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segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3464: Histórias de Vitor Junqueira (10): Santa Paz


1. Mensagem do nosso camarada Vitor Junqueira, ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá ,1970/72), com data de 13 de Novembro de 2008:

Caros editores,
Fui ao "armazém" e recuperei este naco de prosa que vos envio para análise.
Se acharem que merece honras de Blog... façam favor.

Saudações cordiais,
VJ

Santa Paz!
Por Vitor Junqueira

Apresento-vos o meu amigo Simeão

Existem dentro como fora de fronteiras tantos topónimos de vilas, cidades e aldeias começados por Santa, como por exemplo Santa Maria, Santa Comba, Santa Bárbara; Santa Margarida etc. que, Cutia, bem podia ter-se chamado Santa Paz.

Conheci o Simeão a bordo do NM/TT Carvalho Araújo quando ambos rumávamos à Guiné. Ele, em rendição individual. Eu, com a família toda atrás. Corria o ano de 1970, por alturas de Agosto, o mês das férias e dos cruzeiros. Já naquele tempo, usava uma soberba e reluzente careca que cobria com uma mitra à Che. Com estrelinha na fronte e tudo. De trato afável, não tardou que chegássemos à fala. A princípio, tentámos avaliar-nos mutuamente. Para espantar o tédio e não querendo nenhum de nós perder o pé em temas politicamente quentes, o assunto das nossas conversas girava à volta da kingalhada post prandeal, das banalidades sobre o tempo ou a monotonia da viagem. Depressa me apercebi que do seu ar prazenteiro irradiava uma serenidade e bonomia enganadoras. Por trás do sorriso manso, estava um tipo nervoso, inquieto e, acima de tudo, revoltado. Certo é que, durante os cerca de dez dias que durou a viagem, tivemos tempo para nos tornarmos amigos. Com pontos de vista diametralmente opostos, é verdade, mas com a firmeza e frontalidade que consolida as amizades. Como a nossa, que dura desde esse tempo.

O Simeão estudava medicina em Coimbra quando se deu aquela bronca com o Presidente Américo Tomás. Foi apanhado na lingada da incorporação seguinte e condenado a malhar com os ossos na Guiné.

Como para a maioria dos jovens universitários daquele tempo, a tropa veio deitar por terra planos de vida longamente gizados, tanto pelos próprios como pelas famílias. Filhos de uma pequena burguesia em ascensão e, note-se que Portugal registava um surto de crescimento económico sem precedentes, os futuros milicianos iriam arrostar não apenas com uma longa interrupção dos estudos, porventura o fim das suas carreiras académicas, como expor-se a condições de vida (militar) que nenhuma sociedade acomodada estaria disposta a aceitar. Para já não falar da probabilidade nada desprezível de perder a vida em combate num qualquer sertão africano, em defesa e em nome de causas que se tinham tornado muito difíceis de explicar. E ainda mais difíceis de entender, por estarem nos antípodas das preocupações da maioria dos portugueses de então. Entendamo-nos de uma vez por todas; se este pessoal tinha excelentes perspectivas de futuro, o presente era no mínimo radioso: Namorada (s), tertúlias, noitadas de copos e engate, (em Coimbra, serenatas), boa música, teatro e cinema de qualidade só acessíveis a privilegiados, pândega a dar com um pau. Já não eram raros os que iam para as aulas de automóvel e frequentavam os locais de pouso de uma certa socialite lisboeta.

O Simeão tratava por tu, Marx, Engels e Lenine, que eu suspeitava serem personagens do cinema mudo americano, pois já tinha ouvido falar de um tal Groucho Marx. Para matar o tempo, enquanto eu lia o manual de acção psicológica na guerra subversiva, o gajo atirava-se aos cahiers de socilogie. E se eu me entretinha com as equações das cónicas por causa do tiro parabólico, ele tentava explicar-me detalhadamente o significado contido nas entrelinhas de um manifesto em que se exaltava a justa luta dos povos pela sua autodeterminação. Eu imaginava-me a ganhar a guerra (ah Napoleão!), ele discorria sobre a forma de sair dela vivo. E assim por diante.

O reencontro

Despejados no cais de Pidjiguiti em Agosto de 1970, cada um foi à sua vidinha. Não voltámos a encontrar-nos nem tivemos notícias um do outro até, salvo erro, Novembro desse mesmo ano. Indo eu a caminho não de Viseu, mas de Mansabá, encontro-o a comandar um pelotão de morteiros estacionado em Cutia. Embora a guerra do Simeão se situasse num ponto de passagem obrigatória para todas as colunas que do norte da Província (calma, pessoal!) demandavam Bissau, raras vezes nos encontrámos, até porque, naquele troço, era sempre a abrir. As coisas modificaram-se por volta do princípio do ano de 1971. Nessa altura, reaberta que estava a via Mansabá-Farim, passei a ter o privilégio das visitas do camarada Simeão, dia sim, dia não. Simplesmente porque precisava de água potável e a do K3 era a melhor! Para isso, atrelava um depósito ao burrito do mato, sentava-se ao lado do chauffer seguindo o ajudante atrás, no banco da carroceria, com a G3 bem escondida para não ferir susceptibilidades. Assim, tranquilamente, e nem sequer precisavam de ir na mecha. Para fazer o mesmo trajecto, eu próprio nunca levava menos de dois pelotões reforçados, cerca de oitenta homens, todos com os olhos bem abertos. E mesmo assim apanhava nas lonas. Comecei a desconfiar! Dados os seus antecedentes, seria o Simeão um agente infiltrado? Seria a minha água realmente boa ou seriam as suas intenções pouco líquidas? E se o camarada viesse ao K3 com o intuito de espiolhar o que se passava dentro do arame farpado? Sem melindrar a cordialidade que sempre presidiu ao nosso relacionamento, passei a ser mais cuidadoso quanto à abordagem de pormenores de natureza operacional. Até que um dia…

Fez-se luz

Entre Mansabá e Bafatá, existira em tempos uma boa estrada que, na minha altura, se encontrava totalmente desactivada havia anos, devido às frequentes flagelações da guerrilha. Passava por localidades tão quentes como Manhau, Mantida e outras, onde pude observar as ruínas de antigas instalações ocupadas por guarnições portuguesas. Por outro lado, este itinerário fortemente minado, tornava-se impraticável mesmo para uma força de respeito. A sul, quase paralelamente, corria o trajecto principal Mansoa-Bambadinca-Bafatá. Entre ambos, uma extensa faixa onde o PAIGC tinha uma parte dos seus incontestados domínios. Como sempre fui sortudo (!), calhou-me na rifa uma tarefa muito simples; dar uma saltada a Mantida (vejam no mapa) e correr com uns okupas que lá se encontravam indevidamente. Criteriosamente seleccionados os meus acompanhantes, pois apenas havia lugar para cinquenta, lá embarcámos em dez hélis que nos conduziram ao nosso destino. Viagem rápida e agradável, pior foi o regresso que teve de ser feito à lá patita, a desbravar mato pelas razões expostas. À nossa frente, abrindo caminho, uma parelha de Tigres e outra de T6. Saltar dos helicópteros, já foi difícil dada a oposição dos anfitriões. Fizemo-lo onde foi possível, numa pequena clareira a escassas dezenas de metros do aglomerado de tabancas. Mas entrar lá, ainda por cima sem qualquer espécie de apoio, foi muuuiito complicado. Tomado o objectivo, passou-se a uma inspecção rápida do tabancal antes de o reduzir a cinzas. Para espanto geral, o que é que encontrámos para além dos costumeiros utensílios do quotidiano? Embalagens de tabaco Porto e Português Suave, todo o tipo de mezinhas LM, garrafas (vazias) de cerveja e até pequenos bidões com combustível. Proveniência: Cantina militar, posto médico e depósitos de combustível das viaturas de Cutia! Estava encontrada a explicação para o à-vontade com que o Simeão se movimentava naquelas redondezas. Confrontado com estas evidências, admitiu sem nenhuma dificuldade que tinha perfeito conhecimento do que se passava. Sabia que os elementos do IN, muito activos na região, tinham as mulheres na tabanca de Cutia, onde eles próprios gozavam os seus períodos de férias. E não ignorava que parte dos consumos da cantina iam parar ao mato. Nos dois períodos de licença que gozou na metrópole, abasteceu-se de tudo quanto era ronco para distribuir pela população. Numa ocasião em que nos cruzámos no Biafra, apanhei-o com duas valentes malas carregando quilos e quilos de panos, chinelos, pechisbeque e bugigangas de toda a espécie com que garantiu o seu sossego. Tudo isto com a conivência dos seus próprios soldados africanos e, suponho eu, dos furriéis europeus. Com este procedimento, obteve uma garantia de segurança, tácita, que nem antes nem depois foi outorgada a mais ninguém. E teve razão, fez bem! Dado o isolamento em que se encontravam, qualquer atitude mais belicosa poderia ter provocado um desastre. Para a malta do Morés, apertar-lhes o papo seria como limpar o cu a meninos. Soube-se que algum tempo após a desmobilização, dois alferes que lhe sucederam, teriam sido mortos pelas próprias forças. Sem confirmação. Obteve outras vantagens. Dadas as longas ausências dos militares do PAIGC, sentia-se no direito (e se calhar no dever…) de lhes consolar as mulheres. Confessou-me que tinha uma certa predilecção por grávidas. Seguindo um determinado ritual, sentava-as ou deitava-as por cima, mas antes, aplicava-lhes duas carinhosas palmadinhas na barriga e dizia:

- Minino disculpa e tá quietinho, a mim n’bai fá fudi-fudi co mama di bó.

Mas nem tudo foram rosas na comissão deste nosso camarada. Preguei-lhe duas grandes partidas, uma das quais, involuntária, haveria de levá-lo à baixa.
Hei-de contar-vos.

