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sábado, 17 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25181: Os nossos seres, saberes e lazeres (614): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (142): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Uma das atrações que eu tinha em mente na visita a Évora era conhecer a "pedra de armas" da cidade, nela está representado Geraldo Geraldes, "o Sem Pavor", aquele que andou em fossado, o mesmo é dizer à trolha com cristãos e muçulmanos, comandando uma bando de salteadores, viria a conquistar Évora em 1166, não esteve para meias medidas, degolou o chefe mouro, a recompensa de D. Afonso I foi fazer dele alcaide da cidade. Tenho que confessar que acabei por investir noutras atrações, usando a linguagem de José Saramago procurei sentir a atmosfera de Évora, que é muito mais que a soma dos seus monumentos, ruas e palácios, praças e becos, anda para ali, de facto um oxigénio que nos faz respirar um passado feito ativo, mesmo quando se vê arquitetura degradada pressente-se que todo aquele lugar é mais do que uma lição de história, conjecturo que é um cesto muito feliz, não de flores, mas de urbanismo, de ideologia religiosa, de uma vida cultural febril, daquela multiplicidade de saberes que passam pela mesa, pela cor das paredes, pelos espaços ajardinados, é um cesto com lembranças da mourama, de povos anteriores, de uma cidade de Corte e aonde, na contemporaneidade, se faz laboratório experimental com praticantes como Siza Vieira ou Carrilho da Graça. E o passeio continua, o viajante está arrelampado.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (142):
Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (2)


Mário Beja Santos

Qualquer turista avisado, quando chega a uma cidade que guarda no seu bojo tantos tesouros, o melhor é bater à porta do posto do turismo para saber o que está disponível naquele dia e a que horas. Com simpatia entregam uma planta turística, há para ali 12 propostas, começar pela Praça do Giraldo, depois ir à catedral, visita indispensável, templo românico-gótico, incorpora um esplêndido Museu de Arte Sacra; daqui partir para o largo Conde Vila Flor, fazem ângulo reto o Museu de Évora e a Biblioteca Pública e o Convento dos Loios, mais abaixo está o Palácio dos Duques de Cadaval, e prantado no centro o chamado Templo de Diana. É tudo embaraçoso para quem vem somente 2 dias, há o castelo velho, a universidade, o largo da Porta de Moura, a praça de Sertório, igrejas como a da Graça e S. Francisco, vamos por aí fora até ao recinto megalítico dos Almendres, este fora de portas, a cerca de 13 km, nada feito de quem veio e irá transportado pela CP.

Já se deu notícia da catedral, o claustro gótico é deslumbrante. No ato de pagamento da entrada compra-se por 20 cêntimos um desdobrável com imensa informação, tal como: “A estrutura da catedral apresenta a forma de uma cruz latina. A nave central é mais elevada que as naves laterais; o transepto ou cruzeiro tem ao centro e ao alto o zimbório ou torre lanterna – única do género em Portugal –, coroada por uma abóbada oitavada de ogivas, que projeta luz sobre o mesmo e sobre o presbitério. A atual capela-mor é um grandioso espaço embelezado pela variedade de mármores da região e outros. Foi mandada erigir por D. João V que, em 1716, encarregada do projeto o arquiteto régio João Frederico Ludovice, o mesmo do Palácio-Convento de Mafra. Sobressai, ao centro, sob o altar-mor, o grande crucifixo de cedro, esculpido por Manuel Dias, e uma grande tela de Nª. Sª. da Assunção, do pintor Agostino Masucci.” Referem-se ainda elementos e espaços que merecem menção especial, caso do coro-alto, o claustro, o pórtico principal, e no interior a imagem da Senhora do Ó, em mármore policromado a óleo.

Como há que fazer render o tempo, a visita é sumária, comete-se mesmo a indelicadeza de não percorrer o Museu da Arte Sacra, tem peças fabulosas, a luz do Sol revela-se amena, é uma manhã sem torreira, sinto-me espevitado em andar por ali a vadiar, certo e seguro depois de amesendar, então sim, atiro-me bem-disposto para museus, centros culturais, mais igrejas, o que não falta neste centro histórico é riqueza artística.

