Mostrar mensagens com a etiqueta correspondência. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta correspondência. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2586: Historiografia da presença portuguesa em África (6): O Prof René Pélissier e o Inácio Maria Góis (Virgínio Briote)





História da Guiné (1841-1936) Vol. I

René Pélissier

Histórias de Portugal
282 Pags
€ 14,27+ IVA
Editorial Estampa
___________


René Pélissier, quem é?

Doutorado em letras, Pélissier é um especialista em história colonial Portuguesa recente. A vasta obra publicada (sete volumes em língua portuguesa) não abarca apenas Portugal, estende-se também a Espanha.

Os seus trabalhos ajudam-nos a entender as aventuras africanas e asiáticas dos povos ibéricos.

Correspondência com o Professor René Pélissier (I)


1. A propósito do lançamento do livro do Inácio Góis, o Meu Diário, recebemos em tempos uma mensagem do Professor René Pélissier:
Prezado Senhor,Sou o historiador e bibliógrafo francês da Guiné e não consigo encontrar um exemplar de uma edição de autor que a Biblioteca Nacional de Lisboa possui mas, sem dar o endereço do autor – editor.
Trata-se de Góis, Inácio Maria: O meu Diário (1). Guiné 1964-66 Companhia de Caçadores 674, s.l. s. d. Aljustrel: Mineira, 674 páginas cerca de 2006.

Seria capaz de me dizer onde posso arranjar o livro ou pelo menos como contactar o autor? Alguém no vosso blog conhece este senhor?
Muito obrigado pela sua ajuda
Melhores cumprimentos

Prof. René Pélissier



Prontamente, e com muito gosto, respondemos-lhe:

Caro Professor René Pélissier,

Já publiquei a sua mensagem no foranada, um blogue que reúne mais de 100 ex-combatentes na Guerra da Guiné, abrangendo todos os anos do conflito colonial. Estou certo que vamos encontrar o autor e, assim, satisfazer o seu pedido.

Procurei, em tempos, saber o porquê de um estrangeiro, dedicar tanto tempo da sua vida na pesquisa e publicação de tão vasta bibliografia sobre a aventura deste pequeno povo pelas terras africanas e asiáticas. E nunca consegui saber. Será que existe algum sítio onde eu possa procurar informação fidedigna sobre o Professor?

vb (Virgínio Briote)

2. Dias depois, o Prof Pélissier respondia-nos:

Prezado Senhor,

Agradeço muito a sua ajuda e li a sua mensagem no blogue.

É muito difícil ter uma relação razoavelmente completa dos livros publicados sobre a guerra colonial e sugiro que, ao seu nível, o blogue tente fazê-lo para a Guiné, dando as referências bibliográficas completas (incluindo os endereços dos editores ou autores-editores). Não falo dos artigos que abundam!~

Sou muito pouco esperto em relação a informática, mas julgo que não deve haver sítio nenhum dedicado à minha contribuição "ultramarina". O que posso dizer é que existe no Diário de Noticias de 2 de Abril 2007 uma pequena entrevista minha que talvez possa responder a algumas das suas perguntas.Como sabe a Editorial Estampa já publicou sete volumes da minha autoria sobre a história mas é apenas uma pequena parte do que publiquei em francês sobre o assunto. A tradução custa muito e os leitores são poucos.
Tenho as maiores dificuldades em encontrar uma revista ou um jornal português sério que aceite gastar dinheiro para publicar crónicas bibliográficas internacionais, trimestrais sobre o tema "ultramarino".~

Agora estou á procura de um novo media, visto que a minha colaboração com uma revista portuguesa conceituada acaba no fim de 2007. Na Biblioteca Nacional de Lisboa pode ver o meu último livro de bibliografia (1712 resenhas!): intitula-se Angola-Guinées-Mozambique..., 748 páginas e verá o que pretendo fazer no domínio da informação.
Vamos ver se vou continuar ou desistir: sem media e interesse do público não vale a pena dedicar-se a tanto trabalho. E como sou um especialista independente e não partidário é raro que " je plaise aux Grecs et aux Troyens".

Muito obrigado.
René Pélissier


3. Transcrição (com a devida vénia) de extractos de uma pequena entrevista que o Professor Pélissier deu a Leonor Figueiredo, do DN.

O Prof Pélissier no DN em 02-04-07

O francês com uma paixão pela África portuguesa




O historiador francês René Pélissier apaixonou se pela nossa história colonial. E, apesar de não o dizer, adivinha-se que se enamorou do País e dos portugueses "mas de uma forma lúcida". Nesta relação ainda mal esclarecida que dura desde a adolescência, ainda não parou de escrever sobre o nosso passado e queixa-se de não ser reconhecido por Portugal. Em França, os adeptos do tema também não devem ser muitos. Apresenta-se René Pélissier, um homem só.

No livro que acaba de lançar, previne que não se trata de "libelo nem acusação" a Portugal. Mas isso esperar-se-ia de um historiador?
Só o historiador ideal é imparcial. A objectividade é uma fábula prisioneira de preconceitos, ideologias, antipatias e nacionalismo. Mas para a história colonial portuguesa basta consultar os autores de língua inglesa. Há séculos que a maior parte a denuncia como negreira, arcaica, brutal e incapaz: a quinta-essência do ultra colonialismo sob os trópicos.

É a sua grande obra, fruto de 40 anos de pesquisa, muito mais do que a compilação de livros anteriores?

Certamente. É o meu testamento historiográfico em honra dos portugueses, se quiserem abrir os olhos sobre a sua história colonial recente. Nos livros anteriores, sobre a conquista de Angola, Moçambique, Guiné e Timor, fiz uma análise profunda do avanço da fronteira colonial. Mas faltava a visão global e o estudo da progressão da implantação no império. Neste livro para o grande público, não posso pormenorizar, o leitor ficaria perdido no formigueiro cronológico de 490 operações militares. É uma síntese documentada, em que demonstro que não houve colonização sem primeiro haver soldados, na África tropical continental e Timor.

Por isso defende que a colonização começa no séc. XX, e não no XV.

Quis dinamitar o mito dos "cinco séculos de colonização/exploração". Como falar de "cinco séculos" em que o colonizador não aparece, senão na viragem do século XIX para o XX?


Para destruir este mito que tanto mal fez a Portugal, nada melhor do que o estudo da sua história militar colonial desde 1800. É uma evidência que para haver colonização é preciso haver colonos. Ora, as estatísticas oficiais, apesar de frágeis, mostram que a esmagadora maioria dos colonos estavam concentrados em Luanda. Mesmo em 1900 – admitamos que havia dez mil europeus –, o povoamento branco era minúsculo.

Durante décadas crescerá muito lentamente. Penso mesmo que, em 1900, metade dos futuros angolanos, no mínimo, nunca tinha visto um único branco.

Sei que a África portuguesa nunca foi o Jardim do Éden, mas foi pior nas outras colónias tropicais europeias. A diferença é que as suas metrópoles nunca reivindicaram nem cinco, nem quatro, nem três (à excepção da África do Sul) séculos de colonização.

Estudou a política colonial de vários regimes. Há grandes diferenças entre monárquicos, republicanos, a ditadura militar e Salazar?

Não houve grandes diferenças entre a monarquia e a I República no plano militar, à excepção talvez de os oficiais da república não hesitarem em empregar métodos radicais.


Salazar herda uma situação militar "calma", o que convém à sua visão contabilística: o império deve não só bajular o orgulho nacional da metrópole, como também contribuir para enriquecê-la.

Em 1930 e 1940, era a ambição admitida por todos os colonizadores, europeus e japoneses. Salazar trouxe continuidade na gestão governamental e evitou a perda de parte ou de todo o seu império para os aliados. Mas, prisioneiro do mito da unicidade do caso português, esclerosou-se, acreditando poder escapar, só, ao desaparecimento dos impérios ultramarinos, mais ricos e desenvolvidos do que o seu.

Vítima do mito dos cinco séculos, não quis ver as realidades e preparar o futuro. A sua obstinação transformou-se em pesadelo para a maioria dos portugueses, de 1961 a 1975. E bem depois.

Chamou às colónias "antídoto" psicológico para "a falta de confiança, pessimismo e complexo de inferioridade dos portugueses". Continua a pensar assim?


Não. Desde 1974-75 parece que o português médio retomou confiança no seu futuro europeu.

Mas escreveu em Explorar (1979) que os portugueses tinham nove espelhos para se verem na História.

Agora terão menos, talvez, mas a fórmula de Eduardo Lourenço continua pertinente – "Portugal é um país que nunca soube viver a sua história, senão como História Santa". Ainda há trabalho a fazer para os "jovens" historiadores ou jornalistas lusófonos. A luta continua!

