do caralho estão a atacar detrás das rochas!

Eu, hesitante e precavido, pensei logo:
- Sendo assim, tinham que matar as sentinelas dos postos de vigia, passar o arame farpado e colocaram-se atrás das rochas? Se isto foi possível, estamos perdidos, vai ser batalha campal!

Logo de seguida, ouço outra voz conhecida gritar apavoradamente:
- Os filhos da puta já andam cá dentro…

Eu, incrédulo e receoso, pensei:
- Isto está tudo numa mixórdia e eu não tenho arma para me defender, oh! Minha mãe como posso proteger a pele? Nisto avancei um pouco na vala, atónito, abandonado à intuição e à sorte, para ver se compreendia tamanha balbúrdia, para melhor me proteger e defender da embrulhada…

Em seguida, vejo a sair do seu abrigo, o 2.º Sargento Fernando dos Santos Rodrigues, com desembaraço, peito nu a descoberto, todo destemido, a gritar em altos berros:
- Despachem-se seus merdas, façam fogo, senão somos todos aqui apanhados à mão.

O Sargento Rodrigues correu para abrigo da metralhadora pesada, pegou nela e deslocou-a para cima do abrigo dos graduados onde a posicionou e começou a disparar na direcção da pista de aviação. Aparece também, creio ter sido, o Furriel Gil que andava meio empanado, dirigindo-se para o abrigo do morteiro 81 e começou a clamar por ajuda e a incentivar o pessoal que ocupassem outros abrigos de morteiro 81. (Nesta altura ainda não havia em Canjadude a Secção de Morteiros, que veio no ano de 1970, de uma Companhia de Nova Lamego, cujos elementos, Ferra, Viana… ainda que, na CCAÇ 5, houvesse Africanos muito bons a fazer fogo com os morteiros, neste momento estavam no mato.)

Passaram quatro ou cinco minutos desde o início do pandemónio, que mais pareciam uma eternidade, sem que houvesse grande reacção da nossa parte. Eu dirigi-me para o abrigo do morteiro 81 que estava instalado entre as traseiras da secretaria e o campo de futebol, com o intuito de poder ajudar em algo, tinha noções rudimentares de orientação de fogo e disparo do morteiro, embora não percebesse nada das inclinações precisas, que era necessário dar à arma para haver fogo de precisão ao alvo desejado. A minha acção limitou-se a abrir duas ou três caixas das munições do morteiro que estavam nas tocas laterais do abrigo.

Entretanto chegou pessoal que estava habilitado a fazer tiro de morteiro e eu saí dali, porque a minha presença até era perturbadora devido ao exíguo espaço que havia no abrigo do morteiro, além do incómodo para os ouvidos, provocado pelo rebentamento da carga, quando era percutida para dar impulso à munição do morteiro e se direccionar para o alvo pretendido. Da parte do IN, o fogo continuava a ser consistente, com rebentamentos impetuosos, intrincados com rastos de luz amarelada e sibilações indistintas, que rasgavam os céus em todas as direcções. Estava a apreensivo, pois estávamos muito acomodados e amontoados na mesma vala, alguns a fazer rajadas de G3 desordenadamente, sem direcção definida, um pouco ao acaso, que se podiam tornar perigosas para nós.

Passaram dez minutos, ou mais, desde o começo do ataque, quando se começaram a ouvir os disparos do morteiro 81 que estava na Tabanca, lado Sul/Poente. O morteiro da Tabanca foi aferindo e ajustando a eficiência dos seus disparos e a determinada altura as morteiradas começaram a cair no raio de perigosidade onde se instalara o IN. A partir daqui, o fogo IN abrandou e ao fim de aproximadamente meia hora, depois de ter começado a salganhada, o inimigo deixou Canjadude. A posição desta arma na Tabanca era privilegiada, porque tinha um ângulo de visão perfeito da localização onde o IN estava posicionado a fazer o ataque, distante do arame farpado 200 a 300 metros, colocado no limite da desarborização da berma paralela à pista de aviação. No Aquartelamento, para se ter um horizonte de perspectiva de ângulo eficaz para direccionar fogo para o IN, tínhamos que nos ter distribuído nas valas para o lado Norte, quando nós estávamos concentrados no lado oposto.

Estava consumado o meu baptismo de fogo! Felizmente sem ter havido um único ferido, resultado directo da acção inimiga. Prejuízos materiais, só a danificação do gerador, que não foi estrago de muita monta.

Ainda durante a enrascada já tinha ido para o Posto de Transmissões onde estavam em curso comunicações com o pessoal que estava no mato. Pelos relatos que houve, ficamos a saber que já depois de estarem instalados para pernoitar, se aperceberam de barulhos estranhos, não muito longe de onde estavam acampados, que estavam agora a associar que era o IN a deslocar-se para Canjadude. Nesta noite ninguém dormiu com receio de que o inimigo volta-se à carga.

A flagelação IN, excluindo a perturbação psicológica que nos marcou, saldou-se para eles num autêntico fiasco, ou o IN não tinha noção nenhuma da disposição do aquartelamento, ou confundiu as rochas com infra-estruturas deste, ou se não, foram nabos ao seleccionar o local de posicionamento para disparar as armas. Com este tipo de flagelo, Canjadude não podia ser atacado de Norte que tem as rochas a protegê-lo, a Sul tinha a Tabanca e muito arvoredo dentro desta, restam, Nascente do lado da bolanha, e Poente a posição mais vulnerável do Aquartelamento, porque fica todo sem protecção natural, expondo-se, todo à mira do fogo inimigo. Foi deste lado que atacaram, o mais indefeso, só que não souberam alinhar-se para que as estruturas do aquartelamento ficassem na trajectória dos disparos.