Até lá, abraços do
VJ

PS: O Simeão Duarte Ferreira, é meu colega, amigo e vizinho. Exerce a sua actividade clínica no Centro de Saúde da Bidoeira-Leiria e reside na localidade de Guia-Pombal

Recorte da Carta da Guiné, onde se podem ver as estradas Mansabá-Bafatá e Mansoa-Bambadinca-Bafatá

Fotografia do Destacamento de Cutia, situado na Estrada Mansoa-Mansabá
Foto: © César Dias (2008). Direitos reservados.


Fotografia aérea de Mansabá, ponto de passagem obrigatório para quem se deslocava de Mansoa para Farim.
Foto: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.


Fotografia do aquartelamento do K3. Por aqui permaneceu a CCAÇ 2753 do Alf Mil Vitor Junqueira durante boa parte da sua comissão.
Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados.


2. Comentário de CV:

Caro Vitor, como te prometemos e para podermos dar a oportunidade aos nossos leitores de (re)lerem as tuas histórias, criamos uma série chamada Histórias de Vitor Junqueira, similar aliás a algumas já criadas para outros camaradas, destinada a agrupar os teus trabalhos não integrados noutras séries, como por exemplo O nosso baptismo de fogo.

Nesta tua 10.ª história fica em roda-pé a lista das anteriores, já publicadas.
_____________

Nota de CV:

(1) Vd. postes da série de:

18 de Setembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

27 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

5 de Janeiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

31 de Janeiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação

6 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1567: Histórias de Vitor Junqueira (8): Operação Larga Agora, na região do Tancroal, com a CCAÇ 2753

11 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3438: Histórias de Vitor Junqueira: (9): O Líbio e o alferes gazeteiro

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3438: Histórias de Vitor Junqueira: (9): O Líbio e o alferes gazeteiro


1. Em 9 de Novembro de 2008, o nosso camarada Vitor Junqueira, Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 - Os Barões - Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, deixou este comentário no P3411:

Carlos,
Muito obrigado pelo teu esclarecimento.

E, sendo assim, prepara-te que aí vai aço! Quero dizer, ainda hoje vou alinhavar mais uma história - com agá e deixemo-nos de tretas -, que te enviarei para publicação, se achares que tem merecimento para tal.

Sabes Carlos, eu não consigo escrever nada em que não ponha um pouco da pessoa que eu sou. Por vezes, uma ponta de ironia ou o linguajar da minha infância, dão aos meus escritos um certo colorido que, ao relê-los (quando o faço), pergunto a mim próprio: Quem é que pode interessar-se por esta porcaria!? E zás, reciclagem com eles! Têm escapado aqueles que, a seguir ao impulso da escrita, seguem imediatamente para o correio. Nesse caso, não há recuo possível! Quanto aos temas, só tenho uma preocupação, a de que tenham subjacente a verdade.

Amigo Carlos, não respondas a este e-mail porque não é necessário. Estou a ouvir-te neste momento.

Até breve,
VJ

2. Caro Vitor, não te respondi, como querias, mas publicamente te digo que vales tanto pela tua coragem, honestidade intelectual, que a outra não é discutível, e franqueza, que só me ocorre dizer que te admiro por seres quem és e como és.

Não deites para o caixote aquilo que expontaneamente te sai pela ponta da caneta. Promete.

Aos restantes companheiros, não me canso de repetir que qualquer trabalho que venha de quem quer que seja, com a qualidade do Vitor ou parecido com aquilo que eu prórpio escrevo, menos boa, mas genuíno, é sempre bem-vindo e será publicado de certeza. Não se acanhem camaradas perante a qualidade de alguns prosadores e escrevam o que sentem e o que lhes vai na alma. Estamos aqui para receber e publicar as vossas histórias, mesmo sabendo que os seus autores jamais serão candidatos ao prémio Nobel da literatura.

3. No dia 10, recebemos do Vitor Junqueira esta reflexão sobre a época de Natal que se aproxima, seguida de duas curiosas histórias.

O Líbio e o Alferes gazeteiro…
Vitor Junqueira

Estimados amigos e camaradas,
Estamos quase chegados ao mês do Natal, como se diz por aqui e em muitos outros sítios. Por um lado é bom. Significa que estamos cá, com mais ou menos achaques completámos outra longa viagem de 365 dias em volta do sol, à velocidade de 29.784,2 Km/seg. Vamos entrar numa quadra que, além de festiva, todos dizem que é mágica, sem que ninguém saiba explicar exactamente porquê. É como o próprio tempo, sentimo-lo, mas quem é capaz de o definir? E como ele corre! Ainda ontem estávamos em fim de Festas e ei-las de novo à porta. Aí reside o por outro lado da questão; para os homens e mulheres da minha geração, torna-se cada vez mais pesado o sentimento de que no contador da vida, a cada Natal que passa, mais um ano é retirado ao nosso prazo de validade. Damos connosco a afirmar com toda a naturalidade: Para o ano, se eu cá estiver... É duro mas é assim mesmo e não há volta que se lhe possa dar. Quem correu, já não tem muito para caminhar.

O Natal toca-me, mexe comigo, como se diz nesta nova linguagem que todos andamos a aprender. Vêem-me à memória recordações de infância, tantas. Repousando ao ar do borralho, o alguidar das filhozes da minha mãe, confeccionadas com muita abóbora menina e açúcar, a tigela com o pão de ló bem batido, de onde eu fanava bocadinhos de massa na ponta do dedo enquanto ela untava a forma. O pirum bêbado, a desfazer-se na assadeira em leivas de carne, batatinhas novas a boiar na sua gordura olorosa. O presépio, construído com tabuinhas das caixas de sabão offenbach e musgo arrancado aos troncos das oliveiras. Até o Menino Jesus deitado nas palhinhas era bem mais simpático do que um empregado Seu que para aí anda, a quem chamam Pai Natal. Empanturra os putos com consolas e telemóveis que eles já têm, Barbies, skates, BTT’s e mais uma montanha de lixo. Coisas pelas quais perdem todo o interesse, mal acabam de as desempacotar. Pode-se dizer que hoje em dia, o êxtase da criançada dura aqueles poucos instantes que levam a abrir os presentes. É o preço a pagar por vivermos numa sociedade consumista. O meu Menino Jesus porém, era bruxo, adivinhava sempre o que eu queria. Tanto me contentava com uma bola, como recebia com enorme excitação, uma caneta de tinta permanente, uma mala nova para os livros ou umas reluzentes botas de ensebar com orelha e rasto de pneu. E a dose de felicidade era tamanha que durava o ano inteiro.

Foram Natais bem mais felizes, os da minha meninice. Como numa conta de somar, junto-lhes a lembrança daqueles que vivi com os meus filhos quando eram pequenos. Quantas saudades, chega a doer! Hoje, depois de tanto peido de cigano e cornadas da vida, é-me cada vez mais difícil libertar a tal criança que supostamente nos acompanha do nascimento até à cova. O Natal já não tem força para me aquecer a alma, talvez a amorne. Entre a excitação e uma espécie de melancolia pegajosa difícil de sacudir, fico apenas contente, é quanto me basta. Evoco memórias de familiares e amigos que já lá vão, dos camaradas dos tempos de emigrante e da tropa. Em breve chegarão à minha caixa do correio os postais da praxe. Eu não escrevo, prefiro o telefone. Mas não para mandar aquelas mensagens predefinidas, idiotas. Uma praga para uns, uma mina para as operadoras. Na noite de consoada, recebo e faço meia dúzia de telefonemas. Gosto de ouvir a voz dos amigos que o são de verdade, sem motivo nem explicação. Daquele amigo em particular que, em dado momento, nos caiu no goto e, passada uma eternidade, continuamos a achar que só por capricho do destino não é nosso irmão de sangue.

Tenho um amigo assim, o alferes Quintas, gazeteiro encartado, o maior que passou pelo exército português, zeloso quanto ao bom estado de conservação da primeira camisa que a mãe lhe deu, contestatário militante, exímio jogador de King, lerpa, sete e meio e montinho, discípulo de Bacco, amparo de solteiras, viúvas, divorciadas e mal casadas.

Mas, permitam-me que antes vos fale de outro amigo e colega (de escola), Kahled o Líbio.

Estava eu a iniciar o primeiro ano do curso superior de pilotagem da Escola Náutica e tendo as aulas começado havia umas duas semanas, aparece na turma um matulão de vinte e poucos anos a falar com sotaque fortemente abrasileirado. Cabelo curto e ligeira carapinha, tez de um moreno carregado e dentes resplandecentes, parecia o Omar Sharif dos velhos tempos. A sua simplicidade, o olhar franco e leal, conquistaram de imediato o resto da turma. Muçulmano fervoroso, frequentava as aulas com assiduidade e nos intervalos, falava-nos da família, dos lugares por onde passara e dos amigos que lá ficaram. O pai tinha desempenhado as funções de Adido Comercial da Líbia no Brasil, nos últimos nove anos, até à sua recente transferência para Lisboa. Tinha dois irmãos, o Sam um pouco mais novo, que enveredou pelo curso de máquinas marítimas e um outro, ainda chavalo com cerca de doze anos de quem não recordo o nome. Relativamente aos costumes, o Kahled era exemplar. Único vício patente: o do tabaquito. Não dizia palavrões, não bebia álcool nem comia carne de porco. Quanto a sexo, seguia à risca os ditames da sua religião. Porque segundo os mandamentos, sexo era uma coisa muito séria e a pila, não era propriamente uma chouriça que se pendurasse em qualquer fumeiro. Estávamos no mês de Outubro. Pois bem, antes do Natal, já o Kahled tratava pelo nome as putas todas do Bairro Alto, comia lentriscas grelhadas acompanhadas com Reguengos e iniciava as suas incursões predadoras pela margem sul, por tudo quanto era bas-fonds onde cheirasse a bichana. Da nacional, porque na altura ainda não se consumia chicha do leste ou sul americana! Não raras vezes, utilizava nesta incursões a viatura CD, onde se fazia transportar com os comparsas para além das galdérias e muito álcool. O que pode explicar nunca terem ido todos parar à choldra. Ou seja, aquilo que os liberais brasileiros não almejaram em nove anos, o tresmalhe de uma boa ovelha, os portugas conseguiram em poucas semanas. Claro que, com o andar desta carruagem, outra coisa não se poderia esperar que não fosse o completo desinteresse pelo curso. Faltas às aulas, as manhãs na choça a curtir a ressaca das noitadas e as tardes passadas a preparar a caldeira para a soiré, acarretaram chumbo atrás de chumbo. O Kahled nunca mais passou do 1.º ano. Um dia de finais de Julho, tendo eu concluído o curso, dirigi-me à escola a fim de tratar da documentação para o meu primeiro embarque. Encontro o Líbio no bar a despejar umas bejecas para cima de um lastro à base de amendoins bem torradinhos.