Acusou alguns jornalistas portugueses de terem feito propaganda. Quando? Como bibliógrafo, chega à mesma conclusão ao ler os muitos livros que têm sido publicados?

Sim, quando os PALOP ainda eram colónias do Estado Novo e mesmo depois, nos anos das ilusões, após 1974.


Agora é diferente, com a chegada de gerações de grandes profissionais. Consegui – e às vezes foi difícil, pois certos editores portugueses não sabem o que é um serviço de imprensa ou julgam que a minha opinião não vale o custo de envio – os livros de reportagem ou de análise que estes novos jornalistas publicam sobre os PALOP e Timor.

Alguns são notáveis e fazem um trabalho de historiador, o que escrevi, preto no branco, nas minhas crónicas bibliográficas internacionais na Análise Social.

A paixão por África começa aos 12 anos, ao ler a revista Science et Voyages. E o caso português?

É uma história de amor. Fiquei encantado com o Terceiro Império. O desconhecido fascina-me. Tive vocação de explorador tardia, mas obstinada! Interrogava-me: como conseguiram negligenciar os portugueses cultos, míopes pelos "fumos da Índia", a história feita pelos parentes há duas ou três gerações? Estava tão apaixonado pela mina de ouro que é a biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa que cheguei a pensar naturalizar-me português para entrar neste continente misterioso.
Porque não se naturalizou?
Por três razões: a primeira é que prefiro Fernão Mendes Pinto à poesia épica; a segunda, é que com o fim dos impérios coloniais, se tivesse exercido o meu espírito crítico como historiador não partidário, teria tido, como português, sérios problemas com a PIDE; a terceira é que fui para o terreno africano confrontar os livros com as realidades.


E como não gosto dos mitos, fiquei estrangeiro, mas sempre grande consumidor de publicações portuguesas – uma droga dura para mim, pois moro em França numa biblioteca ultramarina! -, mas livre de me exprimir, sem ser acusado de ser traidor à "nova" pátria.
__________

(1) Por vezes, as nossas lágrimas foram difíceis de conter nas matas infernais da Guiné-Bissau, entre a região norte de Bafatá e nordeste de Farim, junto à fronteira do Senegal, onde a CCaç 674 se encontrava acantonada na pequena povoação de Fajonquito. (...).

O meu Diário, Guiné - 1964/1966. Companhia de Caçadores 674, de Inácio Maria Góis. Edição do Autor. Gráfica Mineira, Ltd.- Aljustrel. Abril 2006.
__________


Notas de vb:


1. vd artigos de René Pelissier, Análise Social, vol. XXXVIII (166)

Militares, políticos e outros mágicos

Esta nota de leituras refere-se a numerosos livros sobre a guerra, nomeadamente a guerra colonial portuguesa (1961-1974). Um número que poderia ter sido muito maior se os editores nos tivessem facultado todos os títulos pedidos. É que alguns parecem ter dificuldade em fornecê-los, ou consideram que os serviços de imprensa lhes saem demasiado caros, ou então trabalham com pessoal negligente. Em suma, não se trata, portanto, de uma selecção baseada em escolhas políticas ou simpatias pessoais do autor. Uma bibliografia só pode falar daquilo que se tem à mão. É, todavia, manifesto um crescimento significativo das memórias de antigos combatentes portugueses, aliás bastante mais significativo do que a produção suscitada pela conquista colonial dos séculos XIX e XX. Tudo indica que, nas décadas futuras, esse fluxo aumentará exponencialmente, devido às centenas de milhares de portugueses letrados que foram mobilizados para a defesa do império, devido à diversidade das suas experiências e ao traumatismo gerado por uma guerra que a grande maioria odiava, quer a considerasse inútil, contrária aos seus projectos e desumana, quer tivesse a sensação de ir arriscar a sua vida por interesses políticos e económicos com que não se identificava. As guerras de descolonização deixam geralmente uma lembrança amarga no espírito dos europeus que as travam. Os portugueses não fogem, evidentemente, a essa regra e estamos longe do triunfalismo das «belas campanhas coloniais» à Mouzinho de Albuquerque, Alves Roçadas, João de Azevedo Coutinho e outros grandes ou pequenos heróis de há três ou quatro gerações. Não há, nem nunca haverá, heróis nas guerras que vamos visitar. Apenas vítimas de ambos os lados, pese embora aos propagandistas e historiadores nacionalistas.De qualquer forma, na guerra de 1961-1974, uma guerra esfarelada e sempre recomeçada, sem batalhas decisivas, sem oficiais triunfantes, sem desafio patriótico, não há quem consiga citar um único nome sonante de entre a monotonia dos milhares de oficiais esgotados no mato ou prudentemente refugiados num qualquer gabinete com ar condicionado.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2519: As Nossas Madrinhas de Guerra (1): Os aerogramas ou bate-estradas do nosso contentamento (Carlos Vinhal / Luís Graça)


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Um Lassa, ferido em combate, recebendo assistência... Era esperado que as madrinhas de guerra (uma figura criada ou ressuscita pelo MNF em 1963) ajudassem a curar as feridas, sobretudo psicológicas, da guerra. Uma madrinha de guerra tinha a obrigação de escrever, pelo menos semanalmente, ao seu afilhado...

Lembro-me de o meu pai, 1º cabo de infantaria, expedicionário, durante a II Guerra Mundial, em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente (1941/43), me contar que escrevia semanalmente dezenas de cartas para os seus camaradas que não sabiam ler nem escrever... E que só um deles tinha 22 madrinhas de guerra...

Portanto, esta figura não é uma criação genuína, original, do MNF... O movimento fundado e liderado por Cecília Supico Pinto dê-lhe mais consistência ideológica e visibilidade mediática:

"Que cada uma de nós se lembre que lá longe, nas províncias ultramarinas, há rapazes que deixaram tudo: mulheres, filhos, mães, noivas e o seu trabalho, o seu interesse, tudo enfim, para cumprirem o seu dever de soldados. É preciso que as mulheres portuguesas se compenetrem da sua missão, e assim como eles estão cumprindo o seu dever, lutando pela nossa querida Pátria, também vós tendes para cumprir o vosso, lutando pelo bem-estar dos nossos soldados- luta essa bem pequenina, pois uma só palavra, um pouco de conforto moral basta para levar alguma felicidade aos que estão contribuindo para a defesa da integridade do nosso Portugal.

OFEREÇAM-SE PARA MADRINHAS DE GUERRA. MANDEM O VOSSO NOME E A VOSSA MORADA PARA A SEDE DO MOVIMENTO NACIONAL FEMININO".

("Madrinhas de guerra". In: Revista Presença. Nº 1, 1963, p. 36-37).


Foto: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.




Um original aerograma, escrito em linhas concêntricas, reproduzido no livro do nosso camarada António Graça de Abreu, Diário da Guiné: Lama, Dangue e Água Pura, Lisboa, Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007. Preço: € 22... Que continua vender-se bem, segundo o autor me confidenciou há tempos (*)...

Foto: © António Graça de Abreu (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do co-editor Carlos Vinhal para o Luís Graça:

Luís: Encontrei esta pérola (**). Podíamos republicar este teu trabalho na série Álbum das memórias, como introdução à nova série As Nossa Madrinhas de Guerra.

Enquanto não me respondes, vou fazer os rascunhos respectivos.
Um abraço
Carlos

2. Resposta do L.G.:

Carlos:

É um texto meu, antigo (**)... É, de facto, cronologicamente falando, o nosso poste nº 1... Quis, com ele, dar início à divulgação de escritos sobre a guerra, o que só veio acontecer um ano depois... com o aparecimento do Sousa de Castro, o tertuliano nº 2... O texto é de facto de 23 de Abril de 2004...

Mas devo acrescentar-te, a título pessoal, o seguinte: (i) nunca tive madrinha de guerra; (ii) nunca escrevi um aerograma... Tenho, apesar de tudo, uma colecção de cartas e aerogramas desse tempo, de pessoas conhecidas que mos emprestaram ou deram...

23 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 – I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)

Um abração do Luís

PS - Temos que fazer um apelo à malta para nos mandar cópias (ou excertos) de aerogramas com interesse para o nosso blogue... Quem os terá ?

O Beja Santos, por exemplo, tem a colecção das cartas e aerogramas que mandava, todos os dias, à noiva (e futura esposa e mãe das suas filhas, a Cristina Allen)... Foi graças a esse material que ele pôde, em grande parte, reconstituir o seu dia a dia em Missirá e em Bambadinca, nos anos de 1968, 1969 e 1970... Mas isto é um caso raro, que podes referir...

