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quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12319: Manuscrito(s) (Luís Graça) (13): Três histórias ganguelas, três pérolas da sabedoria angolana... E onde se fala da atualidade dos Baratas, dos Cavetos e dos Heróis

1. Da Ilha de Luanda, com um Alfa Bravo fraterno para os nossos amigos e camaradas da Guiné que nos leem...

Como aqui  não há muito tempo para escrever para o blogue e a rede sem fios nem sempre é muito fiável, deixo-vos um texto que vou utilizar hoje, de manhã,  nas minhas aulas, sobre psicossociologia do trabalho e das organizações, no âmbito no 1º Curso de Especialização em Medicina do Trabalho, a decorrer em Angola (2013/15), na Clínica da Sagrada Esperança, Ilha de Luanda, Luanda, Angola...(E, a  propósito, sinal de como este país mexe é a quantidade de formadores, tugas e de formandos, angolanos, que estão aqui, esta semana... Gente da clínica e  fora da clínica, que pertence à Endiama, que estão aqui a receber formação nas mais diversas áreas, chegaram, na 4ª feira passada, aos 130, desde  médicos a bombeiros, dissseram-me no gabinete de formação).

Volto a penates, sábado, no avião da TAP que, por enquanto ainda é nosso, português... Não sei se terei coragem de voltar a viajar na TAP quando mais esta "joia da coroa" for alienada, como de há muito o acionista Estada promete ou ameaça... Já nos restam poucos consolos, a nós, tugas, quando vemos, nos tempos que correm, a delapidação do nosso património e a destruição de símbolos fortes da nossa identidade colectiva como é ainda a TAP, a  nossa companhia de bandeira...

E a propósito, gostei de ver a felicidade estampada no rosto  dos tugas de Luanda (e de muitos amigos angolanos), na sequência do apuramento da nossa seleção para o campeonato mundial de futebol, em 2014, no Brasil... Não embandeiro em arco com estas coisas das  proezas futebolísticas, nem sequer vi o jogo contra a Suécia, em direto, transmitido aqui num canal português da África do Sul... Ou melhor, vi no meu quarto o final... Mas vamos abrir hoje, ao almoço uma garrada de tinto Ermelinda,  reserva,  que trouxe do "free-shop" de Lisboa... Há pequenas coisas que têm um sabor especial, fora de casa, longe da Pátria, como por exemplo comer uns jaquinzinhos tugas com arroz malandro, a par de um saladinha de lagosta angolana,  e beber um copo de vinho branco tuga,  na ilha de Luanda, numa marisqueira tuga, muito conhecida, em cima da praia, mesmo em frente da clínica, numa roda de amigos, tugas e angolanos, ou de tugas e de angolanos tugas...

Não sei se estou a ficar velho e sentimental ou se isto não serão já pré-sintomnas da maldita doença do alemão que nos está a matar... Não imagino como outros corações se podem comportar, aqui ou no hemisfério norte... Estou-me a lembrar, por exemplo, do único lusolapão que conheço, o Zé Belo,casaod com uma sueco e com filhos nada tugas,  e para quem vai um xicoração apertado, onde quer que ele esteja, em Kiruna, Estocolmo ou Keywest (Florida). Estendo esse xicoração, comprido como o Rio Corubal  do nosso tempo (que era misterioso, selvagem e belo),  aos demais camaradas da Guiné, tugas e guineenses, espalhados pelas mais diversas diásporas e exílios...

Desculpem lá qualquer coisinha, como diz o tuga, sentimental, quando anda fora de casa... E espero que gostem destas três histórias, da tradição oral dos ganguelas...Como as nossas fábulas e contos populares, também estas histórias ganguelas têm uma moral... Para mim, o  que é mais espantoso, é a sua atualidade, tanto aqui, em Angola,  como na nossa santa terrinha ou na Guiné-Bissau, três sítios onde não é preciso andar com uma lupa para encontrar Baratas e Cavetos... Enfim, apreciaria muito que, um vez lidas as histórias, acrescentassem uma linha, da vossa lavra,  aos ensinamentos morais que se podem tirar delas... Até por que "a" moral e "o" moral são duas coisas muito importantes para gente sair da manhã de nevoeiro (ou cacimbo)  em que estamos mergulhados, dizem que há séculos, desde que el-rei nosso senhor Dom Sebastião partiu para Alcácer Quibir e nunca mais voltou....LG.


Três histórias ganguelas, três pérolas da sabedoria angolana 

(i) O azar do soba Barata

O soba Barata foi ter com o soba Cágado, dizendo:
– Sei tudo sobre a vida, mas nunca tive a sorte de ver um Azar! Amigo Cágado, faz-me o grande favor de me dizeres o que sabes sobre o Azar e como ele é.
– Ah! Ah!... Então o teu problema é esse ? Eu vou-te mostrar. Amanhã às 8 horas apareces com os teus amigos e parentes no terreiro da aldeia e eu mostro-te o Azar.

O soba Cágado pegou em todas as galinhas da sua casa e fechou-as numa gaiola. De manhã, muito cedo levou-as ao terreiro da aldeia e sentou-se em cima da gaiola. Passado algum tempo começaram a chegar as baratas. Perguntou o soba Cágado ao soba Barata:
– Chegaram todas ?
– Sim, chegámos – responderam elas, em coro.

Foi então que o soba Cágado abriu a giola… As galinhas saíram e, num ápice, comeram todas as baratas, aterrorizadas. Um dos galos correu com o soba Barata até à sua casa. O pobre do soba estava desfeito: tinha perdido todos os seus súbditos numa batalha campal e agora estava sozinho. Era o cúmulo do Azar. Depois de tantos sucessos na vida, sabia agora, por dolorosa experiência própria, o que era isso do Azar.