Se tivessem tido o cuidado de se deslocarem 50 metros mais a Norte, ficavam as linhas de fogo perpendiculares com a secretaria, a caserna, o refeitório, o depósito de géneros, o bar, a cozinha e os abrigos, e as primeiras roquetadas eram certinhas e podiam fazer muita mossa, pois estavam próximos do arame farpado. Devido à errada disposição, quase todo o fogo foi dirigido para as rochas, razão pela qual ficamos sem gerador de energia eléctrica, logo no início do ataque. O gerador estava protegido por uma rocha de frente, que por sua vez tinha atrás outra rocha mais alta onde rebentou uma roquetada, os estilhaços danificaram o gerador. Foi só o estrago material digno de registo que houve. No pessoal houve algumas escoriações, resultado de algum tombo nas deslocações nas valas, no escuro.

Vestígios da presença IN, além dos normais devido à utilização das armas de fogo, ficaram indícios de sangue em três ou quatro lados, que atestavam que pelo menos feridos tiveram.

A companhia regressou do mato dia 12 de Julho 1969. Com a protecção da CCAÇ 5 e a acção dos Pára-quedistas, foi desmantelado um acampamento IN, que antecipadamente foi abandonado. Deste feito, resultou a apreensão de bastantes munições, alguma roupa, pouco armamento e coisas de menor importância.

Para todos os camaradas, um abraço.
José Corceiro

Foto 1 > A minha cama no abrigo Norte, há prateleiras improvisadas onde guardava alguns livros, papeis, máquinas e rádio, sempre à mão. Este rádio que se vê, ainda hoje funciona

Foto 2 > Abrigo de protecção do gerador de energia. O IN atacou de frente, onde a mata começa, um pouco deslocado para o lado direito

Foto 3 > Rocha onde embateu a roquetada que danificou o gerador. Vê-se no lado direito os bidões que o protegiam. O primeiro abrigo que se vê, é o abrigo Norte; a seguir ao monte de terra é o abrigo do morteiro, abrigo do comando e a seguir abrigo dos graduados

Foto 4 > Um DO a levantar na pista de Canjadude. O IN atacou do lado direito

Foto 5 > Como era Canjadude quando houve o primeiro flagelo

Foto 6 > Vê-se o abrigo Norte. O fogo IN foi direccionado aqui para o primeiro plano da foto

Foto 7 > Corceiro a familiarizar-se com uma das armas que está na Tabanca, igual à que utilizou o Sargento Rodrigues no ataque, metralhadora Dreyse

Foto 8 > Corceiro no abrigo do morteiro 81 a simular a introdução de uma munição

Foto 9 > Corceiro com o morteiro 60, em posição de disparo

Foto 10 > Rocha em Canjadude, tendo no topo um posto de vigia. O acesso era feito pelas traseiras. Rocha com cerca de 15 metros de altura
Fotos e legendas: © José Corceiro (2010). Direitos reservados

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Nota de C.V:

Vd. último poste da série de 17 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5834: José Corceiro na CCAÇ 5 (4): Recordações do Sargento Enfermeiro Cipriano

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5262: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (16): O baptismo de fogo da Regina, ou um Capitão não é um Capitão

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 10 de Novembro de 2009:

Caro Carlos:
Mais uma estória para a série A Guerra Vista de Bafatá. Parece grande mas é por causa das fotos. Se a publicares, agradecia que mantivesses a sequência texto/fotos, pois está tudo interligado. As fotos só terão sentido dessa maneira.

Ainda outro assunto: Tenho reparado que algumas frases que tenho mandado em itálico não aparecem postadas dessa maneira. Penso que isso terá mais a ver com a NET e que não chegará aí o dito itálico. Se me pudesses dizer algo sobre isso muito agradecia, pois nesta estória a parte em itálico das legendas reporta-se à correspondente parte do texto.

Desde já agradeço.

Um abraço.
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

15 – O meu (dela) baptismo de fogo, ou um Capitão não é um Capitão

Duas notas prévias:

1 - Esta estória, como sempre autêntica, é toda da minha inteira responsabilidade, apenas coloco a narrativa na voz da minha mulher, por ter sido por ela vivida. Só lamento não ser ela própria a contá-la pois imprimir-lhe-ia uma melhor qualidade e sobretudo uma sensibilidade que eu não conseguirei exteriorizar.

2 - Os versos incluídos são de Sérgio Godinho, da faixa Fotos do Fogo do CD Tinta Permanente.



Nos anos sessenta não havia a liberdade de que agora usufruímos. Recordo, como exemplo, que quando era professora em Braga para adquirir certas revistas, consideradas de esquerda, como os Cadernos Gedoc e a Seara Nova, ia ter com um livreiro meu conhecido que mas entregava já devidamente embrulhadas e fora das vistas dos demais clientes.

Toda essa falta de liberdade trazia como consequência que as notícias relevantes, ou não chegavam a ver a luz do dia, ou eram deturpadas pelos homenzinhos do lápis azul. Quero com isto dizer, que qualquer notícia menos favorável ao regime vigente e oriunda da Guiné, e não só, vinha sempre por caminhos enviesados, logo, tanto podia ser mais ou menos verdadeira, como redondamente falsa.

Um dia, de 1969, com o meu marido na guerra, na Guiné, chegou-me aos ouvidos, por intermédio de uma amiga em quem depositava bastante confiança, que a Província tinha sido tomada pelos guerrilheiros nacionalistas. Penso que nessa altura seria o culminar de outras notícias, em surdina, referindo alguns reveses das nossas tropas (dezenas de mortos no Ché Che, etc.) em contraponto com a habitual falta de informação estatal sobre a verdadeira situação.

Coincidência das coincidências: Já há alguns dias que não recebia os habituais aerogramas do Fernando, meu marido, e cúmulo dos cúmulos, telefonando de imediato para o Comando de Agrupamento, onde ele se encontrava, uma telefonista (pois nessa altura as ligações passavam por várias), disse-me que de momento não era possível estabelecer a ligação com a Guiné pois havia um corte nas comunicações. Pânico, desespero, raiva… entorpecimento. Penso que passei por todos os estados de alma possíveis.