Também tens o caso dos aerogramas do Lobo Antunes (que esteve em Angola, Alferes Miliciano médico, 28 anos, recém-casado)... A primeira mulher dele guardou esses aerogramas que foram depois publicados pelas filhas, a seguir à sua morte (***)...

Enfim, também tens o exemplo do nosso camarada António Graça de Abreu cujo livro (Diário da Guiné: Lama, Dangue e Água Pura) baseia-se nos aerogramas que ele mandou (cerca de 300) à sua namorada (com quem de resto, não chegou a casar, segundo ele me confidenciou)... Há colecções de correspondência epistolar que podem ser recuperadas, se não foram parar ao lixo... O que será feito dos milhões e milhões de bate-estradas que escrevemos às nossas madrinhas de guerra, pais, noivas, namoradas, amigos ?...

Julgo que muitos desses aerogramas hoje poderiam ter interesse para a investigação socioantropológica sobre a guerra colonial e os homens que a fizeram...

Temos de fazer um apelo veemente para que a malta que ainda os tem (ou sabe onde podem estar guardados), não os destrua e faça uma doação desse material ao Arquivo Histórico Militar. Hoje, amanhã, no futuro, haverá certamente investigadores interessados nesse material... Uma selecção dessa correspondência poderá ser publicada no nosso blogue, nalguns casos omitindo-se o nome dos correspondentes, por razões óbvias de sigilo...

Segundo leio na recente biografia de Cecílio Supico Pinto, escrita poor Sílvia Espírito Santo (Lisboa, Esfera dos Livros, 2008), a campanha das Madrinhas de Guerra data de 1963, e foi uma das mais bem sucedidas iniciativas do MNF:

"A madrinha de guerra escreve ao seu afilhado pelo menos todas as semanas. E, ao passo que as cartas de casa são tanta vez deprimentes e lamentosas (a queixarem-se das saudades que têm, das dificuldades que passam, do receio que sentem pela segurança do rapaz), as cartas da madrinha de guerra procuram ser sempre agradáveis, versando os assuntos que mais possam interessá-los. A madrinha de guerra sabe que é importante distrair o seu afilhado.

E sabe que não basta distraí-lo: que é tanbém necessário fortificar-lhe a coragem, transmitir-lhe confiança, torná-lo psicologicamente mais apto para bem cumprir - e cumprir com satisfação" (Presença, revista do MNF, nº 1, 1963, pp. 36-37, citado por Espírito Santos, 2008, pp. 78)


3. O nosso poste nº 1... > Saudosa(s) madrinha(s) de guerra,
por Luís Graça

Trinta e cinco anos depois.

No 25 de Abril de 2004 presto a minha homenagem às mulheres portuguesas.

Que se vestiam de luto enquanto os maridos ou noivos andavam no ultramar.
Às que rastejavam no chão de Fátima, implorando à Virgem o regresso dos seus filhos, sãos e salvos.

Às que continuavam, silenciosas e inquietas, ao lado dos homens nos campos, nas fábricas e nos escritórios.

Às que ficavam em casa, rezando o terço à noite.

Às que aguardavam com angústia a hora matinal do correio.

Às que, poucas, subscreviam abaixo-assinados contra o regime e contra a guerra.

Às que, poucas, liam e divulgavam folhetos clandestinos ou sintonizavam altas horas da madrugada as vozes que vinham de longe e que falavam de resistência em tempo de solidão.

Às que, muitas, carinhosamente tiravam do fumeiro (e da barriga) as chouriças e os salpicões que iriam levar até junto dos seus filhos, no outro lado do mundo, um pouco do amor de mãe, das saudades da terra, dos sabores da comida e da alegria da festa.

E sobretudo às, muitas, e em geral adolescentes e jovens solteiras, que se correspondiam com os soldados mobilizados para a guerra colonial, na qualidade de madrinhas de guerra.

A maioria dos soldados correspondia-se, em média, com uma meia dúzia de madrinhas, para além dos seus familiares e amigos. Em treze anos de guerra, cerca de um milhão de soldados terá escrito mais de 500 milhões de cartas e aerogramas. E recebido outros tantos. Como este que aqui se reproduz.

______________

Guiné, 24 de Dezembro de 1969

Exma menina e saudosa madrinha:

Em primeiro de tudo, a sua saúde que eu por cá de momento fico bem, graças a Deus.

Estava um dia em que meditava e lamentava a triste sorte que Deus me deu até que toquei na necessidade de arranjar uma menina que fosse competente e digna de desempenhar tão honroso e delicado cargo de madrinha de guerra.

Peço-lhe desculpa pelo atrevimento que tive em lhe dedicar estas simples letras. Mas valeu a pena e é com muita alegria que recebo o seu aero (1).

Vejo que também está triste por mor (2) da mobilização do seu mano mais novo para o Ultramar. Não sei como consolá-la, mas olhe: não desanime, tenha coragem e fé em Deus. Eu sei que custa muito, mas é o destino e, se é que ele existe, a ele ninguém foge.

Nós, homens, temos esta difícil e nobre missão a cumprir. Nós, militares, que suportamos o flagelo desta estadia aqui no Ultramar, não temos outro auxílio, quer material quer espiritual, que não seja o que nos dão os nossos amigos e entes queridos. E sobretudo as nossas saudosas madrinhas de guerra. Sendo assim para nós o correio é a coisa mais sagrada que há no mundo. Porque nos traz notícias da nossa querida terra e nos faz esquecer, ainda que por pouco tempo, a situação de guerra em que vivemos e os dias que custam tanto a passar.

As notícias aqui são sempre tristes, nestas terras de Cristo, habitadas por povos conhecidos e desconhecidos.

Não lhe posso adiantar pormenores, mas como deve imaginar uma pessoa anda triste e desanimanada sempre que há uma baixa de um camarada.

Lá na metrópole há gente que pensa que isto é bonito. Que a África é bonita. Eu digo-lhe que isto é bonito mas é para os bichos. São matas e bolanhas (3) que metem medo, cobertas de capim alto, e onde se escondem esses turras (4) que nos querem acabar com a vida.

E mais triste ainda quando se aproxima o dia e a hora em que era pressuposto estarmos todos em família, juntos à mesa na noite da Consoada. Vai ser a primeira noite de Natal que aqui passo. Com a canhota (5) numa mão e uma garrafa de Vat 69 () na outra.

São duas horas da noite e vou botar este aero na caixa do correio. Daqui a um pouco saio em missão mais os meus camaradas. Reze por nós todos. Espero voltar são e salvo para poder ler, com alegria, as próximas notícias suas.

Queira receber, Exma. Menina e saudosa madrinha, os meus mais respeitosos cumprimentos.

Desejo-lhe um Santo e Feliz Natal.

O soldado-atirador da Companhia de Caçadores (...)
_________
Notas (L.G.):

(1) Abreviatura de areograma. Também era conhecido por corta-capim (o correio era, muitas vezes distribuído em cima de uma viatura, e o aerograma lançado por cima das cabeças dos soldados, à maneira de um boomerang). Os aerogramas foram uma criação do Movimento Nacional Feminino, dirigida pela célebre Cecília Supico Pinto desde 1961, e o seu transporte era assegurado pela TAP ("uma oferta da TAP aos soldados de Portugal").

Os aerogramas também foram usados na guerra da propaganda do regime, ostentando carimbos de correio com dizeres como "Povo unido, paz e progresso", "Povo português, povo africano", "Os inimigos da Pátria renunciarão" ou "Muitas raças, uma Nação, Portugal" (vd. Graça, L. - Memória da guerra colonial: querida madrinha. O Jornal. 15 de Maio de 1981)

(2) Por mor de = por causa de (expressão usada no Norte).

(3) Terras alagadiças da Guiné onde tradicionalmente se cultivava o arroz (... e se pescava). Durante a guerra colonial, foram praticamente abandonadas como terras de cultivo, devido à deslocação de muitas das populações ribeirinhas e à escalada das operações militares. A Guiné, que chegou a exportar arroz, passou a importá-lo.

(4) Corruptela de terroristas. Termo depreciativo que era usado para referir os combatentes do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Os soldados portugueses eram, por sua vez, conhecidos como tugas (diminutivo de Portugal, português ou portuga).

(5) Espingarda automática G-3, de calibre 7.62, de origem alemã, que passou a equipar as forças armadas portuguesas no Ultramar. Em 1961 o exército português ainda estava equipado com a velha Mauser (!).

