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quarta-feira, 9 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23061: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XII: Conto - O hipopótamo dá boleia ao lobo

 



Ilustrações ( (pp. 69-71) do mestre Augusto Trigo, pai da pintura guineense e grande ilustrador, 
a sua obra é uma referência
 



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga


1. Transcrição das págs. 69-71 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)



J. Carlos M. Fortunato 

Lendas e contos da Guiné-Bissau



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5



Conto - O hipopótamo dá boleia ao lobo
(pp.  69-71)



O lobo (hiena) queria atravessar o rio, mas não podia porque este tinha muita água. Então foi pedir ajuda ao hipopótamo, para este o levar para o outro lado do rio.

O hipopótamo não gostava do lobo, porque este era malandro, e respondeu-lhe:

 Não tenho tempo, tenho que ir comer e depois vou descansar.

O lobo não desistiu, e pedia, pedia, sem parar:

 Tem paciência, ajuda com boleia, tem paciência, ajuda com boleia, tem paciência, ajuda com boleia, tem paciência…  – repetia o lobo sem parar.

O lobo não se calava e a cabeça do hipopótamo já não aguentava mais, e então disse:

– Está bem, vou levar-te para o outro lado nas minhas costas, mas se me fizeres mal, vais-te arrepender.

 Obrigado, obrigado  – disse  logo o lobo, ao mesmo tempo que se ria baixinho.

O hipopótamo desconfiou daquele risinho, mas pensou que talvez fosse porque o lobo estava contente.

E o lobo lá foi às costas do hipopótamo, até ao outro lado do rio.

Quando chegaram à outra margem, o lobo deu uma dentada no hipopótamo, arrancando-lhe um bocado de carne e fugiu rapidamente com ela na boca.

O hipopótamo ferido, lançou um grito de dor e de raiva:

 
  Aaarrgh!

O hipopótamo estava furioso, e zangado, mas ferido não podia correr atrás do lobo.

Algum tempo depois passou por ali uma lebre, que, ao ver o hipopótamo ferido, lhe perguntou o que tinha acontecido.

Ao saber da maldade do lobo, a lebre que também não gostava dele, disse:

 Esse lobo é mesmo muito mau! Eu vou-te ajudar. Eu vou trazer o lobo aqui. Fica aí deitado e finge que estás morto. Não te mexas!

A lebre foi para o mato e começou a tocar o bombolom (35), chamando todos os animais.

Quando estavam todos os animais reunidos a lebre disse:

 Está um hipopótamo morto na margem do rio, vamos comê-lo.

Ao ouvir isto, o lobo disse logo:

 
  Esse hipopótamo é meu, fui eu que o matei, e eu é que vou comê-lo.

Dito isto, o lobo correu para o local onde estava o hipopótamo, mas, quando se preparava para o comer, o hipopótamo abriu a sua grande boca e deu-lhe uma dentada.

E foi assim, que o lobo foi castigado pela sua maldade.

__________

Nota do autor:

(35) Bombolom - é um instrumento musical, que é tocado com dois paus, batendo-se num tronco de árvore ao qual foi retirado o seu interior, ficando com uma abertura em cima, de modo a servir de caixa de ressonância.


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domingo, 13 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22996: Os nossos médicos (92): Nunca na vida te deixarei sozinho (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico, CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


1 - Em mensagem de 12 de Fevereiro de 2022, o nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68) enviou-nos este seu conto:


NUNCA NA VIDA TE DEIXAREI SOZINHO

Nunca na vida te deixarei sozinho, disse a Isabel ao seu marido Joãozinho, na véspera de meter outro homem na sua cama.

A Isabel não andou na Faculdade, para assim falar tão bem nas traseiras do sentimento, mas foi criada de servir em Bissau, o que, numa aldeia do mato, era um curso superior. Isabel era uma mulher muito bonita, daquelas que são sempre futuro, ainda que a pele se engelhe. As suas formas afeiçoavam-se aos olhos, mais despindo a existência do que o corpo. Uma espécie de mulher à flor da pele, bem calculada por dentro. Mulheres paridas de si mesmas, sem vida nos outros. Mulheres de além-desejo, voo de ave caminhando fora dos passos. Isabel, o torvelinho das tonturas do Joãozinho.

Joãozinho, servente da messe, sabia a mulher que tinha e todo se babava quando a gente dizia que ela era mais linda que surucucu empinada, mais pura que fruto de cajú. Todo ele era uma viagem por dentro da Isabel, adivinhando-lhe o mundo no contar das coisas. Manhã levantada era sol de todo o dia, noite deitada era sonho que não morria.

Um dia…

Encontrava-me eu frente à palhota da Isabel, limpando com uma compressa embebida em permanganato de potássio, as feridas do dorso das vacas, verdadeiros buracos abertos pelos estilhaços das granadas e pelos pássaros pica-sangue, impiedoso tormento dos animais, quando ouvi atrás de mim uma voz de asas, leve de tempo, onde não havia destino, medida por lonjuras de sonho.
- Sr. Doutor, Sr. Doutor.

Do peito me nasceu um soluço que só anos mais tarde se escapou.
- Olá Isabel, que bela surpresa!
- Doutor, tenho galinha que consegui arranjar e vou fazer frango à cafreal para Doutor e nosso Capitão.
- Isabel, tu és um anjo, e nosso capitão, todo católico, vai pensar que é dádiva do céu, quando eu lhe contar.

Todos somos fingimento quando o sangue não se entorna no desaconchego da solidão. O provisório serve o regresso da alma, o fogo de outros calores invade os olhos através de janelas que há muito se não abriam. O capitão não mediu a fome nem a galinha, esqueceu a comunhão do Padre Gama, sonhou o despir da Isabel até à nudez pecaminosa e espetou os olhos no cair da noite.

Ao cair da noite, lá fomos os dois à palhota da Isabel, enquanto o Joãozinho lavava a loiça na messe. A Isabel estava no último acto da confecção do delicioso cafreal da tabanca. Primeiramente refogado, apenas em sumo de limão e piripiri, depois grelhado na brasa e em seguida frito com cebola.

Notei que os olhos do capitão se cruzavam constantemente com os meus, não na galinha mas nas ancas da Isabel. Seguiam a luz sensual do petromax, que penetrava abusivamente na malha de tule até às roupas que vinham de dentro. Senhora de reflexos e de encontros, Isabel não prestava menos atenção à sedução do que à galinha.
- Doutor, nosso Capitão, tenho gira-disco e morna, mim dançar para doutor e nosso capitão.

Não nos empenhámos em perceber como é que uma pequena caixa e um disco de madeira giravam música. O esvoaçar do tule era o centro do mundo, o arder da fogueira de todo o nosso frio. Toda a força daquele colo maternal, toda a ternura da silhueta envolta em cabelos penosamente desfrisados durante longos anos, toda a firmeza das carnes subtis, todo o trigo desse abrigo adormecido, toda a tempestade recolhida nesse pedaço de noite tombaram sobre nós quando a Isabel iniciou o strip-tease.

Não me lembro do sabor da galinha. Recordo apenas uma espécie de vento fustigando as entranhas, reduzindo-me a um calção e uma camisa, ardendo dentro de mim com sabor a cinza.
Olhámos um para o outro, sorrimos, assumindo o que sempre estivera assumido, antes de darmos ao espírito a momentânea liberdade de um passeio pelo sonho que morre ao pé dos coqueiros.