Com uma troca de telegramas tudo se esclareceu. Tinha havido apenas uma avaria nas comunicações.

Foi um pouco debaixo desta tensão que fui duas vezes à Guiné passar umas temporadas com o Fernando.

Da primeira, fui passar as minhas férias de Agosto e Setembro. O Fernando estava em Bissau à minha espera e acabámos por ficar instalados em casa duns amigos, a família Taveira, situada junto ao Estádio de Futebol, não longe do bairro do Pilão.

Por volta da uma da manhã estávamos já no primeiro sono quando fomos acordados, ao que pensei, por três ou quatro fortes rebentamentos ali muito perto. Sentados na cama não ouvimos mais qualquer ruído estranho e nem dentro de casa os nossos anfitriões deram sinais de si. Estranho… Ainda pensei que seria o meu baptismo de fogo, como na tropa se dizia.

Logo o Fernando me foi dizendo que deviam ser os obuses a fazer tiro para o outro lado do rio Geba, para a zona de Tite. Como já me tinha falado nos obuses de Piche que até se ouviam em Bafatá, fiquei mais calma. Soube depois que me dera aquela explicação para me acalmar pois acreditava serem rebentamentos na cidade, a primeira flagelação a Bissau. Também depois me disse que não ficou preocupado connosco pois achava que a tropa toda que estava na zona de Bissau resolveria a situação. Assim eu, na ignorância, e ele com mais de um ano de Guiné adormecemos novamente.

Na manhã do dia seguinte perguntamos ao senhor Taveira, que já tinha saído à rua, se sabia o que tinha acontecido. Resposta breve:

- Já não é a primeira vez que os Fuzileiros vêm fazer desacatos no bairro do Pilão e desta vez rebentaram lá umas granadas…

Mais tarde, em Bafatá, viemos a saber que o Geneneral Spínola mandou esses Fuzileiros para uma operação de oito dias na ilha de Como.

Destas estadias na Guiné já dei conta em estórias anteriores. Vivi lá momentos inolvidáveis. A África, sempre a África, os odores tão característicos, o vermelho da terra de tom tão singular, a pureza das gentes, o olhar e o sorriso das crianças, o colorido das vestes, o verde das matas, os pescadores nas suas canoas, o transbordar dos rios na época das chuvas, as tempestades diárias mas belas com o seu relampejar ao longe.

Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira

A guerra deu na tv
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p’ra mim o cheiro aceso
dos sítios tão remotos
e de corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso

………..
………..

Foto 1 > O vermelho da terra de tom tão singular. Na tabanca da Rocha em frente à minha casa. Atrás de mim era a casa do Cap. protagonista desta estória.

Foto 2 > A pureza das gentes. Tabanca da Rocha (foi a partir deste momento que ficámos a saber, eu e o Fernando, que os bebés africanos nasciam completamente brancos e só depois iam escurecendo.

Foto 3 > O olhar e o sorriso das crianças. Na tabanca da Rocha em Bafatá.

Foto 4 > O colorido das vestes. No Mercado de Bafatá.

Foto 5 > O verde das matas. Algures entre Bafatá e Candemba Uri.

Foto 6 > Os pescadores nas suas canoas. No rio Geba em Bafatá.

Foto 7 > O transbordar dos rios na época das chuvas. Na ponte do rio Colufe com a água a chegar aos meus pés.

Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.


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O meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terremotos
costumam desfocar as formas

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Álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas


Na segunda ida à Guiné fui passar as férias de Natal de 1969. Mais uma vez fiz escala na ilha do Sal em Cabo Verde e mais uma vez tive aquela sensação estranha ao sair do avião: A terrível humidade, que trespassando a roupa tornava todo o corpo pegajoso. O Fernando já me tinha marcado um lugar no Dakota desse dia pelo que, e já não sendo periquita, iria sozinha ter com ele a Bafatá. Quando já estava a entrar para o avião, aparece um oficial de patente algo elevada, que em atitude nada elevada foi dizendo que eu não podia embarcar pois ele e a esposa, mesmo sem marcação, tinham que ir sem falta.

Mais tarde vim a saber que era o actual Comandante do meu marido, Coronel Neves Cardoso. Telefonei ao Fernando, tendo ele vindo nesse mesmo Dakota ter comigo. No mesmo dia fomos para Bafatá, penso que num quadrimotor Eron, civil.

Chegados lá à tarde, o Fernando foi trabalhar para o Agrupamento e eu fiquei a rever o que foi a nossa primeira casa. Parte da tarde passei-a à conversa com as crianças já minhas conhecidas, o Carlos o Adrião e a Angelina e entreguei-lhes os presentes que trouxera.

Perto da nossa casa, na tabanca da Rocha morava agora um casal, um Capitão e a esposa. Esse Capitão estava lá há pouco tempo pois em Setembro não o tinha visto por lá. Numa atitude simpática convidaram-nos para jantar com eles essa noite.

Como o Fernando trabalhava todos os dias até às oito da noite fui mais cedo para a casa do senhor Capitão.

Seriam umas sete e meia quando se começaram a ouvir rebentamentos. O Capitão foi à rua e logo tornou a entrar dizendo que pelo som das explosões e porque se viam os rastos das granadas e dos projecteis tracejantes, estariam a atacar Bafatá. Disse que se ia a apresentar no quartel e que nós as duas fechássemos tudo e nos agachássemos junto de uma parede mestra.