Moral da história: Não é fácil ser soba. É necessário ser inteligente. E mais: ter inteligência emocional… Um chefe que é mau líder faz um mau grupo. Tal chefe, tal grupo. 

(ii) O capataz Caveto

Havia um homem que era excelente na caça. Era conhecido pela alcunha de Caçador Certo dia matou um elefante. Era preciso transportar a carne da floresta para casa. E para isso era preciso arranjar muita gente. Foi falar com os vizinhos e aliciou-os para a tarefa, com a promessa de uma pequena recompensa.

Um dos vizinhos que engrossou a coluna dos carregadores, chamava-se Caveto. Era um tipo esperto. Fez questão logo de assumir o papel de capataz, sem ninguém lhe encomendar o sermão. Com os ramos de uma árvore, fez uma espécie de bastão, para mostrar quem mandava, e começou logo a comandar a operação. Dividiu as tarefas, dando a cada um dos carregadores a quantidade de carne que podia transportar às costas. Passadas algumas horas, a carne do elefante estava toda em casa do Caçador.

Um homem de confiança do Caçador preparou-se para fazer o pagamento do serviço, que não era em espécie, era em géneros. Ordenou as todos os carregadores que ficassem junto à peça que cada um tinha carregado. De cada peça cortou um bom bocado e deu-a ao respectivo carregador como forma de pagamento. Todos voltaram felizes para suas casas, não só por terem ajudado um vizinho mas também por que nesse dia havia carne para o almoço. Foi então que o tal Caveto se dirigiu com maus modos ao pagador e interpelou-o:
– Ouve lá, e então a minha parte ?

Respondeu o pagador:
– Tu não tens nada a receber. Como não carregaste nenhuma peça, não tens donde tirar o teu pagamento!
– Como assim ? Então eu estive orientar as pessoas e a despachar o serviço!

Retorquiu o pagador:
–Pode ser até que fales verdade, mas eu não tenho com que te pagar, uma vez que não transportaste nenhuma peça de carne.

O Caveto, de cabeça baixa, lá voltou para casa e foi comer o seu fungi sem conduto.

Moral da história: Nunca penses que és mais esperto que os outros. E não escolhas o caminho do oportunismo, gerador de makas e conflitos. Não basta, por outro lado, quereres ser líder, é preciso que os outros te reconheçam como tal e que tu saibas assumir e desempenhar esse papel fundamental numa equipa de trabalho.



"Ganguela (ou Nganguela) é o nome de uma pequena etnia que vive dispersa a Leste e Sudeste do Planalto Central de Angola. O seu nome é desde os tempos coloniais usado para designar, não apenas esta etnia, mas um conjunto de povos que vivem no Leste de Angola"... 

Infografia: "Mapa étnico de Angola em 1970 (Área dos povos designados como Ganguela marcada a verde)".


(iii) Por favor, nunca apagues as peugadas do leão…

Um dia um rapaz e uma rapariga fizeram uma viagem através da floresta, onde tinham que passar por um sítio muito perigoso, cheio de animais ferozes.

No mais recôndito da floresta, o rapaz, armado em valentão, tomou a dianteira, pensando com isso proteger a rapariga. No trilho arenoso, o rapaz viu as peugadas, frescas, de um leão. Com medo que a rapariga se assustasse, o rapaz apagou de imediato as peugadas.

Quando o leão viu o casal, emboscou-se atrás de uma árvore. O rapaz ia muito tenso, olhando para um lado e para o outro. O leão viu que ele estava em alerta, pelo que deixou-o passar, até ele atravessar a clareira. A rapariga, mais atrás, vinha muito descontraída, não se apercebendo do perigo. Fez até uma paragem para .fazer xixi (, sim, por que as rapariugas não mixam, fazem xixi,,,). Foi nesse preciso momento que o leão se lançou sobre ela, devorando-a a seguir. Alertado pelos gritos lancinantes da vítima, e temendo pela sua vida, o nosso herói pôs-se em fuga.

Moral da história: ignorar ou escamotear a verdade, acaba por ter consequências negativas. As makas (, problemas, em angolês) e os conflitos resolvem-se, enfrentando-os e encontrando soluções inteligentes e  construtivas. Não adianta fugir de (ou negar , ignorar, escamotear) a realidade.

Fonte: Adaptação  livre de L.G.

Menongue, Diocese. Secretariado da Pastoral (ed. lit) – O mundo cultural dos Ganguelas. Menongue: Diocese, [ D.L. 2000] (Porto: Humbertipo)], 642 pp



2. Comentário de L.G.:

É interessante a explicação dada pelo editor  literário desta obra, o Secretariado da Pastoral da Diocese de Menongue, lá na martirizada província do sudeste angolano, o Kuando Kubango, sobre o seu propósito didáctico (em 2000, data da sua edição, quando ainda a paz era uma miragem)... Vale a pena transcrever essa explicação que vem no livro, à laia de preâmbulo. Passo a citar:

"Durante uma conferência sobre o conflito angolano, 'Causas e consequências', um participante comparou a complexa situação vivida no país a um conto, 'A cobra sobre os ovos':
"Um fazendeiro encontra na capoeira uma cobra sobre os ovos. Como matá-la ? Se for à paulada ele quebra os ovos, e a cobra, esperta que é, foge. Se não a mata, ela devora todos os ovos.

"Que solução ?