(6) Marca de uísque escocês, muito popular na época entre os militares (havia uma generosa distribuição de bebidas alcoólicas nas frentes de guerra, com destaque para o uísque, "from Scotland for the exclusive use of the Portuguese Armed Forces"). Na época o salário de um soldado-atirador (cerca de 1200 escudos, parte dos quais depositado na metrópole) dava para comprar mais de uma garrafa de uísque (novo) no serviço de aprivisionamento militar (cerca de 40 pesos ou escudos por unidade). No entanto, a bebida mais popular entre os soldados era cerveja. Uma garrafa de cerveja de 0,6 litros chamava-se bazuca.

___________

Notas do co- editor CV:

(*) Vd. entre outros os postes de:

7 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2414: Notas de leitura (5): Diário da Guiné, de António Graça de Abreu (Virgínio Briote)

6 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1499: A guerra em directo em Cufar: 'Porra, estamos a embrulhar' (António Graça de Abreu)

(**) Vd. poste de 23 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 – I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)

Lista dos dez primeiros postes do nosso blogue (1ª série):


23 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 – I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)

25 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 - II: Excertos do diário de um tuga (1) (Luís Graça)

28 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 - III: Excertos do diário de um tuga (2) (Luís Graça

7 de Dezembro de 2004 > Guiné 69/71 - IV: Um Natal Tropical (Luís Graça)

20 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - V: Convívio de antigos camaradas de armas de Bambadinca (Luís Graça)

22 de nAbril de 2005 > Guiné 69/71 - VI: Memórias do Xime, do Rio Geba e do Mato Cão (Sousa de Castro)

25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970) (Luís Graça)

28 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VIII: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1) (Luís Graça)

29 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1) (Luís Graça)

Vd. também poste de 24 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1693: Blogoterapia (20): Blogando... há dois anos

Saudosa(s) madrinhas(s) de guerra... Este foi o nosso primeiro poste, numerado, não avulso, publicado no dia 23 de Abril de... 2004, no meu blogue pessoal, que na altura se chamava muito simplesmente... Blogue-Fora-Nada... e que tinha sido criado em 8 de Outubro de 2003.

Eu, que não escrevia aerogramas (e muito menos para madrinhas de guerra~), estava longe de imaginar as consequências do meu gesto, dando origem depois a um blogue que se pretendia que fosse colectivo... Para a petite histoire, aqui faço a reprodução desse primeiro poste que não teve qualquer eco na blogosfera...

Na realidade, foi preciso que começasse a aparecer, um ano depois, em Abril de 2005, a malta do triângulo Bambadinca-Xime-Xitole: o Sousa de Castro e o David Guimarães, que são historicamente os dois primeiros membros da nossa tertúlia, além de mim próprio...

Por exemplo, foi o Sousa de Castro que me fez chega, em 4 DVD, a reportagem de vídeo feita pelo Albano Costa e seu filho Hugo Costa, por ocasião da sua viagem à Guiné, em Novembro de 2000... Depois, em Maio de 2005, começaram a aparecer outros camaradas: o Humberto Reis, meu vizinho, amigo e camarada da CCAÇ 12 (6 de Maio), o A. Marques Lopes, de Matosinhos (14 de Maio)... E o nosso primeiro amigo, o José Carlos Mussá Biai (10 de Maio), que vivia no Xime, em criança, no nosso tempo (CCAÇ 12, 1969/71)...

O resto da história sabem-na vocês: criámos a nossa tertúlia e o blogue começou a chamar-se Luís Graça & Camaradas da Guiné... Foi um dique de imagens, textos, lugares, recordações, sentimentos e emoções que se rompeu... e que nos tem ajudado a reconstituir/reconstruir o tal puzzle da memória... Hoje já percorremos um bom caminho (mais de 2500 postes) e por aqui já passou gente suficiente para formar duas companhias... Muitos camaradas de armas daquele tempo não dão a cara, mas visitam-nos: temos mais meio milhão de visitas, mais de mil por dia... (LG)


(***) Vd. postes de:

6 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2161: Pensamento do dia (12): Camarada, uma palavra que só quem esteve na guerra entende por inteiro (António Lobo Antunes)

9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2169: Antologia (63): Zé, meu camarada, eras um dos nossos e cada um de nós um dos teus (António Lobo Antunes, Visão, 4 Out 2007)

23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2480: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (17): Cartas de Bambadinca, Dezembro de 1969

Moçambique > 1969 > O Alf Mil Carlos Sampaio, o grande amigo de Beja Santos, com quem se correspondia regularmente. Os dois tinham projectos para a vida civil, como por exemplo criar uma editora livreira. O Carlos nasceu em Anadia, a 19 de Novembro de 1946 e morreu, em combate, em Moçambique, em Nambude, em 2 de Fevereiro de 1970 (1) (LG).

Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto enviado pelo nosso camarada Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), em 27 de Novembro de 2007:

Luís,

Aqui vai novo episódio. Não sei como vai ser, mas este novo livro deverá estar pronto até Julho, não sei se tenho saúde para tanto. Os dois livros citados seguem hoje pelo correio. Muito obrigado pelo acolhimentro que deste aos pedidos de imagens do Círculo de Leitores. Estou convencido que aquela imagem do Humberto, na travessia da bolanha bem aguada, vai dar uma capa fabulosa. Segue igualmente uma fotografia do José Braga Chaves, referido neste episódio.

Um abraço,
Mário


Operação Macaréu à Vista - Parte II > Episódio XVII > Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal e outras paragens em África
por Beja Santos (2)

(i) Para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

Mal recebi as tuas notícias, e porque tinha que ir buscar o correio a Bafatá, fui de novo à administração tratar da procuração onde faltava o nome e idade dos teus pais (já enviei por correio a procuração anterior, que ficou sem efeito). Confirmo com muita tristeza que não terei direito a férias em 1970, pelo que teremos que decidir o casamento por procuração, aguardando o meu regresso para a cerimónia religiosa.

Lembro-te que continuo sem descanso, Dezembro é sempre um mês com mais medidas de segurança, sobretudo junto ao Natal e ao Ano Novo. Não vejo circunstância, pois, para pensar em casarmo-nos aqui. Vamos esperar serenamente o desenrolar dos acontecimentos.

Pouco mais posso adiantar sobre o meu futuro do que aquilo que já sabes: esta penosa intervenção com idas às tabancas, emboscadas nocturnas, patrulhas, períodos nos Nhabijões e no tal local horrível de que te falei, a ponte de Udunduma. Além disso, temos as operações. Participei há dias numa operação na região de Mansambo a que puseram o nome de Lua Nova. Tu estarás porventura esquecida mas logo a seguir à operação Anda Cá, em Fevereiro, fomos a Mansambo, pouco antes de eu ir a Bissau. O objectivo era bater uma área onde os guerrilheiros tinham feito um santuário e que foi destruído pela aviação. Como sempre acontece na guerrilha, aproveitando-se das dificuldades naturais, sobretudo da floresta galeria que é muito comum naquelas áreas, eles voltaram de novo a instalar-se relativamente perto de Mansambo, supondo-se que em Biro e Galoiel, onde tínhamos estado em Fevereiro. Antes de fazermos esta operação, tinham lá estado forças helitransportadas que destruíram um acampamento em Biro e capturaram material.

O comando de Bambadinca decidiu que voltássemos a Biro para confirmar se os guerrilheiros tinham voltado. Falei-te há algum tempo que tínhamos ido fazer uma coluna de reabastecimento ao Xitole. A natureza ali não é particularmente bela, excepto quando nos aproximamos do Corubal. Disseram-me que os rápidos de Cusselinta são um deslumbramento, penso que para a semana teremos nova coluna de reabastecimento e iremos até ao Saltinho, e então terei a oportunidade de confirmar se esses rápidos são tão impressionantes como dizem.

Bom, os guerrilheiros podem atacar a estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole mais facilmente se conseguirem ter bases avançadas nesta região que se chama Bissari. Saímos a 12 de Bambadinca, fomos até Samba Juli, até aí não é preciso picar, mais à frente um pelotão de milícias e um grupo de combate de Mansambo patrulharam a estrada e chegámos ao quartel a meio da tarde. Lá encontrei o capitão Neves e o Jorge Cabral, o irmão da tua colega Suzete, que está em Fá, povoação não muito longe de Mero e Santa Helena. Saímos de Bambadinca com dois grupos de combate de uma companhia de caçadores africanos. Tivemos um grande sofrimento com o frio, para quem não acredita que não há frio em África, seria bom que tivesse vindo connosco. Lá tivemos emboscados perto do Galoiel que assaltámos ao amanhecer.

