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quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20082: Manuscrito(s) (Luís Graça) (167): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IX - De 81 a 90 de 100 pictogramas)


Casamento de camponeses, c. 1566/69, de Pieter Brugel, o Velho. Cortesia de Wikimedai Commons



Lourinhã > Praia de Paimogo > 3 de agosto de 2011 > Enseada e porto de Paimogo, com o forte do séc. XVII ao fundo.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.



(Continuação) (*)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]

81. Nasceste algures, ou em nenhures, a oeste de qualquer coisa, não vinha (nem teria que vir), no mapa-mundo, a tua terra, perdida na ponta mais acidental do velho mundo, nem no registo civil te puseram a nascer nela, eras da vila, logo vilão, e ao vilão, cuidado, ao vilão dá-lhe o dedo, tomar-te-á a mão...


E também nunca gostaste do alvoroço do povo, dos ajuntamentos do povo, dos foguetes, da multidão dos loucos, e das matilhas de mastins dos grandes e poderosos… Livra-te do louco e do alvoroço do povo. Ou ao Touro e ao louco, mete-lho no curro.

Por que razão é que a tua terra teria que ser importante ? Nunca teve nenhum rei ou rainha, nem muito menos nenhum santo ou santinha.

82. Afinal, nunca gostaste de jogar à bola, nem de andar à bulha e à guerra, nem de apanhar as canas dos foguetes, nem de trepar às árvores e roubar os ovos dos ninhos nem sequer gostavas do nome da tua terra, nem muito menos de ver matar o porco.

Serás, mais tarde, guarda-redes, efémero, de equipas efémeras, nas férias grandes, já adolescente, na maré vazia, na praia do Caniçal, a baliza, feita de canas, desmedida, com o forte de Paimogo, o cabo Carvoeiro  e as Berlengas a esfumar-se, ao fundo, o farol, recortado, entre as brumas da memória, ó Pátria, sente­-se a voz dos teus egrégios avós… 



83. Podia ter sido um filme com final feliz, com lágrimas doces e quentes, como as da tua mãezinha, mas não foi, e nunca te perguntaste porquê nem saberias porventura responder a essa questão existencial.

Afinal, a ração não é para quem se talha, é para quem calha..., ouvirás no Norte, muito mais tarde, quando lá fores casar com uma rapariga nortenha...


Na praia, os padres jogavam à bola, de sotaina preta, e tu jogavas o pião, no adro da igreja, com ar de menino bem comportado, como o "Marcelino, pão e vinho" [1], o filme da tua infância, exibido no cinematógrafo no clube 14 de julho.


Domingo à tarde não havia ainda matinés, entrava-se no cinema, escondido, à noite, debaixo do capote do papá...(Mentes: nunca trataste o teu pai por papá, nem a tua mãe por mamã, que a rica teve um menino, e a pobre pariu um moço!, como se dizia no Alentejo).

Jogar o pião sozinho era triste, mas em grupo, em círculo, era arriscado por causa dos arrebenta-piões como o "Brutamontes". Quantas vezes choraste por ver o teu pião rachado ao meio? Pião das nicas, na escola, e até depois na guerra, foi o papel que te calhou no filme da tua vida.


84. Debulhava-se o trigo e o centeio no campo de jogos do Nadrupe, chamava-se assim a tua aldeia, a terra dos primos, dos tios e dos avós maternos.

Bruegel, o Velho, podê-la-ia ter pintado, a tua terra, num qualquer domingo à tarde, numa tela com gente atarracada, e doente dos pulmões, a comer pevides e tremoços, no "Casamento de Camponeses", e a dançar o baile mandado do prior e do regedor, enquanto um cão uivava na vinha vindimada do Senhor.





85. Ao fundo, o ti’ Dolfo, de carroça puxada por um macho, indo à vila, atrapalhado, ou não ele fora homem, acossado pela hora do parto, pelas dores do parto da mana Maria, (oh!, raios te partam, priga!), chamar a parteira ou aparadeira, a dona Irene, a primeira mulher, de calças, que tu verás, mais tarde, de olhos esbugalhados de menino, a andar de bicicleta por ruas e ruelas, terraços e telhados, como nas telas do Chagall, guiando a cegonha que trazia os bebés de França.

86. Foi assim que tu foste nascer no Nadrupe, a terra da tua mãe, mas registado na terra paterna, a vila, segredo de Polichinelo que vais guardar dos teus colegas de escola. (Imagina só se o "Brutamontes", que era da vila, sabia que tu eras "saloio... do Nadrupe"!)


87. Lembras-te da matança do porco, do facalhão com que matavam o porco, o alvoroço do povo, de forquilha e sachola na mão, os gritos do porco, o sangue aos borbotões, parirás com dor, os uivos do louco, e comerás o pão com o suor do teu rosto, a agonia do porco, a casa farta, o sarrabulho, o terror da morte, o cruel fatalismo dos provérbios populares, hoje com saúde, amanhã no ataúde, os corpos a sangrar de saúde, filho sem dor, mãe sem amor, a lição de anatomia, se queres conhecer o teu corpo, mata o teu porco, a lição de medicina, o que faz bem ao braço, faz mal ao baço, as partidas que os grandes pregavam à pequenada, a bexiga do porco, alegria de pequenos e graúdos, transformada em bola de futebol por menos de uma hora. 
Que, afinal, a vida tem uma porta só, a morte tem cem. 


88. As maçãs reinetas metidas na palha, os primeiros beijos roubados na palha do trigo, o pilau que o menino exibia para a criada, a tua tia a degolar as galinhas, (que a galinha perdês não a mates nem a dês!), e a tua mãe a esfolar os coelhos que seguravas pelas pernas, os olhos fechados para não veres o sangue a espirrar, o peixe a secar ao sol no telheiro, ou no estendal da roupa, a arraia, o chicharro, o carapau, e o gato a mijar, e as moscas-varejeiras disputando as vísceras do coelho, no tempo em que até os pobres tinham criados, burros, cães, gatos, perus e patos, e a lagosta era a sete e quinhentos o quilo 
[2], o tamboril, o peixe-diabo, se deitava fora, de tão feio que era, tal como a arraia, o safio, a moreira ou o cação. 

E o polvo, que era o petisco dos pobres. E os ovos crus, com um furinho em cada ponta, que te metiam pela goela abaixo, com dois brutos dedos a apertarem-te o nariz, quando estavas fraco dos pulmões. Os ovos crus e o óleo de fígado de bacalhau eram a medicina do povo.