"O conto foi partilhado por todos os participantes e, de forma inteligente, serviu de exemplo para refelectir sobre possíveis soluções para o conflito angolano e outros conflitos no mundo".
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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12279: Manuscrito(s) (Luís Graça) (12): Servir duas pátrias, Portugal e Angola... O caso do sr. C..., furriel mil em 1974/75, no exército colonial português, tenente das FAPLA em 1975/89

sábado, 22 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10422: Notas de leitura (408): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 11 de Setembro de 2012:

Meus caros amigos,
Esta é a segunda parte da minha análise ao livro "O conflito político-militar na Guiné-Bissau (1998-1999)" de Guilherme Zeverino*.

Com cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva


O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2/2)

Retomando as teses de Guilherme Zeverino, para quem conhece a Guiné-Bissau, é quase uma verdade lapaliciana o dizer-se que a introdução do multipartidarismo não veio resolver, antes avivar os problemas internos no seio do PAIGC, gerando uma situação politicamente insustentável, mas, que, em nosso entender, “Nino” Vieira e a sua clique pensavam frivolamente poder controlar. Bom seria que o autor tivesse dedicado algum espaço às eternas lutas entre personalidades e facções, bem como, à permanente dança de cadeiras no seio do antigo partido do Poder. Regista e é digno de nota que nas demais formações partidárias locais, apenas com duas excepções, a liderança coube a dissidentes do PAIGC.

Não sabemos até que ponto o multipartidarismo veio reforçar a sociedade civil bissau-guineense. Para além de uma certa secundarização do PAIGC – perdeu o estatuto de partido único - houve de facto uma saudável abertura aos media, às ONG’s, à igreja e, hoje, dada a virtual inexistência no país de meios de comunicação social de massas independentes, à Internet e aos blogues. Todavia, o Poder continuou – e continua - a estar nas mãos dos militares, cabendo-lhes sempre a última palavra. Digamos que estamos perante uma porta entreaberta que se pode fechar a qualquer momento.

No que concerne a interdependência entre a crise no PAIGC e a crise nas Forças Armadas, devemos assinalar que, efectivamente, essa correlação existe. Mais. O Partido no seu último Congresso (o VI, nas vésperas do conflito), optando por uma estapafúrdia e absurda política de avestruz, não abordou as questões mais candentes das Forças Armadas ou o problema “escaldante” de Casamansa, nem sequer aflorou o tema dos veteranos de guerra. Os militares verificaram, assim, que a solução dos seus problemas devia ser resolvida por eles próprios, à semelhança aliás do que “Nino” Vieira fizera em 1980. Se a interdependência entre as duas crises parecia ser patente, não obstante, a resolução dos problemas seria estritamente militar e não tinha nada que ver com as questiúnculas internas do PAIGC. É aqui que se separam as águas. Há quem queira ver no levantamento de 7 de Junho de 1998, uma questão interna partidária com expressão castrense, a inversa assume, a meu ver, foros de maior verosimilhança. O fulcro do problema estava em “Nino”, o grande régulo – Presidente da República, Comandante Supremo das Forças Armadas e Presidente do PAIGC – e, bem entendido, no seu “núcleo duro”. Em suma, e para não nos perdemos noutras considerações, a interdependência entre as duas crises existe, mas não foi a causa principal do confronto (foi tão-somente uma das causas, porque outras houve de dimensão semelhante). Logo, a questão tem de ser relativizada.

Desconhecemos em que medida a rivalidade cultural Portugal-França e as respectivas políticas de cooperação terão levado a posicionamentos divergentes na crise bissau-guineense. Estes factores contribuíram, seguramente, para o reforço dessas posições, mas não as engendraram Todavia, os dados essenciais do problema eram, a nosso ver, do foro estritamente político: para Paris, tratava-se de um motim contra a autoridade legítima estabelecida – ou seja, uma rebelião contra um presidente eleito - , logo tinha de ser debelado e, ao longo do tempo, esta posição não oscilou; para Lisboa, partindo inicialmente do mesmo pressuposto, assumiu, de seguida, uma “política essencialmente realista”, como refere Zeverino (vd. p. 87), tendo em conta a situação no terreno, a problemática dos refugiados e a mediação entre as partes em conflito e, há que sublinhá-lo com toda a frontalidade, aproximando-se das posições rebeldes, até porque o regime “ninista”, apesar da democraticidade aparente, era, sob múltiplos aspectos, condenável. Logo, oscilou. Consequentemente, os factores apontados por Zeverino contribuem apenas para alicerçar opções e posições políticas de fundo pré-existentes ou em fase de formação.

A adesão precipitada da Guiné-Bissau ao franco CFA, sem medidas de acompanhamento macro-económicas, foi, como releva Zeverino, nefasta. A má gestão, a inépcia, o sobre-endividamento, o sufoco financeiro, a manifesta incapacidade para debelar a pobreza endémica do país, o ciclo impiedoso do sub-desenvolvimento sem solução de saída, que caracterizaram os governos de Saturnino Costa e de Carlos Correia (deste em menor medida), faziam igualmente parte da receita para o desastre e contribuíram com a sua quota-parte para o levantamento militar. A problemática económico-financeira é, porém, tratada com alguma ligeireza. A nosso ver, merecia maior atenção por parte do autor. Por outro lado, não se pode meter no mesmo saco as adesões à zona franco e à Francofonia, bem como, as pressões externas dos países limítrofes francófonos, ou seja no capítulo das causas económicas (ou económico-financeiras) do levantamento. A adopção do franco CFA insere-se claramente nesta esfera, a francofonia no âmbito politico-cultural, as pressões externas no contexto das relações externas. Misturar alhos com bugalhos induz-nos em erros e confusões desnecessárias.