Aqui ficam as imagens da deambulação matinal, desde a Sé Catedral às vizinhanças.


Uma bela capela da Sé Catedral, o tema da tela é a clássica descida da cruz
Pormenor do altar-mor da Sé Catedral, o barroco veio substituir a abside gótica primitiva
Imagem de Nossa Senhora do Ó, em frente fica imagem do arcanjo São Gabriel, de Olivier de Gand
Imagem de S. Francisco Xavier
Batismo de Cristo, pintura junto da pia batismal
Nave lateral direita
Órgão renascentista que continua a levar os turistas japoneses a vê-lo, pois fascinou quatro jovens japoneses que visitaram Évora há mais de quatro séculos e ficaram assombrados com as suas sonoridades, é referência obrigatória para o turista nipónico
A torre lanterna da catedral vista numa das praças mais importantes de Évora, aqui estão o museu e o centro cultural
A imagem não precisa de apresentações, é o chamado Templo de Diana que de facto não era dedicado a Diana
Pormenor da fachada do Museu de Évora – Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo
Igreja de São João Evangelista
Palácio Duques de Cadaval, pormenor
Évora abunda em singeleza, graciosidade, transborda em surpresas, impossível ficar indiferente a esta ligação entre o edifício e a natureza
Idem, aspas, aspas, tudo gracioso, um antigo muito moderno
Virgem com o Menino, escultura de Nicolau de Chanterene, circa 1551, Palácio dos Condes de Sortelha

Aqui finda a passeata matinal, depois de umas migas com carne de porco e uma boa sobremesa com jila sentir-me-ei temperado a visitar os templos da cultura. Até já!

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 10 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25156: Os nossos seres, saberes e lazeres (613): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (141): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25156: Os nossos seres, saberes e lazeres (613): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (141): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Quando comecei a preparar este passeio a Évora, soltou-se-me uma recordação e estou a ver a minha adorada avó materna na cama, derrubada por um AVC, a ouvir na sua telefonia marca PYE canções alentejanas nas vozes de Francisco José e Luís Piçarra; havia um programa de discos pedidos pelos ouvintes e eu tinha a recomendação de pedir com regularidade O Meu Alentejo, por Francisco José, foram pedidos até à exaustão, mas era um consolo da minha ditosa avó, e falava-se de Évora com uma regularidade inusitada. Consolo também senti com este fim de semana inteiro a calcorrear Évora, sopesando as palavras de José Saramago, a cidade é muito mais do que está consagrado no Património da Humanidade, há uma intemporalidade que acaba por se revelar na dinâmica entre o antigo, o que é restaurado, o inovado e a permanência da cultura contemporânea, tudo se articula em bom concerto, é isto que dita a especificidade eborense.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (141):
Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (1)