- Ora viva, Kahled! Estás bom, meu? O que é que estás aqui a fazer?

- Ói cara, tudo jóia. E você?

- Numa boa. Vim pedir a certidão para a capitania. Mas ainda não me disseste porque é que não estás a gozar umas merecidas férias!?

- Fiz hoje o exame de Márinhária – a disciplina mais acessível do curso –. Assim já vou podê mi mátriculár no segundo ano!

- Oh pá, parabéns. Então e a nota, já saiu?

- Saiu não, mas mi correu muito bem, estou contando com uma boa nota.

Uns dias depois volto à Escola para levantar a certidão. Passo pelo bar e encontro o Khaled nos mesmos preparos.

- Olá, companheiro! Tratando da matrícula

- Não, não. Chumbei.

- Não passaste???

- Nããão, o cara mi fodeu!!!

Nota: O “cara” era o comandante Marques da Silva, o mais estimado e justo professor daquela escola. Foi durante mais de trinta anos capitão da pesca do bacalhau tendo comandado algumas das velhas glórias nacionais nas suas derradeiras deslocações à Terra Nova, enquanto navios pesqueiros à vela.

O José Manuel Coutinho Quintas, era um dos alferes de uma companhia a banhos na zona de Bula. Natural de uma aldeia próxima de Barcelos, já era casado e pai de um filho ou dois quando foi bater com os costados na Guiné. Baixote, vivaço, simpático, era o protótipo do bom malandro. Tinha um defeito, estava sempre no contra, pelo menos no princípio. Esperto que nem um rato de celeiro, não tinha dificuldade em enfileirar argumentos para justificar a sua pouca ou nula adesão à causa. Porque a sua mãe não o tinha criado para ir morrer em África, porque aquele país era deles e nós não passávamos de reles ocupantes, à força etc., etc. Possuía retórica extensa, fecunda, e não via com bons olhos aqueles que não comungavam do seu ponto de vista. As críticas e aleivosias que tive que aturar àquele desgraçado!

Fiel aos seus princípios, decidiu em dada ocasião em que estava escalado para uma segurança nocturna nas imediações do quartel em Bula, que o seu sangue, nessa noite, não seria pasto para mosquitos. E vai daí, deu parte de doente. Ficou no quarto e ordenou ao impedido que fosse à messe de oficiais aviar o tratamento adequado à sua situação clínica: uma bifana no pão, uma sandocha mista de queijo e fiambre e duas cervejolas! O coronel não sei quantos, com todo o respeito, chefe daquela guerra, entra no bar e topa o soldado junto ao Balcão.

- O que é que o nosso pronto está aqui a fazer?

O soldado, coitado, todo tremeliques, não sabendo o que fazer com o taleigo onde levava a medicação, responde:

- Meu comandante, eu estou aqui por mandado do nosso alferes Quintas.

- ????

- Então mas não é o pelotão do alferes Quintas que está escalado para ir emboscar?

- Era, meu comandante. Era, mas o nosso alferes está doente.

Ao coronel não passou despercebida a volumosa receita acabada de aviar. Vira-se para o médico que ao fundo da sala seguia a conversa enquanto se batia estoicamente com um interminável crapaud e dá a seguinte ordem:

-Ó Dr, vá lá ao quarto do nosso alferes, veja o que é que ele tem e apresente-me um relatório.

O médico, por mais camarada que desejasse ser, não pôde senão atestar em letra de relatório a saúde de cavalo de que gozava o alfero.

Processo disciplinar em cima e, catrapus, dez dias trancadito no quarto findos os quais, o Quintas recebe guia de marcha e vai de vela até ao K3.

Travámos conhecimento num fim de tarde em que regressava do mato. Roto de cansaço, negro da fuligem do capim e das tabancas a arder, farto de tiros e tiras, avisto-o junto ao quarto dos alferes, à paisana, envergando calções e uma imaculada T-shirt branca. Com um pé em cima de um mocho acompanhava-se à viola, cantando qualquer coisa que soava assim:

Oh when the sens
Oh when the sens
Oh when the sens, oh ma-tchi-ni


- Quem é o artista? Perguntei ao portalegrense 1.º sargento Leão, Leanito para os amigos, já falecido, que me esclareceu.

Na semana seguinte, fomos ambos fazer uma operação. A coisa esteve preta! À chegada, atira-se para o chão à frente da porta da secretaria e diz:

- Oh Junqueira, tu és louco, pá!

Foram cócegas para o meu ego e, o início de uma amizade tão forte quanto improvável.

O Quintas vive na Suiça onde depois de vinte anos a trabalhar na Swatch, se tornou proprietário e gerente do melhor restaurante da região. Veio visitar-me este verão, como faz sempre que vem a Portugal. É um daqueles manos com quem contacto na noite da consoada.

Quando lá forem, batam ao ferrolho e digam que vão da minha parte. Vão conhecer o significado da palavra hospitalidade em Quintanês.

Aqui vai o endereço:

Zé Manel Quintas,
Restaurant Griland
Route Cantonale, 26
1964 Conthey

Obs: Isto fica em Sion a cerca de 150 Km de Genève.

Já agora, toparam a ligação entre estes dois retalhos de vida?
Cá para mim, acho que ambos si foderam!

Espero que tenham apreciado, até breve
VJ

OBS:-Itálicos e negritos da responsabilidade do editor
____________________

Nota de CV

(1) Vd. postes da série de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação

6 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1567: Histórias de Vitor Junqueira (8): Operação Larga Agora, na região do Tancroal, com a CCAÇ 2753

(2) Vd. poste da última participação do Vitor Junqueira no nosso Blogue com data de 5 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3411: O meu baptismo de fogo (22): A minha primeira vez... (Vitor Junqueira)

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação

Guiné > Região do Cacheu > Biambe > Bajuda Papel, cristianizada > Uma homenagem à beleza da mulher guineense... Um "verdadeiro monumento ao amor", escreve o Vitor Junqueiro, neste post, a propósito da sua Fanta Faldé....

Série de postais ilustrados do tempo da Guiné Portuguesa, s/d nem editor... Colecção do nosso amigo e camarada José Casimiro Carvalho, outro tuga enfeitiçado... (ex-fur mil op esp, CCav 8350, Guileje e Gadamael, 1973/74)


Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.

Texto do Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, membro da nossa tertúlia (1). Enviado em 17 de Janeiro de 2007.

Comentário (prévio) de L.G.:

(i) Amigos e camaradas: o que vão ler, é um dos mais belos textos que um homem pode escrever sobre uma mulher em tempo de guerra. O estilo é puro e duro, o título enganador... Há uma tremenda ternura subliminar que me emocionou, e que só pode honrar o homem, o médico e o português que é o Vitor Junqueiro. É um texto que nos honra a todos. É uma homenagem a todas as Fantas Baldés da Guiné que climatizaram os nossos pesadelos, e que dormiram connosco na cama...

(ii) É um texto corajoso, escrito na primeira pessoa do singular, sem máscaras, sem defesas, que muitos de nós gostariam de ter escrito. É um escrito da maturidade, um escrito que revela uma grande nobreza de alma, sensibilidade e humanidade...

(iii) É um post que definitivamente vai figurar na antologia dos melhores posts do nosso blogue...

(LG)
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Luís,

Mantenhas p'ra bó.

Como as promessas se fazem para cumprir, aqui vai um pedaço de prosa da minha lavra que gostaria de ver publicado no Blogue.

Assim como aquele texto que te enviei ontem, já tarde (2). Se for possível e quando for possível. E caso não seja, agradeço que me dês conhecimento.

Saudações cordiais,
Vitor Junqueira

A minha puta ...
por Vitor Junqueira

1. Reflexão:

Toda a gente tem a sua puta. Que nem sempre é a doce puta-amante. Na maioria das vezes é uma bem amarga puta de vida, ou uma puta de sorte ...

Não sendo um expert em matéria de putedo, tenho sobre este assunto algumas ideias próprias, nem sempre consensuais com a moral e os bons costumes prevalecentes na família portuga. Começo por dar conta de um facto: Há muita gente que, com a maior naturalidade, visiona no leitor de DVD ou televisor da sua sala, filmes contendo cenas raiando o mais puro hard core, e no entanto, se numa conversa de circunstância o tema descamba para o lado das meninas, lá vem o inevitável e embaraçoso constrangimento. Tal como proclamava o nosso bem conhecido cónego Remédios, “não havia nechechidade” ... também estes benzetas não se coíbem de grunhir moengas contra estas sem-vergonhices. Repudio os seus argumentos bacocos, moralistas e reaccionários, quase sempre eivados de indisfarçável hipocrisia.

Afinal, todos sabemos que as putas como as cadeias existem, porque existem homens e mulheres. Reconheço contudo que entre nós, este continua a ser um tema meio tabu, com conotações geralmente negativas. Veja-se, a título de exemplo, algumas designações aplicadas às principais linhagens de putas:

Entre as plebeias, assumem posição de relevo as putas do c... São uma estirpe comum que pode desabrochar virtualmente no seio de qualquer honrada família. Porém, o grosso do efectivo é constituído pelas putas reles, putas manhosas e putas rafeiras. Há quem se refira a uma variante urbana particularmente desqualificada, como putéfia de merda, também conhecida como gatinha do Cacém. Não possuindo forçosamente qualquer vínculo nobiliárquico, as reais putas, cuja patrona-mor até foi por mero acaso uma conhecida princesa, são intocáveis, quase sagradas aos olhos dos milhões de putas sérias que por aí andam e com quem dormimos habitualmente!