Estamos inteiramente de acordo que a intervenção militar estrangeira, do Senegal e da Guiné-Conakry, suscitou uma espontânea e muito viva reacção nacionalista por parte da população da Guiné-Bissau. Trata-se, sem sombra para quaisquer dúvidas, de uma questão sócio-política de primeira grandeza e que marcou de forma perene a guerra civil naquele país africano. Todavia, no âmbito social outras questões de grande relevância deveriam ter sido abordadas, pois constituíam problemas estruturais que estão na raiz do levantamento militar e que continuam, ainda hoje, por resolver. Referimo-nos às clivagens entre as velhas e novas gerações de militares (os que fizeram a “luta” e os que não lutaram porque eram ainda crianças ou nem sequer eram nascidos), aos veteranos de guerra, abandonados e votados à marginalização social; e last but not least ao problema étnico, que o autor, de todo em todo, não aborda (sabendo-se, por exemplo, que o grosso dos contingentes das fileiras das Forças Armadas é constituído pela etnia balanta – cerca de 2/3 – um grupo relegado a um estatuto subalterno na sociedade e que “Nino” Vieira, na fase final da guerra, em desespero de causa foi recrutar jovens papeis e bijagós, os “aguentas” , como guarda pretoriana do regime). Aliás, retomando o tema da fissura entre velhas e novas gerações entendemos que se trata de um problema sociológico de fundo e que não se circunscreve apenas ao âmbito castrense, pois afecta horizontalmente toda a sociedade bissau-guineense. Ora, tudo ponderado, para uma obra com pretensões académicas, estas omissões no capítulo social são graves. Finalmente, o autor não aborda e devia ter abordado como causas próximas do conflito as razões de ordem pessoal que levaram Ansumane Mané a revoltar-se contra o seu amigo de sempre e companheiro de luta “Nino” Vieira. E esta questão não é despicienda, como se sabe.

Como tese de dissertação possui alguns méritos, mas com a devida vénia, em nossa opinião, fica aquém das naturais expectativas que se depositam num projecto desta natureza. Mister é reconhecer, porém, que foi escrita e apresentada escassos 4 anos após os acontecimentos, portanto, de certo modo, ainda “a quente.” De qualquer forma apresenta alguns factos marcantes do período em causa e algumas pistas interessantes que permitem interpretar a história recente da Guiné-Bissau.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste anterior de 20 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10411: Notas de leitura (406): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (1) (Francisco Henriques da Silva)

Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10416: Notas de leitura (407): O Corredor de Lamel - 68 Guiné 69 - de Guilherme Costa Ganança (Mário Beja Santos)

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7116: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (5): O Soldado Para-quedista Folhas

1. Texto do Sílvio Fagundes de Abrantes (foto à direita):


Data: 27 de Setembro de 2010 23:51


Assunto: O Soldado Para-quedista Folhas (*)




No dia 22 de Agosto levantei-me por volta das 10 horas da manhã o que não é muito habitual da minha parte. Levanto-me e vou tomar banho, a minha esposa queria que eu fosse fazer um serviço, mas eu não lhe dei ouvidos e disse
- Queres vir comigo, é sem destino ?!
- Não - foi a resposta.
- O.K.,  não fiques zangada. 

Equipei-me, pego no carro e aí vai ele sem destino. Ando uns 200 metros,  pára e ligo a um amigo que estava de férias da França e pergunto se quer vir comigo. ´
- É sem destino - digo eu.

A resposta foi afirmativa. Espero um pouco por ele e penso no meu amigo Folhas, é hoje que o vou procurar a Coimbra e lá fui com o meu amigo. Almoçamos pelo caminho e seguimos viagem. Em Coimbra procurei a direcção de S. Martinho do Bispo. Encontro um senhor dos seus sessenta e tantos anos, que me diz conhecer o pessoal dali e não existir nenhuma família Folhas, mas sim numa terra cujo nome me varreu, lá sim, há muitos Folhas. 

Lá fui em direcção a Taveiro, entro na povoação encravada na serra, atravesso-a de um lado ao outro e não vejo alma viva. Páro a conversar com o meu amigo e companheiro para delinear uma estratégia e eis que alguém se aproxima e pergunta se precisamos de alguma coisa. Digo ao que vou e o senhor manda-me para um café, lá fui. Mais uma vez conto ao que vou e diz uma dos presentes para o outro:
- Ó pá, de pára-quedistas é contigo. 

Estou com a minha gente,  pensei, e estava, era um ex-pára-quedista, amigo do Folhas e colega de trabalho durante muitos anos.


O senhor que em S. Martinho do Bispo me enviou para esta terra tinha razão, o pai do Folhas era daqui, onde há muitos Folhas, só que casou em Coimbra, melhor em S. Martinho do Bispo.


O nosso ex-pára-quedista indica-me onde mora o Folhas e lá vou. Encontro o meu amigo entretido a fazer um galinheiro para uma vizinha, vá lá, nada de maus pensamentos,  suas más línguas. Mostro uma foto onde estamos os dois e pergunto à senhora se conhecia aquele patife [, vd. foto a seguir: o Folhas e o Hoss com a MG 42].
- Não,  reponde a dita senhora.

É lógico. Não nos conhecemos. Ele está magro,  como sempre, mas muito acabado. Não quer ouvir falar da tropa. Lá conversámos umas horas, onde me contou que até na prisão o meteram, por não ter feito nada, ainda hoje não sabe bem a razão. Eu perguntei se não seria o resto do 16 de Junho de 1970? (**)... Nada de concreto, talvez sim talvez não. 