Mário Beja Santos

Desta vez preparei-me a sério, procurei munição do melhor calibre, desde um roteiro turístico do Património Mundial, obras de Túlio Espanca, folhetos vários dedicados a museus, casas apalaçadas, belezas perenes desde o chamado Templo de Diana ao Centro Cultural da Fundação Eugénio de Almeida. Mas não resisti, à guisa de introito a este passeio pegar no belo álbum que a idealidade de Évora preparou para a candidatura da cidade a Património da Humanidade, é um luxo, texto de José Saramago e fotografias de Eduardo Gageiro. De mestre Gageiro não me atrevo a falar, seria insulto concorrer a minha câmara com a genialidade das suas imagens. Peço é licença a Saramago para uma citação que extraí deste álbum:
“A singularidade de Évora não deve ser procurada nas suas igrejas nem nos seus palácios. Palácios e igrejas é o que não falta pelo mundo fora, muitos deles, sem dúvida, de maior beleza e sumptuosidade do que estes que a invenção criadora e o engenho edificador de gerações portuguesas souberam erguer aqui. Évora podia ter a Sé, e apesar disto não ser Évora. Podia apresentar à admiração universal a relação completa dos seus elementos, e Évora continuar a não ser. Podia enumerar e descrever com amorosa minúcia os méritos arquitetónicos e artísticos de S. Francisco e de S. Brás, dos Paços de D. Manuel e da igreja da Graça, dos Loios e do Templo Romano, do Aqueduto da Água da Prata e do Seminário Maior, e ainda assim não chegaria a ser Évora. Há cidades que são sobretudo famosas pelos esplendores materiais que o tempo nelas foi depositando, ao passo que esta Évora seria sempre a Évora que profundamente sabemos ser, mesmo que um maligno passe de prestidigitação fizesse desaparecer da noite para o dia os seus atrativos mais evidentes, deixando-a apenas com a nudez das suas ruas e dos seus pátios, dos seus largos e calçadas, dos seus becos e travessas, das suas arcadas, dos seus terreiros. Com a nudez das suas frontarias, com a claridade das suas fontes, com o segredo das suas portas.
Porque Évora é principalmente um estado de espírito, aquele estado de espírito que, ao longo da sua história, a fez defender quase sempre o lugar do passado sem negar ao presente o espaço que lhe é próprio, como se, com o mesmo olhar intenso que os seus horizontes requerem a si mesma se tivesse contemplado e portanto compreendido que só existe um modo de perenidade capaz de sobreviver à precariedade das existências humanas e das suas obras: segurar o fio da história e com ele bem agarrado avançar para o futuro. Évora está viva porque estão vivas as suas raízes.”

Posto isto, saio para a rua e faço menção do primeiro passeio, com um belo sol de outono.

O que é que há de especial nesta arcada e no enfiamento das ruas, pode-se dizer? É a presença contumaz do branco e do amarelo, a singularidade é a de, em nenhuma circunstância, provocar monotonia, há também para ali uns lambrins em cinzento, dão realce ao que o olhar contempla. Saí à rua e vou daqui até à Praça do Giraldo bem embalado por estas duas cores prevalentes.
Há nomes bem curiosos para as ruas de Évora, pergunto-me se se tratava de um lagar de azeite e havia dízimos para a aristocracia da cidade ou para o senhor arcebispo. Gosto sempre do respeito pela memória. Nunca me esqueço daqueles anos em que fui representante na Confederação Europeia dos Sindicatos, esta sediava-se na Rua da Montanha de Hortaliça…, isto no centro histórico de Bruxelas.
Impossível não apreciar o tratamento num edifício intervencionado deixando à mostra algo que vem do passado. Porque património é mesmo dever de memória, não se aterram os vestígios de outras eras.
Impressiona este branco imaculado que vai do fontanário à fachada da igreja de Santo Antão, estamos no coração da Praça do Giraldo.
Não escondo a estupefação, consagrar o nome de uma rua aos estroinas ou outras pessoas pouco abonatórias, a que titulo se homenageiam os valdevinos, alguém me pode explicar?
Neste caminhar em rua pedonal em direção à Sé Catedral depara-se com esta loja dedicada a objetos da cortiça, da minha infância há a lembrança de mobiliário pintado e um punhado de objetos, o corcho e o tarro, por exemplo, regozijo com a amplidão de aplicações e folgo imenso com tal desenvolvimento comercial, é também uma maneira de revelar no mundo que somos a primeira potência corticeira.
Retiro o que vem na inscrição alusiva, trata-se da maior de Portugal de estilo românico-gótico, séculos XIII e XIV, menciona-se o belíssimo claustro gótico com o túmulo do fundador, o bispo D. Pedro, e recomenda-se ao visitante que não deixe de contemplar o órgão ibérico único em Portugal (séc. XVI), a imagem da Senhora do Ó (séc. XV) e o Arcanjo S. Gabriel (séc. XV), capela do Esporão (séc. XVI), Capela-mor (séc. XVIII), e Capela das Relíquias (talha do séc. XVIII).
Surpreende na escadaria da Sé o túmulo que se mostra, e dá satisfação ver que há cuidados de manutenção dada a exposição às inclemências do tempo.
Pormenor do pórtico, registo também satisfação com os cuidados de manutenção da preciosidade nestes lavores da pedra.
Impressionante escultura de um evangelista numa esquina de corredores do claustro da Sé de Évora
Transcrevo o que diz a inscrição sobre o claustro, é construção de meados do século XIV, prima a arte gótica com os seus arcos ogivais nas abóbodas e nas janelas e ainda desenhos geométricos nos óculos, de influência árabe. É aqui que se encontra a capela do fundador com o seu belo mausoléu da arte gótica e as imagens de S. Pedro, Virgem com o Menino, Senhora do Ó e o Arcanjo S. Gabriel; em casa ângulo do claustro, imagem dos quatro evangelistas.
Um pormenor do claustro
Claustro ajardinado, torre com pináculos, merlões da fachada lateral, há aqui qualquer coisa de catedral-fortaleza, mas não passa de uma suposição.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 3 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25131: Os nossos seres, saberes e lazeres (612): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (140): Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (9) (Mário Beja Santos)