As putarronas têm experiência, têm estatuto e acima de tudo possuem bons amigos. Sabidonas, cuidado com elas! As minhas preferidas são as refinadas putas. São o que são e não enganam ninguém. Distinguem-se pelo seu elevado grau de profissionalismo. Fora deste elenco, ficam as putas finas. Como dizia uma comadre minha tentando defender a honra da filha: são tão putas quanto as outras, mas sabem escrever à máquina! Têm carreira própria e à pala de umas cambalhotas com peixe graúdo, tornam-se alpinistas. Olhem em redor, e vejam até onde algumas conseguiram trepar!...

Por mim, rejeito qualquer expressão ou atitude classicista ou discriminatória em relação a um grupo profissional tão antigo quanto a humanidade. Que, por sinal, até tem merecido a atenção de alguns dos maiores pensadores e poetas que a humanidade já produziu. Como argumento final e para não me esticar em demasia, direi apenas que dentro de cada um de nós, existe certamente uma putinha adormecida.

Isto não significa que não fique deveras chateado se algum chifrudo me apelidar injustamente, de filho da puta. E se o mandassem para a puta que o pariu, como é que o meu prezado amigo reagiria? Como eu, mal. Pois é, paradoxos ...

2. Vamos à estória:

Era eu um chavaleco de merda na casa dos vinte e poucos anos, quando conheci na Guiné uma refinada puta. Tão puta, que suspeito que tenha nascido já sem cabaço. Ou se o teve, foi por pouco tempo! Não era uma puta comum. Esta veio ao mundo por uma causa, com uma missão. Tinha o seu código de honra e levava-o muito a sério: À sua beira, ninguém deveria padecer à míngua de sexo, ainda que estivesse teso!

A Fanta Baldé era uma mandinga retinta, grande, de feições fortes quase viris, voz meiga e riso espalhafatoso. Nunca soube qual era a sua idade, mas julgo que seria idêntica à minha. Ouvi-a dizer que nasceu lá para os lados de Binta, e por lá se manteve até ter peso suficiente para um tuga lhe fazer um mulatinho, o Mário. Já a criança era nascida quando à cata de melhores oportunidades de negócio montou estaminé num tugúrio em Farim.

Aí, acolheu no aconchego do seu corpo torrentes de esperma, em troca dos pesos que tanta falta lhe faziam para criar o seu rebento. Mais tarde, acabou por atravessar o Cacheu vindo a fixar residência em Saliquinhedim (K3), dedicando-se à prestação de serviços em regime de exclusividade aos Barões da CCAÇ 2753 (1).

Foi aí que nos encontrámos pela primeira vez e, desde logo, uma forte antipatia nasceu entre nós. Armado em cão com pulgas, eu via naquela mulher uma fonte de complicações. Já imaginava o mais do que provável abandalhamento da Companhia com quebra na disciplina e, sabe-se lá, a possibilidade da prática de actos de rebelião na hora de sair para o mato. Assim como a exploração, a favor do IN, de fontes de informação às quais tinham acesso privilegiado os nossos militares, seus clientes, sobre os quais possuía notório ascendente. O que, diga-se, representava uma enorme e inaceitável desvantagem estratégica das nossas forças face às tropas do PAIGC.

O tempo veio a demonstrar que era apenas uma mulher e mãe. Uma boa mãe. Como nenhum daqueles temores se concretizou, acabámos por nos tornar amigos íntimos. Demasiado até, tendo em conta as marciais regras do decoro e bons exemplos!

Mas ela assim quis, e quando a mulher quer, Deus ordena. E foi assim que moenga aconteceu:

Como assíduo frequentador da tabanca, situada arames meios com as instalações militares, procurava na convivialidade com a população local o alento para o stressante dia a dia dos golpes de mão, das colunas, patrulhamentos, emboscadas, em suma, da vida em estado de guerra. Sentados no chão ou estendidos sobre esteiras, gozando a frescura relativa da tarde sob a ramagem frondosa das mangueiras, a modorra tomava conta dos corpos enquanto a neura se apoderava das mentes. Entediados por meses de permanência naquele buraco do fim do mundo, amarfanhados pela saudade dos familiares e amigos que tinham ficado na metrópole, aquelas eram as tardes mais longas de todas as tardes, como no poema do Ary dos Santos (3).

A noite, porém, metamorfoseava aquele escafundó num pedacinho de paraíso. No tabancal, quase não havia homens, pois estavam praticamente todos exilados nos pelotões da milícia de Binta e Bigene. Deles, só se sabia quando apareciam para gozar uns dias de férias e esvaziar os sacos da saudade! Talvez por isso, os lusos eram muito bem recebidos. As esposas e namoradas, carentes como se compreende, lá se amanhavam com os nossos bacanos. Mas também as mães, primas, amigas ou irmãs que nos lavavam os camuflados, o pescoço e a alma em troca de quase nada.

Depois do jantar, que era geralmente servido ao lusco-fusco, distribuíam-se as armas aos putos que tinham a seu cargo a auto-defesa da tabanca. Eram na sua maioria adolescentes, a quem os nossos antecessores tinham ensinado o manejo da G3 e do morteiro. Recolhiam as armas da mão da tropa ao fim da tarde e entregavam-nas pela manhã do dia seguinte. E sempre souberam dar conta do recado.

Quanto a nós, magníficos representantes do marialvismo nacional, uma vez montada a segurança, o objectivo passava a ser bajudame e cada um se safava como podia. No terreiro da aldeia, localizado no centro de um aglomerado de 20 ou 30 moranças, ardia uma fogueira alimentada com lenha que todos ajudavam a recolher e transportar. Espantava os mosquitos, aquecia e alegrava o ambiente. Ao seu redor, apertavam-se os nossos à molhada com os indígenas.

Havia lugar para todos e todos tinham o seu lugar. Lado a lado, brancos e pretos, fulas e mandingas, homens, mulheres grandes, jovens adultos e crianças, escutavam interessados o relato feito por alguém, que em tom jocoso, dramatizava o acontecimento social ou peripécia desse dia. Via de regra, havia sempre uma vítima, alvo de dura chacota. Que ninguém levava a mal.

Às tantas, um ritmo de batuque, cantoria e risos de mulher enchiam o ar fresco da noite com cheiro a África. Para tanto, bastava que alguém desse início a um som com as palmas. E logo as palmas de muitas mãos acompanhavam aquele ritmo. Qualquer velha lata ou cabaceira, primorosamente percutidas por mãos experientes ou improvisadas baquetas, produzia uma música a que os corpos não resistiam, e recusando o controlo da vontade, gingavam ao ritmo da batida. Para o centro da roda, saltava então uma mulher, depois outra e outra. Curvadas para a frente, muitas vezes com os pequenitos na costa, batiam o chão, forte e compassadamente, com os pés nus. E logo a pequenada toda, as bajudas, honradas mães de família e outras menos honradas, toda a gente participava naquela dança quase frenética em que os cânticos entoados por conhecedores transformavam num ritual cataléptico que podia durar horas, e só terminava quando os corpos trémulos e suados pediam descanso, ou o quadro que fornecia luz à tabanca era desligado. Na esteira ficavam apenas os coxos e o mija na escada, moi, eu!

O convívio continuava então, mais terno, mais íntimo, com a cumplicidade da escuridão traída por esquivos reflexos das labaredas moribundas. Numa dessas noites, quando a maioria do pessoal já havia recolhido a penates, a Fanta aproximou-se de mim, risonha, e num crioulo palpitante disse-me:
- Zunqueira (tinha problemas com a dicção do meu nome), preciso falar contigo.
- Então fala, diz o que é que queres, respondi.
- Zunqueira, aquilo que tenho para te dizer ... tem de ser em minha casa. Vem por favor - disse ela. Disse-o como se fosse uma ordem, e num passo ligeiro e silencioso, pôs-se a caminhar à minha frente.

Fiquei intrigado, receoso mesmo. Ocorreu-me que quisesse pedir qualquer coisa para o filhote. Ou estaria ela a tramar alguma armadilha, a mando do IN? Mas, dado que noblesse oblige ..., senti-me impelido a seguir-lhe a silhueta através do labirinto de moranças, àquela hora escuro e deserto. Chegados à sua porta, no extremo oposto da tabanca quase junto ao arame farpado, accionou a taramela que garantia a segurança da sua espartana habitação.
- Vem, disse em voz ciciada, afastando-se para me deixar passar.

Instintivamente agarrei a coronha da [pistola] walter que levava escondida no bolso do dólmen. Contudo, o seu sorriso descomprometido tranquilizou-me. Entrei.

A casa tinha apenas uma divisão com chão de terra batida. Do lado esquerdo, arrumado à parede, um leito de ferro sobre o qual um colchão de espuma coberto com uma colcha cor de rosa impecavelmente limpa, sem uma ruga. Um pequeno caixote servia de mesa de cabeceira e evidenciava a singeleza do local. Em cima dele, um luxo, um candeeiro a petróleo cuja luz subiu. Pude então destrinçar junto à parede oposta um camita de madeira onde dormia placidamente o pequeno Mário. Esta visão acabou com os meus receios, senti-me completamente descontraído.

No pouco espaço disponível entre as duas camas, a Fanta volta-se para mim e apontando com o queixo para o pequenito, apoiou o indicador sobre os lábios em sinal de silêncio. Ostentava um sorriso enigmático a que luz velada do candeeiro realçava o brilho dos olhos e a brancura dos dentes. Acheia-a diferente, parecia uma garota.

Num gesto rápido fecha a porta, e sem uma palavra aproxima-se mais. Sinto-lhe o hálito, as formas e o calor do corpo. Delicadamente, como a pedir licença, envolve-me com os braços e aproxima a sua boca da minha. Um beijo rápido, carregado de promessas que me deixa paralisado. Balbucio uns nãos pouco convictos que só servem para reforçar o ímpeto com que se atira à tarefa de me despojar da farda e das botas. Sinto as suas mãos percorrerem-me o corpo à procura de fechos e botões enquanto me vai tocando com os lábios.