89. E os vizinhos, valentaços, machos, arruaceiros, que puxavam das navalhas ou das sacholas ou das forquilhas ou das caçadeiras, quando o vinho e as paixões subiam à cabeça, e que se estripavam ou se matavam uns aos outros, por questões de honra, ciúme ou propriedade ?! E  os excessos das paixões da alma das mulheres ? Lembras-te daquela que matou o marido, cortou-o às postas e assou-o no forno a lenha como se fora bacalhau à lagareiro...


Essa violência entre vizinhos perturbava-te… Quem disse, afinal, que a tua aldeia era uma terra de brandos costumes ?


90. Dois tostões o par, o chicharro, no verão de todas as farturas, vinham em bandos, no inverno, os filhos dos pescadores de Peniche, das traineiras da sardinha, estender a mão à caridade dos camponeses, de barriga farta, no pós-guerra em que tu nasceste.


(Continua)

_________

[1] "Marcelino Pão e Vinho" : um filme espanhol de 1955,  realizado por Ladislao Vajda, baseado no livro homónimo ["Marcelino, pan y vino"] de José María Sánchez. Sinopse: "Marcelino é um órfão deixado à porta de um mosteiro e criado por doze frades. Certo dia, ele oferece, durante sua refeição, um pedaço de pão e um pouco de vinho a uma imagem de madeira de Jesus, crucificado, que aceita a oferta e passa a conversar com o menino. É o início de uma grande e bela amizade."

[2] 7$50, em finais dos anos 50, seria hoje o equivalente a 3 euros... Mas o salário, médio, nos campos, não ultrapassaria os 20 escudos (menos de 9 euros).

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Nota do editor:


(*) Últimos postes da série:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)

17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)

18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)

20 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)



Portugal > Cadaval > Adão Lobo > 1950 > Equipa de futebol do Sporting Clube Lourinhanense, da Lourinhã, no campo de jogos do Adão Lobo. O segundo da primeira fila, da esquerda para a direita, é o meu pai, meu velho,  meu camarada, Luís Henriques, então com 29 anos...

Esteve toda a vida ligada ao futebol, quer como jogador quer como dirigente e treinador de futebol das camadas mais jovens... Faria ontem 99 anos, se fosse vivo... Nasceu em 1920 e morreu em 2012, ia completar os 92 anos...

Esta foto foi tirada em 1950, no dia em que o Benfica, seu clube de eleição,  ganhou a Taça Latina (pode-se ler-se na legenda da foto... Ao que parece foi o primeiro feito internacional do S.L. Benfica: ganhou à Lázio nas meias-finais e depois ao Bordéus na final)... É também uma homenagem à sua geração para quem o futebol era uma paixão... Aqui  ficam os seus nomes: "De pé, da esquerda para a direita, o filho do Vitor Pedro, Miranda (Alfaiate), Jorge "Tarofa" (ou Jorge Serralheiro), José Costa (que haveria de morrer em Angola), José Miguel, Américo "Russo", Manuel "Swing", António Serralheiro; na primeira fila, da esquerda para a direita, Vitor Pedro, Luís Henriques, António Zé da Graça, Manuel Dias ("Néu"), Artur Borges, João Borges". E acrescenta o meu pai: "Perdemos 3 a 2. Nesse dia faltaram três ou quatro dos nossos melhores jogadores: o "Gino" (ou Higino), o Mário   "Pepe", o Manuel "Ferrador", o António Costa"...


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Cemitério de Mindelo > 1943 >  Foto do álbum de Luís Henriques (1920-2012), com a seguinte legenda: "Justa homenagem àqueles que dormem o sono eterno na terra fria. Companheiros de expedição os quais Deus chamou ao Juízo Final. Pessoal da A[nti] Aérea depois das cerimónias desfila fazendo continência às sepulturas dos companheiros. Oferecido pelo meu amigo Boaventura [Horta, conterrâneo, da Lourinhã,] no dia 17-8-1943, dia em que fiquei livre da junta (hospitalar)."




Luís Henriques (1920-2012), ex-1º Cabo nº 188/41 da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5, Caldas da Rainha. Esteve 26 meses "desterrado" em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, Mindelo, Lazareto, de julho de 1941 a setembro de 1943, em missão de soberania. Escrevia vinte e tal cartas por semana, em nome dos muitos camaradas do seu pelotão e da sua companhia que não sabiam ler nem escrever. Eram todos oriundos da Estremadura, Oeste

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné]



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.




(Continuação) (*)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]


71. Sim, descobrirás, mais tarde, os famosos aventais de pau 
[1], no lendário Bairro Alto da formosa Lisboa onde se ia de camioneta, de excursão, uma vez na vida, no passeio da escola ou da catequese, ou quando se ia fazer, os sortudos!, o exame de admissão ao liceu, ou quando um mancebo, cheio de garbo, tiradas as sortes, de fitinha vermelha na lapela, era chamado para a tropa e jurava bandeira, e ia às meninas, para tirar… os três, antes de partir para defender a pátria, lá longe no ultramar, nas Áfricas, nas Índias, como o teu pai, em Cabo Verde em 1941/43…


72. Ah!, e o respeitinho, que naquele tempo ainda era tão bonito, cada macaco no seu galho, Deus no céu e os santos nos altares, nobreza, clero e povo, os três estados, uns em cima e outros em baixo, mal acamados, o povo a cavar a terra, a enxertar o bacelo, a podar, a sulfatar e a vindimar a vinha do Senhor, e o esplendor do cinismo dos grandes e a ostentação da caridade dos ricos, e a abjeção da arraia miúda, que dar aos pobres, era emprestar a Deus, que Deus, santo banqueiro, haveria de pagar-lhes com língua de palmo, juros e dividendos, ámen!... Deus, dizia o padre franciscano, pregador da Quaresma, sempre foi bom nas contas: "Cá se fazem, cá se pagam, meus irmãos!!...


Como os ricos emprestavam a Deus, dando aos pobres, eram cada vez ricos, como os judeus, pro causa dos juros e dividendos. Eles tinham uma conta-corrente no céu, os felizardos. E era importante que houvesse pobres, para os ricos poderem continuar a emprestar a Deus. Era talvez por isso que os ricos da tua aldeia eram gordos e tinham terras e casas, ou tinham terras e casas e eram gordos. Mas o povo mal os via: viviam em Lisboa.Não te lembras de ver um rico, em carne e osso, na tua aldeia. Só os criados e os feitores dos ricos. Os ricos nunca apareciam, tinham os seus representantes na aldeia. Como Deus, que tinha os seus representantes na terra: o papa em Roma, o padre vigário na tua aldeia, a tua catequista, a "Branca de Neve", a senhora professora, o regedor da freguesia, o cabo de esquadra, e poucos mais mais. O "Brutamontes" e o "Frasco do Veneno", esses, eram os representantes do diabo na terra. Nunca lhes viste a credencial passada pelo diabo, mas a verdade é que eram os sacanas que te endiabravam... Ao longo do tempo, irás conhecer outros "Brutamontes" e outros "Frascos do Veneno", na paz e na guerra...