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25131: Os nossos seres, saberes e lazeres (612): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (140): Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Com o passeio num troço do rio Douro, caminhou-se para o término destes dias de deslumbramento em lugares vinhateiros que totalmente desconhecia. O que prende a atenção em primeiro lugar é a afeição no acolhimento dos grupos que chegam, a sentida satisfação em mostrar o património, desde monumentos nacionais a lugares pitorescos, a vislumbres do passado, ver mulheres vindimadeiras a acenar com alegria a nossa passagem; e compreender como aqueles solos xistosos, declivosos, são esmeradamente tratados para dar vinho fino ou licoroso ou de mesa, é a região demarcada mais antiga e é vendo que se percebe porquê; e há os monumentos paisagísticos, inigualáveis que só o Douro dá permissão. Do pouco que vi, fica agora o desejo de alargar as vistas, há aqui uma gente muito gentil que nos toca o coração, não posso pois deixar de recomendar que façam romagem até estas paragens.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (140):
Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (9)


Mário Beja Santos

Estamos no Pinhão, é dia de passeio de barco pelo rio Douro, o tal rio de quem Miguel Torga proferiu esta sentença: “Nenhum outro caudal nosso tem tais estremecimentos, tais lutas, tão denodado pelejar em todo o curso; nenhuma outra nesga de terra possui mortórios tão vastos, tão estéreis e tão malditos.” Parece blasfémia, é uma observação lúcida à chusma de contradições que o Douro e o seu rio oferecem, a aridez do xisto e de uma terra que parece queimada, rio de sinuosidades que abre inusitadas plataformas coloridas, surpreendentes. Do perto ao longe vemos serras nuas a perder de vista, e dentro da aridez o verde quase todo o ano, dado pelas videiras, terra declivosa e nós a contemplar aquelas titânicas escadarias ou socalcos. Tudo isto é avistado a partir do Pinhão.
Houve que preparar algum conhecimento sobre o Douro e as suas terras, houve que reler de bom grado o Miguel Torga e Araújo Correia, este médico na Régua. Antes de partir para este Douro de aldeias vinhateiras tirei da estante o álbum Os mais belos rios de Portugal, texto de João Conde Veiga e fotografia de Augusto Cabrita, anotei num caderninho algo que me ajudou a fazer a leitura do rio e da paisagem: “O Douro é talvez a região mais trabalheira de Portugal. A terra áspera e íngreme, onde pela disposição nenhum mecanismo agrícola pode ser empregado, é toda laborada a aço e a pulso. O homem duriense, mal descobre na ilharga de um monte dois palmos de terra xistosa, sobranceiro ao rio, que lhe pareça propícia ao fabrico de um ou dois geios, aí está ele com a picareta e o ferro do monte a esfarelar, a erguer o socalco e a espetar no custoso degrau duas dúzias bacelos, que serão o seu melhor cuidado, até à morte, como se fosse as mais finas roseiras.”