Sei que estou arrumado. Cheio de princípios e convicções, já não disponho de forças nem vontade para bater em retirada. Vejo-a pegar no cinturão carregado de artilharia, que atira sem cerimónias para cima das roupas caídas no chão. Troça despudoradamente:
- Zunqueira, para que andas com isto? Se eu quisesse fazer-te mal de que é que estas coisas te serviriam?

Xeque-mate, sem discussão! Num abrir e fechar de olhos, está nua. À volta dos quadris, um cordão de cheirinho, realça-lhe a feminilidade. Trata-se de uma enfiada de pequenas bagas escuras colhidas no mato que libertam uma oleosidade perfumada. Afasta a colcha e estende-se sobre o lençol branco. O contraste com a cor do seu corpo tem um efeito estonteante. E que corpo, Senhor! Que coxas, que mamas! Fico ali, ridículo, confuso, convulso, com tusa, em três pernas.

Aí, ela estendeu-me a mão e num convite cheio de sensualidade, puxou-me para junto de si. Acaricio-lhe a pele macia e aveludada com que a natureza brindou as mulheres negras. Percorro-lhe a pentelheira de um crespo sedoso, perfeitamente recortada, na busca dos recantos mais secretos daquele verdadeiro monumento ao amor. Claramente excitada, o seu corpo procura o meu que, tomado por uma espécie de frenesim, já só pede os finalmente.

A Fanta porém, conhecedora do seu ofício e com o saber fazer que o profissionalismo confere, com a docilidade e delicadeza que lhe eram próprias, lá foi tomando conta das operações. Controlando-me os gestos e moderando o impulso, ensina-me a beber repetidamente da cantarinha.

Alta madrugada, enrosca-se, envolve-me, retém-me o mais que pode. Faço-a entender que o meu regresso ao aquartelamento é imperioso. Submissa cede, e acompanhando-me à porta sussurra:
- Zunqueira, logo espero por ti.
- Não sei Fanta. Vou precisar de descansar porque o dia vai ser duro - respondi de forma evasiva para não criar falsas expectativas.

E abalei, ciente de que aquele só poderia ter sido deslize único que de forma alguma poderia repetir-se. À vista da sentinela, passo pela suprema humilhação de ter que me identificar:
-Quem vem lá faz alto! - diz o cabrão, perdido de gozo!

Sorrateiramente, para não acordar o camarada com quem partilhava o quarto, enfiei-me debaixo do mosquiteiro. Adormeci que nem uma pedra a pensar que aquela (volto a citar o Ary):

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram... Aquela e as seguintes. Porque durante mais de um ano, foram poucas as noites em que não dormi entre as pernas da Fanta. O caso assumiu foros de escândalo. O alferes Junqueira que alguns consideravam o homem mais disciplinado e disciplinador da Companhia, caíra de joelhos numa rendição incondicional, vencido pelo feitiço de uma mulher ... pública. Inacreditável. Ela deu-lhe alguma mezinha a beber, diziam uns, ou o caso tem mistério afirmavam outros. Nada disso, garanto eu. O que houve foi uma luta desigual. De um lado, os atributos físicos e a juventude de uma mulher simples, extremamente doce e feminina na cama. Do outro, a fraqueza da carne, bem rija na altura.

A Fanta nunca frequentou a escola mas possuía uma notável sabedoria de experiência feita. Acho que era sábia. Tinha tiradas de índole filosófica que me deixavam de cara à banda. Com ela aprendi bastante. Sobre a vida, o mundo e as pessoas. E o sexo, já agora! Fiquei a saber, por exemplo, que até as coisas têm alma, podendo continuar a existir mesmo depois de materialmente terem desaparecido!

Avizinhava-se o final da comissão. Havia uma data prevista para a rendição, com entrega das instalações a uma Companhia de periquitos. Por maior sigilo que se quisesse guardar quanto a estas movimentações, o segredo era invariavelmente quebrado como se sabe. No entanto, talvez por dever, mas certamente por cobardia, eu nada disse à mulher com quem tinha literalmente vivido nos últimos meses. Mas ela sabia de tudo havia tempo, mas nunca tocou no assunto. No dia da partida, pouco depois do sol nascer, estava eu ainda deitado quando bateu à porta, pedindo licença para entrar. Levantou o mosquiteiro e sentou-se a meu lado. Estávamos sós. Voltou-se para mim e sorriu, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe corriam pela face.
- Zunqueira, tu ias embora sem te despedires de mim!? - O tom era de mágoa e tristeza.

Senti-me um verme. Gaguejei sem saber o que dizer, mas lá arranjei arte para arquitectar umas mentirolas:
- Estás maluca Fanta, vou lá embora agora ...

Bem, eu devia meter dó, porque foi isso que li nos seus olhos. Limpou as lágrimas e passando-me para a mão um pequeno embrulho, foi dizendo:
- Zunqueira, quero que leves esta lembrança. É coisa pouca, mas acho que vais gostar.

Fiquei siderado. Pela atenção e carinho que não merecia. Pelo remorso. Desfiz o embrulho e retirei uma lanterna eléctrica daquelas de tipo espalmado, com uma grande pilha rectangular, dentro de uma caixa metálica cor de tijolo. Devia tê-la mandado vir de Bissau, com a devida antecedência. Muito tempo antes, eu tinha deixado escapar que, ao regressar todas as madrugadas ao quartel, tinha alguma dificuldade em orientar-me por entre as tabancas (moranças) na noites mais escuras.

Durante todo o tempo em que dormi com a Fanta, ela nunca me pediu nada, nunca aceitou nada. A não ser algumas latas de leite condensado Néstlé, meia dúzia talvez, que lhe levei para o filho ainda bebé. Terá vivido julgo eu, de economias, porque durante esse período se absteve completamente do negócio. Se aquele pequeno objecto valia uma fortuna para uma população que praticamente não tinha acesso ao dinheiro, para ela então, teria sido uma autêntica extravagância.
- Fanta, eu não posso aceitar. Desculpa, mas não posso mesmo. Na casa onde compraste, talvez te possam fazer a troca por qualquer coisa útil para o teu filho, insisti.

Dei-lhe a entender que se por um lado, aceitar o presente me deixava embaraçado, por outro, aquilo era um desperdício... dinheiro perdido.

Cada cavadela, cada minhoca, como se vê. A emenda estava a sair pior que o soneto. Nesse momento a expressão da Fanta tornou-se séria e fixando-me nos olhos, retorquiu:
- Sabes, Zunqueira, só se perde e deixa completamente de ter valor, aquilo que consumimos para satisfazer o nosso egoísmo. O que oferecemos ou partilhamos com os outros, existirá para sempre. Porque mesmo depois de já se ter transformado em pó, continuará a existir na cabeça e no coração daqueles de quem um dia gostámos.

Não voltei a encontrar a Fanta. Confesso que durante muito tempo, após a passagem à disponibilidade, continuava a lembrar-me dela, com saudade. Tive vontade de regressar à Guiné para a visitar, saber se precisava de alguma coisa. Encontrei sempre desculpas para não o fazer.
Aproveito agora para comunicar a quem possa interessar que a Fanta Baldé faleceu em Julho de 2005 no Bairro Militar, em Bissau.

Como diz o povo na sua bondade: Paz à sua alma e que a terra lhe seja leve.

Quanto ao filho Mário, estive com ele há uns três anos. Era então um jovem robusto de trinta e quatro anos de idade, pouco dado ao trabalho, casado, com um filho pequeno. A vida não lhe corria nada bem, pois uma espécie de Bar-Discoteca que geria em Farim, havia falido uns sete ou oito meses antes.

Descobri entretanto que o pai é um ex-militar de uma Companhia que chegou a Binta por volta de 1969/1970, de nome Mário Figueiredo. Originário da zona de Mangualde, encontrava-se na altura (2003), emigrado no Reino Unido.

Dedico esta narrativa absolutamente naïve, ao estilo de conto da revista Maria, à memória da Fanta. Com este despretensioso texto, pretendo também homenagear todas as Putas do mundo, muito em particular aquelas que conhecemos enquanto combatentes na guerra colonial.

Mulheres anónimas, a quem a sociedade continua a aplicar o labéu de fáceis, franquearam-nos a alma enquanto nos vendiam corpo. Foram amigas e confidentes discretas. Ofereceram-nos o colo ou simplesmente um ombro sereno que nos ajudou a apaziguar a torturante saudade de esposas, namoradas e, porque não admiti-lo, até das mães. Não posso prová-lo, mas estou convicto de que, sem o seu oportuno apoio, alguns teriam sucumbido àqueles tempos difíceis e não seriam os cidadãos equilibrados e válidos que são hoje.

Vitor Junqueira

Pombal, 17 de janeiro de 2007
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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes da série de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

(2) Vd. alguns dos post anteriores:

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira

(3) Vd. post de 17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1439: Questões politicamente (in)correctas (19): Os rambos só existem no cinema (Vitor Junqueira)

(4) Extracto de: Estrela da tarde,de Ary dos Santos

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!


In:
José Carlos Ary dos Santos > As palavras das cantigas (organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho). Lisboa: Editorial Avante. 1989, p.58.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (197o/72) > O Vitor Junqueira foi alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). É médico e vive em Pombal.

Texto enviado pelo Vitor Junqueira, em 15 de Novembro de 2006.

Luís,
A continuação de um excelente trabalho nesta tarde chuvosa e triste, são os meus votos.

Tenho reparado que a nossa tertúlia foi até agora capaz de elaborar excelentes textos sobre a participação das respectivas unidades nas campanhas do Ultramar. Mas de uma maneira geral, pouco ou nada se tem dito sobre os antecedentes pré-mobilização dessas unidades, cuja existência começou muito antes da chegada ao teatro de operações. Parece-me importante que se fale dessas origens e dos laços que a elas nos ligam, assim como do papel que desempenhamos na sua formação.

De facto, e exceptuando os casos de rendição individual, à data de embarque a nossa Companhia já era para muitos de nós uma espécie de segunda família. Tínhamo-nos conhecido meses antes e o treino daqueles rapazes fora responsabilidade nossa. Então, haverá certamente muita história para contar, montes de peripécias ...