Está um homem revoltado que nunca mais foi a Tancos embora já tenho sido convidado por diversos colegas, inclusive um ex- Coronel Pára-quedista. Nem mesmo esse o consegue levar. Vejam a revolta que este homem tem para com os seus ex-superiores (**). É preciso relembrar a esses senhores que se hoje têm altas patentes, melhores mordomias, foi à nossa custa, à custa do Folhas e de muitos outros FOLHAS, que estão traumatizados com a guerra e com o comportamento menos digno de certos oficiais e sargentos, que só se importavam com a carreira militar e se esqueceram de que estavam a lidar com homens. 

O Folhas não sabia da nossa decisão de enviar o dito oficial para fora do reino dos viventes. Ficou muito admirado. Disse desconhecer isso por completo. 
- Se fosse comigo esse homem hoje não estava vivo - respondo eu - , não tenhas a menor dúvida.

Esse trauma que o Folhas tem, felizmente não o afectou na vida civil, tem uma vida boa,  graças a Deus. Não precisou da tropa para viver dignamente.


Será que esses senhores não têm vergonha do que fizeram? Será que não são capazes de pedir desculpa pela porcaria que fizeram? Pelo menos uma palavra. Já ouvi um Coronel pára-quedista na reforma, claro, dizer que se encontrasse o Folhas lhe pedia desculpa, pelo menos isso já é de louvar. Mas falta outro dizer o mesmo, esse é que eu queria ouvir aqui neste sítio publicamente. Será capaz? Vamos esperar para ver.


Hoss

[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
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Notas de L.G.:


(*) Último poste desta série > 2 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6816: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (4): A cabra do PIDE de Nova Lamego


(**) Vd. poste de  6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6681: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (3): Conclusão


(...) Conforme mencionei na 1.ª parte, houve um oficial que na emboscada  [, perto do Pelundo, em 16 de Junho de 1970,] saltou da viatura sem a G3 e pediu ao Folhas que lhe desse a dele, ao que este rejeitou. O oficial fez a vida negra ao Folhas o resto da comissão.


Passados uns meses e já em plena época das chuvas, fomos para um aldeamento na fronteira com o Senegal onde só havia um pelotão de obus. (...) 


Um dia saímos de manhã fazer uma operação de reconhecimento, chegámos todos molhados. À noite fomos em auxílio dum quartel do exército que estava a ser atacado, chegámos todo molhados. Na manhã seguinte o dito oficial manda formar a companhia de camuflado. Camuflado significa botas. Nós só tínhamos dois pares de botas e dois camuflados que estavam todos molhados. Então resolvemos formar em fato de treino uns, e outros de calções, a única coisa que tínhamos enxuto para vestir. Ao ver tal situação o dito oficial manda o Folhas sair da formatura, entra em discussão com ele e deu-lhe cobardemente duas bofetadas.

O Folhas passa-se da cabeça, e não era para menos, vai buscar a G3 com um carregador enfiado, pronta a disparar, corre atrás do oficial que se refugia na escola. Então eu e outros colegas fomos acalmar o Folhas, o que não foi nada fácil e conseguimos que nos desse a G3.

Passados poucos minutos reuniram-se alguns velhinhos da companhia e de cabeça quente ditamos a sentença ao nosso oficial. Decidimos que, se o dito oficial participasse do Folhas, deixaria de contar a 100% no efectivo das tropas Pára-quedistas, ou seja hoje não estaria no reino dos viventes. Por sorte não houve participação. 



Mas, digo com toda a honestidade, se fosse comigo não lhe perdoava. Ainda hoje pergunto o que é que me segurou em não concretizar a sentença, algumas vezes o tive na mira. O meu pai nunca me bateu.

Seria mais um morto em combate.  Esse grupo era composto por 3 MG, 2 Hk, 1 Degtariev e várias G3. (...)

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4953: (Ex)citações (45): Resposta ao Mário Fitas: Luís, deixa sair de vez em quando as G3...(Luís Graça)

Marvão > 20 de Agosto de 2009 > O stresse do ninho...


Foto: © Luís Graça (2009). Direitos reservados


Meu caro Mário (Fitas):

Estou-te a escrever, não a título pessoal mas como editor, condição em que fui interpelado, desafiado, irónica mas amavelmente, por ti. Vou tentar responder ao teu repto, se for capaz. E começo por citar as tuas palavras, desdobrando-as em três proposições:

(i) Luís desculpa, mas deixa sair de quando em vez a G3; (ii) Dá mais força ao Blogue; (iii) No 25 de Abril, as G3 tinham cravos! (Mário Fitas dixit)…

Dispensa-me de comentar, para já, à proposição nº 3 (que precisaria de mais tempo e vagar para ser analisada)... E vamos às duas primeiras e ao contexto em que as inseres...

Nós, editores, sabíamos que a confissão do Amílcar Ventura (AV) ia provocar sangue... Muitos camaradas não iriam ver e ouvir, impávidos e serenos, o AV a abrir a sua caixinha de Pandora (*)... O próprio mediu, até certo ponto (só até certo ponto), as consequências do seu acto. Não posso nem me compete saber quais são as suas motivações profundas, mas não acredito que nos tenha revelado o que revelou (o seu segredo...) por mero masoquismo, exibicionismo, bravata, provocação, humor negro, show-off, etc.... Não dou de barato a ideia que são insondáveis os mistérios da alma humana, como pretende a filosofia de senso comum, contra a qual tendo a estar de pé atrás... Mas, se é isso que ele, o AV, esperava, não tem que esperar pela demora: já tem mais de 50 comentários na caixa do correio, muitos deles a dar-lhe no toutiço…

Ao nosso camarada Amílcar (Ventura, de apelido, e que continua a ser nosso camarada, não se tendo transformado num dia para o outro em pária, que eu saiba ainda não foi proscrito, não foi expulso do blogue, independentemente das críticas – e algumas bem duras – de que já foi alvo, independentemente da natureza dos seus actos no passado, como nosso camarada, e que alguns já condenaram abertamente, em termos morais), ao AV, dizia, os editores pediram-lhe, esclarecimentos adicionais, nomes, números, datas, lugares... de modo a tornar mais verosímil ou, pelo menos, consistente a sua versão...