É esta a paisagem que se desfruta, nesta manhã de sol esplendoroso.

O Pinhão e a sua ponte, o povoado na margem direita, a riqueza vinícola na esquerda
A vegetação a beijar o rio, o arvoredo a suster as terras, as videiras alinhadas, ao longe tudo parece pintado, entre o azul e o verde
Não chegaremos a Barca D’Alva, pouco importa, o olhar enriquece-se com todo este contraste, parecem águas oleosas, graças à luz do céu, veja-se o encarpado das margens, volto a pensar no Miguel Torga: “Socalcos são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limites plausíveis da visão. Um poema geológico. A beleza absoluta.” E o rio sulcado por embarcações turísticas, nas duas direções.
Sabe-se lá porquê, enquanto via esta árida encosta e o casario nela encimado recordei-me do primeiro filme de Manoel de Oliveira, “Douro, Faina Fluvial”, não propriamente um filme, mas um documentário, não passado aqui, mas na zona ribeirinha, e deu-me para questionar quão inusitado é este espetáculo e tão diametralmente diferente do Douro que atravessa o Porto e Gaia. Um escritor já completamente esquecido, Sousa Costa, falava do odor das uvas derramado no ar, em afagos capitosos, nos cânticos das mulheres e os gritos dos carregadores, registando a mancha movediça das vindimadeiras a arrancar os cachos maduros, eles cantando em coro estribilhos de canções populares, também tenho direito a deixar correr o pensamento e a imaginar que na curva seguinte vou presenciar, na plenitude, as vindimas nesta terra quente, e até avistar barcos rabelos…
Vamos voltar ao Pinhão, que já foi o embarcadouro das pipas de vinho fino a caminho das caves de Gaia, acenou-se ao comboio a caminho da Régua, não se avistaram vindimas e não há rabeleiros cheios de pipas, não o odor das uvas, só estes montes pintados, e então deu-me para pensar em Eça de Queiroz e numa observação dele em “A Cidade e as Serras”:
“Olha para o rio! Rolávamos na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco lento carregado de pipas. Para além, outros socalcos, de um verde-pálido de reseda, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebeciam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância do azul. Jacinto acariciava os pelos corredios do bigode: - O Douro, hein?... É interessante, tem grandeza.”

É a hora da despedida, estamos prestes a aportar no Pinhão. É nisto que recordo que ainda não se fez uma saudação ao vinho fino, para o vulgo vinho do Porto, socorro-me novamente de João Conde Veiga: “Mama, na sua nascença, nas fráguas de xisto, que acobertam a raiz do calor, depois é o sol que, numa estranha alquimia, se condensa no açucarado das uvas, e daí vai ser engarrafado em vinho como se fosse o próprio astro quente e brilhante que mandássemos aquecer os país das brumas.” Um passeio que me regalou. Vamos amesendar em Tabuaço, como sempre acontece, haverá um passeio derradeiro, o autocarro partirá depois à desfilada por horas, até nos largar em Sete Rios, bem perto do Jardim Zoológico.
Vagueando por Tabuaço, detive-me em frente a uma bica, muito gostei do conjunto azulejar, lá vão os campónios rumando para as alturas, não se sabe quais, para o caso não interessa, estamos a centenas e centenas de metros acima do nível do mar, é só mais uma escalada, porventura ali cultivam para a subsistência e tratam primorosamente as suas videiras, oxalá que ainda hoje assim seja.
Fica-nos a impressão que em termos turísticos Tabuaço é de pouca permanência, mas sabe bem ver quem aposta num modelo turístico não hoteleiro, provoca sempre agrado ver intervenções sérias como esta aparenta.
É a despedida, voltando atrás, àquela manhã em que fomos a Barcos, inequivocamente aldeia vinhateira, prendeu-nos a atenção este casarão que já conheceu melhores dias, mas guarda imponência ali junto à igreja matriz, que é de suprema excelência, para que conste.
Porquê voltar a falar de S. Pedro das Águias, um tesouro do românico, que não se visitou? Se é verdade que a viagem nunca acaba, há que criar argumentos para voltar, o Douro vinhateiro é imenso, e o último traço de memória que registo é o orgulho destas gentes pela sua ancestralidade e pela comunicação afetiva gerada pelo Douro que corre lá em baixo e por este xisto abençoado da terra quente onde medra um dos pais gostosos vinhos do mundo.
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Nota do editor