73. E o garboso comandante dos bombeiros, com o seu capacete de latão e o seu machado de paz, faiscante como a espada do samurai, e o aferidor dos pesos e medidas, o avaliador e o agrimensor, e o juiz do julgado de paz e de guerra, e o pobre do legionário, patético, o senhor Pessoa, de seu nome Fernando, sósia do original, escriturário camarário, que era o chefe da Legião Portuguesa, e que fazia ordem unida com os fedelhos, de espingarda Mauser ao ombro, e que era incapaz de fazer mal a uma mosca, e que, dizem, morreu virgem e chupado como uma carocha!...


Ora nenhum herói da pátria, em tempo de paz ou de guerra,  devia morrer virgem, sem reproduzir, ao menos, o ADN do heroísmo. Crescei e multiplicai-vos era então a palavra de ordem. E, pelo menos na tua aldeia, pais e mães faziam o seu trabalho de casa.

Ah!, o senhor capitão Belo, de farda republicana, não menos excelentíssimo presidente do município, pequenitote representante do todo poderoso Estado Novo, que inaugurava o lavadouro e o fontanário e perante quem o povo se desbarretava, sempre atento, venerador e obrigado, o povo, o polvo, temente a Deus e aos grandes deste mundo, o Zé Povinho que só acordava da sua letargia e se agigantava de meio século em meio século.



E, quando acordava, esbaforido, qual gigante cego, era para se alvoraçar e escaqueirar a mobília toda das repartições do Estado e queimar os papéis. E bater na mulher e nos filhos, nos criados e nos marginais, nos judeus e nos pretos, nos malhados e nos comunistas.... O povo dormia demais mas tinha mau despertar, agigantava-se como o ogre. Forte com os fracos, fraco com os fortes... Dava uma manguito e voltava a adormecer por mais cinquenta anos...

Havia um judeu na tua terra chamado Jacó. E um papagaio também chamado Jacó. É estranho: não havia pretos de carapinha. Ou havia, e desfrisavam o cabelo ? 

74. Enfim, havia ainda a charanga no coreto, mas isso era em agosto, na festa da nossa senhora dos Anjos e os foguetes e os meninos, pobretes mas alegretes, e os cães, danados, atrás das canas dos foguetes, alvoraçados, os diabretes, que depois faziam chichi, à noite, na cama, ameaçava-te a tua mãezinha!... (Nunca a trataste por mãezinha, pois não ? Isso eram ternuras citadinas!).


Afinal, eram tantas as emoções!... Mesmo assim... Mesmo se detestasses os domingos à tarde, em que chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Mesmo se nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parasse no relógio, sonolento, da torre sineira da igreja da tua aldeia.


"Experimenta comer um limão à frente do gajo do trombone", ensinava-te o "Brutamontes". "O gajo do trombone começa a salivar e a dar fífias!"... 

As coisas, más, que sabia o "Brutamontes”!... Ou essa ensinou-te o "Frasco do Veneno" ?!... A verdade é que os putos da tua aldeia, provocadores, adoravam comer limões à frente da secção de metais da banda filarmónica. Só havia metais, não havia cordas!...


75. Um cão uivava aos domingos à tarde, enquanto os trabalhadores da vinha do Senhor descansavam o corpo, magoado, os malteses, os ratinhos que vinham em magotes dos minhos, das beiras, dos ribatejos, dos alentejos, fugidos da fome e dos cavalos da GNR. E dormiam, na papel do trigo ou nas folhas de milho, que se guardavam para se fazer os colchões no inverno.

Em boa verdade, tu nunca chegarás a ver a GNR a cavalo, a espadeirar o povo, só mais tarde em fotografia, isso era no Barreiro da CUF, e tu ainda não sabias que existia o Barreiro da CUF, apenas os sacos de adubo da CUF com que a tua mãe faziam os sacos para o pão, e os aventais de cozinha. No tempo em que nãohvaia sacos de plástico, e tudo se reciclava... 


Muito menos alguma vez tinhas visto as ceifeiras do Alentejo, só conhecias o celeiro do trigo da Federação Nacional do Trigo, com cereal até ao teto em anos de grande fartura de pão. 

Nem sabias da Marinha Grande dos vidreiros ou sequer da Peniche dos pescadores, ali tão perto, as Berlengas à vista e o temível cabo Carvoeiro, o mar da Meia Via, cemitério de corsários, marinheiros, pescadores e outros mareantes.


Sabias lá tu dos operários que estavam em construção, nem muito menos das fábricas de chaminés altas, e dos perigosos comunistas (de que Deus nos livrasse!), inimigos mortais da Nação, metidos a foice e a martelo na fortaleza de Peniche, muda e queda.


76. Tu nunca tinhas saído do perímetro da tua terra, até aos oito anos, idade em que foste de excursão a Lisboa, com a "Branca de Neve" e os "Sete Anões": entrava-se na cidade pela tortuosa e íngreme calçada de Carriche, e pelas vetustas ruas do Lumiar, por meio de quintas, mas só te lembras do Tejo e das velas das fragatas, dos comboios e dos elétricos e do aquário de Vasco da Gama, e dos Jerónimos e do palácio de Belém… 


Não te lembras de ir ao Jardim Zoológico, que devia ser muito caro, para os meninos da tua terra, que levavam farnel e tudo!... Lembras-te dos palacetes do Lumiar e das heras a crescer nos muros altos e da patine do tempo. Nunca mais esquecerás essa expressão, a da patine do tempo.


77. E o Tarrafal ? Sabias lá tu onde ficava o Tarrafal 
[2], o teu pai, expedicionário da II Guerra Mundial, na ilha de São Vicente, Cabo Verde, nunca te falara do Tarrafal, falava-te do Mindelo, do Monte Cara, do Lazareto, as bias, os tubarões, a morna, a coladera, a baía, o porto grande, a ilha onde até as pedras tinham venéreo, a fome do Joãozinho, a morte do Joãozinho, nosso cabo, bó impedido, Joãozinho, morreu. De fome, da grande fome, da fome milenar, intrínseca, de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, da fome da música e da poesia, da fome de pão de milho, e fome de terra e de céu, de fome de pão de trigo misturado com centeio, de mandioca e de cereal no pilão, e de poesia em crioulo, e de cachupa e de chabéu.