Aconteceu nessa noite ou na noite seguinte. O Joãozinho entrou em casa e deu com alguém a fugir da cama da Isabel. Pobre do Joãozinho, sofreu mais com a sova que deu na mulher do que com a traição. Sofreu mais pelo avesso do que ela dissera na véspera, nunca na vida te deixarei sozinho, do que em todas as noites que passara enterrado na bolanha à espera de turra. Doeu muito mais do que picada de escorpião.

Isabel apresentou queixa no Chefe de Posto. Argumentava e provava com as equimoses dificilmente visíveis na sua pele de negra. Dolorosas como as equimoses em pele de branca. Afastara bondades de Joãozinho, denegrindo sua violência, grande de mais para coisa de momento. Não ser vontade de ela mas força de imaginação que vem de dentro. Destino de todo fogo que acende rápido.

Foi constituído o tribunal. Perante o Chefe de Posto, Capitão e eu, compareceram queixosa e réu. O Joãozinho estava disposto a perdoar, a despeito de um sonoro desabafo, bengala de toda a sua alma, letra de toda a sua filosofia, resguardo de toda a sua defesa.
- Boca de ela ser boca de mim, olho de ela ser olho de eu ver, dor de ela corpo de mim qui dói, vida de ela valer morte de mim, mim ca pude pensar que Zabel durme cum gajo na cama de mim, dibaxo di memo tecto… inda si foi sinhô dôtô ou nosso capeton…!

(Conto rigorosamente verdadeiro. Mas nem dotô nem capeton estiveram na cama de Zabel).

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21878: Os nossos médicos (91): recordando o sentido do humor do nosso saudoso J. Pardete Ferreira (1941-2021), ex-alf mil médico (CAOP, Teixeira Pinto, e HM 241, Bissau, 1969/71)

domingo, 30 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22950: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XI: Conto - O casamento do lebrão





Ilustração do mestre Augusto Trigo (págs. 66 e 67)




O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



1. Transcrição das págs. 65-68 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)




J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5


Conto - O casamento do lebrão 
(pp. 65-68)

O Rei leão tinha uma linda filha, que se queria casar, mas não tinha namorado. Um dia o lobo (hiena) passou pelo portão do palácio do Rei, e viu a princesa que estava a apanhar flores e a cantar, e ficou logo apaixonado por ela. O lebrão (macho da lebre) também passou por lá e ao ver a princesa também ficou apaixonado por ela. 
É mesmo com esta princesa que eu me vou casar - pensou alto o lebrão, quando a viu. 

Como o palácio tinha guardas, que não os deixavam entrar, o lobo e o lebrão passaram a andar à volta do palácio, para ver se conseguiam falar com a princesa. 

Um dia o lobo e o lebrão encontraram-se os dois, junto ao muro do palácio. 
 O que fazes aqui?  perguntou o lebrão. 
 Queria ver a princesa, ela é mesmo bonita e tem uma voz tão doce!  disse o lobo suspirando. 
 Eu também a vi no jardim, gostei muito dela, e quero casar com ela  disse o lebrão. 
 Tu também? Quem vai casar com a princesa, sou eu!  exclamou o lobo
 Não sei como vamos conseguir falar com ela. Os guardas não deixam passar ninguém…  comentou o lebrão. 

A girafa, que estava de sentinela junto ao muro, ouviu a conversa, e com o seu pescoço comprido espreitou, viu o lobo e o lebrão, e disse: 
 O que querem daqui? Vão-se embora. 
 Cala-te, garganta comprida  respondeu o lobo
 Ambos gostamos da princesa e queremos casar com ela – disse o lebrão. 

A girafa foi contar ao Rei, e este mandou chamar o lobo e o lebrão, e disse: 
 A minha filha aceita casar com um de vocês, mas têm que fazer uma  luta sem armas. Só poderão usar a força do corpo e ela casará com o que vencer. Ao vencedor, eu darei a minha filha para casar, dois bois e um lugar no palácio para ele viver. A luta será amanhã às dez horas. 

O lobo todo contente disse logo: 
– Hé! Hé! Eu é que vou casar com a princesa, pois sou o mais forte. 

No dia seguinte, às sete horas da manhã, o lobo já lá estava com o seu grupo, à porta do palácio, a tocarem tambor e a dançarem de contentes, pois tinham a certeza de que o lobo  ia ganhar a luta, mas o lebrão era muito esperto e não desistiu. 
 Huuum..., tenho que arranjar uma maneira de vencer o lobo  pensava alto o lebrão. – Já sei! Vou meter-lhe tanto medo, que ele vai fugir!  disse o lebrão para o seu grupo. 

O lebrão arranjou umas braceletes para os braços e para o corpo, para parecer mais forte, pôs-se em cima dos ombros do macaco e vestiu uma camisa comprida, para esconder o macaco, e assim ficou a parecer um gigante. 

O grupo do lobo ouviu tambores e viu poeira ao longe, e um deles disse: 
 Vem ai o lebrão mais o seu grupo. 

O lobo levantou-se, olhou, e viu um grupo de animais que se aproximava, trazendo à sua frente um animal enorme, e disse: 
 Não pode ser. O lebrão não é assim tão grande, o lebrão é pequeno. Vai lá ver quem é. 

O amigo do lobo foi ver e voltou a correr gritando: 
 É mesmo o lebrão, cresceu muito, agora é um gigante, fujam, fujam. 

Cheios de medo, o lobo e o seu grupo, largaram a fugir. 

E foi assim que o lebrão conseguiu casar com a princesa e ficar a viver no palácio do Rei.


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segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22914: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte X: Conto - O camaleão ganha a corrida ao lobo (hiena)


Ilustração do mestre Augusto Trigo (pág.  63)





O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga




1. T
ranscrição das págs. 63-64 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)



J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau




Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5



Conto - O camaleão ganha a corrida ao lobo 
(pp.  63/64) 


Um dia o camaleão e o lobo (hiena) conversavam, sobre quem eram os animais mais rápidos. 
– Qual é o animal mais rápido a voar? – perguntou o camaleão. 
– Eu sou o mais rápido a voar – respondeu o lobo. 
–  O quê? Você não sabe voar! – exclamou o camaleão. 
 Eu sei voar muito bem – retorquiu o lobo. 
– Quem é o mais rápido a nadar? – perguntou o camaleão. 
– Eu sou o melhor nadador. Nado mais rápido do que qualquer peixe – respondeu o lobo. 
– Como pode dizer isso, se você nem sabe nadar… – disse o camaleão, incrédulo com as respostas do lobo. 
– Eu nado muito bem – replicou o lobo com vaidade. - Quem é o corredor mais rápido de todos os animais? – perguntou o camaleão, já aborrecido com as mentiras do lobo.
– Eu sou o melhor corredor, ninguém corre mais rápido do que eu – respondeu logo o lobo. 

Irritado com tanta mentira, vaidade e presunção, o camaleão já não conseguiu ouvir mais o lobo e resolveu dar-lhe uma lição. 
– Eu corro melhor que você! – exclamou o camaleão. 
– Você  não sabe correr –  disse o lobo e começou a rir. 
 – Ah! Ah! Ah! –  ria o lobo apontando para o camaleão. 
Eu corro muito bem. Eu corro melhor que você. Vamos fazer uma corridadesafiou o camaleão. 
–  Você quer fazer uma corrida comigo? – perguntou o lobo admirado. 
– Sim! E eu vou vencer essa corrida! Vamos fazer a corrida já! Eu vou darlhe uma lição! – respondeu o camaleão – Meninos  batam as palmas para dar a partida – pediu o camaleão às crianças que estavam a assistir à conversa. 