Neste sentido, mando-te um texto que poderás editar e publicar no Blogue se achares que tem qualidade para tal.

Um abraço

PS - Eu não esqueci a receita do cabrito-pé -di-rocha (1). Mas antes, ainda quero falar-te do leitão de S. Tomé e do rato que andava à boleia!


A Tropa e o Direito de Opção

A História da formação da Companhia a que tive a honra e imenso orgulho de pertencer, merece ser contada. Até onde o meu conhecimento pode chegar, tratou-se de caso único no longo rol de treze anos de mobilizações com o envolvimento de perto de um milhão de homens.

Esta unidade, como centenas (ou milhares?) de suas irmãs, terá sido concebida num Estado Maior qualquer lá para os lados de Lisboa. Mas foi numa bela ilha açoreana (2) que viu a luz do dia, mais concretamente no Batalhão Independente de Infantaria nº 17, sediado em Angra do Heroísmo, ilha Terceira.

Consta do seu BI que foi oficialmente registada a 9 de Maio de 1970, no Anexo VI à Ordem de Serviço Nº 110 daquela unidade, tendo-lhe sido atribuído o nome de Companhia de Caçadores nº 2753 e o apelido OS BARÕES (3). No crachá, viria a ostentar a legenda NOBLESSE OBLIGE.

Da sua meninice, pouco há a dizer. A não ser que foi educada com mais duas irmãs gémeas, por uns estarolas a quem as famílias açoreanas entregaram os filhos na incorporação de Janeiro de 1970. Para o efeito, aspirantes e cabos milicianos, foram os senhores de serviço. Era pessoal que se dava bem, e de uma maneira geral já se conheciam do COM e CSM [ Cursos de Oficiais e Sargentos Milicianos]. Haviam chegado uns dias antes e foi a eles que muitos pais pediram que tomassem bem conta daquelas prendinhas. Os capitães, todos de aviário, estavam ainda em Mafra a frequentar o CPC [ Curso de Preparação de Capitães] e só se juntariam a nós praticamente no momento do embarque. Por isso, os chavalitos recém-alistados ficaram entregues aos bichos.

A instrução decorreu em ambiente real , muito bélico! Pautou-se por uma regra bastante incomum nas nossas FA, ... a ausência de regras! Ou quase. Não quero dizer que a tropa se encontrava em autogestão. Ainda não, naquela altura. Aquilo que porventura terá feito a diferença relativamente a outras escolas de recrutas daquela época, foi a enorme liberdade de acção que nos foi concedida em matéria de instrução. O limite estava apenas na capacidade e imaginação de cada um. Era a fórmula percursora do dois em um, trabalho sério e muito divertimento em simultâneo.

Eu próprio caçava gaivotas em voo a tiro de Mauser. Ou lagartixas, nas encostas do Monte Brasil com uma Manelicher .22, montado numa vaca tourina, propriedade do departamento de pecuária do quartel. Os graduados espicaçavam-se mutuamente na mira de que os respectivos pelotões fossem reconhecidos como os melhores. Muita adrenalina e uns cagagésimos de testosterona a bater forte na mioleira e eis que do olímpico lema Mais rápido, mais longe, mais forte, se resvalou bem cedo para o alentejaníssimo Olha sem mãos, olha sem pés, olha sem olhos, olha sem dentes ...!

Não se fique no entanto com a ideia de que era a desbunda completa. Muito pelo contrário, havia a consciência nítida de que todos acabaríamos por ter de participar na guerra a sério. Daí a crença de que através de uma instrução dura e realista (?) se poderiam superar futuras dificuldades do combate.

Por falar em crença, eu acredito que se Nosso Senhor não gostasse de malucos não tinha feito tantos. Neste caso porém, Deus deve ter-se descuidado, porque além de fazê-los, juntou-os. Claro está que nos dias de hoje, com tanto realismo, teria ido tudo parar à pildra! E porque é que não foi? Não sei explicar, mas suspeito que os maiores gostavam do que viam.

Imagine-se que até fomos parabenizados por termos conseguido resolver um problema complicado que o tenente lateiro (sem ofensa!) responsável pela metralha, tinha entre mãos: Uma sobredotação de milhares de munições para todo o tipo de armas em uso no EP que haviam sido abatidas ao stock, no papel, mas continuavam amontoadas nos paióis. Um perigo! Rebentamos com o que era para rebentar e queimamos o que era para arder, limpámos a despensa. E mais que houvesse!

De nada valeram as muitas queixas que as forças vivas da terra dirigiram ao Cmte. Ele eram os rebentamentos da instrução nocturna que não deixavam dormir ninguém, ou os vidros das janelas que tremiam tanto que alguns até caíam, ou os projecteis que se despenhavam sobre os telhados. Ou ainda os familiares dos rapazinhos que achavam que estes estavam a ser puxados em demasia, e disso davam conta ao comando. O capitão director de instrução avisava a maltosa para ter cuidado mas, ... nada a fazer. Era daquilo que o nosso povo gostava! Certo é que, sem grandes incidentes embora com alguns infelizes acidentes, recruta e especialidade chegaram ao seu termo.

Não me recordo qual o número exacto de jovens incorporados. Mas sei que eram em número suficiente para constituírem três companhias de instrução que foram dadas como prontas em finais de Abril ou princípio de Maio de 1970. A partir dessa altura, entrou-se em regime de serviços mínimos enquanto se aguardava a ordem de mobilização. Nesta fase, já o Alf Junqueira, a minha modesta pessoa, sabia que o seu destino era a Guiné, pois tinha-me voluntarizado ainda em Mafra. Para os outros, e como se pode calcular, o suspense era enorme. Finalmente, a 9 de Maio de 1970 é afixada no placard a tão ansiosamente esperada OS nº 110 que no seu Anexo VI decreta que as Companhias 2753 e 2754 seguem para a Guiné enquanto a 2755 vai até Moçambique.

Tínhamos então uma pool de prontos que, tendo terminado a instrução, iriam integrar as Companhias mobilizadas. E então? Qual o critério a seguir na distribuição daquelas centenas de homens por cada uma das companhias? Desconheço o modus operandi em uso nas outras unidades mobilizadoras. Posso contudo presumir que, a superior inteligência de algum burocrata elaboraria listagens apropriadas com base em classificações disto ou daquilo. Não foi o caso. A questão resolveu-se de uma forma muito mais simples, directa e sobretudo democrática! Note-se que o 25 de Abril de 1974 só chegaria uns anos mais tarde! E foi assim: Numa data que não posso precisar, mas que situo na segunda semana de Maio de 1970, reuniu-se todo o pessoal na parada e perguntou-se à cambada:
- Quem quer ir com os alferes tal e tal, para a Guiné? Tá a formar.
- E quem quer pertencer à Companhia dos alferes fulano, sicrano e... , que também vai para a Guiné? Tá a formar daquele lado.

E a mesma treta para os desgraçadinhos que iam para Moçambique, que por exclusão de partes foram os que não couberam na 2753 e 2754.

Lindo trabalho! Durante uma semana, houve quem estivesse oficiosamente mobilizado ora numa ora noutra das companhias que iam para a Guiné, acabando por decidir viajar até Moçambique, e vice versa! Devo acrescentar, embora me custe porque volto a dizê-lo, sou uma pessoa modesta (!), a 2753 foi obrigada a rejeitar alguns candidatos ou teria de embarcar com um efectivo muito superior ao que determinavam as NEP.

Aproveitando a liberdade de escolha que lhes era oferecida, os rapazes organizavam-se em grupos com afinidades tão diversas como a amizade, a conterraneidade, o parentesco ou a existência de algum conhecido já a prestar serviço em algum daqueles Territórios. E como grupo, optaram. Até à estabilização final, estes grupos fizeram-se e desfizeram-se ao sabor da intuição, do impulso momentâneo ou até do convite do camarada da companhia do lado.

Olhando para todo o processo com o distanciamento de mais de trinta anos, acho que o modelo funcionou muito bem, a todos os níveis. O resultado foi a meu ver excelente, já que conferiu a estas unidades uma coesão e espírito de corpo que seriam muito mais difíceis de alcançar através da mobilização formal e burocrática.

Do ponto de vista operacional, as coisas não poderiam ter corrido melhor. No plano pessoal e humano, basta dizer que embora nos encontremos espalhados pelos quatro cantos do mundo, e lembremo-nos que os açoreanos são emigrantes congénitos, continuamos tão unidos quanto uma família. Cada um de nós sabe e interessa-se pelo destino dos outros. De dois em dois anos, encontramo-nos numa das ilhas dos Açores para compartilhar pedaços das nossas vidas.
Acho que foi bonito. E valeu a pena, sem dúvida!

Vitor Junqueira (3)
________

Notas do V.J. :

1 - Este texto foi elaborado com base em dados retirados do volume História da Unidade.

2 – A CCAÇ 2753, embarcou para a Guiné a 8 de Agosto de 1970 onde desembarcou a 17, ficando provisoriamente nas instalações do Batalhão de Serviço de Material.

3 - A Companhia 2754, sua gémea, assentou arraiais em Bula, tendo sido posteriormente destacada para o Sector Leste (Piche ou Pirada ?).

4- O B.I.I. 17 já não existe. Deu lugar a uma Unidade chamada R.I.A. (Regimento de Infantaria dos Açores?). Julgo ter ouvido dizer que é uma das Unidades que vai ser desactivada.

5 - Nesta Unidade existe um memorial dedicado à CCAÇ 2753.

6 - A maioria dos elementos que constituíram esta Companhia era de origem açoreana, estando representadas todas as ilhas. Os restantes eram de origem continental, só não havendo nenhum ribatejano. Existia um elemento guinéu.

7 - No I.A.O. que decorreu na região de Caneças e Serra da Carregueira, um GC da Companhia “obteve folgadamente o 1º lugar no campeonato de Tiro de Combate da Região Militar de Lisboa”.