78. Lembras-te do álbum de fotografias do teu pai, o teu único brinquedo de montar e desmontar, que tiveste na infância, lembras-te do Mouzinho de Albuquerque, vapor da nossa orgulhosa marinha mercante, mas sabias lá tu quem era o Xico Vieira Machado, lídimo representante da nação, de visita a Cabo Verde, ministro plenipotenciário, homenzinho atarracado de chapéu colonial, latifundiário da tua terra, patrão do Banco Nacional Ultramarino, banco emissor de patacão da Guiné (, sabê-lo-ás, mais tarde), e que deixou o Joãozinho morrer de fome.


79. Enfim, havia o Império de todos nós, o lusitano império do tamanho da lonjura do Minho a Timor, desmesurado para tão parcas e desvairadas gentes. O último baluarte da civilização ocidental e cristã, lia-se nos títulos de caixa alta dos jornais de Lisboa, que chegavam à província.

Lembras-te, de reler, as cartas apaixonadas que o teu pai escrevia à tua mãe, em papel bíblico, a tinta de cor verde, e belíssima caligrafia, com selo e carimbo do correio de Cabo Verde que ficava lá longe no ultramar dos pretinhos e dos missionários de barbas brancas:

“Maria, minha cachopa,
não me sais do pensamento,
assim que eu sair da tropa,
trataremos do casamento”.



80. Ias para o pequeno rio Grande brincar, o rio Grande da tua aldeia, apanhar as bugalhos dos carvalhos, enquanto o teu pai, o teu ídolo, jogava a ponta esquerda, coitado do sapateiro e campeão das damas, nunca passaria da cepa torta, por jogar à bola e a ponta esquerda num campo pelado, no campo pelado da vida, no campo de jogos da tua terra, ao domingo à tarde, com um cão a uivar na vinha vindimada do Senhor.

Ah!, o rio Grande que só era grande quando galgava as margens e se confundia com o mar, o grande oceano.


(Continua)



[1] Avental de pau  queria dizer as meias portas onde as mulheres do Bairro Alto  se mostravam…

[2] A Colónia Penal do Tarrafal, situada no lugar de Chão Bom do concelho do Tarrafal, na ilha de Santiago (Cabo Verde), foi criada pelo Governo português do Estado Novo ao abrigo do Decreto-Lei n.º 26 539, de 23 de Abril de 1936.

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Nota do editor:

(*) Últimos postes da série:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)

17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)

18 de agosto de  2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)

sábado, 17 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)


Lourinhã > 1947 > O "artista quando jovem"... ao colo de sua  mãe, Maria da Graça,, e com o pai, Luís Henriques,  ao lado.

Foto: © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Fonte: Cortesia de jornal "Alvorada", quinzenário regionalista, Lourinhã, 13 de setembro de 1964.



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.

(Continuação)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)



51. Havia a feira grande de setembro, o carrossel e os carrinhos de choque, e, quando o rei fazia anos e dava bodo aos pobres, havia um tostão para as diversões e as farturas e o pirolito, os rebuçados e os cromos, mas o melhor era o pirolito[ 1], porque tinha um berlinde!... 

E quem tinha um berlinde, enorme, de pirolito, era rei, com poder para abafar todos os berlindes mais pequenos. Claro, o "Brutamontes" tinha um saco deles! 


52. Havia as labaredas do inferno, as fogueiras de são João, a queima das alcachofras, os refrões (, um tostãozinho, vizinho, vizinha, para os santos populares, primeiro o Santo António, depois o São João e por fim o São Pedro, para a nossa reinação!),  as bichas de rabear, as bombas de carnaval, o calvário e as suas treze estações…


53. Ah!, havia ainda a banda filarmónica, e talvez já a fanfarra dos bombeiros, que eram soldadinhos de chumbo, havia a sineta, manual, dos carros dos bombeiros, e a sirene do novo quartel dos bombeiros que marcava as doze horas de domingo.

54. E o sino da igreja da tua aldeia que tocava a finados, mesmo no domingo à tarde, quando morria algum cristão, e que te enchia de melancolia, o tão-tão-tão do sino grande da tua aldeia… E o teu padrinho, o ti D’minguinhos, que te ensinava a distinguir os sinos de cada igreja e capela:

- Tim lên…deas, tim lên…deas….
- Mata-as, mata-as!
- Com quê, com quê ???...
- C’um pau, c’um pau!!!…


55. Havia santos, santinhos e santinhas para cada estação, o são João, no verão, no 24 de junho, o dia em que os camponeses da tua aldeia iam à praia molhar os tornozelos, os homens, de ceroulas arregaçadas, as calças de cotim, remendadas, os mais velhos de barrete preto e varapau, e elas, de saias compridas, de flanela, que não podiam mostrar a barriga da perna, peluda, os matulões pegando nos putos a berrar e a espernear e batizando-os na água salgada, do grande oceano, para que as carnes enrijassem, e os meninos medrassem, e pró ano lá voltassem, todos os anos até ao dia das sortes, e fossem grandes homens, fortes e valentes, marinheiros, pescadores, aventureiros, artilheiros, soldados façanhudos ou simples cavadores de enxada, como os seus pais e os seus avós o tinham sido, que os bisavós, trisavós e os tetravós, esses, já ninguém sabia quem eram, nem de onde teriam vindo, nem se chorava por eles, porque na época do trinta e um, poucos moços, velhos nenhum




Lourinhã > Praia da Areia Branca > c. anos 30 do séc. XX > Os camponeses e os seus burros. Foto: origem desconhecida. Cópia pessoal de LG.



56. Ah, os camponeses e os seus burros que ainda não estavam em extinção, nem uns nem outros, iam aos magotes até à praia da Areia Branca, no feriado do são João, entre brincadeiras e dichotes, levavam a trouxa e a merenda, os tremoços e as pevides, as pêras, os pêros, as ameixas e os abrunhos, os melões e as melancias, o pão de trigo do moleiro cozido em forno a lenha, a broa de milho com sardinha, as azeitonas mal curadas, bebiam vinho pelo palhinhas, o garrafão de palha, comiam o arroz de cabidela, de galo ou de coelho, misturado com a areia e o vento e as lágrimas de sal, em cima de mantas grossas, feitas de trapos, berrantes, multicolores.