Ali estava eu agora, com o meu baptismo de fogo. Desta vez era a sério. Um Capitão é um Capitão. Era pois um ataque e o Fernando não estava ali. Em nossa casa ele tinha um pequeno arsenal, para uma possível defesa, ali só uma parede mestra…

Às oito aparece o Fernando, nas calmas, pois tinha trabalhado até essa hora, pôs-nos à vontade e foi-nos dizendo que não tinha sido nenhum ataque a Bafatá mas sim ao aquartelamento da tabanca de Geba, distante uns dez quilómetros. O meu marido já tinha assistido a vários.

Para a semana, por falar em Geba e outra vez na primeira pessoa, vou contar a minha ida lá, propositadamente para olhar na cara o que achava que seria um nazi fugido depois da segunda guerra mundial. Poder-me-ia ter saído muito caro….

Até para a semana camaradas.
Fernando Gouveia
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5232: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (15): Uma estória de faca e alguidar

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4132: Efemérides (19): O ataque a Mansoa, no dia das mentiras, 1 de Abril de 1971 (Germano Santos)

1. Mensagem do Germano Santos, com data de 1 de Abril. O Germano foi 1º Cabo Operador Cripto, CCaç 3305/ BCaç 3832, Mansoa, 1971/73 (*).

Boa tarde a todos,

No "nosso tempo" o dia 1 de Abril era o dia das mentiras, não sei se ainda hoje assim continua, mas também, e para o caso, pouco importa.

Venho só lembrar o pessoal do Batalhão de Caçadores 3832 que faz hoje exactamente 38 anos que sofremos o nosso primeiro ataque.

Não terá sido todo o Batalhão, mas o pessoal em Mansoa sofreu neste dia o seu baptismo de fogo e que fogo, camaradas!

Eu, por exemplo, estive a vê-lo, durante largos minutos, metido num buraco (uma vala) em frente ao posto dos correios em Mansoa, na rua principal.

Dentro da vala, cheio de m..., de barriga para cima a apreciar os very-lights e a ouvir os sons das morteiradas e das costureirinhas.

Um espectáculo, gratuito e, felizmente, sem consequências para o pessoal.

Recordar ainda é viver.

Um abraço para todos.
Germano Santos
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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 11 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1835: Tabanca Grande (10): Germano Santos, ex-1º Cabo Op Cripto, CCAÇ 3305 / BCAÇ 3832, Mansoa, 1971/73

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3511: O meu baptismo de fogo (23): Uma vacina para o enjoo... (António Paiva)

1. Primeira colaboração, para o nosso Blogue, de António Paiva (*), ex-Sold Cond no HM 241 de Bissau, 1968/70, enviada no dia 22 de Novembro de 2008. 

 Inserimos este baptismo que foi não de fogo real, mas um baptismo com contornos quiçá mais violentos, naquela casa de horrores que era o HM 241. Não devia ser fácil ser condutor de ambulância. CV 

  O meu Batismo ou vacina para o enjôo 


 Dia 9 de Junho de 1968, pelas 7 ou 8 horas da manhã chego à Guiné a bordo de um 707 da TAP. Daqui me levou para um mundo desconhecido, com destino ao Hospital de Bissau. Posso dizer que parti com um pouco mais de alegria do que muitos, porque ia dentro de mim a convicção de que voltava. 

 Nesse voo com 181 militares, três iam destinados ao HM 241. Da parte da tarde os outros foram chamados para serem levados ao seu destino. Não tendo eu sido chamado, fui perguntar ao sargento a causa. Prontamente me respondeu: 

- Tu ficas. Chegaste adiantado mais de um mês, talvez vás para o mato substituir um condutor que morreu. 

- Estou lixado, vou para o lugar do morto. 

 Devem imaginar o que senti e o que pensei. Passei a noite nos Adidos, deitado no chão, agarrado às coisas que levei comigo e com toda a roupinha no corpo. Fui um petisco para os mosquitos, que não me largaram toda a noite. 

De manhã, não sei se me levantei ou se já estava em pé, podia ir à cidade. Pelas 10 horas lá fui eu numa boleia. Chegado a Bissau fiquei só, não sabia para que lado me virar, mas fui andando por ali de rua em rua vendo o que ia ter durante os 24meses seguintes. Almocei no Hotel Portugal. 

 Em voltas e reviravoltas voltei a apanhar boleia e regressei aos Adidos pelas l6 horas, sendo informado de que o sargento tinha andado à minha procura. Fui ter com ele que estava de mau humor e que mandou levarem-me ao Hospital. Cheguei pelas 17 horas e perguntei onde me devia dirigir. Indicaram-me a Formação, depois daí a caserna onde encontrei cama e armário para mim. Assentei praça no mundo das agonias 

 Depois de tudo arrumado no seu lugar, porque os mosquitos se tinham requintado comigo na noite anterior, dirigi-me ao Posto de Socorros a ver o que me dariam para alívio das borbulhas e comichões. Entro e, para principio, não estava mau. Do lado esquerdo estava uma maca tapada e ao centro um ferido a ser assistido pelo enfermeiro de serviço. Ficámo-nos a conhecer e eu disse-lhe ao que ia. Indicou-me que o álcool era o melhor, fez-me um favor, mas tive de lhe pagar com outro. Pediu-me que visse o número que tinha o morto, a etiqueta estava no pé, daquele lado, indicou-me com o dedo. Parte de fraco não quis dar, fui, o lado era o outro, tremi de alto a baixo, serrei os dentes, os olhos fecharam-se ao encontro da escuridão e o estômago comprimiu-se, tentando expelir o que continha. 

 Foi a vacina contra o enjoo, podia ter sido mais suave, mandam as regras que... primeiro se esfrega o local suavemente com álcool ou éter e depois se espeta. Mas será que a GUERRA tem regras? Claro que não! Ela é selvagem, desumana e destruidora, pondo aos nossos olhos a miséria causada pelo seu resultado. Era triste e horrendo o que por ali se via, mas a minha missão ia ser longa e a vacina, algumas semanas depois a retardador, ia produzir o seu efeito. Se ia ser o prato de todos os dias, valia mais passar fome. 