8 - A Companhia 2753 representou o Exército no desfile militar das comemorações do 10 de Junho de 1970, no Terreiro do Paço.
_______________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

(2) Grafia de açoriano: a forma correcta é esta, embora também exista a variante ortográfica açoreano, usada aqui neste e noutros posts. Vd. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.

(3) Vd. posts de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim2

7 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira

terça-feira, 31 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

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Autorização (provisória) de domicílio em França, dada em 4 de Outubro de 1967, pelas autoridades policiais francesas (DGSN - Direcção Geral da Segurança Nacional), ao português Victor Junquueira Anastácio, nascido em Lisboa, a 20 de Janeiro de 1948, e residente em Le Mesnil, St Denis, Yvelines.

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Inscrição do Vitor, em 22 de Dezembro de 1969, no Consulado-Geral de Portugal em Paris. Como ele já explicou em post anterior (1), "estávamos em Dezembro de 1969 e eu já então sabia que o meu destino era a Guiné, pois essa havia sido a minha opção. Pelos carimbos poderás também constatar que ainda cheguei a tempo para a ceia de Natal! Logo nos primeiros dias de Janeiro embarquei para os Açores a fim de constituir a minha unidade (2)"...

O Vitor faz questão de lembrar que, na tropa, não teve "tratamento especial". Do seu currículo consta que foi "trabalhador rural, vendedor ambulante, empregado de balcão, operário da construção civil, contrabandista, marinheiro e médico". Além disso, gosta de sublinhar: "Nunca fui bufo, nem agente infiltrado ou pide à paisana. Considero-me um homem de palavra, a quem a Pátria sempre tratou como filho e nunca como enteado. Deu-me mais do que eu merecia. Quanto aos dois anos que passei na Guiné, foram de facto os melhores da minha vida, só comparáveis àqueles em que andei lá por fora".

Texto e fotos: © Vitor Junqueira (2006). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

O Vitor Junqueira foi alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72) (1). Vive hoje em Pombal, onde é médico e... avô babado.


Continuação da carta que o Vitor Junqueira me escreveu, em 23 de Outubro de 2006, publicada em 27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Vitor Junqueira: Irmãos de sangue, suor e lágrimas (Vitor Junqueira)


Caro Luís,

A continuação de uma excelente tarde de trabalho, com algum lazer pelo meio são os meus votos. Já agora, permite-me esta observação. Nos teus mails aparece sempre a referência a este binómio: bom trabalho/boa saúde. Se é verdade o que dizem (o trabalho dá saúde), não seria melhor dar alta aos doentes e pô-los a bulir? Não leves a mal. Isto são lérias do Zé Povo aqui da minha zona.

Vamos ao assunto. No meu último e-mail dizia-te que as tais imagens - que estive hoje a digitalizar - seguiriam logo, logo. Pois aqui vão elas. Provavelmente não te dirão nada e com toda a franqueza, também acho que não terão grande interesse para a nossa comunidade. No entanto, a motivação que me levou a pregar-te esta grande seca, foi tentar demonstrar que nem tudo o que por aí se diz a propósito daqueles que se escapuliram à tropa é verdade.

Parece que, como eu de certo modo antecipei, o pessoal começa finalmente a abrir o saco. Já hoje recebi um e-mail daquele camarada que, ao correr da tecla, descarregou a sua revolta (3). E isso é muito bom, pois é a melhor forma de terapia até agora ensaiada para combater as feridas da alma que, passados mais de trinta anos, ainda incomodam muita gente.

Tocou-me particularmente a reacção daqueles dois camaradas que, em Montemor, aproveitando talvez o aconchego da família (nós todos), não tiveram qualquer prurido em deixar escapar um pouco da pressão (4). Se não tivessem outro mérito, estes encontros são extraordinariamente benéficos na área da recuperação das pessoas afectadas pelo stress traumático.

Também gostei do e-mail do Vacas de Carvalho, aquele do provérbio árabe (5). Se interpretei bem, ele quis dizer que esperava mais frutos, mais reacções, mais intervenção. Estarei enganado?

E para terminar aqui vai mais uma da minha lavra. Se quisermos que a nossa tertúlia se transforme em algo menos efémero, crie raízes baseadas na confiança mútua e na reciprocidade e possa evoluir, dando vida a uma autêntica comunidade, temos que mudar de agulha!

Discutamos, defendamos os nossos pontos de vista sem receio do inoportuno ou politicamente incorrecto. Com urbanidade e gentileza. E se alguém ficar com o burro e quiser ir tomar ar durante uns tempos, tudo bem. Voltará mais tarde!

Mas acima de tudo, temos de conhecer o Homem que está por detrás de cada endereço de e-mail. A ele, à família, aos seus projectos, aos seu êxitos e percalços, aos seus sonhos ...

Pela minha parte, considero que estou a dar início às hostilidades. Quem quer seguir-me?

Esguenta pêssoal.

Vitor

2. Comentário de L.G.:

Meu caro Vitor: Tu deixaste soltar o homem, o português e o patriota que há em ti; depois de ti, outras histórias de vida serão bem-vindas e aqui publicadas: o convite está feito, a porta entreaberta... Na realidade, todos temos um rosto, um bilhete de identidade, um percurso, uma história de vida, antes, durante e depois da Guiné... Eu já tinha em tempos lançado o desafio, quiçá a provocação, para falarmos dos nossos amigos, refractários e desertores... Eu sei que os combatentes têm dificuldade em olhá-los de frente até mesmo aqueles que, tendo objecções de consciência ou discordando da política ultramarina, envergaram a farda e pegaram na G-3...
Um dia gostava de ver aqui no blogue o testemunho de alguém que nos viesse dizer, cara à cara: eu desertei; ou eu fugi a salto para França, porque não queria fazer a guerra, ou tinha medo de ir para a guerra... Tu, pelo contrário, vens dizer, em voz alta na caserna, que nas vésperas de ires para a Guiné andavas em Paris, tranquilo, com passaporte e tudo, e não desertaste... Eu não condeno ninguém: os refractários, os desertores ou os combatentes... Só quero compreendê-los...
No nosso blogue não há tabus. E se eu usei o termo politicamente correcto, foi só por brincadeira, a respeito da tua afirmação: A Guiné foram dois dos melhores anos da minha vida (4)... Eu acho que a nossa cultura de pluralismo e de tolerância, que temos vindo aqui a criar e a alimentar, já deu os seus frutos: somos capazes de viver com as nossas afinidades, com as nossas diferenças e até com os nossos conflitos...
Com o teu testemunho de vida, com a tua já reconhecida frontalidade, ajudaste-nos a não perder de vista o essencial desta tertúlia... Da tertúlia à rede social, à comunidade, vai um passo: já comprovámos isso na Ameira...

No essencial, estou de acordo contigo e subscrevo a tua proposta: "Discutamos, defendamos os nossos pontos de vista sem receio do inoportuno ou politicamente incorrecto. Com urbanidade e gentileza (...). Mas acima de tudo, temos de conhecer o Homem que está por detrás de cada endereço de e-mail. A ele, à família, aos seus projectos, aos seu êxitos e percalços, aos seus sonhos"...

Quanto ao binónimo saúde-trabalho, é defeito profissional: uma das minhas áreas de interesse, estudo, ensino e investigação é precisamente a protecção e promoção da saúde no local de trabalho. Como tu sabes na nossa cultura judaico-cristã, o trabalho e a saúde não combinam bem (contrariamente, a na ética protestante, calvanista e luterano, trabalho é realização, prazer, riqueza, talk na ética confuciana)... Nas línguas latinas a palavra Trabalho, em português (Trabajo, Trebal, Travail, etc., em castelhano, francês e catalão, respectivamente) vem do latim tardio 'tripalium', instrumento composto por 'tres pales', três paus, que no tempo dos romanos servia para 'tripaliare', ou seja, torturar, castigar ou justiçar... os escravos).
Temos expressões deliciosas (e racistas) sobre esta repulsa por (e desvalorização social de) o trabalho (manual): Trabalhar é bom para o preto, Trabalhar que nem um mouro, e por aí fora... No Rio de Janeiro, o malandro carioca dizia: Trabalho se fez para burro e português... Tens diversos textos meus sobre as representações sociais a respeito da saúde, da doença, da morte, do trabalho, do hospital, dos médicos e outros profissionais de saúde... Desculpa lá esta minha manifestação de erudição que te poderá parecer pretensiosa...
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

"Também espero poder falar-te um dia da minha experiência como emigrante em terras de França e do chorrilho de mitos e, principalmente estereótipos, que surgiram a respeito daqueles que aí procuraram melhores condições de vida. O fado estafadito de la valise à carton, dos bidonvilles de Champigny e outros sítios, assim como as propaladas fugas em massa à guerra colonial não traduzem a realidade da emigração portuguesa nos finais da década de sessenta. É que eu estive lá!" (...)
(2) Vd. posts de
10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1163: Destacamento temporário do Bironque, inaugurado pela madeirense CART 2732 (Carlos Vinhal)
(3) Vd. post de23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1206: O passado não me pertence só a mim, é colectivo (Torcato Mendonça)

(4) Vd. post de 15 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça)


(5) Vd. post de 24 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1208: Eu ouvi o passarinho, às quatro da madrugada (J.L. Vacas de Carvalho / Fernando Calado)

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas









Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (197o/72) > O Vitor Junqueira, enquanto alferes miliciano de uma companhia açoriana que fazia parte do COP 6, cujo comando era Mansabá. A sua missão principal era assegurar a protecção dos trabalhos da estrada Mansabá – Farim, em ordem a garantir um ritmo acelerado de construção e evitar as flagelações do IN sobre os meios técnicos empenhados (1). Acompanhando os trabalhos de construção da referida estrada, vivia em destacamentos temporários como o de Bironque (2)... A avaliar pelas fotos, a açoriana 2753 mais parecia uma tribo de nómadas, com a casa às costas... No meio de tudo isto, ainda conseguiam tempo para fazer roncos, como se deduz da foto com material de guerra (granadas de RPG 2 e RPG 7, além de canhão sem recreio)...