Os meninos bateram as palmas, e o lobo começou a correr veloz, mas o camaleão segurou-se com força ao rabo do lobo e não o largou. O lobo correu o mais rápido que conseguiu, até à meta. Depois de passar a meta, o lobo cansado da corrida foi sentar-se, mas quando ia fazê-lo, ouviu uma voz dizer-lhe: 
– Não senta em cima de mim. Vai sentar noutro lado, que eu cheguei primeiro    era o camaleão! 

O lobo abriu os olhos de espanto, nem queria acreditar no que estava a ver, e só dizia: 
– Como foi possível o camaleão chegar primeiro? Como foi possível o camaleão chegar primeiro? 

E foi assim, que o camaleão ganhou a corrida.

(COntinua)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série >  9 de dezembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22791: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte IX: Conto - A lebre e o lobo no tempo da fome

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22833: Blogues da nossa blogosfera (167): "Os pães e os peixes", conto de Joaquim Mexia Alves no Blogue da Tabanca do Centro



OS PÃES E OS PEIXES

Ali estava na sua sala, sentado, completamente só na noite de Natal, pois os filhos estavam longe e desinteressados da sua vida, a mulher já tinha falecido e a vida madrasta tinha-o deixado apenas nos níveis de sobrevivência, sendo aquela casa o único bem que ainda possuía, não sabia por quanto tempo. Levantou-se e foi à cozinha ver o que haveria para comer na Ceia de Natal. Riu-se interiormente ao pensar em Ceia de Natal, ele que não tinha nada, ter uma qualquer refeição que se assemelhasse sequer a uma ceia, quanto mais a uma Ceia de Natal!

Abriu a caixa do pão e viu que tinha dois pãezitos (já um pouco duros) e numa caixa no frigorifico vazio, um carapau frito que já nem sabia de quando era.

Riu-se novamente, mas agora ruidosamente e disse alto, sabendo que ninguém o ouviria: Agora o que me fazia falta era Jesus Cristo para abençoar estes pães e este peixe e, assim, com certeza não faltaria abundância para uma verdadeira Ceia de Natal.

Pegou nos pães e no peixe, num copo de água e foi sentar-se na sala para comer então a sua paupérrima Ceia de Natal.

Apesar da escassez e de tudo o que estava a passar, a tristeza profunda que lhe causava esta Natal sozinho e sem nada, benzeu-se e agradeceu a Deus pelo pouco que tinha porque, apesar de tudo, haveria outros que nem isso teriam com certeza.

Pegou num pão, partiu-o e, quando se preparava para o começar a comer, bateram à porta.
Pôs o pão de lado, levantou-se e foi abrir a porta.

Era um casal seu vizinho com uma caixa grande nas mãos e que lhe disseram: Ó vizinho, sabemos que está sozinho e com dificuldades. Nós também estamos sozinhos, mas graças a Deus ainda temos que nos chegue e assim lembramo-nos de nos fazermos convidados para passar o Natal em sua casa, pois sabíamos que se o convidássemos o vizinho não iria a nossa casa. Deixa-nos entrar?

Embora envergonhado, abriu a porta e deixou-os entrar dizendo: Mas eu não tenho nada para comer! Tenho apenas uns pãezitos e um peixe!

Eles responderam: Não se preocupe. Trazemos aqui nesta caixa um bom peru assado e recheado, com os seus acompanhamentos, que irá servir de Ceia de Natal a todos nós.
Sem palavras, com a voz embargada, agradeceu e sentaram-se à mesa.

Mas, mais uma vez, bateram à porta e ele lá se levantou para ir abrir.

Desta vez era um casal bem mais jovem, com o seu filho ainda criança, seus vizinhos também, e que lhe disseram: Sabíamos que estava sozinho, que se o convidássemos para nossa casa não iria, por isso viemos fazer-lhe companhia nesta noite de Natal. Espero que não leve a mal e nos deixe entrar.

Bem, pensou ele, se já cá estão uns porque não deixar entrar estes também.

Foram entrando e entregando umas caixas dizendo que eram bolos para adoçar a noite.

E, novamente, lá se sentaram todos à mesa. Ele, já bem mais disposto, perguntou alto se mais alguém bateria à porta.
Ainda não tinha acabado de falar e novamente tocam à porta.

Desta vez era um vizinho, só como ele, mas que vivia bem, e lhe disse: Pensei para mim que estando sozinho e o vizinho também, faria mais sentido vir bater à sua porta, fazer-me convidado e assim fazermos companhia um ao outro. Trago aqui umas garrafas de vinho para acompanhar o que houver para comer.

Espantado, admirado, deixou-o entrar e finalmente sentaram-se à mesa, que agora se apresentava bem guarnecida com o peru e os seus acompanhamentos, diversos bolos e vinho que chegava à vontade para todos.
De repente lembrou-se do que tinha dito alto na cozinha quando estava sozinho, de que o que precisava era de Jesus Cristo para abençoar a comida e assim haver abundância na sua mesa.

Soltou uma gargalhada e contou a todos os outros o que tinha acontecido, o que tinha dito e como via ali a multiplicação dos “pães e dos peixes” e também dos amigos.

Riram-se todos com alegria, rezaram um Pai Nosso em acção de graças e a criança disse toda contente: Hoje é mesmo Natal!!! O Menino Jesus está mesmo aqui connosco!!!

Monte Real, 22 de Dezembro de 2021
Joaquim Mexia Alves
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22758: Blogues da nossa blogosfera (166): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (73): Palavras e poesia

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22794: Fauna & flora (17): três animais das fábulas guineenses: o leão, o lobo (hiena) e a lebre


Lobo (hiena) (Crocuta corcuta)



Lobo raiado (hiena malhada) (Hyaena hyaena)





Lebre (Lepus whytei)



Leão (Panthera leo)


Fonte: In Guia de Identificação dos Animais da Guiné-Bissau. República da Guiné-Bissau, Direcção Geral dos Serviços Florestais e Caça, Deparatmento da Fauna e Protecção da Natureza, s/l, 34 pp. s/d (Disponível em formato pdf, aqui, no sítio do IBAP ,

https://ibapgbissau.org/Documentos/Estudos/Animais%20da%20Guine-Bissau.pdf)



1. Sobre os animais, que são protagonistas do conto transcrito no poste P 22791 (*), aqui vai informação adicional , constante das infografias acima reproduzidas (**):

  • Lobo
  • Lobo raiado
  • Lebre
  • Leão
Dos quatro, o leão ´o único que está na lista dos "animais protegidos". 

Na época colonial, e em especial durante a guerra colonial, a lebre era uma das espécies que alguns militares caçavam, à noite, com utilização dos faróis dos jipes ou dos unimog, em geral, nas proximidades dos aquartelamentos. A sua carne era particularmente apreciada.

A hiena malhada  (na Guiné-Bissau, lobo raiado) é a maior representante da família das hienas (Hyaenidae). O seu estado de conservação, na Guiné-Bissau,  não parece ser preocupante.