Pos anterior de 27 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25114: Os nossos seres, saberes e lazeres (611): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (139): Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (8) (Mário Beja Santos)

sábado, 27 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25114: Os nossos seres, saberes e lazeres (611): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (139): Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Insisto no pedido de desculpas por ter andado a revoltear imagens, depois de fotografar os belos conjuntos azulejares do Pinhão é que dei que tinha deixado para trás as imagens captadas em Santa Maria de Salzedas, cuja visita recomendo a quem quer que seja sem qualquer hesitação. Este edifício religioso é frisante, demonstrativo, de que quando entramos num espaço marcado pelo barroco ou pelo maneirismo a ninguém ocorre que já houve ali um outro edificado. Não sei por que carga de água o mosteiro cisterciense sofreu tais tratos de polé, a ponto de praticamente nada subsistir, a não ser vestígios. Depois foi vendido em hasta pública, dispersaram-se riquezas, felizmente que chegou a hora da recuperação e do restauro, permaneceram vestígios da igreja medieval, que era de planta em cruz latina, a atual fachada data dos finais do século XVIII, está marcada por duas torres laterais adiantadas, a nossa visita guiada começou pelo claustro do capítulo que leva obras de restauro vai para 13 anos, o resultado é imponente, por isso aqui se pretendeu dar uma imagem do espaço museológico, ele é bem merecedor do nosso desfrute tal a riqueza do seu património, basta pensar nos painéis atribuídos a Grão Vasco e o conjunto de obras legadas por Bento Coelho da Silveira, referência maior da pintura portuguesa do século XVII.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (139):
Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (8)


Mário Beja Santos

A tarde está reservada a Ucanha e ao Mosteiro de Santa Maria de Salzedas, na região de Távora-Varosa, região vitivinícola por excelência. Inicia-se a visita à casa do Paço de Dálvares, é um museu agrícola dentro de um edifício belamente reabilitado e onde se irá ouvir falar do espumante Murganheira. Fugi à lição, preferi deambular por este belo espaço e espiolhar o museu, mas não fugi à libação, muitos excursionistas não resistiram a fazer aquisições na loja de vendas.

Casa do Paço de Dálvares – Tarouca, Museu do Espumante
Um pormenor do pátio interior das instalações, este maciço de pedra é impressionante
Imagem do museu

Da Ucanha, da sua torre e ponte, já aqui se fez menção e se pediu muita desculpa por andar de trás para a frente por pura negligência de quem não sabe de manejar a câmara, e compulsar as imagens arquivadas, asseguro que a seguir à visita e este belo mosteiro vamos em definitivo navegar no rio Douro, sequência que se interrompeu quando se fez referência ao Pinhão e aos belos azulejos da sua estação ferroviária.
Bom, estamos diante deste mosteiro de Santa Maria de Salzedas Olhando a fachada, opulentíssima, ninguém acredita que tudo começou pela construção de um mosteiro cisterciense masculino, iniciado em 1168 graças ao patrocínio da segunda mulher de Egas Moniz; os monges receberam diretamente de D. Afonso Henriques o couto de Algeriz. Este domínio, mais tarde designado por Salzeda, e depois por Salzedas, abrangia as atuais freguesias de Ucanha, Granja Nova, Vila Chã da Beira e Salzedas, no concelho de Tarouca, e Cimbres, no concelho de Armamar.
A implantação do mosteiro obedeceu aos princípios da regra cisterciense, localiza-se num vale, há acesso direto a um curso de água, a ribeira de Salzedas, afluente do rio Varosa.
O passeio terminará com a visita à igreja, que já foi medieval de planta em cruz latina, tem três naves e transepto saliente, foi sagrada em 1225. Veremos pelas imagens que apesar das muitas alterações introduzidas nos séculos XVI, XVII e XVIII, ainda é possível observar da construção original alguns elementos. A fachada, evidentemente, nada guarda desses tempos da Reconquista Cristã.