Trinta e cinco anos depois, é o mesmo homem que pergunta, com a frontalidade, o desassombro e o sentido de humor que o caracterizam, e a propósito do nosso encontro na Ameira, Montemor-o-Novo, em 14 de Outubro de 2006: "Como é que uma seita de maduros que não se conheciam, dez minutos depois de um primeiro contacto físico, se sentem como amigos de longa data? Para mim não restam dúvidas. Uma vivência comum tão forte quanto aquela que nos uniu por altura dos verdes vinte e tal anos, fez de nós irmãos de sangue... suor e lágrimas! "... Mas o melhor é ler a carta (e não o e-mail!) que ele fez questão de me mandar, e que vem selar ainda mais os laços que nos unem nesta tertúlia virtual que é uma rede social... Vitor: obrigado pela tua carta, e os meus parabéns... Ganhámos, todos, mais um irmão de sangue, suor e lágrimas, que foi também andarilho do mundo, que é hoje brigadeiro da vida e avô babado e que alimenta a esperança de chegar a general!... Por mim, dou-te já as quatros estrelas!... Quanto à tua segunda carta, em que abordas o problema dos desertores e refractários, evocas a tua experiência de vida em França e sugeres uma mudança de orientação editorial do nosso blogue (que seria hoje a do "politicamente correcto"), será publicada a seguir, num dos próximos posts (LG) .

Texto e fotos: © Vitor Junqueira (2006). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

O Vitor Junqueira foi alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72) (1). Vive hoje em Pombal, onde é médico.

Mensagem do Vitor Junqueira, enviado à 0h23, de 23 de Outubro de 2006, segunda-feira.

Meu caro camarada e amigo, Luís Graça.

Hoje como é domingo, vai uma carta! Não que eu tenha seja o que for contra os emílios, como diz um certo compadre da TV. Mas acho-os neutros, impessoais, devassos. São como recados escritos que passam de mão em mão. Tornaram-se conspícuos, mas falta-lhes a chama e o intimismo de uma carta. Na minha opinião, um e-mail está para a escrita como uma rapidinha para o amor. Mal comparado? Não importa.

Tenho um amigo que sendo um quadro importante numa empresa nacional de grande dimensão, tem, por dever de ofício, de ser muito cuidadoso quando abre a boca. Disse-me ele um dia:
- Ó Vitor, tu conheces-me tão bem que eu quando falo contigo nem preciso de as pensar!

E é verdade, os amigos também servem para isto. Permitem-nos que o espelho mostre a nossa verdadeira cara, sem a pesada máscara dos formalismos. Assim estou eu.

Aqui por Pombal, está de chuva. A água é tanta que até os cães a bebem de pé. Já começo a ter saudades daquele belo dia com que o S. Pedro nos brindou aquando do nosso encontro em Montemor (3). O clima esteve espectacular e não apenas por razões meteorológicas. Penso que este primeiro encontro se prolongará através das suas réplicas e tréplicas, durante muito tempo. Em todos deixou certamente uma marca, e os participantes hão-de vir a terreiro contar o que lhes vai na alma. A começar por isto: como é que uma seita de maduros que não se conheciam, dez minutos depois de um primeiro contacto físico, se sentem como amigos de longa data? Para mim não restam dúvidas. Uma vivência comum tão forte quanto aquela que nos uniu por altura dos verdes vinte e tal anos, fez de nós irmãos de sangue... suor e lágrimas!

Hoje já somos todos Brigadeiros da Vida. Por isso, creio que deste encontro e dos que aí vêm, surgirão naturalmente, planos, sonhos, projectos e utopias que nos hão-de guiar até ao Generalato. Ainda temos muito(as) para dar!

Os homens da nossa geração foram praticamente todos combatentes. Poucos escaparam à mobilização o que não deixa de ser insólito, já que o regime de então nunca admitiu o estado de guerra. Como afirmei em Montemor, é esta experiência que é ao mesmo tempo pessoal e colectiva, esta perspectiva da vida e do mundo em tempo de guerra ou na paz, do valor dos homens e da filha da putice de que são capazes, que os ex-combatentes têm o dever de transmitir, pelo menos àqueles que lhes são mais próximos. Que lhes sirva, para que de olhos e ouvidos bem abertos não se deixem embalar por canções de bandido, que alguns começam por aí a trautear. Porque como disse, a paz não é mais do que um interlúdio entre guerras.

Já agora, que falei de brigadeiros e generais, deixa-me dizer-te que a subida de patente mais gostosa que tive, foi a promoção a avô. De duas endiabradas garotas (Inês e Carolina), filhas da minha Maria Gracinda.

Mas ainda estou para as curvas! Sinto que de estetoscópio ou de G3 ainda lá ia. Se fosse preciso, quando e onde fosse necessário.

Luís, espero não te ter decepcionado com esta última tirada! Depois do que disse... parece que não disse. Ou que dei o dito por não dito. No entanto a coerência é uma das linhas de rumo que têm balizado a minha vida, reconhecendo embora e falando por mim, que a falta dela, faz parte do pacote de pecados originais com que desembarcamos no Mundo. Como agora se ouve dizer tantas vezes, tudo depende do contexto. E para ser franco, não sou, nunca fui um pacifista militante.

A propósito, penso que ainda teremos de falar sobre um assunto que já afloraste no Blogue. Trata-se da questão dos conscritos ou mobilizados que decidiram não comparecer à chamada. Nalguns casos na véspera de embarque, como é sabido. Nunca conheci nenhum, embora tenha ouvido dizer que alguns até cantavam nas estações do Metro de Paris, precisamente numa altura em que eu próprio andava para aqueles lados.

Também espero poder falar-te um dia da minha experiência como emigrante em terras de França e do chorrilho de mitos e, principalmente estereótipos, que surgiram a respeito daqueles que aí procuraram melhores condições de vida. O fado estafadito de la valise à carton, dos bidonvilles de Champinhy e outros sítios, assim como as propaladas fugas em massa à guerra colonial não traduzem a realidade da emigração portuguesa nos finais da década de sessenta. É que eu estive lá!

Também estive em Villiers sur Marne, Pléssis Trevisse, Lasigny, Sucie en Brie, Bonneil, St. Maur, Charenton Écolles, Creteil, Frennes, Villecresnes, Maisons Alfort, Rambouillet, Le Mesnil St. Denis, Trappes, S. German en Laye, Poissy, Argenteuil, Houilles sous Carriéres e alguns outros grandes centros de acolhimento de portugueses na região parisiense. Mas conheci também a nossa realidade em locais distantes da capital como Lyon, Strasbourg, Metz, Oyonax, Bourg en Bresse, Cherbourg, Le Havre e Rouen.

Não digo mais porque acho que já chega para desincentivar quem me queira vir contar histórias. O grande problema é este: se um boato se desmonta com relativa facilidade, já o mito que muitas vezes é filho de um boato assente sobre um fundo de verdade, ganha raízes e torna-se praticamente indestrutível. De resto, quanto mais vivo mais me convenço de que a Humanidade não consegue subsistir sem os mitos. E assim muitos dislates continuam a ser ainda hoje alimentados em Portugal por quem tem o poder de fazer opinião.

Já agora deixa-me fazer uma pequena correcção a uma referência que li no Blogue a meu respeito. De facto, eu nunca vivi em França com os meus pais. Quando eu tinha uns doze ou treze anos, tive a sorte de ler dois livros emprestados pela biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian que traçaram o meu detino. Foram eles a viagem da Kon Tiki (Pacífico) e o mistério dos Homens Vento (Tibete). O bichinho das viagens instalou-se de tal maneira que o meu grande sonho naquela idade, era pôr-me ao fresco. E assim aconteceu. Terminado o Liceu, já com 18 anos no pêlo, tratei do Passaporte que requisitei na Junta da Emigração à Rua da Junqueira e, ala que se faz tarde, aí vou direito a Paris no Sud-Express.

Por lá andei entre idas e vindas até pouco antes de ser hesitantemente incorporado no glorioso exército português, em 14 de julho de 1969. Porque a minha paixão era a Marinha, mas aí servia-se durante muito mais tempo. Mais tarde tornei-me também oficial da Marinha Mercante Portuguesa. E como podes verificar pelo documentos que seguem como anexos (4), mais voluntário não poderia ser. Já então tinha a minha vida montada com casa, emprego, carta de condução, pópó, e uns bons trocos no bolso para as despesas.


Talvez fiques surpreendido, como eu ficaria, depois de ouvir relatos de fugas a salto, medonhas e perigosas, mas a verdade é que este teu amigo, já depois de inspeccionado e apurado para todo o serviço militar, saía do país com autorização militar no bolso sempre que queria. E mais, sendo já aspirante miliciano, aproveitei uns escassos dias de férias após o COM [Curso de Oficiais Milicianos] e fui a Paris fazer a minha inscrição consular que até então não me tinha sido necessária, a fim de renovar o passaporte.

Estávamos em Dezembro de 1969 e eu já então sabia que o meu destino era a Guiné, pois essa havia sido a minha opção. Pelos carimbos poderás também constatar que ainda cheguei a tempo para a ceia de Natal! Logo nos primeiros dias de Janeiro embarquei para os Açores a fim de constituir a minha unidade (1).

Para os que acharem que tive algum tratamento especial, posso garantir que não. Do meu curriculum consta que fui trabalhador rural, vendedor ambulante, empregado de balcão, operário da construção civil, contrabandista, marinheiro e médico. Mas nunca fui Bufo, nem agente infiltrado ou pide à paisana. Considero-me um homem de palavra, a quem a Pátria sempre tratou como filho e nunca como enteado. Deu-me mais do que eu merecia.

Quanto aos dois anos que passei na Guiné, foram de facto os melhores da minha vida só comparáveis àqueles em que andei lá por fora.

Siga a marinha e viva Portugal.
Um abraço do Vitor Junqueira.
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

(2) Vd. post de 10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1163: Destacamento temporário do Bironque, inaugurado pela madeirense CART 2732 (Carlos Vinhal)

(3) Vd. post de 15 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça)

(4) A publicar posteriormente com uma segunda mensagem, que é a continuação desta.