Quanto ao leão, terá deixado o território com o início da "guerra de libertação"... E acredita-se que terá voltado, esporadicamente, em 2014, quatro décadas depois  do fim da guerra. Pelo mensos avistaram-se peugadas na região do Boé, Mas é pouco provável que se volte a fixar no território: o seu número tem vindo a reduzir-se dramaticamenete em toda a África, com destaque para a África Ocidental e Central, devido à sistemática perda do seu habitat. 

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Notas do editor:

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22791: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte IX: Conto - A lebre e o lobo no tempo da fome




Ilustrações do mestre Augusto Trigo (pp. 59, 60 e 61)



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



1. Transcrição das págs. 59-62 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato > 
Lendas e contos da Guiné-Bissau




Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5


Conto - A lebre e o lobo no tempo da fome 
 (pp. 59/62)


No tempo da fome, a lebre nada tinha para comer, e ela e o seu filho passavam muita fome. Como não conseguia encontrar nenhuma comi da perto de casa, a lebre decidiu partir e ir procurar comida noutros locais. 
Meu filho, tenho que ir procurar comida longe, mas vou voltar o mais rápido que puder  disse a lebre ao filho. 

A lebre procurou em todo o lado, contudo não encontrou nenhuma comida, pois era o tempo da fome e em nenhum lado havia comida. Mas ela descobriu que o lobo  (hiena) (34) tinha muita comida na casa dele, mais do que precisava. 

Apesar de saber que o lobo era mau, que nunca dava nada a ninguém, e até a podia comer, mesmo assim a lebre foi bater à porta do lobo e pedir-lhe um pouco de comida, para levar para o seu filho. 
– Eu só vou dar-te um pouco de comida depois de tu trabalhares, mas a partir de agora terás que ficar sempre a trabalhar para mim  disse o lobo
– Está bem respondeu a lebre. 
– Esta noite, vais ficar toda a noite de guarda à minha casa, para não  roubarem nada, mas não toques na casa do meu vizinho leão  disse o lobo
– Porquê?  perguntou a lebre. 
– Porque o leão é invejoso, arrogante e muito bruto  respondeu o lobo

Durante a noite, quando todos estavam a dormir, a lebre foi a casa do leão, roubou-lhe o filho e escondeu-o na casa do lobo. Quando chegou a manhã, o filho do leão começou a chorar, pois estava cheio de fome. O lobo, ao ver o filho do leão em casa dele e ainda por cima a chorar, ficou muito aflito sem saber o que fazer, pois tinha muito medo do leão. 
 – Como veio o filho do leão aqui parar? O que vou fazer agora? Será melhor escondê-lo?  dizia o lobo, andando de um lado para o outro, sem saber o que fazer. 

O leão, que falava pouco e não gostava de brincadeiras, ficou furioso quando ouviu o filho chorar na casa do lobo
– Como se atreve o lobo a roubar-me o meu filho?  gritou o leão e correu para casa do lobo. O lobo nem teve tempo de dizer nada, pois o leão enfurecido rebentou com a porta e deu-lhe logo uma estalada. 

O lobo fugiu, e o leão correu atrás dele, mas o seu filho começou a chorar e o leão voltou para trás, para junto do filho. Ao ver o lobo fugir, a lebre deu pulos de contente, porque agora tinha comida e podia ficar a viver na casa do lobo, pois o lobo nunca voltaria com medo do leão, e correu a ir buscar o filho. 

Como o lobo tinha muita comida, a lebre dividiu-a com os outros animais que tinham fome. E foi assim que a lebre se livrou do lobo e conseguiu muita comida.

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Nota do autor:

(34) Lobo - palavra com origm no crioulo, é o nome dado à hiena: não existem lobos na Guiné-Bissau.
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2. Como ajudar a "Ajuda Amiga" ?

Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque, que já foi inaugurada dia 8 deste mês, com pompa e circunstância), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26

BIC MPIOPTP

Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:


http://www.ajudaamiga.com

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Nota do editor:

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22775: O meu sapatinho de Natal (2): E eu ainda não era eu: conto de José Teixeira



Lourinhã > Praia da Areia Branca > 6 de junho de 2019 > A duna em flor...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Belíssimo conto que o Zé Teixeira mandou ao nosso editor LG e à Alice, no passado dia 12 de novembro, "neste tempo de festa da vossa Clarinha" (que fez dois anos, celebrados no Funchal)... Resposta do LG:

"Belíssimo conto, Zé, o que mandaste, a mim e à Alice, no passado dia 12 de novembro, 'neste tempo de festa da vossa Clarinha' (que fez dois anos, celebrados no Funchal)...

Embora não fosse essa a tua intenção como autor, o editor LG fez questão de o partilhar com os amigos e camaradas da Guiné, na certeza de que o vão ler e apreciar. Obrigado, Zé, em meu nome e da Alice, avós da Clarinha. E quando ela for maiorzinha, prometo lê-lo, em voz alta. Ficará a saber então que tem mais um "tio-avô" com grande sensibilidade humana e não menor talento, capaz de escrever um conto como este, tão cheio de ternura e tão "natalício". Um balaio cheio das melhores coisas da vida e do mundo, para ti, esposa, filhos e netos, coisas que não têm peso nem medida: saúde, paz, amor, esperança...Um abraço fraterno, Luís".


 
Conto: E eu ainda não era eu…


por José Teixeira

[ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá Empada , 1968/70; fundador e um dos régulos da Tabanca de Matosinhos; "senador" da Tabanca Grande, tem mais de 360 referências no nosso blogue]

 

Fui gerada antes de existir, em sonhos de amor, espelhados num berço de oiro fino, talhado a quente pelos meus pais, em noites de luar.

Caminhavam pela praia de Matosinhos fora, em passada suave, para não assustarem a leve brisa outonal que esvoaçava pelo ar e lhes roçava a face com carinho, alimentando o doce sonho que emergia dentro dos seus corações, vigiados por milhares de gaivotas em descanso, mais a norte, junto ao belo edifício do Terminal de Passageiros, enquanto outras esvoaçavam sobre as suas cabeças numa deleitável dança, animada por melodiosos cantos de acasalamento.

De mãos unidas pelos dedos firmemente entrelaçados, deixavam-se embalar pela música das ondas, que ajoelhavam a seus pés cobrindo-os de beijos, e sem querer lhes perturbavam a linha de pensamento que os unia, ao mesmo tempo que deixavam as doces gargalhadas de prazer e felicidade ecoar no espaço sideral que os envolvia.

Milhões de lâmpadas celestes projetavam tímidos raios de luz, deambulando pelo cosmos às escondidas da lua em fase de quarto crescente, até se cruzarem com aqueles olhos que irradiavam centelhas de felicidade. Retiravam-se, então, intimidados com o brilho que saltava alegremente daqueles olhares, como os raios do néon do mais belo reclame sobre o dom da vida.

Sonhavam o meu futuro num livro aberto cujas páginas estavam virgens. Imaginavam-me sentada na areia a escrevê-lo com tinta indelével da água azul do mar que lhe beijava os pés. E eu ainda não era eu. Eu era apenas o sonho que comandava as suas vidas. Era a estrela que brilhava no horizonte sem idade, caminhando ao encontro da luz da humanidade, trazendo na bagagem mil coisas belas. As mais belas que o mundo pode ter, para os encantar.