Infelizmente, não há testemunhas. Também se as houvesse, a história dos bidões de gasóleo dados à borla ao PAIGC seria porventura um segredo de Polichinelo...

É bom lembrar que o AV insistiu em publicar a sua confissão ou revelar o seu segredo , mesmo sabendo que os seus actos, no passado, podiam configurar um crime mais ou menos grave, à luz do Código de Justiça Militar então em vigor, quiçá até, um crime nefando, segundo alguns, o crime de traição, mesmo que o país não estivesse oficialmente em guerra nos últimos meses de 1973 e primeiros de 1974, período em que o Amílcar Ventura andou armado em Robim dos Bosques da Guiné, roubando – gasóleo - aos ricos, aos colonialistas, aos tugas, para o dar aos pobrezinhos, aos nacionalistas, aos revolucionários, aos guerrilheiros do PAIGC, com a cândida e alegada intenção de ‘apressar o fim da guerra’ e ‘salvar vidas’, de um lado e do outro…

Não sou jurista, constitucionalista, penalista... Mas talvez alguns camaradas do nosso blogue, juristas, especialistas em leis, homens do direito como o Jorge Cabral, o João Seabra, o Carlos Silva, o Álvaro Branquinho, o J.L. Mendes Gomes, etc. nos possam dar uma ajuda, para saber qual o enquadramento penal (disciplinar e criminal) em que o nosso ex-Furriel Mecânico Auto Amílcar Ventura, que fez questão em ir parar à Guiné (até meteu uma cunha!), poderia eventualmente incorrer, se tivesse o azar de ter sido apanhado com a boca na botija, neste caso, com a mangueira na mão a encher, de gasóleo, os depósitos das viaturas do PAIGC, estacionadas no Senegal, e que serviam para transportar tudo o que uma guerrilha precisa em tempo de guerra: armas, munições, géneros alimentícios, feridos, homens e suas bagagens, comissáris políticos, jornalistas estrangeiros, criancinhas e professores das escolas, etc., num contexto de guerra que não era bem de guerra, para o regime político de então, mas em que se matava e morria, de um lado e do outro, incluindo as populações, inocentes, que não queriam tomar partido por um lado ou pelo outro...

É uma mera curiosidade, própria dos seres humanos que são animais, primatas, curiosos, inteligentes e sociais: que desventura(s) aconteceria(m) ao Amílcar num caso destes ? Que ele apanhava uma porrada, isso não me admiraria… E, a propósito, não sei como funcionava a justiça militar, e nem qual era o seu grau de independência em relação ao poder político-militar naquela época...

Mas, mais do que isso, ao AV nunca lhe perdoariam os seus camaradas de então, caso ele quisesse (e pudesse) justificar-se em público na altura... A pior condenação é sempre a dos nossos pares, a proscrição decretada pelo nosso grupo, o banimento do nosso território, o exílio (físico ou simbólico)...

Mas também sabemos que, bem ou mal contada, a história do seu segredo tem mais folhetins que ele, por enquanto, não nos quis dar a conhecer em detalhe... Alega apenas que a sua motivação foi política... Isto é, há antecedentes que ele entendeu omitir e que eventualmente viriam esclarecer a questão: afinal, qual foi o móbil do crime, o que é que o levou a tornar-se um colaboracionista do PAIGC... (Ele promete vira a terreiro prestar escarecimentos adicionais sobre esta história...).

É sabido que muitos guineenses, nossos aliados - incluindo alguns soldados que foram meus amigos e camaradas - pagaram caro, com a vida ou a liberdade, sua colaboração com os tugas, tendo escolhido o lado errado da barricada... Tem acontecido sempre assim em todas as guerras, com os vencedores a fazerem ajustes de contas com aqueles dos seus que pactuaram com o inimigo... Neste caso, guineenses, de etnia fula e manjaca, por exemplo...

Quanto ao uso e abuso da G3 no blogue, que é a questão que me traz aqui (refiro-me à provocação, saudável, do nosso Furriel Mamadu, aliás, Mário Fitas): não sou cabo quarteleiro, não tenho as G3 à minha guarda, não posso nem quero gerir as tensões e as pulsões que elas despertam (as G3, as Kalash, as armas de guerra, em geral)…

Essa tarefa, se necessária e exequível, compete-nos a todos, e não apenas a mim e aos restantes editores…

Percebo o que queres dizer, Mário: precisamos de mais stresse no blogue, de mais pica, dá-nos mais força... E até um cheirinho a pólvora , a chegar-nos ao nariz, de vez em quando não nos faria mal... Concordo contigo e sempre defendi esse ponto de vista: precisamos, sim, é de pluralidade, diversidade, heterogeneidade, frontalidade, e até de conflitualidade (teórico-ideológica) nas abordagens, leituras , análises e interpretações dos factos, dos relatos, das histórias, ou seja, da matéria-prima que publicamos todos os dias no blogue...

Sou dos que pensam que, em quase tudo na vida, as nossas divergências não são necessariamente antagonismos... E aí estamos de acordo: no blogue não temos que pensar todos pela mesma cabeçorra (aliás, felizmente não há nenhuma, há muitas, e boas cabecinhas); temos é que pensar cada um pela sua...cabecinha. Ora isto não é sinónimo de sacar da G3, muito menos por dá cá esta palha...