Faziam cigarros de barbas de milho e usavam canivetes multiusos, de cabo de osso, que tanto serviam para limpar a cera dos ouvidos ou o lixo das unhas, ou os caules dos pés, como para cortar grandes nacos de pão, ou apanhar lapas, percebes e mexilhões nas rochas, sangravam de saúde os camponeses da tua aldeia, muita saúde, pouca vida, que Deus não dava tudo, no tempo em que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses. (Nunca lhes perguntaste se eram felizes, nem essa era pergunta de se lhes fazer!)


57. Na praia da Areia 
O ti Silvano, do Nadrupe,
Lourinhã, c. 1940
Branca, pelo são João,lembras-te ?, o teu querido ti Silvano, carpinteiro e cavaleiro, utilizando-te como escudo em luta contra as forças de Neptuno.

Foi num 24 de junho (ou terá sido no dia de são Bartolomeu, a 24 de agosto?) de mil novecentos cinquenta e tal, que passaste a ter medo do mar e prometeste a ti mesmo (, vã promessa de menino!) nunca vir a ser marinheiro, que na água de mares, não procures cabelos para te agarrares.

58. Misóginos os provérbios da tua terra que, quando o mar estava manso lhe chamava mar de mulher, para logo a seguir acrescentar que, da mulher e do mar, não há que fiar. Ou então: do mar se tira o sal e da mulher muito mal.


Era outro mistério, as mulheres, e só muito mais tarde é que irás perceber o que o teu pai queria dizer: A mulher só é nossa quando quer!...

59. Havia a festa do sã S'bastião, no inverno, no frio de rachar de janeiro, no tempo em que havia inverno e a água congelava nas bicas e bebedouros, duas ruas abaixo da tua, o pobre de Cristo, coitadinho do soldadinho, do tamanho de um menino de palmo e meio, com ar de quem, como tu, não tinha nenhum jeitinho para santo, nem muito menos para mártir, o corpo trespassado pelas setas dos maus!...


Sabias lá tu quem eram os maus desses tais romanos que nos haviam colonizado, a nós, bárbaros, celtiberos, o mesmo é dizer, que nos haviam dado a língua e o ser!… Ele havia coisas que a tua professora não te queria explicar, ou não sabia. E muito menos a tua catequista, a "Branca de Neve".


60. Havia os carros de pão, as promessas, os leilões, na festa do sã S’bastião, e havia as rezas, os exorcismos, os amuletos, as benzeduras da ti’ Ad’lina, as fisgas contra o mau olhado (, cruzes, canhoto, te arrenego, Satanás!), o sarampo, a varíola, a varicela, a cólera, a raiva, a peste, a lepra, a fome, a guerra, a tuberculose, o tifo, a rubéola, a febre amarela, a tosse convulsa, a difteria, as sezões, e a disenteria, e ainda estava para vir o ébola, a sida, o dengue, o vírus do Nilo e os quatro cavaleiros do apocalipse.

Ah!, o sarampo, e o sarampelho que sete vezes nos chegava ao pêlo, e que nos obrigava a ficar dias e dias na cama, com os vidros das janelas forrados a papel vermelho!

A ti’ Ad’lina, tua vizinha da rua do Clube, mulher anafada, barbada, de língua viperina, guardadora de segredos terapêuticos milenares, que iria depois p’ras Américas, com as filhas e a neta, que era uma pestinha. E por lá morreria, a ti’ Ad’lina… 


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[1] Vd. blog Loba > 21 de maio de 2018 >  Pirolito – a garrafa que marcou uma geração
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Vd. postes anteriores da série > 

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)


Lourinhã > 6/12/1942 > Nazaré, Maria Adelaide e Ascensão, três vizinhas e amigas do Luís Henriques (1920-2012),  fotografadas na ponte sobre o Rio Grande, na altura à saída da Lourinhã, a norte -  Foto enviada para o amigo e vizinho, expedicionário em Cabo Verde, com "votos de verdadeira e sincera amizade".

A primeira parte da legenda é ilegível. A Maria Adelaide já morreu. Da Ascensão perdeu-se-lhe o rasto. A Nazaré era a tia da Mariete, a família toda emigrou para a América, em meados dos anos 50. E por lá terá casado a Nazaré... Era "ajuntadeira" (costureira de calçado), e trabalhava muito para o Luís Henriques,  sapateiro, que dava trabalho a muita gente na Lourinhã. 

O autor ainda se lembra  bem da ti Ad'lina, mãe da Nazaré, sua vizinha, e que era uma  espécie de curandeira lá do bairro... O poeta , quando jovem, morava na rua dos Valados, ou do Castelo, e elas na rua, paralela, a do Clube, na parte antiga da vila... Quando puto, e quando doente, ela - a ti Ad'lina - aplicava-lhe as suas mezinhas, receitas da medicina popular com séculos de eficácia simbólica e terapêutica... Lembra-se, com ternura e repulsa, das suas "unturas & benzeduras": uma em especial era aplicada na garganta, era feita com merda e gordura de galinha, para tratar da papeira... 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados.



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]


Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.



(Continuação)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)


[...] 31. Jogava-se à bola, domingo à tarde, no campo de futebol, pelado, por detrás da igreja do convento, enquanto um cão uivava na vinha vindimada pelo Senhor, jogavam à bola os graúdos, os solteiros contra os casados, os vivos contra os mortos, os pobres contra os pedintes, os idiotas contra os felizardos, os esperançados da vida contra os da vida já cansados, os novos contra os da velha guarda…

A bola, as disputas entre aldeias vizinhas, o alvoroço do povo, o cabo chefe, o bufo, o louco, o beato, o lobisomem, o analfabeto contra o esperto, o feitor e o caseiro, o porco no estertor da morte, o regedor, o provedor da Santa Casa da Misericórdia, o rico contra o remediado, o pobre e o indigente, mais o cão que já não guardava a vinha vindimada do Senhor, velho, escanzelado, tinhoso, sarnento, doente, vira-latas.

Vieram depois dizer-te que era o medo que guardava a vinha do Senhor, quando tu e os da tua rua iam apanhar o rabisco!... 


E todos os ricos, que viviam em Lisboa, tinham um feitor ou um caseiro ou um criado tão mau como o "Brutamontes". Afinal, "ao  cabo de um ano tem  o criado as manhas do amo"...