 Um abraço a todos António Paiva
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quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3411: O meu baptismo de fogo (22): A minha primeira vez... (Vitor Junqueira)

1. Mensagem do nosso camarada Vitor Junqueira (1), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 - Os Barões - Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, com data de 4 de Novembro de 2008, contando-nos como foi, nas suas palavras, a sua primeira vez e nas nossas o seu baptismo de fogo (2).

Amigo Carlos,
O texto que se segue, vem um pouco fora de tempo. Estive tentado a nem sequer te pedir a sua publicação depois de saber que na caixa do correio existem milhares de e-mails a aguardar escrutínio. No entanto, como eu acho que não devemos coibir-nos de dar a nossa versão dos acontecimentos quando tal nos é pedido, acabei por decidir deixar ao teu critério o destino a dar ao escrito.
Obrigado pela tua atenção,
VJ

A minha primeira vez …

Há algum tempo que venho tentando corresponder ao desafio que nos foi feito para que reportássemos para o blog, aquela experiência que deveria ser inolvidável: A nossa primeira vez! Pois, queridos camaradas, não sei se por culpa do Dr. Alzheimer ou, por o acontecimento não ter deixado marcas, não possuo qualquer recordação de como a coisa se passou. Sei que terá ocorrido algures na mata do Oio, mais precisamente no triângulo Mansabá, Olossato, Farim, por volta de Novembro ou Dezembro de 1970 – eu até podia ir pesquisar alguns dados aos meus papéis, mas acho que não vale a pena –, encontrando-se a minha guerra, empenhada numa segurança afastada aos trabalhos de reabertura da auto-via Mansabá – Farim. Estávamos na altura acampados nuns escafundós de Judas chamado Bironque, de onde partia diariamente uma expedição com o propósito de retribuir gentilezas com que éramos mimados, diariamente, pelo IN. Aqueles contactos decorriam quase sempre da mesma, pelo que, por mais que puxe pelo bestunto, não consigo recordar-me do primeiro.

Mas recordo como se tivesse acontecido ontem, um episódio em que pela primeira vez senti os ditos realmente entalados e, aquela sensação de arrepio gelado a trepar pelo espinhaço acima. Na mesma região, no mesmo contexto e na mesma época. Se me permitem, vou partilhá-lo convosco, estando certo de que alguns camaradas reviverão também situações idênticas, das quais saímos convencidos de que o Senhor Santo Cristo dos (meus camaradas) Açorianos, para outros o Altíssimo, se não fez fogo ao nosso lado, pelo menos orientou os trabalhos.

Província da Guiné, mostra a zona designada pelo Vitor Junqueira como triângulo Mansabá, Olossato, Farim na problemática região do Óio. O rectângulo encarnado assinala o Bironque onde se encontrava o Destacamento provisório de apoio à construção do troço de estrada Bironque-Farim.

Foto 2 > Destacamento do Bironque, inaugurado pela CART 2732, destinada à protecção das máquinas da Engenharia, utilizadas na construção da estrada.

Foto 3 > Troço novo da estrada Mansabá-Farim.

Fotos: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.


Sempre ouvi dizer que na tropa, voluntário, nem para cima da filha do comandante! E que a melhor atitude era não fazer ondas, porque quando o mar fica agitado, quem se lixa – com éfe – é o mexilhão. Pois, com este manancial de sabedoria, caí na esparrela e fiz-me notar através de uns bitates que mandei em frente a uma certa individualidade que os terá registado. A factura surgiu na volta do correio, a liquidar em suaves prestações, geralmente semanais, até ao final da comissão.

Eis a primeira tranche: Um belo dia, fui abordado pelo senhor CMDT do Cop 6, major Moura (?), que me propôs uma diligência no sentido desalojar uma guarnição do In que durante meses insistira em perturbar o bom andamento da obra, atacando a frente de trabalhos. Terminados estes, ou em vias de conclusão, a malta do PAIGC tinha agora o desplante de se passear na nossa estrada, novinha em folha, como se aquilo fosse o da Joana. Inaceitável!

Num mapa, mostrou-me a localização do objectivo, os itinerários possíveis – quanto a isso também não havia grande escolha –, transmitiu-me as informações que possuía acerca da composição daquela força (1 bigrupo + 1 secção de sapadores) e… desejou-me boa sorte! Certamente por lapso ou puro esquecimento, não mencionou o facto de àquela data haverem já sido feitas três tentativas para espatifar a barraca aos homens. Todas sem sucesso e, como vim a saber mais tarde, a nossa malta trouxe o que contar dessas incursões. Numa delas participou o CMDT Jorge Picado que a narra num delicioso relato, publicado há meses no blog.

No dia D, alta madrugada, uma vez apeados das viaturas, lá seguimos aos encontrões e apalpadelas, caminhando pela berma com a discrição possível ao longo de, talvez dois quilómetros, no sentido Farim – Mansabá. Em breve nos embrenhámos na faixa de terreno arroteado pelas caterpillars, que corria paralela à estrada, em cujo limite e sem grande dificuldade encontrámos a boca do carreiro que nos havia de conduzir ao objectivo, uma tabanca com o piedoso nome de Fátima, tal como o da filha do Profeta e da localidade mais milagreira de Portugal, situada aqui bem perto do sítio onde moro. Já no coração da mata, abandonámo-lo com receio de que estivesse minado ou armadilhado.