Como se diz em inglês, stress is the spice of life, not the kiss of death… O stresse é o que dá pica à vida, mas não deve ser o beijo da morte… O stresse, de sinal negativo (distress, em inglês), mata, é um assassino silencioso; a G3 também mata, se a gente não a souber usar… Aliás, ela só serve para duas coisas: matar ou intimidar...

As polémicas - metaforicamente, em linguagem figurada, a G3 (em tiro a tiro ou em rajada) - se se sobrepuserem às nossas histórias, podem levar a situações de conflito irracional, disfuncional, patológico, negativo, gratuito, exacerbando as nossas diferenças, aumentando as nossas clivagens, levando em última análise ao disfuncionamento da nossa Tabanca Grande e do nosso blogue, à desorganização máxima, à entropia, e no limite à morte...


A morrer, o nosso blogue (e um dia vai morrer connosco, com esta geração que, como bem me lembra o Virgínio Briote, tem mais dez anos de vida social útil), que não seja de morte matada, em guerras fatricidas...


Tu mesmo sabes, meu caro Mário, por experiência própria, quais são algumas das consequências negativas dos conflitos em que já estiveste envolvido, nomeadamente quando estás num grupo, competindo com outro grupo e querendo a todo o custo impor a tua verdade, a tua versão, a tua idelologia, os teus valores, os teus princípios, a tua grelha de leitura do real, os teus óculos:

(i) Desencadeiam sentimentos, menos nobres, de frustração, hostilidade, negatividade, são um factor de distress, de ansiedade, de angústia, de medo, de sofrimento psíquico;

(ii) Fazem aumentar a pressão para a conformidade no grupo, reduzem a margem de liberdade individual, fomentam a intolerância;

(iii) Levam a um desvio de energia e de objectivos;

(iv) Fazem acentuar a recusa em cooperar, levando a acções de bloqueio;

(v) A comunicação tende a distorcer-se, fortalecendo a recusa em pactuar com o inimigo, aqueles gajos, aqueles filhos da mãe, aqueles isto e aquilo...

(vi) Levam-nos a perder o sentido da realidade (com a amplificação do conflito, há um efeito imparável de bola de neve, às tantas já ninguém sabe quem começou, quando se começou, por que é que se começou, qyem disse o quê a quem, etc.).

Aspectos positivos dos conflitos, incluindo as manifestações (abertas) das nossas divergências de pontos de vista ? Quando há clivagem entre dois grupos,

(i) Há um aumento do stresse de sinal positivo (eustresse), interesse, energia, criatividade, nos membros do grupo;

(ii) Reforç-se a identidade e a coesão do grupo;

(iii) Passa a haver maior motivação para o eficaz desempenho do grupo;

(iv) Alerta-nos para problemas críticos, ajuda a identificar novos problemas;

(v) Previnem-se conflitos mais graves;

(vi) É testado e reajustado o sistema de poder na organização, nos grupos...


G3 na Tabanca Grande ?

Como no faroeste da nossa infância, nas guerras dos índios e dos cow-boys, prefiro que sejam de pau ou que, no mínimo, fiquem à guarda do xerife enquanto a gente vai ao saloon beber um copo... A ter que esgrimir argumentos para defender os nossos pontos de vista, que o façamos com a cabeça e o coração, com a inteligência e a emoção, mas sempre com elevação e elegância... O que não tem nada a ver com conformismo, pensamento único, linguagem de pau, alinhamento ideológico, status quo, ortodoxia... Nem tem nada a ver com o politicamente correcto, o socialmente correcto, o eticamente correcto, etc. Como eu gosto de citar, há um provérbio popular que diz: "o dente morde na língua mas mesmo assim vivem juntos"...

Com um chicoração

Luís Graça

______________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...

sábado, 10 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1579: Buba: Graves incidentes entre camaradas, comandos e fuzileiros, em 19 de Abril de 1969 (Zé Teixeira)

Guiné > Região de Quínara > Buba > 1969 > O Zé Teixeira, em Buba, com um grupo de barbudos camaradas...


Foto: © José Teixeira (2006). Direitos reservados.

Mensagem do José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):


Caríssimos:

Infelizmente não foi cena única naquela triste guerra (1). No meu diário escrevi (2):


Buba, 19 de Abril de 1969:


Pela primeira vez, num ano de guerra com diversos casos graves e mortais, vi camaradas meus serem varados por balas de armas manejadas por companheiros só porque já não se houve a voz da razão.

Um pequeno incidente de palavras entre um soldado da minha Companhia e um Comando Africano, quando tomavam banho originou uma luta entre Fuzileiros e Comandos com consequências graves. Parece está tudo louco.

Um Comando branco defendeu o Africano e alguns Fuzas intrometeram-se. A coisa azedou e surgiu uma cena de pancadaria de que resultaram algumas cabeças partidas e olhos negros. Aparece uma G3 a vomitar uma rajada e quatro meros espectadores ficam gravemente feridos. Uma perna desfeita, um braço cortado e o mais grave veio a falecer com uma bala na cabeça. Foi este o resultado de uma simples discussão.

Eu estava de saída para o mato e mal vi os feridos. Pela primeira vez na minha vida de guerra, chorei. Lágrimas de raiva ... e de sangue.