Ao longo dos últimos anos, este monumento absurdamente votado ao abandono, tem vindo a ser objeto de intervenções de conservação e salvaguarda, com destaque para a consolidação do claustro de capítulo. O mosteiro está agora integrado na rede de monumentos do projeto turístico-cultural Vale do Varosa. Entre 2010 e 2011 foi levada a cabo uma profunda intervenção de recuperação e valorização que incluiu restauro do património integrado e criação de um espaço museológico que veio a ser aberto ao público, é bem merecedor de visita pelo seu destacado valor histórico e patrimonial.
Uma parte da recuperação, mas é bem visível que ainda há muito a restaurar
Uma simples imagem da bela azulejaria que se conserva, mas há para ali danos irreversíveis. Os azulejos que cobrem a sala do capítulo são azulejos de maçaroca a azul e amarelo. Este espaço monárquico, riquíssimo em arte, sofreu muitíssimo com a extinção das ordens religiosas em 1834, foi tudo vendido em hasta pública (espaço monástico e recheio) ficando para uso da paróquia a igreja, a ala Este e parte da ala Sul.
Entrámos agora na área museológica, mais propriamente na sacristia, este Cristo na cruz é de uma beleza impressionante
Imponentes painéis que tudo ganharam com o restauro
Há dois quadros no espaço museológico atribuídos a Vasco Fernandes, Grão Vasco é dado como responsável por um dos mais excecionais retábulos deste mosteiro, constituído por quatro painéis com as figuras de S. Sebastião, Santo Antão, Santa Catarina e Santa Luzia, produzidos entre 1511 e 1515. Estão aqui restaurados S. Sebastião e Sto. Antão, são uma das principais atrações deste núcleo museológico.
Nesta galeria há obras que merecem uma contemplação atenta. É o caso destes das obras de Bento Coelho da Silveira, uma delas, Imposição do hábito a S. Bernardo, possui um equilíbrio nos volumes e na segurança com que trata o grupo humano que certifica o indiscutível talento desta referência maior da pintura portuguesa do século XVII. Bento Coelho da Silveira é autor de um conjunto de pinturas realizado para este mosteiro constituído por diversas cenas da vida de S. Bento e S. Bernardo, que ele realizou entre 1667 e 1675. Faziam provavelmente parte do conjunto das oito telas do espaldar do arcaz da sacristia.
Capitel em granito talhado, séculos XII-XIII
Capitel geminado pertencente ao claustro original, também em granito talhado, séculos XII-XIII
Interior da igreja, nave principal
Quatro imagens que permitem ver elementos do templo primitivo, como foi referido, tudo foi refeito a uma escala que vai do maneirismo ao barroco, mas não se apagaram estes elucidativos vestígios da Cister no Vale de Varosa, séculos XII e XIII.

Aqui findou o passeio e regressámos a Tabuaço. O dia seguinte foi reservado ao Pinhão, de que já se falou, segue-se o esplendoroso passeio pelo Douro, à tarde houve quem quis ir visitar S. João da Pesqueira, precisei de ler e repousar. Na manhã seguinte despedimo-nos de Tabuaço, e a excursão de 5 dias deixou-nos em Sete Rios, o local dá sempre jeito, apanha-se o comboio para Roma-Areeiro, um quarto de hora depois está-se em casa.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 20 DE JANEIRO DE 2024 > lGuiné 61/74 - P25092: Os nossos seres, saberes e lazeres (610): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (138): Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (7) (Mário Beja Santos)