Não te sei explicar a sensação de visitar um local que tu sabes que já teve vida, e até recentemente: os vimes e o colmo bem disfarçados sob a floresta serrada, os caminhos que estavam bem batidos, sem nenhum capim no seu interior, as marcas dos refúgios das armas pesadas, os restos das fogueiras. Transidos pelo frio mas muito tensos, lá percorremos todo o antigo acampamento onde não há vislumbre dos grupos que partem de Galo Corubal terem voltado.

Nós não temos ilusões, é tudo uma questão de tempo, logo que eles estejam reforçados hão-de regressar, já te escrevi a dizer que eles estão a fazer muita pressão à volta de Bambadinca, atacam as tabancas, raptam, exigem comida, sempre que podem recrutam guerrilheiros. Regressámos sem problemas mas eu vou demorar a esquecer esta emboscada com um cacimbo de rachar os ossos.

Guiné > SPM 3778 > 5 de Dezembro de 1968 > Envelope de carta estampilhada, enviada pelo Alf Mil Beja Santos, do Pel Caç Nat 52 (Missirá, 1968/69), à sua noiva Maria Cristina Allen. Na época, o custo em selos uma carta por via aérea (?) não era barato: 2$50...

Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Obrigado pelas notícias que me dás do Alcino, também a minha Mãe já me tinha dito que ele está pouco falador e recupera lentamente. Fiquei também a saber que o Jolá Indjai está a tratar da sua tuberculose num sanatório embora fale que quer voltar rapidamente. Sentimo-nos muito orgulhosos com as notícias que recebemos de que o Mamadu Camará, Adulai Djaló e Mamadu Djau vão ser condecorados, o processo do Cherno ainda está a ser analisado. O nome desta condecoração é Cruz de Guerra, por heroísmo em combate.

Estou nas lonas, nomearam-me gerente de messe, o que veio introduzir mais actividades como as de comprar chávenas, queijo e conservas para os meus exigentes clientes de bar. Confesso-te que não sei como vou recuperar energia, as insónias persistem e eu às vezes tenho medo de me esgotar. Recebe muitos beijinhos de quem vive sempre saudoso de ti.

(ii) Para Ruy Cinatti

Obrigado pela sua carta, obrigado pelos livros do Erich Maria Remarque e do Francis Ponge. Fico-lhe também a dever a atenção de ter ido visitar ao Hospital da Estrela os meus amigos Fodé, Paulo e Casanova. Desculpe andar arredio da escrita, não consigo habituar-me a este ritmo, não é um problema de caminhadas mais ou menos longas ou operações muito duras. É o ritmo, o viver separado dos meus homens, num estranho quartel onde há um porto importante, de onde partem colunas militares para outras regiões do Leste, a diversidade de tarefas deste patrulhas e emboscadas, vigiar estradas, ir buscar correio, acompanhar trabalhos de um reordenamento de populações que vivem junto ao rio Geba e, claro está, participar nas operações.

Neste lapso de tempo em que não lhe escrevi fui numa coluna ao Xitole, o comandante arranjou-me aqui uma historieta com uma professora gentil e de idade indefinida, a verdade é que até a fiquei a estimar e ela prometeu-me dar-me informações sobre a história do regulado do Cuor antes da guerra. Antes de começar a escrever estar carta, fui chamado ao major de operações que me informou que a partir de amanhã à tarde descansamos um dia pois vamos fazer uma operação numa região do Xime que se chama o Buruntoni, que envolve bastante risco. E à volta do Natal vou para um pseudodestacamento que se chama a ponte de Udunduma para proteger a estrada de Xime-Bambadinca.

O Carlos Sampaio escreveu-me da região de Cabo Delgado, há muitas minas e emboscadas, nesta região do Norte de Moçambique a guerra não dá tréguas. Sinto-o muito triste e vou hoje responder-lhe à carta que me escreveu na semana passada. Como V. é um grande poeta quero dizer-lhe que a capela do quartel do Xitole me tocou muito, pedi protecção a uma cruz em bissilão antes de partir para a estrada que me trouxe de novo a Bambadinca. E ontem, no regresso de Mansambo, parei junto de um poilão à entrada da estrada de Moricanhe onde vi um pedaço de camisa a flutuar ao vento e um dos meus soldados disse-me que aquela roupa está colada com carne e sangue, é o resto de um milícia que se volatilizou quando picava a estrada e foi atingido por um fornilho.

Não querendo abusar da sua generosidade, peço-lhe que visite o cabo Alcino Barbosa que está nos serviços de ortopedia da Estrela. Aproximando-se o Natal, louvo os meus amigos mais queridos, por quem cantam anjos e serafins, desejo-lhe toda a paz, todas as bençãos de Deus e agradeço-lhe todo o bem que me faz e aos quem mais estimo.


(iii) Para Carlos Sampaio

Meu querido Carlos,

Gostei muito que me tivesses escrito mas estou apreensivo com as dificuldades que atravessas. Vejo bem que essa tua guerra não é muito melhor que a minha, mas chocou-me que tenhas escrito dizendo que destruíste todos os teus quadros e praticamente todos os teus poemas, quando estivestes em férias. Para estes há remédio, ficaram cópias e tu não podes entrar em nossas casas. Quero só lembrar-te que deixei ao cuidado da minha Mãe aquele quadrinho que pintaste na Anadia e a quem eu chamo “A noite de Águeda”, em homenagem a toda a noite em que andámos de bicicleta, aproveitando o luar e petiscando nas tasquinhas. Bom seria que não te esquecesses dos projectos que teremos em comum, quando a guerra acabar: nós vamos ser editores, Carlos, escolher os autores, lançar obras de acordo com um bonito projecto editorial.

Vá, não esmoreças, não deixes de fazer poesia, escreve-me um pouco mais, tu não imaginas o contentamento que tenho quando chegam as tuas cartas, a surpresa dos livros que me mandas. Um abraço muito grande, desculpa acabar aqui, vou jantar e depois partimos para uma emboscada a escassos quilómetros de Bambadinca, mas prometo escrever mais antes do Natal, que Deus te acompanhe sempre.


(iv) Para José Braga Chaves

Soldadão e amigo,

Recebi carta da tua irmã que quer estudar enfermagem e também tive notícias da Lúcia de Fátima, muito saudosa de ti. Obrigado pela tua fotografia, tens que me explicar que arma é aquela que pões à ilharga e para que é que precisas da faca de mato ao ombro. Já não estou na região de Missirá, agora estou na sede de batalhão, onde não me consigo aclimatar, são afazeres e obrigações que não matam mas moem. Tanto posso emboscar ou patrulhar como partir subitamente para uma operação ou ficar num destacamento para impedir que os guerrilheiros avancem sobre Bambadinca. Sempre dormi bem, mesmo a vida duríssima que levei em Missirá não me impediu de ter energia, coisa que aqui não consigo e começo a sentir muitas preocupações com as insónias, quero evitar comprimidos para dormir. Mas o médico já me avisou, se isto continuar tenho que ir fazer uma curta cura de sono.

Desejo-te umas boas férias em Lourenço de Marques e fica prometido que vou ao teu casamento, quando a guerra acabar para nós. Muitas felicidades, despeço-me aqui, faço votos para que tenhas um Natal feliz, e agora vou escrever para os Açores.


(v) Para Marino Teves

Meu inesquecível Marino,

Foi tão bom receber as suas orações, saber que não me esqueceu, que todos vós, aí nos Açores, estão em cuidado comigo. Ora quem está em falta sou eu. Nunca lhe agradeci esse admirável romance que é Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway. Li e reli este drama pungente sobre a Guerra Civil de Espanha, nunca mais vou esquecer Robert Jordan, Maria, Pilar, Anselmo, Pablo e tantos outros combatentes. O que me cativa em Hemingway é essa característica de documentário e narrativa tão humanas, a singeleza das frases, a autenticidade dos diálogos. Documentário por que temos ali a crueldade da guerra, os fuzilamentos, o ódio dos fascistas pelos republicanos e vice-versa, ele recorre a expressões duras, a imagens compactas mas elucidativas. Por exemplo, quando ele se refere à pureza de sentimentos que desaparece nos sobreviventes e nos vencedores a propósito da defesa de uma posição e da verdadeira camaradagem, a dureza da disciplina:

Capa do famoso romance sobre a Guerra Civil Espanhola (1936/39), de Ernest Hemingway, Por quem Os Sinos Dobram. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Dois Mundos, 24). Capa de Bernardo Marques.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.