Tinham medos deles,  os meninos da tua rua, quando iam roubar uvas ou pêras. Nem todos: alguns não tinham medo de nada, e já diziam muitas asneiras, como o "Frasco do Veneno", o "Brutamontes"  ou os filhos da "Bruxa" da tua rua.


32. Soletravas à noite, à luz do candeeiro a petróleo, a lição onde terra rimava com chão. T e um E, TE… ERR e um A, CHÃOOOOO!!!… 


E Deus Pai achava-te graça, era paciente, condescendente e até bonacheirão. E falava em verso quando estava com os amigos e conhecidos.

33. Não, ainda não havia televisão, nem a série Bonanza 
[1], havia o hino, na rádio, que era um luxo, havia Deus, a Pátria e a Família, e pouco mais, mas chegava, essa sagrada tríade, onde cabia todo o teu pequeno universo. E não se discutia Deus nem a Pátria nem a Família!...

E quando a série Bonanza aparecer, de quem mais vais gostar será do Hoss e do Joe Pequeno, lá do rancho da Ponderosa!





Tabanca de Candoz > c. 1980 >  Ainda se matava o porco em casa, no Norte do País, como na Lourinhã nos anos 50: "uma cena que Bruxelas quis banir definitivamente dos nossos campos e aldeias em nome de uma concepção fundamentalista da saúde pública e de uma Europa globalizada, normalizada e tecnocrática, matando a etnodiversidade"... 

Foto (e legenda): Blogue A Nossa Quinta de Candoz (com a devida vénia).


34. E no Natal ?!... Lembras-te do Natal, quando ainda o Pai Natal não tinha morto o Menino Jesus, e não havia luzinhas, a não ser as das velas ou do candeeiro a petróleo ?!… 

Ia-se à missa do Galo, à meia noite em ponto, na igreja do Castelo, tumular, tudo escuro como breu, e só depois, a tiritar de frio, de regresso a casa, é que se bebia o cacau quente e se comiam os coscorões, o arroz doce e as filhós de sangue de galinha!...

E só de manhã, cedo, é que te levantavas, em alvoroço, para saber a prenda que o Menino Jesus te deixara, no sapatinho, na chaminé: um lenço, umas peúgas, um chupa-chupa, um brinquedo de chocolate, embrulhado em tosco papel de prata!

Parca prenda para quem fora todo o ano um rapazinho bem comportado, temente a Deus, amigo dos seus pais e manas, diligente, obediente e inteligente! 



35. Havia os funcionários do grémio da lavoura, e os do comércio, das pescas, da indústria e artes correlativas, que recebiam, ao fim do mês, vencimento e chapelada, opa e pálio na procissão, e cartão de eleitor dos deputados e do supremo magistrado da Nação. Mais os da câmara e das finanças, dos correios, do tribunal e das conservatórias, a pequena burguesia engravatada da tua aldeia.


Chamavam-lhes os "mangas de alpaca"… por causa da manga postiça que usavam, desde os punhos até um pouco acima dos cotovelos, e que era apertada nas extremidades com um elástico; assim não estragavam ou sujavam o casaco, quando escreviam à mão, no tempo em que ainda não havia esferográficas e até a tinta das canetas era permanente; tudo era permanente, na tua aldeia, no teu tempo.   E até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja, enquanto um cão uivava  na vinha vindimada do Senhor.

Havia ainda os comerciantes e os proprietários, que animavam o clube 14 de julho, que era o dia, não da tomada da Bastilha, como virás a saber mais tarde, mas do aniversário da Viscondezinha, uma das grandes proprietárias rurais da tua terra, que se casara com alguém importante, que veio de fora, e que, se não fora o príncipe encantado, só poderia ser um bacharel em leis ou em medicina, de Coimbra.

Não, nunca chegaste a conhecer a Viscondezinha, como lhe chamavam, temerosas e  ternurentas, as mulheres da tua aldeia.


36. Na tua aldeia, todas as meninas prendadas eram exogâmicas, casavam com alguém de fora e tinham direito a genuflexório, almofadado, na primeira fila da missa de domingo na igreja matriz. 


Vermelho, não, carmesim, emendava o sacristão que era bimbo, das terras do Demo, falava "atchim", era a favor da "situação", e atravessara meio país até arribar a esta terra que já fora de romanos, visigodos, mouros, judeus, moçárabes e francos.
Já não eram meninas, eram senhoras donas, de peruca, mumificadas, os rostos cobertos de pó de arroz, e tinham casarões com capelas e brasões, comprados em hasta pública, bens de mão morta dos espoliados do Liberalismo. 

37
. Havia um carcereiro e um coveiro, com que te metiam medo quando não querias comer a sopa... Fugia-se do coveiro, como do empestado ou do leproso: ninguém o cumprimentava de mão estendida, nem tinha amigos ou conhecidos... Ninguém queria ser coveiro na tua terra, era sempre alguém que vinha de fora.

O resto era moleiro, sapateiro, cavador de enxada ou criado, com direito a uma garrafão de cinco litros de água-pé podre, cocheiro, almocreve,trolha da construção civil, ferrador, marceneiro, caboqueiro, latoeiro ou funileiro, jornaleiro, pescador, homem do campo ou do mar, trabalhador, cansado, do vinho e da vinha do Senhor, ou então marçano, ou criada de servir nas avenidas novas da Lisboa, menina e moça, dos Antónios (o Santo, o Salazar, o Ferro, que povo, esse, chamava-se Zé!).

38. Não ia à escola a filha da camponesa, ia para a vila ou para a cidade, onde no máximo tirava a 3ª classe em professora particular, e depois aprendia a cultivar as boas maneiras e a fazer rissóis e pastéis de massa tenra e coscorões e arroz doce e a tricotar as teias da pobreza e a fazer as contas do merceeiro em papel de embrulho!... "Ah!, Senhora, como a vida está cara, os ladrões açambarcaram o açúcar, o café e o azeite!"... 


Casavam depois com os rapazes da vila, tinham filhos e filhas, e a estas havia a moda de as batizar com nomes afrancesados: bernardetes, elisabetes, gracietes, marietes, miletes, suzetes... Era mais chique que Francisca, Joana, Joaquina, Maria ou Manela.


39. Da janela do teu quarto, contavas, um a um, os cinquenta homens que em fila, de enxada em riste, cavavam a vinha do Senhor, encosta a cima, até ao alto onde se erguia um moinho de vento.

Do outro lado, encosta abaixo, outros tantos cinquenta homens, de enxada em punho, cavavam outra vinha do Senhor, que tinha muitas vinhas e fazia muitas pipas de vinho!...