O que aconteceu na realidade: A minha companhia estava encarregue dos trabalhos de protecção na construção da estrada de Buba para Aldeia Formosa (Quebo). Os Comandos tinham chegado de um Patrulhamento. Os Fuzas também estavam a chegar de uma saída. Na altura Buba era um centro operacional em movimento constante. Toda a gente foi refrescar-se com um agradável duche fresquinho, pois água era coisa que não faltava. Água, minas e encontros desagradáveis com o IN era coisa que não faltava. Comida essa foi durante muito tempo feijão com chispe (amostras) ao almoço e arroz com chispe ao jantar.

Mesmo assim fazia-se fila para o duche, dada a quantidade de candidatos a colocarem a cabeça debaixo de água. No meu baptismo de fogo, nesta mesma terra, um ano antes, estavam cerca de três Companhias a tomar banho, no regresso de uma coluna, quando o IN atacou em pleno dia. Resultou que saltamos todos para a Vala, uns nus, outros ensaboados e outros molhados, tudo à molhada. Que espectáculo ! Coubemos todos e não houve feridos, pois o IN não acertou sequer com uma dentro do quartel, apesar de terem atacado de duas frentes distintas e ao mesmo tempo.

Voltando ao triste relato dos acontecimentos. Um camarada da minha Companhia estava no duche a cantarolar. Alguém do lado mandou-o cantarolar para a Puta que o pariu . Era um comando africano integrado na Companhia de comandos, com quem convíviamos há vários meses e a nossa relação era estupenda. Palavra puxa palavra e ao fim de algum tempo começa uma cena de batatada, pois há um fuza que se põe do lado do meu colega, que entretanto se afasta, bem como o outro contendor.

A luta centra-se entre Comandos e Fuzas. Não sei quem estava a ganhar, primeiro porque não gostava deste tipo de cenas, segundo porque estava a preparar-me para sair a fazer patrulhamento nocturo. De repente ouço uma rajada de G3. Naturalmente que após alguns segundos de expectativa, fui ver o que se passava, temendo o pior, e o pior tinha acontecido. Não me recordo quem foi, mas alguém, talvez cansado de levar tareia, afastou-se da contenda, foi à caserna e pegou na G3. A tragédia aconteceu.

Após a cura emotiva, resultante do tempo que já passou, penso hoje que cenas destas só eram possíveis devido ao estado de pressão emotiva que todos vivíamos. Não culpo ninguém, mas ainda sofro ao reviver esta e outras cenas entre camaradas e amigos, brancos e africanos, que de repente se exaltavam e passavam a vias de facto, tal era o estado de espírito em que nos encontrávamos. Abraços para todos e façam o favor de procurar ser felizes.

Zé Teixeira
Esquilo Sorridente

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Notas da L.G.:


(1) Vd. posts de:

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

11 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1515: Antologia (58): A batalha de Bissau em Janeiro de 1968: boinas verdes contra boinas negras... Saldo: 2 mortos (Carmo Vicente)


(2) Vd. post de 30 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXXVI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (10): Abril/Maio de 1969, 'Senhora, nem Tu me salvaste!'

terça-feira, 21 de março de 2006

Guiné 63/74 - P627: Para compreender o conflito de Casamança (Jorge Neto)

Guiné-Bissau > "A população da zona fronteiriça de S. Domingos, norte da Guiné-Bissau, está a fugir da região. Os confrontos que ocorreram na madrugada e manhã de hoje [17 de Março de 2006] entre os rebeldes separatistas do sul do Senegal (MFDC) e as forças guineenses estão a fazer aumentar a apreensão no norte do país" (JN)...

Mais uma vez, a população guineense - as mulheres, as crianças, os velhos, os mais pobres e os mais indefesos - têm de fugir das suas casas, por causa das rivalidades dos senhores da guerra... Infelizmente, na origem deste conflito estão causas remotas ou condições antecedentes a que os governos portugueses e franceses da época colonial, que (re)desenharam regiões inteiras a régua e esquadro, não serão alheios (LG)...

Com a devida vénia: Fonte: Africanidades, blogue do nosso amigo Jorge Neto, membro da nossa tertúlia:

17.3.06 > Conflito de Casamança

Os confrontos entre forças guineenses e rebeldes de Casamança são cíclicos. Acontecem sempre que o Exército da Guiné tem a dirigi-lo alguém hostil à guerrilha, como acontece neste momento. Tagmé Na Wai, chefe de Estado Maior General das Forças Armadas da Guiné-Bissau tem um passado de lutas com o movimento rebelde.

Mas nem sempre foram hostis as relações entre as autoridades guineenses e a guerrilha. A Guiné já foi um dos principais fornecedores de armamento ao Movimento das Forças Democráticas de Casamança (MFDC). Diversos relatórios de política internacional asseguram que foi o tráfico de armamento de Bissau para a região do sul do Senegal que despoletou a guerra civil que opôs Nino Vieira a Ansumane Mané.

A guerrilha casamancence reclama, no essencial, a independência do território; um pedaço de terra do tamanho do Alentejo, encravado entre a Gâmbia e a Guiné-Bissau.

O movimento surgiu em 1982 pela mão de um ex-padre católico. Os diversos acordos de paz assinados desde há 24 anos não conseguiram colocar fim ao conflito mais antigo da África Ocidental e um dos mais antigos de toda a África.

Na sua actuação, os rebeldes servem-se da permeabilidade da fronteira da Guiné com o Senegal. Os guerrilheiros usam este facto e o isolamento da região, para fugir às autoridades dos dois países. Por detrás da disputa do território de Casamança há questões económicas: a costa marítima possui importantes reservas petrolíferas. Mas há também questões culturais: os casamancences não se assumem como senegaleses porque desde logo falam outras línguas, o djola, língua étnica, e o crioulo, herança da passagem portuguesa por ali até finais do século 19.

Jorge Neto