Progressão penosa, lenta, sem outro meio de orientação que não fosse uma bússola e o tino do pica titular, o Cunha de Santa Cruz da Graciosa que, com a vareta sob o sovaco, nos abria caminho tentando desembaraçar-se das lianas. Certo é que, ao clarear, sentimos o cheiro de presença humana pelo que concluímos estar muito próximo do objectivo e da bernarda. A cabeça da coluna estacou na orla da mata que bordejava uma zona quadrangular, limpa, onde tinham sido poupadas apenas as grandes árvores. Fez-se uma curta pausa para retirar as remelas mais persistentes e, com mil olhos, perscrutar cuidadosamente o extenso campo visual que se apresentava pela frente. Não vislumbrámos indícios de qualquer construção, não se via gente nem se ouvia o canto alegre do galo madrugador ou o tan-tan ritmado do pilão. Nada, apenas aquele silêncio sinistro, prenúncio de coisas más. Até os pássaros pareciam estar feitos com o IN, espiando-nos sem soltar um pio.

De repente, fazem-me sinal apontando na direcção de um combatente armado que, à distância, entra na clareira acompanhado por uma mulher. O par está bastante longe, oitenta metros aproximadamente. Naquela altura já não existiam quaisquer dúvidas de que a nossa presença era conhecida. Perdido por um, perdido por mil… o Francisco de Assis de Angra, vira para lá o canudo do LG de 6cm (eles juram que fui eu, mas não me lembro!) e com um único tiro, o combatente interrompe a caminhada. Com a perna esquerda amputada pelo joelho, o homem cai e a mulher segue o seu destino em passo acelerado. Aproximamo-nos avançando pelo lado direito da clareira, no sentido da progressão, ao longo da linha de separação com a mata, contando com a protecção da floresta, ou assim pensávamos. Uma secção da qual faz parte o maqueiro Leonel Melo, desloca-se rapidamente para o local onde se encontra o ferido. Porém, assim que entra em campo aberto é recebida por uma saraivada de tiros e bazucadas que parecem chover de todos os lados.

Vamos tentando dar alguma cobertura à equipe sanitária, fazendo tiro de morteiro para a orla oposta, poupando ao máximo as preciosas munições. Ao abrigo de enormes baga-baga e dos troncos de imponentes árvores, o cabo Melo lá consegue pôr um soro a correr e administrar alguma morfina, enquanto o transmita Osvaldo, por alcunha o Fafe, tentava contactar Bissalanca a fim de evacuar o soldado do PAIGC. Se até então, nunca tínhamos deixado um ferido abandonado não era altura para abrir excepções e por isso, a decisão rápida embora discutível foi, aguentar até à chegada do meio de salvamento.

Decisão errada! Em breve percebemos que a tropa com quem estamos metidos, se movimentara de forma a encurralar-nos. Ouvíamo-los nas nossas costas, na tal mancha de floresta que supostamente nos poderia proporcionar alguma protecção, estavam do outro lado da clareira, da rectaguarda chegava a informação de que a cauda da coluna tinha a retirada cortada enquanto da frente rebentava nos entrementes um fogachal que só visto. Sim senhor, lindo serviço, pensámos todos. Pois bem, como se costuma dizer, a gente dança conforme a música!

Dado que intuí que esta operação ia cheirar ao esturro, preparei na véspera com os elementos de que dispunha, um cuidadoso plano de fogo de apoio. Numa saltada a Farim, fui entregá-lo ao camarada Moreira, senhor de três magníficas peças de 14cm, pedindo-lhe que se mantivesse por perto para o caso de.

Agora era altura de colher alguns frutos da diligência efectuada. Foi dada ordem geral para abrigar, e ao Moreira foram solicitados os tiros, tal e tal e tal. Daí por uns segundos que pareceram minutos, ouvíamos as saídas e uma onda de conforto envolveu-nos a alma. Não tardou, primeiro o silvo das brutas por cima das nossas cabeças e logo a seguir, um estrondo tão grande capaz de acagaçar o mais afoito. Devido aos clarões, o céu ficou cor de laranja e pelo ar voaram chispas de aço incandescente, toneladas de pó, folhagem, ramos arrancados às árvores e o intenso odor característico da combustão de explosivos, criaram um cenário próprio do reino de Lucífer. Aquilo, sim, parecia a guerra. Mas os sacanas já deviam estar habituados à fruta, e não se deixaram intimidar. Ó Moreira, manda lá mais três ameixas para os pontos X, Y e Z. Despachadas as bojardas, vemo-las aterrar ainda mais próximo de nós, na margem oposta da clareira. O camarada artilheiro apanhou-lhe o gosto e continuámos naquilo até limpar esse lado da arena.

Para lá deslocámos metade da nossa força, assumindo o controle de uma zona anteriormente ocupada pelos malandros. A situação melhorou bastante em termos de segurança, o que vinha mesmo a calhar dado que, pelo transmita ficámos a saber que os Helis haviam descolado e deviam estar a chegar. Por precaução suspendeu-se a guerra, e de novo um silêncio pesado se abateu sobre nós acompanhando aquele falso sentimento de paz que se segue a cada escaramuça. Estava no papo! Santa ingenuidade, mais um engano!

Mal chega e helicanhão, faz duas passagens à nossa vertical e logo se ouve o matraquear lento de uma metralhadora pesada tentando derrubá-lo. Só então percebemos que ali mesmo na nossa frente, a escassas dezenas de metros e encoberto por um pequeno declive do terreno, estava o verdadeiro ninho da cobra. O In tinha estado a jogar apenas com reservas, a sua milícia. O heli-maca mal contacta o solo e já os enfermeiros pára-quedistas se despacham a recolher o sinistrado. Partem levando consigo o lobo mau que nos informa … estou a ser batido, tenho de retirar.