“Sob os obuses os homens acovardavam-se e fugiam, e ele viu esses homens a serem fuzilados e abandonados à beira dos caminhos, sem que ninguém se preocupasse com eles se não para lhes tirar os cartuchos e tudo o que tivessem que valesse alguma coisa. Tirar os cartuchos, as botas e os casacos de couro, era coisa normal. Tirar os valores era apenas realista, o meio de impedir que os anarquistas o fizessem”.

Como se recordará, a missão de Roberto Jordan é de dinamitar uma ponte para impedir a progressão dos exércitos fascistas, quando o general Golz ordenar. Roberto vive num acampamento com os partisans, algures não muito longe de Segovia, é aí que nasce a sua relação com Maria, aí que vem ao de cimo todas as memórias da sua América, as razões da sua luta, são inesquecíveis as suas recordações no Hotel Gaylord, onde encontra Karkov e Kachkine. Jordan é o Inglés para os seus camaradas espanhóis.

Meu querido Marino, a mensagem de Jordan/Hemingway quando vai morrer depois de ter dinamitado a ponte é eloquente, como numa oração ele recorda que o seu combate foi a certeza da sua vida, o mundo é belo e merece que se lute por ele, dói-lhe deixá-lo. Jordan teve uma vida boa, lamenta não poder transmitir o pouco que aprendeu, questiona quem é que aceita melhor este momento de morrer, a religião conforta muito e morrer só é mau quando demora muito tempo e faz sofrer tanto que nos oprima. Serenamente, ele aguarda a passagem do tenente Berrendo para o matar. Agora percebo bem a citação que Hemingway faz de John Donne: “E não me perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

Neste preciso instante, estou cheio de saudades do Natal de 1967. Lembro a emoção com que vocês participaram na organização da festa de Natal nos Arrifes, arranjámos lembranças para todos os meus soldados marienses que ficaram retidos em S. Miguel. Fui numa Ford Canadá até à Ribeirinha, com serrotes e machados para cortar ramos de araucária, a finalidade era forrarmos as paredes de uma garagem onde se ia realizar a festa de Natal. No regresso houve um curto-circuito na Ford Canadá mas ao amanhecer entrámos triunfalmente nos Arrifes, ali se montou o presépio com o vosso lindo Menino Jesus, houve cânticos ensaiados pelo padre Agostinho e depois percorremos as ruas dos Arrifes a saudar a população.

Ainda hoje escrevi ao José Braga Chaves, mas esqueci-me de recordar esta história. Lembro-me dos meninos que iam comer as sobras do rancho, o que me doía era a sua alegria espontânea no meio daquela terra de verdura que me lembrava a Suíça. Mudei de quartel mas não mudei de trabalhos. Como estamos no Natal, não vos canso mais com as minhas atribulações. Hossanas para todos vós, a minha gratidão é enorme e beijo-vos muito. Deus permita que vos possa visitar em breve.

Lisboa > s/d > O Mário Beja Santos, com a senhora sua mãe.

Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


(vi) Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Minha querida Mãezinha,

Agradeço-lhe muito as visitas que faz aos meus feridos. Gosto muito de receber os seus postais e de saber que viaja mesmo cheia de dores com as suas artroses. Olho para o calendário e vejo que dentro de oito, nove meses nos iremos reencontrar. Não lhe quero esconder que estou profundamente exausto e contínuo a não compreender porque é que me diz coisas tão duras nas suas cartas.

Deu-me satisfação ter recebido os livros que me mandou, aproveito logo os policiais para meter no bolso do camuflado e ler aos poucos, nas colunas de transporte ou nas pausas. Achei interessante O caso da Fotografia Misteriosa, de Erle Stanley Gardner. Desta vez Perry Mason confronta-se com um cliente muito inteligente e astuto J. R. Bradbury que lhe vem pedir que contacte Frank Patton, um aldrabão que contratava jovens bonitas para uma empresa cinematográfica à procura de novas beldades. Patton enganava tudo e todos, desaparecia de um local e reaparecia noutro. Agora estava em Nova Iorque, era preciso metê-lo na cadeia ou então obrigá-lo a indemnizar uma rapariga, vítima da sua última maquinação, fazendo Patton confessar a sua intenção fraudulenta. Inicia-se a investigação, Mason descobre Patton assassinado, todas as pistas apontam para um médico que gosta da jovem enganada pelo agiota assassinado.

Capa do romance policial deErle Stanley Grardner, O Caso da Fotografia Misteriosa. Livros do Brasil: Lisboa, 1948. (Colecção Vampiro, 16). Capa de Cândido Costa Pinto.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.


A dedução de Perry Mason, e estou em crer que o seu diálogo com J. R. Bradbury no desenlace final, vai passar à história da literatura policial. Confesso-lhe estar muito cansado, aproxima-se o Natal, redobram as medidas de segurança, não paramos um só dia, felizmente que tenho um excelente relacionamento com todos os meus camaradas de Bambadinca.

Vou amanhã a Bafatá enviar-lhe as suas lembranças de Natal. Nós aqui não faremos festa, haverá um rancho melhorado, não sei onde passarei o Natal com os meus soldados. Prometo escrever em breve, tenho muitas saudades tuas, às vezes vou até ao cais de Bambadinca e olha de lá longe até Finete e junto as recordações todas, há momentos de tristeza mas é a quase certeza de que em breve os vou rever que me mantém cheio de vida e optimismo.

Despeço-me escrevendo uma homenagem para si:

“Guardo toda a tua memória, minha querida Mãe, dentro desta caixa com atilhos onde as palavras gravitam o meu ego coral: Missirá, helicóptero, não posso mais, um ferido às costas, a derradeira saudação. Daqui remete fulano tal, SPM 3778. O meu nome não existe ou melhor está desfigurado e transformado noutros como sejam: Cibo, Adulai, Alcino, Cherno ou Teixeira. Isto passa-se porque estou em África e o meu nome renova-se noutros, neste fasto onde me cerco de espelhos voláteis. Às vezes escrevo cheio de raiva, retalho, esventro e entrego à pira os meus soluços, a minha solidão, a minha coabitação, a escrita torna-se pássaro, sol posto, sol coado, tabaco agridoce. Em todos esses momentos cinzelo o teu nome e amo-te sem medir as distâncias, comprovando que o nosso sangue é espesso e que tu és luar textual”.

Um grande beijinho e até amanhã.

____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

21 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1979: Da Guiné a Moçambique, era (também) assim que comunicávamos a nossa dor (Beja Santos)

11 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1833: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (49): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (4)

(2) Vd. poste de 18 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2449: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (16): Aqueles dias cinzentos e nómadas de Bambadinca em Dezembro

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2472: Guineenses da diáspora (1): Luís Humberto Monteiro, há 23 anos no Brasil (Virgínio Briote)


O Luís Humberto, procedendo a arrumações (?), num local (Brasil?) que não indicou.

Foto: Luís Humberto Monteiro (2008).



Notícias da diáspora guineense... Não podemos ignorá-la... Os melhores quadros da Guiné-Bissau (médicos, engenheiros, juristas, investigadores, gestores, empresários...), mas também muitos dos seus melhores jovens vivem e trabalham no estrangeiro... Que esperança resta a quem fica ? É importante conhecermos as histórias de vida, os sentimentos, as emoções, as expecativas de quem, um dia, por uma razão ou outra partiu, à procura de melhor sorte..

O termo diáspora não tem nada de crítico, depreciativo, paternalista ou, muito menos, neocolonialista. Ainda recentemente se realizou, em Lisboa, de 7 a 9 de Dezembro último, o I Fórum de Diálogo e de Intercâmbio da Diáspora Guineense em Portugal... em que, de resto, participou como orador o nosso tertuliano Leopoldo Amado...

Por outro lado, as remessas de dinheiro, enviadas pelos guineenses da diáspora para as suas famílias são de uma importância vital para a economia da Guiné-Bissau. Segundo uma estimativa do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), um organismo ligado à ONU, a Guiné-Bissau seria o país de África mais dependente das remessas dos seus emigrantes:

(...) Em África há países cuja 'dependência' das remessas é mais do que notória, sendo a Guiné-Bissau um deles. Com uma diáspora recente, e com o país praticamente paralisado economicamente, as transferências da diáspora guineense responderam, em 2006, por 48% do PIB desse país, o que o coloca no primeiro lugar de África. Em S. Tomé e Príncipe, essa contribuição ficou calculada em 39%, seguindo-se a Eritreia com 38%...

Relativamente a Cabo Verde, cuja contribuição das remessas para a formação do PIB tem vindo a decrescer com a expansão de outros sectores económicos, nomeadamente o turismo, as divisas dos emigrantes agora representam 34%, ainda assim um dos mais altos do mundo (...) (A Semana 'on line').