Por vezes, surgiam pequenas nuvens que escondiam o luar e as estrelas lá no alto dos céus e eu, que ainda não era eu, ficava triste. Tão triste como eles. Fantasmas cavalgando incertezas. Sombras agoireiras sobre o meu futuro, logo dissipadas pela esperança do amor que os unia e pela fé que transforma montanhas.

De repente, num estremecimento, que eles recordam a cada momento, deram corda à paixão que os unia, recolheram-se nas rochas plantadas na praia e eu nasci do mais belo ato de amor que o Planeta Terra conheceu. Cheguei transportada aos ombros, pelos ventos da ternura que os unia. Ousei bater, de mansinho, à porta da vida, e entrei sem pedir licença, na certeza de que seria bem-vinda e escondi-me silenciosamente no ventre de minha mãe. Estavam entrelaçados numa conversa animada e não deram pela minha chegada. Os gestos de carinho e afeto, que partilhavam entre si foram para mim o feliz prenúncio de que era ansiosamente desejada e senti-me uma felizarda por ter uns pais que se amavam tão profundamente.

E continuavam a sonhar. Acalentavam o sonho da minha vinda e eu estava no meio deles. Ainda pensei em transmitir-lhes um sinal. Talvez um pequeno enjoo à minha querida hospedeira, mas decidi acompanhá-los no sonho. Que sublime sonho!

Um belo dia, a minha mãe, notando a falta dos sinais da sua feminilidade, deduziu que eu tinha ousado aflorar dentro de si e guardou em silencioso anseio um sinal mais concludente da minha presença.

Durou pouco tempo o seu silêncio. A sua expectante alegria foi tão intensa que meu pai deduziu que algo de bom estava para acontecer. Também ele sonhava poder acolher-me nos seus braços, sem saber que eu já estava bem escondidinha no coração de minha mãe. Um terno e profundo abraço, que só os verdadeiros amantes sabem dar e saborear, foi a forma que a minha mãe encontrou para lhe transmitir a sua ansiedade. Senti-os a correr à procura de uma médica amiga, a Suzana, que confirmou a minha chegada.

Só sei que meu pai ficou tão “tonto” com a notícia que escreveu um lindo poema, que guardo como o primeiro e o mais belo presente que recebi, e o dedicou à minha mãe.



Estrela que brilhas no horizonte sem idade,
Ousaste bater à porta da vida,
De mansinho,
E entrar suavemente,
Caminhando ao encontro da luz da humanidade.

Trazes na bagagem mil coisas belas
As mais belas que o cosmos tem
Para nos encantar.
Serás sol ao amanhecer,
Lua cheia ao anoitecer.

Vem, meu bem,
Nosso caminho alumiar
Com o teu sorriso de bonança.
Flor em botão,
Rosa ou cravo, não importa,
Tu nasceste antes de ti
Em sonhos de amor,
Espelhados em berço de oiro,
Carregado de esperança.

Tu recebeste o sopro da vida
Em ninho de amor-perfeito.
Tu projetas amor em teu redor
O amor que nasceu contigo.
Tu levas amor a quem te ama,
Tu enriqueces de amor quem te protege,
Tu acolhes o amor puro
Do amor que te gerou,
Porque tu és amor,
Tu és o amor da nossa vida.



E assim se iniciou a minha aventura neste mundo. Convidaram os meus avós para virem, no domingo seguinte, almoçar cá a casa. Nesse dia, foram à florista comprar as mais belas flores e coloriram as janelas, mesas e prateleiras da casa. Puseram sobre a mais rica toalha de mesa o faustoso serviço de jantar, oferecido como prenda de casamento pelos meus tios Zeca e Linda. A minha mãe aprimorou um cabritinho assado no forno para dar um prazer ao meu avô, enquanto o meu pai, que não é adepto de doçuras, preparava uma salada de fruta com todos os ingredientes, para a sobremesa.

Era meio-dia quando os convidados, que até parece terem combinado a hora de chegada, o que não creio ser verdade, apareceram, felizes e contentes por poderem partilhar em comum um dia de convívio com os seus filhos. Creio que a minha avó Sofia já suspeitava, e tanto assim que trazia um belo ramo de rosas brancas para oferecer à filha querida.

Quando os meus pais lhes abriram a porta da rua, os acolheram de sorriso aberto e eles descobriram a pulcritude que transpirava no interior da casa, foi-lhes fácil deduzir que havia felizes novidades para contar. Não foram precisas palavras para anunciar que eu tinha chegado.

Uniram-se, os seis, comigo no meio, num abraço do tamanho do universo para festejar a minha vinda a este mundo. A felicidade que transbordou dos seus corações encheu o meu ego. Ah! Como eu gostava de ter perninhas, por mais frágeis que fossem, para poder expressar em pulinhos de alegria a felicidade que se apossou de mim, ao sentir-me assim bem-vinda! Mas eu era apenas um pequenino botão!

Ali mesmo andei de colo em colo. Fui elevada aos píncaros do céu pela minha mãe. Senti os abraços repartidos, os sorrisos espelhados da alegria que os animava. Os mil conselhos que as queridas avozinhas teimavam em dar à minha mãe foram guardados em livro de oiro. Todos eram precisos. Bem! Todos não. Alguns, já tinham barbas brancas como as do avô Tomás, outros, eram tão lógicos e de senso comum, que minha mãe apenas dava um sorriso de aceitação e os enviava para a pasta do esquecimento que acauteladamente trazia consigo desde o momento em que sentira minha chegada.

O meu avô paterno ficou tão comovido que pegou na mão da minha mãe, encostou-a ao coração e deixou cair uma lágrima de felicidade pela minha chegada, mas a minha avó, logo recolheu a lágrima num lenço de papel cor-de-rosa e pediu para chamarem o INEM. Foi tamanha a confusão que até eu fiquei assustada. Minha avó só gritava: "Chamem o INEM! Chamem o INEM!"

O meu avô, com a sua voz grossa, disse: "Qual INEM qual carapuça! Então não posso deitar uma lagrimazita de comoção que já estou doente?! Não te preocupes mulher, que o meu coração está forte e sobretudo feliz por saber que vou ser avô. Descansem e desfrutem este momento, tanto quanto eu!"

Fiquei então a saber que o meu avô sofria do coração, mas afinal estava apenas comovido e logo passou o susto, para eles e para mim, que ainda não estava preparada para estas coisas.

Estranhamente, os meus pais ainda não me tinham dado um nome. Fora tão curto o tempo, desde o momento em que me geraram, que nem se tinham lembrado de um nome para mim. Talvez se tivessem lembrado: creio que minha mãe tinha pensado em Constança e o meu pai sempre gostou do nome Gabriel; mas para quê pensar num nome para mim se nem sequer sabiam se eu era rapaz ou rapariga?! Nem eu sabia!

O mais importante para eles, segundo deduzi das suas palavras e pensamentos, era criarem as condições ideais para eu ser bem recebida. Meus avôs é que não descansaram e logo se puseram numa disputa acesa, perante o gáudio dos meus pais, pelo interesse demonstrado em me batizarem. No prolongado almoço que se seguiu, em que eu fui o centro das atenções, ouvi chamarem-me Miguelito, Dani, Tecas, sei lá! Tantos nomes me deram que já me esqueci, mas nada ficou decidido.

Talvez Constança! …Talvez Gabriel ou Rafael…talvez Tomás em honra do meu avô paterno… defendiam os meus pais, com afinco.