E adeus, boa tarde! Ficámos novamente no mato sem cão. Com as precauções habituais e muitas outras motivadas pelo aperto do buraco ao fundo das costas onde certamente não caberia um chícharo, retomámos a progressão, agora a duas colunas e com flancos limpos pela artilharia(*). Percorridos meia dúzia de passos, estaríamos a menos de cinquenta metros do objectivo ou seja, do grupo de moranças ocupadas pelos militares, pois as outras habitadas pela população civil ficavam um pouco mais afastadas, quando uma violenta tempestade de chumbo e aço nos fez amochar. Amochar, aguentar, levantar, mais uns passos e nova cambalhota forçada. Foram os cinquenta metros mais duros que tive de percorrer em África. A cena repetiu-se várias vezes até que, passo a passo, nos fomos aproximando, valendo-nos os seis morteiretes que nos acompanhavam sempre e a perícia dos apontadores dessa arma que não me canso de encomiar, o precioso dilagrama.

Confrontando-se mais com uma inesperada teimosia da nossa parte do que com arte guerreira que certamente não possuíamos, o tal bi-grupo e mais as suas milícias retiraram quando acharam que era oportuno, com prováveis perdas, bastantes, atrevo-me a dizer fazendo fé nos vestígios, deixando para trás algum material, sobretudo muitas munições que foram destruídas in loco, dado não possuirmos meios de evacuação. Foi abatido gado, fizeram-se estragos numa plantação de milho e as construções reduzidas a cinzas como recomendavam as NEPS. Espaldões de morteiro, ninhos de metralhadora e uma trincheira que circundava todo o perímetro da tabanca-quartel lá ficaram à espera de ser reocupados. A população civil não foi incomodada e também não nos causou qualquer problema.

E foi assim, até à semana seguinte …

(*) O êxito alcançado com esta operação só foi possível graças à excelente e nem sempre devidamente valorizada colaboração dos nossos camaradas artilheiros. Em outras que se seguiram e até onde o seu braço chegou, nunca a minha companhia deixou algo por fazer. A todos eles, um serôdio abraço de gratidão.

E para todos os Tertulianos, abraços também.
VJ
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Notas de CV

(1) Vd. último poste de Vitor Junqueira de 23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2979: Exercício do meu direito à indignação (1): Simplesmente obnóxio, senhor anónimo (Vitor Junqueira)

(2) Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3381: O meu baptismo de fogo (21): 6 de Outubro de 1970, o primeiro contacto com a realidade das minas (Carlos Vinhal)

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3381: O meu baptismo de fogo (21): 6 de Outubro de 1970, o primeiro contacto com a realidade das minas (Carlos Vinhal)

Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art.ª MA, CART 2732, Mansabá, 1970/72

Como tinha prometido, venho falar da minha outra experiência de baptismo de fogo (*).

O meu (segundo) baptismo de fogo

6 de Outubro de 1970

O Aquartelamento tinha sido atacado na noite de 5 de Outubro.

De manhã cedo havia que fazer o reconhecimento da zona envolvente, pois o IN esteve muito próximo e normalmente deixava pistas que de alguma forma serviam para recolher ensinamentos para o futuro. Além de tudo, por vezes, antes de retirar, o IN deixava armadilhas nos itinerários utilizados por nós e pela população. Esta acção competia ao Pelotão de Piquete.

Estava de Piquete o Pelotão do alferes Couto, que como eu, tinha o curso de Minas e Armadilhas.

Em virtude das vicissitudes do ataque, o Alferes Couto ter-se-á deitado muito tarde e descansado pouco. Manhã cedo saiu com o seu pelotão para o mato, apoiado pelo meu, o 3.º, comandado pelo Alferes Bento, para proceder ao devido reconhecimento.

Estando eu na altura impedido na Secretaria do Comando, não tinha actividade operacional. Não tenho a certeza, mas julgo que o alferes Couto tinha já alguma experiência na neutralização de minas, mercê da sua actividade operacional. O certo é que passado pouco tempo após a saída dos pelotões, ouviu-se um estrondo e quase de seguida, via rádio, foi pedida evacuação de um ferido e um morto, vítimas da explosão de uma mina antipessoal. Saíram imediatamente algumas viaturas para trazerem os sinistrados.

Quando regressaram, traziam o Alferes Couto já cadáver e o Alferes Bento com alguns ferimentos, pouco graves felizmente, vítima da mesma explosão (**).

Segundo a versão que correu posteriormente, o malogrado Alferes Couto, tinha já recuperado uma mina AP e porque tivesse encontrado alguma dificuldade em desarmá-la, chamou, para o ajudar, o alferes Bento. A detonação deu-se quando este ainda se dirigia para ele.

Acresce que por ordem hierárquica, na CART 2732, a cadeia dos operacionais na área das Minas e Armadilhas eram, o Alferes Couto por ser oficial, eu a seguir e por último o Sousa que tinha nota de curso inferior à minha.

Recolhidos os feridos e os restos do cadáver, havia que voltar ao local do incidente para continuar a neutralizar as outras minas detectadas. Claro que fui logo chamado pelo Comandante de Companhia para substituir o falecido e, mesmo com a farda n.º 2 fui ao mato acabar o trabalho.

Terá sido uma mina como esta, TMD-6, que vitimou o Alf Mil José Armando Santos do Couto em 6 de Outubro de 1970, primeira baixa da CART 2732 em combate.

Foto de David Guimarães © (2008). Direitos reservados.
Editada por CV


Mansabá, 11 de Outubro de 1970 > Cerimónia de homenagem ao malogrado Alf Mil Couto, falecido no dia 6. Na foto o 3.º Pel/CART 2732 a desfilar. Na frente o Cabo Corneteiro Oliveira Barge, seguido dos Furs Mil Nunes, Vinhal e do restante pelotão.

Chegado ao local fatídico, estavam assinaladas mais duas minas antipessoais guardadas por alguns militares com a cara mais assustada e preocupada que jamais tinha visto. Ao verem-me, traumatizados como estavam com a morte do seu alferes, desejaram-me as maiores felicidades e sorte do Mundo.