Abramos, pois, uma nova série para falar sobre (e deixar falar) a diáspora guineense... (LG)


1. Do Brasil, mensagem de Luís Humberto Freire Monteiro, 15 de Janeiro de 2008, enviada ao co-editor vb:

Gostaria de conhecer um pouco da tua história como comando e dos demais companheiros, tais como o Djamanca (...).


2. Comentário do vb:

Pensei que fosse um antigo Camarada da guerra da Guiné, residente no Brasil, querendo saber de Camaradas que eventualmente tenha conhecido naquelas terras. Respondi em 20 de Janeiro de 2008:

Luís Humberto,

Publiquei em tempos um blogue, o
http://tantasvidas.blog.pt/, um 'ajuste de contas' com o meu passado militar. Nele pode encontrar referências e imagens do Djamanca e de outros Camaradas daqueles tempos.

Cumprimentos,

vb

3. Nova mensagem do Luís Humberto Monteiro, com data de 21 de Janeiro

Agradeço por ter respondido meu e-mail. Eu sempre tive admiração dos comandos africanos desde os idos anos 72. Na verdade eu já era um moço, e com certeza se não fosse a independência eu seria dos comandos.

Pena que a nossa história fala pouco ou quase nada a respeito. Na verdade digo mais, a política de Spínola POR UMA GUINE MELHOR, houvesse tido sucesso, seria uma Guiné Melhor, e não a Guiné de hoje.

Eu sou Guineense radicado no Brasil por conta própria, há 23 anos e sempre tive curiosidade de ler as informações que o Sr. Luís Graça nos proporciona na Internet, daí eu vi que tu eras um dos comandos no front em Bissau.

Resolvi-te mandar este pequeno e-mail solicitando algumas informações a teu respeito e a dos demais comandos.

O que poderes me mandar a respeito da guerra colonial eu agradeço desde já,
Um grande abraço


4. Identificado o Autor da mensagem, prossegui, incentivando-o a dizer algo sobre ele:

Caro Luís Humberto,

Une-nos um passado comum. Assim quis a História dos nossos Povos Irmãos. Nem sempre nos demos muito bem, o que só dignifica a natureza de que és feito. Pertences a um Povo indomável, orgulhoso da Mãe África.

Luís, fala algo de ti, apresenta-te. Onde nasceste, quando, quem eram os teus Pais, qual a tua etnia de origem, onde estudaste, como foste parar ao Brasil. Lembras-te de alguma coisa da Guerra no teu País? Tens uma foto tua, para dar a tua entrada no blogue? E permites que a faça?

Um abraço, com os desejos que sejas muito feliz,

Vb

5. Não tardou a resposta do Luís Humberto (*):

Eu sou Guineense radicado no Brasil há 23 anos, vim para cá aos 19 anos, porque percebi após o golpe de estado do NINO, Bissau estava indo para bancarrota, resolvi sair fora em 1984, quatro anos após o golpe de estado.

Nasci em Bissau no bairro de Am[e]dalai, estudei na missão católica, frequentei o liceu de Bissau, e a minha etnia é PEPEL.

No Brasil formei minha família com Brasileira e tenho dois filhos (um casal), especializei-me na área de informática , tenho nível médio, é com essa formação que sustento minha família.

Não tenho partido político desde 1998 e não vou a Bissau de férias.

Eu lamento profundamente que a Independência que todos nós almejámos não era essa independência (dependência) que hoje a Guiné-Bissau vive. Temos um velho ditado que diz TEMPO DI TUGA MÁSSABI (traduzindo, Tempo Colonial Era Melhor). O PAIGC não gostava muito de ouvir isso.

Volto a repetir a título de informação, me interessei pelo blogue do Sr. Luís Graça, porque é o que mais abordou a nossa história da guerra , e por seres um dos daquela época, resolvi te procurar.

Muito obrigado pela interação.

__________

(*) Em anexo o Humberto enviou-me o artigo transcrito abaixo e publicado, em 18 de Janeiro de 2008, no sítio
http://www.didinho.org/pensador.htm

Crónica de um Descrente!



Elia, o homem mais velho da aldeia. Foto de
Ernst Schade, publicada na página do Fernando Casimiro (Reprodzida aqui, com a devida vénia...).


Por Marinheiro da Solidão (em homenagem a Jorge Cabral)
Janeiro de 2008

Após quase 4 horas de viagem, o avião inicia o seu trajecto descendente. Começa-se a vislumbrar o verde do meu país , cortado por braços de água. Uma imagem quase idílica. Não há dúvida que a mãe natureza foi generosa.

O avião imobiliza-se. Somos recebidos por um bafo de humidade. Estamos em casa. O aeroporto encontra-se apinhado de gente. Está quente. Vejo vários aparelhos de ar condicionado, mas nenhum parece funcionar.

À entrada uma oficial da Polícia de estrangeiros e Fronteiras dá-me as boas vindas. Quase que nem olha para o meu passaporte. Diz-me directamente e sem grandes subterfúgios:
- Amigo...Nô tene peditório!
Diz-me isso com o ar de quem não está à espera de uma resposta negativa. Confiança acima de tudo! Siga!

Passado esta recepção agradável, chega a etapa de arranjar um pedaço de chão em frente ao tapete rolante. As pessoas armam-se como podem para a batalha da colheita de malas.. Aqui e ali ouve-se:
- Amigo, amigo, qui mala i di mi, qui mala i di mi...
Após uma longa batalha e litros de suor...tenho a minha mala. Dizem-me que tive sorte. Ela chegara intacta! Pelos vistos, não tem sido costume.

Segue-se a etapa da abertura e revista das malas. Diz-me um militar todo solícito:
- Djubi dé...pa ka no cansau kabeça, danu dê qualquer kussa...

Que simpático, penso eu! Ao fim de 2 horas no aeroporto, vejo o sol. Vamos enfrentar a cidade de Bissau.

Cá estou eu na Avenida principal a caminho do centro da cidade. De ambos os lados vejo, em construção, autênticos palacetes... dizem-me que é a nova moda (da estrada do aeroporto a Antula, do Bairro de Ajuda ao Sacor, passando por Safim). Pelos vistos, muita gente recebeu heranças inesperadas em pouco mais de um ano. A julgar pelo que vejo, acredito!

Chegado a casa, dizem-me que estão há 5 dias sem água ou luz. Não acho estranho, estou mentalmente preparado! Mas de repente...dizem-me que sou um sortudo...Não é que "luz ku iagu bin"! Alegria total.

Nos dias seguintes sou brindado por imagens de jeeps e mais jeeps (seja o célebre Hummer ou o K7 ou sei lá mais o quê). Está bem que a estrada não está lá grande coisa, mas com aqueles carros quem é que precisa de estradas? O trânsito está infernal na Av 14 de Novembro. Pelos vistos não há mais nenhuma estrada de jeito!

Encontro toda a gente preocupada com os salários...Todos perguntavam se o governo iria pagar antes das festas (tanto muçulmanas como católicas). Pelos vistos, até ao fim do ano não houve nada para ninguém! Também não ouvi nenhum governante dar explicações. Aliás, em duas semanas, não me lembro de ter ouvido alguém com responsabilidades no país dizer alguma coisa sobre qualquer coisa.

Pessoas próximas contam-me de casos passados no Hospital Simão Mendes. Parecem tirados de um filme de terror de 7ª categoria. Por exemplo, na maternidade há preços para tudo. Uma cesariana custa à grávida 45.000 francos XFO, tendo ainda de pagar:
- O jantar do médico (com letra bem pequena) - 10.000 XFO
- As noites passadas no hospital (sendo que o dormir no chão custa 2500 XFO/noite)
- As enfermeiras cobram para cada curativo ou cada injecção, tendo ainda as pobres parturientes de se levantar, indo ter com as excelentíssimas senhoras enfermeiras (elas dizem que sim) aos seus cadeirões respectivos para fazerem, muito contrariadas, o tal penso!

Sinto-me nauseado. Prefiro não ouvir mais. Mas pelos vistos nem tudo corre mal. As discotecas encontram-se cheias. Qual cenário hollywoodesco...é ver chegar carros topo de gama com jovens da nossa praça que, de um momento para o outro, são os novos ricos do país, concorrendo pela posse das miúdas, mesas na discoteca e em casos extremos fazendo uso das suas belas pistolas em plena pista para marcar o seu território nos negócios! Um cenário a lembrar os gangs dos Estados Unidos..muitos filmes andam a ver de certeza. Dizem-me que são presos na hora pelos Ninjas. Mas no dia seguinte encontro-me com eles pelas ruas esburacadas de Bissau. Afinal quem é que manda?