E assim passámos um belo dia!

A meio da tarde, bem comidos e bem bebidos, fizerem um tchim! tchim! à minha saúde e à minha mãe, como portadora do tesouro mais querido da vida deles, e eu senti-me um pequeno príncipe no reino que eles estavam a construir, de sonho e de esperança.

Agora já sei que era uma princesa e me vou chamar Constança.

Despediram-se com abraços e beijos e muitos desejos de felicidades para a minha mãe e para mim. O meu pai até se deixou envolver por algum ciúme que logo desapareceu na ternura de um beijo que minha mãe lhe deu.

Meus pais, mal fecharam a porta da rua, entrelaçaram-se um no outro e deram-me muitos beijinhos. Estavam tão felizes e eu sentia-me tão bem no meio deles! Viver deve ser uma coisa fantástica!

Depois, muita coisa boa me aconteceu...

A minha mãe trata-me com mil cuidados. Até já aprendi com ela a gostar de música! Sempre que está em casa a descansar, porque eu estou a crescer e devo pesar muito na sua barriguinha, ela deita-se a ouvir música e eu deleito-me com ela. Ficamos as duas muito quietinhas em silêncio. Bem, eu porto-me mal, porque já tenho o prazer de brincar e de lhe fazer cócegas. Aproveito os momentos em que ela está deitada, para brincar com os pés, mas ela parece gostar e vai logo pôr a mãozinha dela por cima. Até chama o meu pai para ele sentir o meu pé a fazer-lhe cócegas. E riem-se muito!... É tanta a sua alegria que até eu rio de prazer.

Sei que já tenho um bercinho junto do leito onde meus pais descansam, para quando eu sair da barriga da minha mãe, dormir aconchegada ao lado deles. Passam a noite abraçados um no outro. O meu pai ressona um pouco, mas não me incomoda. A minha mãe é que por vezes acorda e ficamos as duas sonhar o meu futuro. 

Vou ter muitas bonecas e outros brinquedos. Depois vou para a escolinha brincar com outros meninos e meninas e vou ter uma bicicleta oferecida pelo meu tio Zeca. Eu vou ser uma mulher alta como a minha mãe e tão bonita como ela. Não! Acho que minha mãe será sempre mais bonita que eu. Mas serei uma boa estudante e vou aprender a tocar piano como ela. Parece que o meu pai gostava que eu aprendesse a nadar. Ele ainda não mo disse, porque quem fala comigo é a minha mãe. Ela fala-me muito do meu pai e do amor que os une. O amor deve ser uma coisa muito boa, porque foi no amor que eles me geraram e, segundo ela diz, eu vim alimentar esse amor. Como eu me sinto feliz e orgulhosa!

Agora que sinto a quentura do tempo de verão a enlaçar-me e a convidar-me a ir ao encontro do mundo que me espera de braços abertos, com sorrisos acolhedores e corações cantando de júbilo, é tempo de aceitar o desafio para sair do cantinho acolhedor que minha mãe construiu dentro do seu coração e partir para a vida, levando comigo uma vontade tremenda de construir um mundo novo, de mão dada com todas as pessoas de boa vontade.

José Teixeira
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Nota do editor:

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22433: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte V: A lenda de Sundiata Keita



A lenda de Sundiata Keita  (pp. 28-41). Ilustracão: mestre Augusto Trigo, pág. 29



1. Transcrição das págs. 28 a 41 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)

J. Carlos M. Fortunato > Lendas e contos
da Guiné-Bissau


[Foto abaixo: o autor, Carlos Fortunato, foi fur mil arm pes inf, MA, CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga]



CarçpsFotunato


A lenda de Sundiata Keita


Estava certo dia o Mansa(Rei) (15) do Mali, Naré Maghan Kon, também chamado “leão do Mali”, a descansar na sua tenda, quando dois caçadores, acompanhados de uma jovem corcunda e feia, se aproximaram e pediram autorização para lhe entregar uma prenda.

Grande Mansa, vimos de uma terra onde um búfalo terrível devastava udo. Nós matamo-lo, mas o seu espírito encarnou nesta mulher, que é feia, mas forte e corajosa, por isso a trouxemos para você casar com ela, pois o filho que ela lhe der tornará grande o Mali. O nome dela é Sagolom  disse um dos caçadores.

 O filho de um leão e de um búfalo serão poderosos de verdade - sussurrou o djali bá  (conselheiro) (16) ao Mansa Maghan.

O Mansa casou-se com Sagolom, e no ano seguinte, ela deu à luz um menino. Todos se alegraram, menos Sassouma Bérété, a primeira esposa do Mansa.

 Maghan já tem o meu filho como seu herdeiro. Que necessidade tem ele de outro? Porque foi casar com aquela mulher horrível? Porque o meu filho não pode ser o Rei? O que vai ser de mim e do meu filho?   Sassouma, amargamente, pelos corredores do palácio.



Ilustracão: mestre Augusto Trigo, pág. 30


Mas o novo príncipe, Sundiata, embora tendo o espírito do búfalo e do leão, não conseguia andar.

Durante anos Sagolom tentou em vão curar o seu filho com mésinhos (17), mas Sundiata arrastava-se de gatas pelo palácio, ignorado por uns, ridicularizado or outros, deixando a sua mãe desolada e o seu pai desesperado, apenas o djali bá do Mansa lhes dava esperança.

Doente e sentindo que a morte se aproximava, o Mansa Maghan ordenou que Sundiata fosse trazido à sua presença:

  Meu filho,  já estou velho e os meus dias estão a terminar. Está na altura de tu, como futuro Mansa teres o teu djali bá. Este é Bala Fasséké, o seu pai foi meu djali bá, e ele será o teu. Ele irá ajudar-te no teu reinado  –disse o Mansa.

Quando o Mansa Maghan morreu, o Conselho dos Homens Grandes não respeitou a decisão do Mansa de nomear Sundiata como seu sucessor, e nomeou o filho de Sassouma , como novo Mansa.

Cheia de orgulho, a agora poderosa Sassouma insultou a mãe de Sundiata e expulsou-a do palácio, bem como a Sundiata e aos seus irmãos.

Sundiata, vendo a sua mãe em lágrimas, ordenou a Bala que lhe fosse buscar uma vara de ferro. Quando Bala voltou, Sundiata, apoiando-se na vara com ambas as mãos, levantou-se e ficou de pé, sem qualquer apoio, ficando a vara vergada com a força que Sundiata fez.

Uma multidão reuniu-se espantada quando Sundiata deu um passo, depois outro, e outro, e Bala gritou: 

 
– Abram caminho! Abram caminho! O leão está a andar!

Aos sete anos, Sundiata começava finalmente a andar, o que encheu de alegria a sua mãe.

Quando Sassouma ouviu as notícias sobre a caminhada e a força de Sundiata, ela temeu que ele agora fosse desafiar o seu filho pelo lugar no trono, e decidiu matá-lo. Depois pensou melhor e decidiu aguardar, pois Sundiata não tinha quem o apoiasse na conquista do trono, e com o tempo o seu jovem filho ganharia cada vez mais poder, e seria mais fácil destruir Sundiata.

Quando Sundiata fez dez anos, Sassouma achou que era a altura de se vingar de Sundiata e da sua família. Assim enviou primeiro Bala para a corte do terrível Mansa Sosso, Sumanguru, para Sundiata não ter ajuda do seu djali bá.