As minas levantadas davam prémio pecuniário a quem as detectasse desde que fossem levantadas, mas como o dinheiro não é mais importante que o risco de vida, eu tinha prometido a mim mesmo que jamais tentaria levantar alguma mina antipessoal. Depois do acontecido, mais convencido fiquei de que tinha a razão pelo meu lado.

Assim, comecei por juntar às minas detectadas, uns petardos de TNT, que iriam ser rebentados por detonadores pirotécnicos alimentados por cordão lento. Este cordão ardia à velocidade de 1 centímetro por segundo, ao contrário do rápido, cuja velocidade era de 1 metro por segundo. Normalmente fazia um chicote com cerca de 20 centímetros, para ter tempo de estender a manta e esparar calmamente deitado pela detonação.

Claro que isto exigiu que eu andasse por ali às voltas. Examinei tanto quanto pude o terreno por onde iria correr para me proteger enquanto o cordão ardesse e quando aquilo tudo rebentasse. Pus o pessoal em bom recato, peguei fogo ao rastilho e abriguei-me finalmente, esperando pela explosão.

Quando esta aconteceu, fui ao local ver os estragos e deparei que, em vez de duas crateras correspondentes às duas minas detectadas, tinha três. Na realidade não havia duas, mas sim três minas, sendo que a terceira não descoberta rebentou por simpatia e eu não a tinha pisado antes por mero acaso e sorte.

Quando regressei ao aquartelamento vinha tenso. Pudera, tinha sido o meu primeiro trabalho a sério e fi-lo logo a seguir a uma morte violenta. E o dia podia ter-me saído caro também.

A partir deste dia passei a ter actividade operacional. O Alferes Bento estava internado no HM 241 e, se a memória não me falha, o furriel Correia estava de férias na Metrópole, estando o Pelotão entregue só ao Furriel Nunes. Nunca deixei, no entanto de colaborar na Secretaria, mantendo a gerência dos bares como anteriormente. Além disto fiquei com a responsabilidade das actividades relacionadas com as Minas e Armadilhas na Companhia, coadjuvado pelo meu camarada Furriel Rui Sousa.

Bironque, 3 de Dezembro de 1971 > Fruto do trabalho de equipa. Os picadores detectaram esta TM46 e os técnicos, Vinhal e Rui Sousa, levantaram. Pela foto se nota que mais uma vez fui chamado de emergência ao mato, pois estou vestido com a farda n.º 2, divisas e tudo.

Mantida, 11 de Janeiro de 1972 > Levantamento de uma mina AUPS aquando da neutralizaçâo de todos os campos de minas implantados, à responsabilidade da CART 2732. Esta acção coincidiu com o fim de Comissão da CART.
OBS:-Não é pose. A foto é um instantâneo verdadeiro


Foto e legendas de Carlos Vinhal © (2008). Direitos reservados.

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Nota de CV

(*) Vd. postes de

29 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3378: O meu baptismo de fogo (20): Galo Corubal, em data incerta (Torcato Mendonça, CART 2339, Mansambo, 1968/69)

11 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3293: O meu baptismo de fogo (7): Mansabá, 21 de Abril de 1970 (Carlos Vinhal)

(**) Vd. poste de 18 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P968: A morte do Alf Couto, de minas e armadilhas, CART 2732, Mansabá, Outubro de 1970 (Carlos Vinhal)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3378: O meu baptismo de fogo (20): Galo Corubal, em data incerta (Torcato Mendonça, CART 2339, Mansambo, 1968/69)

O meu baptismo de fogo
Torcato Mendonça
ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo > 1968/69.



Tenho tentado recordar, quando, como e onde foi o meu baptismo de fogo.
A memória, tão pronta de outras vezes, nada me diz agora. Atraiçoa-me.

Leve, levemente, recordo, sem uma certeza ter sido logo na primeira Operação a solo, num dia de Carnaval. Se foi aí tratou-se de um assalto e destruição do acampamento inimigo do Galo Corubal.

Ou teria sido antes com algumas flagelações para os lados do Enxalé? Mas quando e onde foi ao certo? Não tenho a certeza, quando me vi debaixo de fogo.

Atrevo-me até a fazer uma certa analogia com a perda da virgindade, ou quase. Ou é logo trabalho completo ou pode ir aos poucos. Devagarinho, quase a perdê-la hoje, mais ou menos amanhã, um dia acontece e tudo estremece.

Salvo, as devidas comparações parece-me ter sido no Galo Corubal, o baptismo de fogo claro. A analogia atrás citada é problema íntimo…

Podia perguntar aos camaradas do Grupo ou da Companhia. Quase de certeza que foi no assalto ao Galo Corubal. Eu conto:

Avançamos devagar, devagarinho, o meu Grupo a fazer o assalto, os outros três a protegerem. Entrámos na mata, guia a indicar o trilho e, de repente, uma sentinela inimiga, sentada num palanque em cima de uma árvore detectou-nos. Lançou uma granada, felizmente não chegou ao destino, tudo estremeceu e seguiu-se o tiroteio breve e fraco. Esperámos um pouco e mandaram-nos regressar.

Pouco depois aí estavam os T6 e avançámos novamente. Claro que o INpôs-se a milhas. Revistámos rapidamente as “palhotas” e puxámos fogo a tudo o que poderia arder.
Decorreu tudo bem e fez-se a festa do baptizado. Se foi aqui…

Passado pouco tempo caímos em emboscadas, ataques ao aquartelamento e por vezes, a rotina levava a deixar andar.

De outras vezes, cuidado pois eram violentas demais. Os internacionalistas cubanos, davam uma ajuda aos libertadores da pátria e aí estava um arraial dos diabos.
Quantas horas debaixo de fogo? Não sei. Certo é que não me lembro do local do baptismo, digamos que foi no Galo Corubal num dia de Carnaval…

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Notas de vb:

artigos da série em 28 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3377: O meu baptismo de fogo (19): Como, porquê e não só (Belarmino Sardinha)