Nessa época a riqueza media-se em pipas de vinho e  carros de bois de trigo e jeiras (que era a medida da terra). E não havia ainda motocultivadores e tratores.


40. Havia cães, isso sim, muitos cães, vadios. E tu tinhas fobia aos cães. Fugias dos cães e do "Brutamontes" e do seu bando, como o diabo fugia da cruz. Não, nunca tinhas visto o diabo em figura de gente, mas que ele existia, existia, tal como as bruxas. E seria ainda muito pior que o "Brutamontes".

Havia dois ou três médicos, e chegavam para todo o concelho, que a gente da tua aldeia só os chamava no estertor ou no pavor da morte, a eles e aos padres, às parteiras, às carpideiras, aos testamenteiros e aos gatos-pingados. Mal por mal, antes cadeia que hospital.

Havia duas boticas e chegavam, que o arsenal terapêutico cabia no malote do facultativo municipal. Com malvas e água fria, fazia-se um boticário numa dia.

Havia os cortejos de oferendas (cada um dava o que podia e calhava: uma abóbora, um chouriço, um galo ou um saco de batatas!), para se construir um hospital novo para a velha misericórdia do séc. XVI, onde os catres para os doentes pobres não chegavam, que os ricos e os remediados, esses, morriam em casa, confortados com a extrema unção, que fazia parte do arsenal da arte de bem morrer cedo e quanto mais depressa melhor, porque este mundo era um vale de lágrimas.

(Continua)
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[1] A série começou a ser exibida a RTP em 1961

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Nota do editor:

Vd. último poste da série > 14 de agosto de 2019  > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

Postes anteriores:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)


terça-feira, 13 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]


Texto (inédito): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.

(Continuação)



1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)


11. Claro, havia a Semana Santa, a Páscoa, a ressurreição da carne, o supremo heroísmo de alguém que, depois do Natal, lá para março ou abril, iria morrer para te salvar. 


Morte anunciada, a de Jesus Cristo, o menino Jesus, o filho de Deus feito Homem, repetia, com candura, a tua catequista, que era linda de morrer, e tinha o mais belo sorriso do mundo, cabelos louros e olhos azuis, e o peito mais generoso das raparigas da tua aldeia, com a alvura da "Branca de Neve", um peito cintilante, com a castidade a transbordar pelas rendas de bilros, e por quem terás tido a tua primeira paixão, assolapada, paixão de um púbere, e que só podia ser de pura ternura, assexuada.



Lourinhã, c. 1950/60: traseiras da escola Conde Ferreira, para rapazes (à direita) e raparigas (à esquerda). Edifício infelizmente demolido pelo camartelo camarário, "em nome do progresso"... 

Em segundo plano, a igreja matriz da Lourinhã (séc. XVII) e a sua torrre sineira. Fazia parte do convento de Santo Anónio (fundado em finais do séc-XVI). Em primeiro plano, junto ao muro do recreio da ecola das raparigas, o urinol público... 

Foto: cortesia de Lourinhã Noutros Tempos,página do Facebook editada pela ADL Lourinhã - Associação de Desenvolvimento Local da Lourinhã




Castidade: ora cá está uma palavra que hás de pôr cedo no teu dicionário de menino. Tinhas de ser casto para fazer a tua primeira comunhão e mais tarde o crisma e receber os sete dons do Espírito Santo. Mas era difícil de explicar e perceber o que era isso de pecar por pensamentos, palavras e obras. O "Frasco do Veneno", que era teu primo, mentor e guarda-costas, sabia explicar isso, exemplificando, muito melhor que a tua catequista, a "Branca de Neve", ou  s senhora professora da 3ª classe.

12. Havia tudo isso, e não muito mais do que isso, nem sequer sabias o que era o desejo nem que o desejo era pecado, muito menos o que era o pecado, e muito menos ainda sabias operar a distinção, teológica, primordial, entre o pecado mortal e o venial, de que poderia depender a tua vida, eterna, ámen!

13. Havia, ao fim e ao cabo, tudo o que o calendário litúrgico ditava, o mesmo era dizer, no fundo, tudo o que a ordem natural das coisas te impunha, mais os cânones da santa madre igreja, católica, apostólica, romana, e as leis dos homens, desde o princípio do mundo, a ti e aos teus, aos da tua rua, aos da tua laia, da tua escola, da tua classe.

Desde o princípio do mundo, ou seja, não mais do que há cinco mil anos… Mas eras lá tu capaz de saber há quanto tempo Deus criara o mundo e o paraíso terrestre e as avezinhas do céu e os peixinhos do mar e os animais de quatro patas e os nossos pais Adão e Eva, e a maçã, e a árvore da sabedoria, e as hormonas do pecado, e os dez mandamentos!... Sabias lá tu o que eram as hormonas, mas que já as sentias, sentias!...

Cinco mil anos eram muitos números, era muita aritmética, para um menino só, mesmo para um menino aplicado como tu,  que sabia a tabuada, de cor e salteado, e repetia-a na ponta da língua, como o papagaio: "um vez um, um; dois vezes dois, quatro; três vezes três, nove; quatro vezes quatro, dezasseis"… e por aí fora até cem, que era dez vezes dez, os dez mandamentos e os cem castigos. 


Sabias tudo na ponta da língua, contar até cem, recitar os dez mandamentos, enumerar as catorze obras de misericórdia segundo são Mateus… Ah!, e os versos do Augusto Gil, batem leve, levemente como quem chama por mim [1]

14. Há dois mil anos, pobre de ti, condenado, ou ainda muito antes de ti, inocente, quando Jesus Cristo nascera e morrera para te salvar, e, com isso, sem seres tido nem achado, havias contraído uma gigantesca dívida, que terias de saldar, em vida, sob pena da danação eterna. "Mistérios", dizia-te a "Branca de Neve". "Mistérios": cá está outra palavra, ou palavrão,  que vais pôr no teu dicionário de menino.

15. Pobre de ti, minúscula criatura, obra sublime do Criador, podias lá tu entender, nas aulas da catequese da "Branca de Neve" e dos "Sete Anões", os estranhos desígnios de Deus Pai!... 

Mas Deus era Deus, e para mais Pai, e tinha um pau da lixa, que fazia doer o rabo, para te lembrar que quem dava o pão, dava também a boa educação, a disciplina e a santa religião. Ele só perdia a cabeça quando os calotes dos fregueses se acumulavam e não havia dinheiro em caixa para pagar ao viajante, o fornecedor de solas e cabedais, e aos empregados que à segunda feira não trabalhavam. Era o domingo dos sapateiros.