Ilustracão: mestre Augusto Trigo, pág. 32

Sumanguru era um poderoso feiticeiro, conhecido pela sua maldade e magia, cujo grande exército era muito temido. Sumanguru ficou impressionado com a inteligência e habilidade do jovem Bala, e resolveu mantê-lo ao seu serviço para sempre.

Sundiata ficou zangado e triste com o destino do seu amigo e conselheiro, mas seguiu as sábias palavras de sua mãe:

 Meu filho, temos que deixar o Mali. Aqui corremos muito perigo, porque Sassouma agora é muito poderosa, e vai matar-nos a nós e à nossa família. Temos que fugir. Um dia voltarás para o lugar que te pertence.

Naquela noite, Sagolom e os seus filhos deixaram tudo, e partiram à rocura de um reino que lhes desse abrigo. Durante sete anos, a família viajou, indo de reino em reino, a pedir ajuda.

Alguns dos governantes dos lugares por onde Sundiata passava negavam-hes abrigo e as portas eram fechadas, pois tinham medo das represálias de Sassouma.

A juventude de Sundiata foi uma permanente viagem, mas isso deu-lhe muitos conhecimentos e muitos amigos, e com o tempo o seu corpo tornou-se também forte, transformando-se num guerreiro poderoso.

Em todos os reinos e caravanas, Sundiata ouvia falar do poder crescente de Sumanguru, da sua crueldade e do povo que vivia infeliz nas terras sob seu poder.

Por fim, a família de Sundiata encontrou um lugar para ficar, junto ao rio Níger, na cidade de Mema, e a sua mãe cansada e doente, pôde finalmente  descansar.

Sundiata colocou-se ao serviço do Mansa de Mema, distinguindo-se logo nos combates que este travou contra os inimigos do Reino, o que lhe granjeou os favores do Mansa.

O Mansa de Mema, observando a coragem e a capacidade de liderança de Sundiata, foi-lhe dando cargos militares cada vez mais importantes, e impressionado com a sua capacidade, decidiu fazer dele o seu herdeiro, dando-lhe a sua filha para casar, e ensinando-lhe a arte da guerra e da governação.

Um dia, chegou inesperadamente um grupo de homens a Mema, e entre eles vinham os homens grandes do Mali, que antes não tinham querido Sundiata como seu Mansa, e pediram-lhe uma audiência urgente.
 


Ilustracão: mestre Augusto Trigo, pág. 33

- Filho do leão e do búfalo, volta para a tua terra, a tua gente precisa de ti - imploraram os homens grandes.

- O que aconteceu? - perguntou Sundiata.

- Sumanguru invadiu o Mali, matou a família real, e continua a matar e a escravizar muita gente. O povo quer lutar, mas não temos um líder para nos guiar. Os marabus dizem que só tu podes salvar o Mali - responderam eles.

- Irei partir já! Vamos destruir Sumanguru, e o seu reino de terror! - exclamou Sundiata.

Sundiata não perdeu tempo e foi falar com o Mansa de Mema, pedindo-lhe autorização para partir imediatamente. O Mansa de Mema deu-lhe metade do seu exército, e disse-lhe:

- Vai, o teu Reino está à tua espera, leva metade do meu exército e salvao teu povo.

- Obrigado. Nunca vou esquecer toda a ajuda que me deu. Eu voltarei para casar com a sua filha - disse Sundiata agradecido.

Sundiata com a cavalaria formou o seu esquadrão de ferro, e ele próprio assumiu o seu comando.

A cavalaria de Mema era constituída por cavaleiros com grandes lanças de ferro. Cavalgando à cabeça desta coluna, Sundiata planeou reunir um poderoso exército, indo a cada reino que o tinha ajudado durante o seu longo exílio, e aos reinos que combatiam contra Sumanguru.

Quando Sundiata se dirigiu para a cidade de Tabom, para se encontrar com o seu amigo Tabom Uana, o qual era agora Mansa de Tabom, Sumanguru enviou o seu filho Sosso Bala, que tinha aproximadamente a idade de Sundiata para lhe barrar o caminho.

Sosso Bala colocou os seus guerreiros no vale, à entrada das montanhas, que davam acesso ao caminho para Tabom. Sosso Bala estava confiante, pois o seu exército era muito mais numeroso que o pequeno exército sob o comando de Sundiata, e só as setas dos seus numerosos arqueiros, quando estes as disparassem, tapariam a luz do sol, e seriam suficientes para destruir Sundiata e o todo o seu exército,
antes de ele chegar perto dos seus guerreiros.

Quando Sundiata chegou ao vale, depois de um longo dia de marcha, o vale estava negro com a infantaria de Sosso Bala. Todos os chefes de guerra foram da opinião de que os guerreiros deviam descansar e combater no dia seguinte.


- Sundiata, deixe os seus homens descansarem, amanhã combateremos.

Sundiata sabia que todos estavam cansados da caminhada, mas acreditou que poderia transformar aquela fraqueza em força, e contra tudo o que todos pensavam disse:

- Não vamos descansar. Vamos atacar já!

Sundiata colocou-se à frente da sua cavalaria e deu ordem de ataque.




Ilustracão: mestre Augusto Trigo, pág. 35

Os espiões Sossos tinham informado Sosso Bala que o exército de Sundiata tinha feito uma longa marcha e que estava demasiado cansado para combater, pelo que os guerreiros poderiam descansar, pois a batalha só seria no dia seguinte.

Sosso Bala apesar de saber que Sundiata estava perto, acreditando na informação dos espiões, não achou necessário colocar o seu exército em formação de batalha, e o ataque de Sundiata apanhou todos de surpresa e lançou a confusão total.

- Alerta, alerta! Ataque de Sundiata! - gritaram as sentinelas, mas já era tarde, pois a cavalaria de Sundiata, lançada num galope desenfreado, entrou pelo acampamento de Sosso Bala.

Os arqueiros Sossos nem tiveram tempo de disparar as flechas para deter a onda atacante, e num instante Sundiata e o seu exército estavam no meio deles, fazendo um massacre terrível.

Sundiata viu Sosso Bala e avançou para ele, mas um guerreiro Sosso colocou-se no caminho, e enquanto Sundiata lutava, Sosso Bala aproveitou a oportunidade para fugir, temendo pela sua vida.

Ao verem Sosso Bala fugir, os guerreiros Sossos fugiram também. Antes do fim do dia, já só havia homens de Sundiata no vale, e os seus cavaleiros perseguiam e aprisionavam guerreiros Sossos.

Ao entardecer, o Mansa Tabom Uana veio ao encontro do seu amigo Sundiata, trazendo mantimentos e mais guerreiros, reforçando assim o exército de Sundiata.






Ilustracão: mestre Augusto Trigo, pág. 36



Ilustracão: mestre Augusto Trigo, pág. 37



A notícia da derrota do invencível exército de Sumanguru espalhou-se rapidamente, e todos os que tinham sofrido às mãos de Sumanguru, corriam agora a juntar-se a Sundiata.

Em breve, um numeroso exército se estendia pela planície, e os cascos dos seus cavalos eram ouvidos a muitos quilómetros de distância. Agora Sundiata podia passar à ofensiva, e decidiu ir ao encontro de Sumanguru no vale de Neguéboria, em Boure.