Pela primeira vez na vida, estou desejoso para que as férias em Bissau cheguem ao fim. Mas antes de deixar o país sou confrontado, no aeroporto Osvaldo Vieira, com mais uma sessão de peditórios, desde o pessoal que anda a fazer revista das malas ao oficial de polícia que tem como obrigação controlar o passaporte no acto de saída (a este, digo que já não me resta um único euro...olha-me com um ar furioso! -ali bu passaporte!). Agradeço.

Finalmente, o Airbus da TAP faz-se à pista e descola! Pela primeira vez sinto-me aliviado ao deixar o meu país.

Durante a viagem vem-me à cabeça o poema, Desafio, de
Tony Tcheka.

Desafio

Até parece
que a Sul o tempo parou
até parece que o Sol
que nos queima
é obtuso e sisudo
até parece
que fomos privados
do apetite
da vontade
da lucidez
até parece
que irrompemos
d'algum ventre enteado
palavra que parece
Até parece que perdemos o Norte
e que o Sul é recôndito
confinado à malvadez
e cozinhados da fada má
Sul é amargo da boca
e o Santo na mão
Será sina castigo ou destino
marcado nos porões negreiros?
E o desespero a fome
a doença os bolsos minguados
todos esses fieis companheiros serão mosteiros
ou simples penitência
para salvar a alma do corpo sofredor?
Mas palavra que apetece
soltar um grito
e desafiar de vez
esta força imensa
que se alimenta da minha doir
da nossa dor!
__________

Nota de vb:

A propósito de um artigo do Leopoldo Amado (salvo erro) "Coisas de Brancundade", escrevia eu, vb, há tempos atrás a um Camarada do blogue:

"O que dirão os que lutaram pela independência dos seus chãos? Foram tão dignos na luta, como indignos devem ter sido alguns que assumiram o poder depois de Setembro de 1974.

Mas, este assunto é deles, de um país independente. Como é que verão, como é que eles nos verão a discutir assuntos da vida deles?

Do nosso blogue, sei-o porque já o ouvi, fala-se que é um blogue do lado deles, do PAIGC, entenda-se. Que estamos a glorificar a luta deles, com pouco respeito pelos nossos que lá deixaram a carne, os ossos, tudo. E que o Simpósio da Guiné, é o exemplo da negação da nossa luta e da justiça da luta deles.

E, se agora, abrimos o blogue a um diário da Guiné actual, o que dirão de nós? E, no entanto, faz-nos falta que alguém nos fale da Guiné."


A resposta do Camarada:

"Não temos medo das palavras... O nosso blogue deve ser um espaço aberto, crítico mas aberto e franco. E porque não fraterno ? Agora, não é decididamente do PAIGC. O que se passa hoje na Guiné-Bissau (e que é trágico, deprimente) não tira qualquer legitimidade (histórica) à luta do PAIGC.

A nossa guerra estaria, sempre fatalmente, condenada à derrota. Eu sei que é duro dizê-lo, em letra de forma, ainda hoje, perante camaradas (portuguses e guineenses) que deram o melhor da sua juventude na luta contra a guerrilha do PAIGC (e muitos a vida ou a saúde). Respeito profundamente esse sentimento de perda, de luto e de impotência. "

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2039: Recordações do Grupo de Pauliteiros de Cércio (Ana Maria Vaqueiro / Beja Santos)

1. Mensagem de Beja Santos com data de 9 de Julho:

Assunto: Recordações - Grupo de Pauliteiros de Cércio

Prezada Ana Maria Vaqueiro (1), obrigado pela sua carta. A demora em responder-lhe deve-se ao facto de eu ter andado à procura do manuscrito do meu Padrinho, Felipe da Nazareth Fernandes. Nunca passei a texto este documento, cheguei mesmo a contactar O Mensageiro de Bragança, mas a preguiça venceu-me. O apontamento que se segue é só para responder ao seu amável pedido, que me sensibilizou.

O meu Padrinho estagiou em Londres, creio eu em 1937 e 1938. Ainda é vivo, tem 91 anos, reside num lar no Bairro da Serafina, em Lisboa. Os Pauliteiros de Cércio foram exibir-se no Folk-Dancing-Festival no Royal Albert Hall, ainda hoje uma das mais prestigiadas casas da música à escala mundial (basta pensar nos Promes, difundidos no Verão para todas as estações de rádio, também à escala mundial).

Nessa altura, na Casa de Portugal em Londres, situada em Piccadilly, pediram-lhe para aconpanhar um grupo fólclórico de mirandeses que vinham actuar no referido festival. Ele e um amigo, Jaime da Silva Dray, receberam-nos cheios de curiosidade. A imprensa Britânica elogiou-os. O meu Padrinho guardou fotografias e um recorte do jornal The Daily Express.

O passeio com eles em Londres foi inesquecível. As pessoas paravam no metro para ver aqueles homens de bigodes com chapéus floridos, com estranhas saias e umas perneiras cheias de rendas. Actuaram por duas vezes, e agradeciam erguendo os enormes chapéus na vertical acima da cabeça, rodando o corpo a 360º. No intervalo, o director da Casa de Portugal veio dizer-lhes que deviam agradecer fazendo vénias ao que eles responderam que não, um português nunca dobrava a cerviz, agradece sempre de cabeça levantada. Os oito mil lugares do Royal Albert Hall estavam completamente esgotados.

Foram filmados nos estudios da BBC para uma curta-metragem que apareceu em todos os cinemas do Reino Unido. O director de cena queria só algumas passagens de cada dança, eles disseram-lhe que não, um pauliteiro dança do princípio ao fim, dá tudo com amor pela arte.

O Embaixador português em Londres, Prof. Rui Ulrich, ofereu-lhes um beberete na companhia da sua mulher, a escritora Veva de Lima. O meu Padrinho não esqueceu a dignidade dos pauliteiros que a tudo respondiam de maneira apropriada e sóbria. Eles sofriam muito com a comida inglesa e pediam a toda a hora bacalhau e produtos de fumeiro. No Soho, bairro tipico de Londres, lá se encontrou bacalhau salgado seco que uma cozinheira preparou com batatas e couves.

Quando chegaram a Lisboa, e perguntados sobre o que haviam mais gostado em Londres, logo responderam fora o bacalhau em casa da Srª Cabral...

Prometo voltar a escrever sobre esta viagem memorável e hei-de pedir aos filhos do meu Padrinho se me deixam copiar as fotografias e o recorte desses pauliteiros de Cércio.

Agora uma recordação da Guiné. Um dos meus camaradas de quarto em Bambadinca era o Abel Rodrigues, que vive em Miranda, que me prometeu que dançaria a dança dos paulitos, o que nunca fez. Tenho por ele uma grande amizade e dentro em breve ele vai aparecer na Operação Macaréu à Vista. Conto com a retribuição do seu marido, falando-nos dessa povoação de Geba, de que Missirá estava relativamente próxima.

Cordiais cumprimentos do Mário Beja Santos.
__________

Notas dos editores:


Os Pauliteiros de Cércio, hoje
Foto: Portal do Nordeste
Transmontano > Pauliteiros >
(com a devida vénia...)




(1) Mensagem, de 23 de Junho último, da esposa de Belmiro Vaqueiro, nosso tertuliano, para Beja Santos

Assunto: Recordações - Grupo de Pauliteiros de Cércio

Dr Beja Santos:

Sou esposa do tertuliano Belmiro Vaqueiro, ex-furriel miliciano que fez parte da Companhia de Caçadores 1426, sediada em Geba-Bafatá, nos anos de 1965 a 1967.

Há dias o meu marido chamou-me a atenção para um extracto de uma sua carta que endereçou ao seu Padrinho onde focava alguns episódios, por ele testemunhados, ao acompanhar em Londres o Grupo de Pauliteiros de Cércio (2). É que eu sou natural do lugar de Cércio, [Miranda do Douro,] e familiar muito chegada de alguns dos componentes desse grupo, infelizmente já
falecidos.

Os factos que relata na sua carta e que muito me sensibilizaram,em parte eram para mim desconhecidos. Na aldeia apenas se comenta que foram muito aplaudidos.

Dr Beja Santos, gostaria de saber se as recordações do seu Padrinho, acerca da ida do Grupo de Pauliteiros de Cércio a Londres chegaram a ser publicadas e, no caso afirmativo, onde poderão ser adquiridas.

Desculpe a minha ousadia mas ficar-lhe-ía muito grato por uma resposta. Cumprimenta-o. Ana Maria Vaqueiro.

(2) Vd. post de 22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1870: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (51): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (5)