Um Deus Pai que era sapateiro e exímio jogador de damas, e sobretudo o teu herói, e te levava de motorizada a ver os jogos da bola nas aldeias vizinhas.


Lourinhã: princípios
dos anos 50. O poeta,
aos 3 anos, com a mana
(a mais velha de três).
Foto: © Luís Graça (2005)
Recordar-te-á, mais tarde, com enlevo, que quando nasceste tinhas uma cabeça grande, e só poderias vir a ser padre ou doutor. Falava em verso para os graúdos, que lhe achavam graça. A tua mãe, nem por isso, não lhe achava assim tanta graça, quando ele se punha a falar em verso.

16. Quando eras menino e moço, e inconscientemente feliz, e ainda vivias na casa dos teus pais, porque não podia haver ninguém conscientemente feliz, naquele tempo, no pós-guerra, a não ser talvez o Santo Padre, que estava em Roma, e que era o representante de Cristo na terra. Além da tua avó materna, Patrocínio (, Patxina, corruptela do seu nome, já que ninguém era capaz, na tua aldeia, de dizer palavras com mais de três sílabas). Na aldeia, era a Ti Patxina, ficará cega, mas sempre com o sorriso mais lindo de menina.

17. Sim, tu eras, inconscientemente, feliz, uma pobre alma sensível, que acreditava nos contos de fadas, princesas e mouras encantadas, potes de libras escondidos debaixo de terra, túneis secretos, tesouros de ouro do cu do besouro, gnomos e fadas, duendes e bruxas, lobisomens e vampiros, alminhas e almas penadas, anjinhos, amuletos, ferraduras, espanta-espíritos, santinhos e santinhas, diabos e diabretes, corujas, cavaleiros andantes, e sobretudo nas vozes dos espíritos a cochichar, por detrás das portas e armários dos casarões da tua aldeia… 


Que tremenda deceção a tua quando, mais tarde, já na idade da razão, as tuas primas te explicaram que era apenas... o bicho-carpinteiro a trabalhar!

Não, ainda não havia dinossauros nem a tua imaginação chegava a tanto! Havia só dragões a vomitar fogo. E o São Jorge, a cavalo, que os fulminava com a sua espada de aço.

18. Havia as festas, pois claro, do povo ou para o povo, mas primeiro estavam as santas obrigações e só depois é que vinham a brincadeira e as profanas devoções: primeiro as missas, o terço, as novenas, as procissões, a procissão do Domingo de Ramos e a procissão do Senhor Morto, tão morto como qualquer mortal, as opas roxas como no tempo da Santa Inquisição, as matracas que nos enchiam de terror divino, aos putos e aos crescidos, a bolsa lacrimal dos anjinhos, tão papudinhos, as c’roas de espinhos que pareciam ser mesmo a sério, cravados no coro cabeludo dos meninos e meninas...

Não sabias por que é que o pobre do Jesus Cristo tinha que morrer todos os anos, para depois ressuscitar ao terceiro dia. Nunca ninguém te explicou o mistério da vida, por que é que a vida era circadiana, um eterno retorno, e a seguir a um dia vinha outro dia, e a seguir à vida vinha a doença e a morte, o juízo final e o inferno ou o paraíso para sempre, ámen!...E ainda havia o purgatório, explicava-te a "Branca de Neve": o sítio onde se purificavam as almas antes de poderem entrar no paraíso.

19. E à frente do andor com o Senhor Morto, lá vinha a Madalena, mulher pública, púdica, arrependida, e depois santa, e a seguir a Mater Dolorosa, vestida com um manto roxo e com uma espada espetada no coração, que horror!, e o pálio com os padres, o vigário e os pregadores, o provedor e os restantes  irmãos da misericórdia, e todo os demais senhores  da tua aldeia, com caras patibulares, e, atrás o povo, nós e as nossas mães, e as lágrimas das nossas santas mães, as únicas lágrimas do mundo que eram doces e quentes, e verdadeiras, e verdadeiramente castas e santas. 


E só mais atrás é que vinham os pais dos meninos da tua rua, com os chapéus, bonés e barretes, na mão, as mãos calejadas do trabalho, e por fim o "Brutamontes", com uma chibata, a fechar o cortejo e a cantarolar.

O diabo em pessoa, esse tal de "Brutamontes". Mas a vida corria-lhe bem, por isso é que andava sempre a assobiar e a cantarolar.

20. Havia o ouro, o incenso e a mirra, os três reis magos, mais os seus camelos, e um deles era o pretinho da Guiné (, sabias lá tu onde era a terra dele!), havia o presépio, havia a água benta.

Ah!, o incenso, ligeiramente enjoativo das missas, e a pregação do pregador franciscano na Quaresma, que nunca mais acabava, e o povo a bocejar de tédio, e a fazer as contas à décima a pagar nas finanças, e à côngrua para o senhor padre vigário, e ao sulfato para sulfatar a vinha do Senhor…

Ah!, e a seca do terço mariano no mês de maio (que te perdoe a Nossa Senhora de Fátima, por invocares o seu nome em vão!)... Havia novenas na rua dos Valadas, com a santinha num nicho de madeira, a andar de casa em casa…

Havia, enfim, o sagrado e o pagão, a lavoura, os lavores, masculinos e femininos, o solstício do inverno e o solstício do verão, e tudo a isto, ou só a isto, se resumia o acanhado palco do teatro da vida que te coubera em sorte. Sorte pequena, nunca te calhou a grande. A grande só poderia ser o céu, no fim da vida, se até então vivesses na graça de Deus. 


E era a tua mãe quem,  numa velha máquina de costura, te fazia os lençóis, os lenços, as camisas e as cuecas e o resto da roupa, incluindo a domingueira, a de ir à missa. 

(Continua)
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[1] Balada da Neve, poema de Augusto Gil (1873-1929). No Livro de Leitura da 3ª classe(4ª edição, Porto Editora, 1958, p. 173, reimpressão, 2008)), o poema era amputado da segunda (e última parte)... E não era por acaso...


(...) Fico olhando esses sinais 
da pobre gente que avança, 
e noto, por entre os mais, 
os traços miniaturais 
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos... 
a neve deixa inda vê-los, 
primeiro, bem definidos, 
depois, em sulcos compridos, 
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador 
sofra tormentos, enfim! 
Mas as crianças, Senhor, 
porque lhes dais tanta dor?!... 
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza, 
uma funda turbação 
entra em mim, fica em mim presa. 
Cai neve na Natureza 
– e cai no meu coração.


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