Os dois exércitos encontraram-se no estreito vale de Neguéboria. Sundiata optou por uma formação em quadrado, com a cavalaria à frente e os arqueiros na retaguarda.

Sumanguru com o seu capacete com chifres, bem visível no alto de uma das colinas que dominavam o vale, dava ordens ao seu exército. Sundiata deu ordem de ataque, soaram tambores e trompetas, e os cascos dos cavalos da sua cavalaria levantaram uma nuvem de pó vermelho e ecoaram nas paredes do vale, como um enorme trovão, fazendo tremer de medo as forças de Sumanguru.

Sundiata comandou a carga de cavalaria, e o seu manto branco esvoaçava no ar como uma bandeira, que os seus homens seguiam.

As forças de Sundiata atacaram o centro do exército de Sumanguru e logo este começou a ceder. Sumanguru deu ordem aos guerreiros que tinha escondido para atacarem as forças de Sundiata pelos lados, numa estratégia conhecida como chifres de búfalo, mas Sundiata já tinha previsto essa manobra e o seu exército estendeu-se rapidamente por toda a largura do vale, bloqueando a sua passagem.

Sumanguru tentou conter a queda do centro do seu exército, juntando- se aos seus guerreiros, para lhes dar coragem, mas isso colocou-o ao alcance da lança de Sundiata.


Ilustracão: mestre Augusto Trigo,  pág. 38

Sundiata não perdeu a oportunidade e atirou a sua lança, a qual atingiu o peito de Sumanguru, mas fez ricochete. Sundiata não desistiu e com o seu arco lançou uma flecha contra Sumanguru, mas esta também fez ricochete no peito de Sumanguru.

- Ninguém me pode matar! - gritou Sumanguru.

- Isso é o que vamos ver - respondeu Sundiata.

Furioso, Sundiata pegou noutra lança e avançou para onde estava Sumanguru, mas quando o procurou novamente, já ele estava no alto da colina.

Espantado, Sundiata parou de lutar e ficou a olhar para Sumanguru, vendo-o desaparecer.

O exército de Sumanguru, ao vê-lo fugir, fugiu também. Sundiata ficou a pensar como poderia derrotar Sumanguru, se ele tinha uma magia tão poderosa que podia desaparecer e era invulnerável ao ferro.

Sundiata continuou a sua marcha, desta vez para a Sibi, de onde lhe chegaram boas notícias, pois o seu amigo e conselheiro Bala tinha conseguido fugir da corte de Sumanguru e vinha ao seu encontro.

O encontro entre Sundiata e Bala foi de grande alegria, e a partir dele Sundiata ficou a saber que o animal sagrado de Sumanguru era o galo, e era dele que provinham os seus poderes e feitiços.

Bala tirou do seu saco uma seta, que tinha na ponta um esporão de galo, e disse:

- Esta seta irá acabar com o poder de Sumanguru, pois este esporão de galo irá destruir toda a sua magia. Basta feri-lo para ele ser vencido!

- Como poderei feri-lo, se as lanças e as setas fazem ricochete nele? - perguntou Sundiata.

- Sumanguru tem um escudo de ferro, escondido debaixo da roupa, atingi-o onde não tiver roupa.

- Obrigado Bala! Vamos fazer Sumanguru provar o seu próprio feitiço!

Os dois exércitos enfrentaram-se na planície de Kirina. Durante todo o dia, uma furiosa batalha foi travada entre os dois exércitos, e Sundiata, montado no seu cavalo, procurou Sumanguru.

No meio da poeira vermelha e da confusão da batalha, Bala descobriu o feiticeiro e gritou para Sundiata, ao mesmo tempo que apontava:

- Sumanguru está ali!

Sundiata olhou, e viu Sumanguru no alto de um morro perto de si, e, antes que ele o visse, pegou no seu poderoso arco e puxando a corda ao máximo disparou a seta com o feitiço.

A flecha voou como um raio, espetando-se no braço de Sumanguru. Somanguru ao sentir-se ferido e vendo que a seta tinha o feitiço do galo, soltou um grito de pânico e fugiu a galope do campo de batalha.

-Ahaaa! Estou perdido! - gritou Sumanguru.

Desorientado com a fuga de Sumanguru, o exército do feiticeiro fugiu também. Sumanguru, perseguido por Sundiata, fugiu para a encosta do Monte Koulikoro e entrou cambaleando numa caverna escura, mas por mais que o procurassem nunca mais foi visto.

Diz-se que Sumanguru foi transformado na pedra da caverna, pelos poderes do mal que ele servia.

Sundiata voltou em glória para Mali. Durante toda a sua viagem, as pessoas corriam aos caminhos e estradas por onde passava, gritando vivas e louvores.




Ilustracão: mestre Augusto Trigo,  pág. 40

- Sundiata! Sundiata! Viva Sundiata! - gritavam à sua passagem.

Os Mansas que tinham ajudado Sundiata no exílio e nas suas batalhas, juraram-lhe fidelidade, e o Mansa do Mali, filho do leão e do búfalo, transformou assim o Reino do Mali num Império, constituído por todos esses Reinos.

Sundiata foi o primeiro Mansa Bá (Imperador) (18) do grande Império do Mali, sendo este o maior Império da África Ocidental.

Esta é uma das muitas versões da lenda de Sundiata.

[Adaptação, revisão/fixação de texto e inserção de fotos e links para efeitos de edição deste poste no blogue: LG]

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Notas do autor:

(15)  Mansa - designação dada pelos mandingas aos seus reis. Os portugueses chamaram-lhes “Régulos”, que significa pequenos reis.

(16) Djali bá - os djali bá já não existem, hoje são apenas artistas tocadores de corá, que contam as histórias ao som da música do corá, mas os djali bá tiveram no passado um papel importante junto dos Mansas (Reis), pois além de tocadores de corá eram seus conselheiros;
eram eles que transmitiam oralmente a história e as leis do Reino, e aconselhavam o Rei nas mais diversas decisões. A palavra significa grande em mandinga, isto significa que não eram um simples artistas de corá, porque para esses, o termo em mandinga é corá djaló, ou seja artista do corá ou tocador de corá. Além do termo artista, corá djaló e djali bá, são várias as denominações que lhe são atribuídas, desde o termo judeu em português, djidiu do crioulo, até ao griote do francês.

O termo judeu aparece pela primeira vez no “Tratado Breve dos Rios da Guiné do Cabo Verde” de 1594, do capitão André Alvares d´Almeida, o qual os descreve no capítulo dedicado ao Reino de Borçalo. O crioulo adaptou o termo judeu, para jideu ou djideu, hoje em dia pronuncia-se djidiu.

(17) Mésinhos - palavra do crioulo que significa medicamento, remédio, mas também é usada para se referir a coisas com poderes mágicos.

(18) Mansa Bá - era o título dado pelos mandingas aos Mansas que possuíam nos seus domínios poder sobre outros Mansas (Reis), a palavra  em mandinga significa grande, dai o significado de Grande Rei ou Imperador, por vezes, por lisonja os súbditos chamavam ao
Rei, de Grande Rei, apesar de não o serem. Também existem referências a Imperadores chamando-lhes apenas de Mansa, o que é usual. Os portugueses chamavam a todos eles de “Régulos”, o que significa pequenos reis.
 


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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22405: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte IV: Lendas mancanhas